A EDUCAÇÃO PRISIONAL COMO DIREITO HUMANO DO APENADO E SEU PAPEL NA RESSOCIALIZAÇÃO

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8086990


Leonardo Athayde de Albuquerque; Anderson Marques Dimari; Diego Conceição Monteiro; Eduardo Lopes Cardozo; Luan Benetti Valim; Luana dos Santos Rodrigues Espindola; Luana Rodrigues Marques; Matheus Quedi Bergoli; Maurício Marcelo Marciel Costa; Paulo Henrique Fagundes; Rafael Machado da Costa; Rogério Giordani


RESUMO:

Os direitos humanos têm ganhado espaço a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Entre eles, encontra-se o direito à educação. Considerando-se o papel de destaque do direito à educação e a situação complexa dos sujeitos cumprindo pena privativa de liberdade, o presente artigo científico tem o objetivo de realizar uma análise, ainda que sem esgotar o tema, a respeito da educação no cárcere no Brasil e como esta pode contribuir para a ressocialização do aprisionado. Para tanto, procedeu-se à revisão bibliográfica de obras relevantes publicadas neste segmento. Observou-se que, apesar do crescimento legislativo alcançado na última década nesta matéria, ainda há um longo caminho a ser percorrido, com diversos problemas que atingem de forma específica a educação no cárcere. Para se alcançar os objetivos da educação como fator chave para o pleno desenvolvimento da personalidade humana, é fundamental considerar-se a educação no cárcere como direito humano do aprisionado.

PALAVRAS-CHAVE: Assistência educacional. Direitos humanos. Educação. Sistema prisional. Ressocialização.

1 INTRODUÇÃO

Em 1948, surgiu o maior marco dos direitos humanos, representado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. Este documento, considerado como uma norma comum, a ser alcançada e respeitada por todas as nações, considerou a educação como direito de toda pessoa, determinando inclusive que esta deve ser gratuita e buscar o pleno desenvolvimento da personalidade humana.

Assim, na condição de direito humano, a educação encontra-se entre aqueles direitos que não podem ser negados mesmo aos sujeitos em situação de cumprimento de pena privativa de liberdade. Com base na Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Constituição da República Federativa do Brasil e na legislação de execução penal, verifica-se que a educação deve ser fornecida aos aprisionados pelo Estado.

No entanto, a situação precária do sistema carcerário brasileiro inspira dúvidas a respeito da efetivação deste direito aos aprisionados no país. Assim, o presente artigo científico, através da revisão bibliográfica, investiga as condições da educação nas unidades prisionais brasileiras, buscando detectar os principais problemas constatados e possíveis soluções para estes.

2 DESENVOLVIMENTO

O direito à educação é considerado um direito público, subjetivo e inalienável da condição humana. A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 explicita que a instrução gratuita nos graus elementar e fundamental é direito de toda pessoa. Refere, ainda, que esta educação deve ser orientada para o pleno desenvolvimento da personalidade humana e para o fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e das liberdades fundamentais.

No ordenamento jurídico brasileiro, a Constituição da República Federativa do Brasil também consagra o princípio da universalidade do direito à educação, em seu artigo 208, § 1º, o qual dispõe que “O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo”. Assim, é consagrada a garantia da educação como direito humano de qualquer pessoa, sem nenhum tipo de distinção.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional atribui ao Estado a garantia de oferta da educação a todos, a qual deverá ser providenciada de forma pública e gratuita, mais uma vez destacando os objetivos da educação já consagrados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, quais sejam, o desenvolvimento pleno do educando, o preparo para o exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho.

No sistema penitenciário, apesar da pouca atenção dedicada ao tema, seja pelos profissionais do meio jurídico, do próprio sistema penitenciário ou pelos profissionais da educação, a educação também consiste em um direito humano. Tratando-se de um direito humano e de uma realidade, a educação no sistema penitenciário desafia os pesquisadores da área a construir uma concepção de educação renovada, pensada especificamente para estes ambientes (CARNEIRO JÚNIOR, 2015).

Não há dúvidas de que a educação no cárcere continua sendo, ao mesmo tempo em que direito do apenado, um dever estatal. O artigo da Lei de Execuções Penais atribui ao Estado o dever de assistência ao preso e ao internado, visando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade. No artigo 11, este mesmo diploma legal enumera diversas ramificações do dever de assistência, elencando, entre outras, a assistência
educacional.

Ainda a este respeito, Onofre e Julião (2013, p. 52) relatam que

a educação na prisão deve ser vista pela perspectiva dos direitos humanos, porque ela constitui um valor em si mesma, um conjunto de ferramentas e de capacidades que ampliam as possibilidades de implementação de projetos que contribuam para a inclusão social, cultural e econômica das pessoas aprisionadas.

É por esta razão que Graciano (2005) elenca que o direito humano à educação pode ser classificado de maneiras distintas, seja como direito econômico, social ou cultural. No âmbito civil e político, este direito também é considerado, uma vez que é de caráter central para a realização dos demais direitos. Assim, por potencializar e possibilitar a realização de outros direitos, o direito à educação também é chamado de direito de síntese.

Conforme já referido, a atenção concedida à esta matéria pelos especialistas continua esparsa. Isso se deve, em muito, à complexidade da organização e funcionamento de políticas de educação escolar nas prisões. Torna-se complexo porque

se realizam a partir da articulação do sistema de educação com o sistema penitenciário (Ministério da Educação, Ministério da Justiça, Secretarias Estaduais de Educação e Secretarias de Defesa Social ou Administração Prisional, além de órgãos integrantes desses sistemas, como os presídios e as penitenciárias), que, por sua vez, articula-se com o sistema de justiça penal e com a sociedade (OLIVEIRA, 2013, p. 957).

Ainda assim, há que se destacar os avanços significativos no que diz respeito à implementação de políticas públicas que concretizem o dever de assistência educacional aos apenados. A partir de 2005, realizaram-se dois seminários nacionais a respeito da educação nas prisões e foi desenvolvido o projeto Educando com a Liberdade, o qual contou com parceria entre a UNESCO e o Ministério da Justiça (CARNEIRO JÚNIOR, 2015).

Além disso, foi elaborada no ano de 2010 a Resolução Número 2, de 19 de maio de 2010 as diretrizes nacionais para a oferta de educação para jovens e adultos em situação de privação de liberdade nos estabelecimentos penais. Foi também instituído o plano estratégico de educação no âmbito do sistema penal. Nos estados, a elaboração de planos estaduais de educação nas prisões merece destaque (CARNEIRO JÚNIOR, 2015).

Nesta mesma resolução, através do inciso VII, artigo 3º, determinou o oferecimento da Educação de Jovens e Adultos nos estabelecimentos penais em todos os turnos. No inciso III do artigo 4º, previu-se a implementação de estratégias de divulgação das ações de educação para os internos, incluindo chamadas públicas periódicas para as matrículas.

Em 2011, a Lei de Execuções Penais foi modificada para, além de incluir a assistência educacional como direito do apenado, possibilitar a remição da pena através dos estudos. De acordo com a legislação, 12 horas de frequência escolar equivalem a um dia a menos de pena. Além disso, o tempo descontado em função das horas de estudo é acrescido de um terço nos
casos de conclusão do ensino fundamental, médio ou superior durante o cumprimento da pena, desde que certificada pelo órgão competente do sistema de educação.

No entanto, essa inclusão legislativa recebeu também críticas, as quais são pontuais e pertinentes. Silva e Moreira (2012, p. 03) apontam que a remição baseada unicamente na frequência escolar, ignorando a conclusão de ciclos, modalidades ou níveis, faz com que o cumprimento dos objetivos educacionais seja prejudicado.

No ano de 2015, foi sancionada pela presidente Dilma Rousseff a Lei nº 13.163, a qual tornou obrigatório também o ensino médio nos presídios. Até então, a educação era voltada unicamente para o ensino fundamental, o que prejudicava os apenados que já haviam cumprido esta etapa escolar. Além do ensino médio, a legislação também incluiu a possibilidade de educação à distância e de utilização de novas tecnologias no ensino aos
apenados.

Todas essas políticas públicas posicionam a educação como peça central na solução do problema carcerário brasileiro, o qual se agrava de maneira progressiva. O ciclo de violência é persistente e, por mais que se construam novas prisões, a população carcerária segue aumentando e a superlotação é problema frequente. De acordo com dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) analisados por Souza (2017), entre 2000 e 2014 o número de presos no Brasil cresceu 168%. Os dados apontam, ainda, que a população carcerária é de seiscentas e vinte e duas mil pessoas, enquanto a capacidade seria de apenas trezentos e setenta e um mil detentos.

Os mesmos dados também apontam que existe uma dificuldade imensa em romper o ciclo de exclusão e criminalidade, ou seja, de efetivar o objetivo da ressocialização dos apenados. Embora a apuração seja difícil e muitas vezes imprecisa, a taxa de reincidência (detentos que retornam ao sistema carcerário) varia entre 30%, nas estimativas mais otimistas, e 80% naquelas com os maiores números (SOUZA, 2017).

Diante deste cenário, a educação no cárcere tem sido apontada como uma possível saída, uma vez que a deficiência educacional é uma realidade entre a população carcerária, com grau de escolaridade muito baixo. Os dados apontam que, “enquanto a média nacional de pessoas que não concluíram o ensino fundamental é de 50%, no sistema prisional 8 em cada 10 pessoas estudaram no máximo até o ensino fundamental” (SOUZA, 2017).

Por sua vez, no que diz respeito ao ensino médio, 32% da população brasileira já o concluiu. Na população prisional, apenas 8% concluiu essa etapa de estudo. A proporção é um pouco maior entre as mulheres, chegando a 14% de conclusão entre as detentas (SOUZA, 2017).

Onofre e Julião (2013, p. 59) destacam que esta “exclusão é global: exclusão da escola, do trabalho, da integração social, do emprego, dos laços familiares e com ausência de relacionamentos”

De acordo com Pereira (2011, p. 49), sendo “uma educação que trabalha com pessoas marginalizadas, buscando a reconstrução de uma cidadania possível”, a educação nas prisões está interligada ao campo teórico da Pedagogia Social.

Pode-se subdividir a educação no sistema carcerário em duas espécies de atividades: as atividades formais e as atividades complementares. As atividades formais são constituídas pelo processo de alfabetização, pelo ensino fundamental, médio ou superior e por cursos técnicos e voltados à capacitação profissional. Podem ser oferecidos de maneira presencial ou à distância. As atividades complementares, por sua vez, compreendem os projetos de redução de pena “através de horas dedicadas a projetos de leitura e esporte, além de atividades complementares como videoteca, atividades de lazer e cultura” (SOUZA, 2017).

No que diz respeito à remição da pena através da leitura, o artigo 21 da Lei de Execução Penal estabelece a exigência de implantação de uma biblioteca por unidade prisional, para uso de todas as categorias de reclusos, provida de livros instrutivos, recreativos e didáticos. No entanto, apesar da previsão do artigo 21 da Lei de Execução Penal, somente um terço das unidades prisionais conta com bibliotecas.

Embora recomendada pela Recomendação nº 44 do Conselho Nacional de Justiça e já adotada em diversos presídios no território nacional, tal modalidade de remição ainda não se encontra prevista na Lei de Execução Penal. Tramitam no Congresso Nacional projetos de lei visando a oficialização desta hipótese de remição, através da alteração do artigo 126 da Lei de Execução Penal. Por algumas vezes, propostas semelhantes já tramitaram e foram arquivadas ao final da legislatura (vide PL 726/2015).

Atualmente, de acordo com a recomendação do Conselho Nacional de Justiça, nos presídios em que é aplicada, a remição através da leitura funciona da seguinte maneira. O preso tem entre vinte e dois e trinta dias para realizar a leitura de uma obra. Ao final desse período, deverá apresentar uma resenha a respeito da obra, a qual deverá ser avaliada pela comissão organizadora do projeto. Estabeleceu-se o limite de doze obras por ano, tendo a possibilidade de remição de até quatro dias para cada obra lida.

De acordo com os dados do Infopen, analisados por Souza (2017), o Paraná é o estado com maior número de presos matriculados no programa de remição por leitura, com um total de 1782 presos.

A educação nos presídios enfrenta os mesmos desafios da educação tradicional, acrescidos de desafios muito particulares ocasionados pelo sistema carcerário. Neste sentido,Onofre (2007, p. 23) aponta que, apesar dos elementos comuns com a educação dos libertos, para aqueles em situação de cárcere o papel da educação é mais amplo, “pois permite a liberdade e a esperança de transformação da realidade primitiva do mundo prisional. E, nessa medida, a educação no presídio estará sempre preocupada com a promoção humana […]”.

Diversos dos desafios mencionados encontram-se associados ao que se convencionou chamar de cultura prisional. Esta cultura se encontra visível nos discursos dos diversos sujeitos que compõem o cenário da educação prisional (agentes penitenciários, diretores, presos, professores). Essa cultura prisional muitas vezes é a responsável pela ideia de que a educação nas prisões consistiria em uma espécie de privilégio aos presos. Também pode ser percebida na contradição entre a hostilidade e a degradação dos ambientes penitenciários com o discurso de ressocialização e emancipação que não é colocado em prática (CARNEIRO JÚNIOR, 2015).

Os sujeitos envolvidos na prática educacional no sistema penitenciário precisam enfrentar desafios que se iniciam na falta de projetos pedagógicos, de materiais didáticos e de infraestrutura adequada para a efetivação do processo de ensino e aprendizagem dos privados de liberdade, chegando no enfrentamento das modificações realizadas pela cultura prisional em todos estes sujeitos (ONOFRE, JULIÃO, 2013, p. 59).

Vindos de um contexto de exclusão geral, conforme já mencionado, para os presos, ao chegar à prisão, a atitude que parece mais coerente é a de buscar adaptar-se às normas específicas do local. Nas palavras de Onofre e Julião (2013, p. 59), “um bom interno do sistema é alguém que não assume qualquer responsabilidade, apenas respeita as regras, o ritmo, as decisões dentro da instituição”.

Os autores evidenciam, ainda, que na rotina do sistema carcerário, o aprisionado não necessita tomar decisões da vida cotidiana que, de outro modo, integrariam inevitavelmente a vida diária de qualquer cidadão. Pode-se citar entre estas atividades o preparo das refeições, a escolha das atividades diárias, o contato com pessoas de lugares variados, o controle do orçamento familiar. De maneira contrastante, espera-se que, ao conquistar a liberdade, o aprisionado seja capaz de lidar com estes aspectos do cotidiano (ONOFRE, JULIÃO, 2013, p. 59). É neste sentido que Maeyer (2006) afirma que a prisão é por si só um espaço não-educativo, por incentivar unicamente a adequação às regras.

Goffmann (1974, p. 23) identifica este processo com um desculturamento ou um destreinamento.

Onofre e Julião (2013, p. 57) explicitam que

A privação de liberdade – através das condições emocionais, contextuais, históricas e pessoais – gera uma retração ao uso da palavra. O indivíduo perde a voz em todos os sentidos – ele é silenciado, ao perder a palavra como componente de sua identidade, como direito a dizer o que pensa, sente, vê e escuta. Deixa de dialogar, de resolver conflitos e de fazer acordos, passando a viver em um clima de desconfiança, de egocentrismo e de agressividade. Não se pode perder de vista ao analisar quem é o sujeito da ação educativa, os efeitos nele promovidos pelas técnicas punitivas da prisão, uma vez que nesse espaço, os tempos e as atividades são programadas rigorosamente, segundo regras orientadas para realizar o fim oficial da instituição.

A vulnerabilidade psicológica, a indiferença afetiva e a instabilidade emocional, social e cultural dificultam a ação educativa. Fatores como a baixa autoestima, a falta de motivação, o isolamento, atitudes e expectativas reduzidas no presente e marcadas indelevelmente pelo passado são responsáveis em parte por essas dificuldades (ONOFRE, JULIÃO, 2013, p. 58).

Neste contexto, os processos educativos deixam de operar devidamente. Como consequência, o desenvolvimento de habilidades e destrezas de relacionamento social e pessoal e todo o processo de socialização funcionam como potencializadores para as fragilidades já existentes, como os vínculos familiares, valores e participação social (ONOFRE, JULIÃO, 2013, p. 59).

Carneiro Júnior (2015) aponta que um dos principais desafios na construção de uma prática pedagógica adequada ao espaço prisional consiste na “elaboração de um regimento escolar que pudesse preservar a unidade filosófica, político-pedagógica, estrutural e funcional das práticas de Educação nas Prisões”. Neste sentido, torna-se bastante evidente o paradoxo existente entre a lógica da segurança e a lógica da educação.

O princípio fundamental da educação é transformador em sua essência. Por sua vez, a lógica da segurança que leva à cultura prisional, é “caracterizada pela repressão, ordem e disciplina, que visa adaptar o indivíduo ao cárcere” (ONOFRE, JULIÃO, 2013, p. 53).

Desta maneira, torna-se essencial que se encontre para estas duas lógicas um

foco de convergência, com o objetivo comum de oferecer processos educativos (quer de maneira escolar ou não escolar) que mantenham o aprisionado envolvido em atividades que possam melhorar sua qualidade de vida, e criar condições para que a experiência educativa lhe traga resultados úteis (trabalho, conhecimento, compreensão, atitudes sociais e comportamentais desejáveis) que perdurem e lhe permitam acesso ao mercado de trabalho e continuidade nos estudos quando em liberdade, (re)integrando-o eficazmente à sociedade, com um projeto de vida adequado à convivência social (ONOFRE, JULIÃO, 2013, p. 53).

Outra dificuldade apontada de forma recorrente pelos pesquisadores e professores envolvidos com a educação no sistema carcerário é relacionada ao material didático. Carneiro Júnior (2015) aponta a necessidade de “produção de material didático específico para a educação no sistema penitenciário”. Oliveira (2012, p. 10) relata que “a proibição de alguns materiais pedagógicos o que dificulta a realização de algumas atividades”. Onofre e Julião (2013, p. 62) destacam que “todo o material é examinado pelo setor de segurança, antes de sua utilização”.

Neste sentido também se verifica que as atividades escolares se encontram desqualificadas e ameaçadas, na dependência quase cotidiana de consentimentos. Devido ao excesso de zelo pela segurança, recursos criativos são constantemente impedidos, tais como, apresentar filmes, convidar palestrantes, desenvolver pesquisas e realizar atividades coletivas (BRASIL, 2010, p. 21).

Oliveira (2012, p. 10) aponta ainda que a rotatividade, tanto dentro da penitenciária quanto de uma penitenciária para outra é um fator que prejudica o desenvolvimento dos conteúdos. Isso acontece porque, a cada mês, é necessário retomar conhecimentos básicos de cada disciplina devido ao ingresso de novos alunos.

Além disso, tanto professores quanto alunos dentro do sistema educacional carcerário apontam dificuldades relativas à locomoção do detento até a sala de aula. Santos (2015, p. 105) aponta que é complicado “porque vai depender da boa vontade dos carcereiros, que precisam ir buscar os presos nas celas e conduzi-los até a classe”. Alguns presos entrevistados por Oliveira (2013, p. 962) apontam a mesma dificuldade, sustentando que alguns agentes de segurança da penitenciária em que se encontravam buscavam dificultar o seu acesso às atividades de educação, deixando de busca-los nas celas para conduzir ao espaço letivo nos horários devidos.

Na pesquisa realizada por Prado (2015, p. 57), os educadores evidenciaram sua insatisfação com a modalidade de contratação nas unidades prisionais de Manaus. Nestes locais, a contratação se dá em regime provisório, sem a realização de concurso público, sujeitando os professores à instabilidade da vida política. Os profissionais apontam a necessidade de “apadrinhamento” para a permanência no sistema por períodos prolongado como um problema grave.

Onofre e Julião (2013, p. 62) frisam a necessidade de uma formação específica para os profissionais que se dedicarem a atuar nas escolas do cárcere. Os autores justificam esta necessidade apontando as singularidades do contexto, uma vez que é influenciado pela trajetória escolar, pela história social e cultural e por questões ligadas à violência e ao delito. Todas estas especificidades tornam o ato pedagógico num espaço de insegurança, seja para professores iniciantes ou experientes, muito mais complexo.

As opiniões dos aprisionados a respeito das atividades, da própria escola e do trabalho tendem a ser bastante positivas. Isso se deve, em parte, pela já referida cultura prisional. Nesta cultura, a sobrevivência depende da capacidade de dissimular, mentir e conter-se do aprisionado. Assim, o aprisionado torna parte de sua identidade aquilo que dele se espera – inclusive a avaliação positiva a respeito da educação no cárcere (ONOFRE, JULIÃO, 2013, p. 58).

De acordo com as pesquisas de Onofre (2007, p. 20), o espaço escolar nas prisões é considerado por muitos alunos como fundamental para efetivação do direito à cidadania. A aprendizagem da escrita e da leitura são indispensáveis para que o aprisionado possa adquirir um mínimo de autonomia. Consiste, também, em uma forma de resistir às pressões que reforçam a prática do crime, exercidas pelo próprio sistema penitenciário.

Oliveira (2012, p. 9) observou, em pesquisa nas penitenciárias do complexo de Charqueadas, que os reeducandos anseiam por cursos profissionalizantes, como elétrica, informática, eletrônica e hidráulica. Houveram também sugestões de cursos de artesanato. Isto ocorre porque nestas penitenciárias o único nível educacional oferecido é o Ensino Fundamental. Outra mudança importante solicitada pelos aprisionados é a retirada das grades divisórias entre professores e alunos nas salas de aula.

Apesar dos avanços legislativos relatados, os dados coletados pelo Infopen e analisados por Souza (2017) demonstram que a aplicação prática ainda precisa de muito avanço. O ensino no cárcere alcança apenas um a cada dez aprisionados. De toda a população carcerária, menos de 1% tem acesso ao ensino superior. Em 19 das 27 unidades da federação, essa modalidade de ensino sequer é ofertada. Quanto ao ensino técnico, também apenas 1% está cursando esta modalidade, a qual só é ofertada em 13 das 27 unidades federativas. Somente na metade das unidades prisionais brasileiras estão disponíveis salas de aula para programas de educação. Em 9% das unidades existem salas de informática e em 18% salas de professores. Dos presos matriculados no ensino formal, 51% ainda estão cursando o ensino fundamental. De todas as unidades da federação, apenas em Sergipe e Mato Grosso do Sul há o oferecimento de atividades esportivas aos privados de liberdade.

A educação no cárcere pode, ainda, servir como ferramenta de combate à superlotação, uma vez que a educação, nas diversas modalidades citadas ao longo deste trabalho, é uma forma de redução do tempo de pena a ser cumprido, o que auxilia a diminuir a superlotação. Não se pode perder de vista, também, que ao oferecer uma perspectiva diferente da prática do crime, há diminuição da possibilidade de reincidência, o que também combate a superlotação (SOUZA, 2017).

Neste sentido, Onofre e Julião (2013, p. 54) explicitam que a educação no cárcere tem a capacidade de promover situações de vida de boa qualidade, bem como gerar interações positivas entre os indivíduos. A educação é uma ferramenta que enraíza e “recompõe identidades, valoriza culturas marginalizadas, promove redes afetivas e permite a (re)conquista da cidadania”. Dentro do cárcere, espaço repressivo por natureza, a figura dos educadores fica em evidência, tornando estes atores fundamentais na ressignificação do mundo pelo apenado.

É por esta razão que, mesmo no contexto prisional, a escola deve primar pela educação de qualidade, uma vez que continua sendo uma instituição com responsabilidades e identidade próprias, dotada de relativa autonomia. Ainda, a educação no cárcere não deve ser encarada como programa compensatório ou educação de segunda categoria: deve-se manter em foco que a educação é um direito humano (ONOFRE, JULIÃO, 2013, p. 62-63).

Mantendo-se a visão da educação como direito humano, como centro e essência do reconhecimento do indivíduo em situação de privação de liberdade como sujeito de direitos, é possível vislumbrar que a educação no cárcere possui finalidade distinta daquela atribuída à pena. Enquanto os “sistemas penitenciários organizam-se em torno dos imperativos da punição” (ONOFRE, JULIÃO, 2013, p. 56), a promoção de práticas educativas fica prejudicada. Esse descompasso deve ser corrigido para que se alcance os fins propostos pela educação no cárcere.

Neste sentido, o Parecer CNE/CEB nº 2/2010 (p. 14) não deixa espaço para dúvidas a respeito de como deve ser encarada a educação no cárcere, ressaltando que esta é

um dos únicos processos capazes de transformar o potencial das pessoas em competências, capacidades e habilidades e o educar como ato de criar espaços para que o educando, situado organicamente no mundo, empreenda a construção do seu ser em termos individuais e sociais, o espaço carcerário deve ser entendido como um espaço educativo, ambiente socioeducativo. Assim sendo, todos que atuam nestas unidades – dirigentes, técnicos e agentes – são educadores e devem estar orientados nessa condição. Todos os recursos e esforços devem convergir, com objetividade e celeridade, para o trabalho educativo.

Desta forma, a função de segurança não pode se sobrepor à função educativa de forma a anular seu sentido e significado (ONOFRE, JULIÃO, 2013, p. 63).

A escola no cárcere deve, portanto, ser repensada de modo a desenvolver uma comunidade de aprendizagem efetiva, envolvendo todos os atores que delas participem. O projeto pedagógico deve ser formado por ações que contribuam de fato para uma construção de um projeto de vida ao sujeito privado de liberdade. Assim, para efetivar o previsto no Parecer acima citado, “as equipes multidisciplinares, formadas por professores, psicólogos, assistentes sociais, agentes penitenciários devem se constituir em grupo de socioeducadores que trabalham de maneira colaborativa” (ONOFRE, JULIÃO, 2013, p. 60)

Também no sentido de efetivar as recomendações do parecer, Oliveira (2013, p. 966) sugere que “ órgãos competentes assumam a educação como uma das políticas de inclusão social e, em articulação com as políticas setoriais, vislumbrem a construção coletiva de uma educação voltada à formação crítica e abrangente, e não apenas escolarizada”.

Assim, Prado (2015, p. 43-44) define que o ensino no cárcere não deveria ter a finalidade de ampliar a mão de obra no mercado de trabalho ou de erradicar definitivamente o crime, embora sem dúvidas auxilie neste processo. O propósito da educação no cárcere deve ser de auxiliar na redução da exclusão geral que a população carcerária sofre, diminuindo a desigualdade social a partir do conhecimento. Deve-se entender o conhecimento como uma ferramenta capaz de fornecer condições para a reinserção no mundo do trabalho, favorecendo a compreensão racional da realidade e eliminando o estigma da invisibilidade imposto pelo cárcere.

3 CONCLUSÃO

A partir dos dados coletados na presente revisão bibliográfica, é possível perceber que o avanço na temática da educação no cárcere se deu em especial na última década, através de melhorias legislativas e pesquisas aprofundadas. Verificou-se que a educação no cárcere, como direito humano, é fundamental para a construção da identidade dos aprisionados e para possibilitar a estes uma nova perspectiva de vida, que pode afastá-los da criminalidade e aproximá-los da sociedade que sempre os excluiu.

A educação no cárcere auxilia na ressocialização dos apenados não somente por possibilitar a remição da pena e a diminuição do tempo encarcerado, mas por apresentar aos educandos novas visões de mundo e novas possibilidades. Assim, apesar do conflito aparente entre a lógica da segurança e a lógica da educação, a transformação possibilitada pela educação pode colaborar para a ressocialização e, consequentemente, tornar a lógica da segurança obsoleta.

Novamente, pode-se observar nesta pesquisa que a educação é parte essencial do caminho para a formação de cidadãos, mesmo (e talvez especialmente) daqueles que se encontram privados de liberdade, de maneira mais evidente quando o ato educacional é praticado de forma a concretizar o objetivo de desenvolvimento pleno do ser humano.

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