A GRAMÁTICA NORMATIVA NO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA CENTRALIZADO EM OBJETIVOS SOCIOCOMUNICATIVOS

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7995735


Ana Carolina Ferreira dos Santos1


RESUMO

As discussões sobre o ensino de gramática nas aulas de língua portuguesa foram bastante impulsionadas a partir das críticas levantadas pelos estudos linguísticos e se destacam como importante instrumento de reflexão para o desenvolvimento de práticas de ensino de língua cada vez mais significativas para o processo linguístico-educacional. Neste artigo, apresentamos concepções e postulados sobre gramática, buscando identificar o que linguistas têm defendido sobre a natureza gramatical da língua e sobre o uso da gramática normativa para o ensino de língua materna, para assim refletir a possibilidade de abordar as regras da gramática normativa com a finalidade de alcançar objetivos de ensino pautados na natureza sociocomunicativa da língua. Desse modo, trazemos discussões realizadas por Travalgia (2011), Marcuschi (2008), Costa Val (2002), Antunes (2003), Faraco e Castro (1999), dentre outros, que nos sustentam na reflexão acerca do fenômeno linguístico-gramatical considerando a integração entre a sistematicidade simbólica da língua e seu aspecto sociointerativo e que nos auxiliam a compreender a relação da gramática normativa e o ensino centralizado nos objetivos sociocomunicativos.

Palavras-chave: gramática normativa, ensino de língua materna, competências sociocomunicativas.

INTRODUÇÃO 

Com o advento da Linguística no Brasil, o ensino de gramática foi alvo de fortes críticas, principalmente, em virtude do caráter excessivamente normativo com o qual se efetivava as práticas escolares de ensino de língua. Com isso, estudos recentes da ciência da linguagem apontam o texto como objeto central para o ensino de língua como modo de abarcar o uso real da língua, ou seja, alcançar a natureza sociocomunicativa da linguagem. Por outro lado, como bem explica Travaglia (2011), não há como se trabalhar com o texto sem se trabalhar com a gramática, assim, partindo do entendimento de que a gramática é plural, busca-se neste artigo refletir a possibilidade de utilizar a gramática normativa para alcançar objetivos sociocomunicativos no ensino de língua portuguesa.

Para tanto, é necessário compreender o papel e o valor da gramática normativa para o ensino da língua portuguesa a partir do desenvolvimento dos estudos da Linguística e refletir a relação gramática e texto para o ensino de língua portuguesa pautada no desenvolvimento das competências sociocomunicativas do falante, identificando o que recentes estudos da linguística têm concluído sobre o uso da gramática normativa para o ensino de língua portuguesa. 

A importância de refletir o uso especificamente da gramática normativa para o ensino da língua portuguesa e se esta gramática pode contribuir para o alcance de objetivos sociocomunicativos do ensino de língua ganha destaque quando partimos do entendimento de que a concepção de gramática é plural, um vez que o foco na gramática normativa possibilitará abordar a relação dicotômica texto-gramática buscando compreender se é ou o quanto é possível abordar uma metalinguagem e/ou um sistema de regras formalmente estruturado sem adentrar em uma prática de ensino meramente tradicional-prescritiva. 

Como forma de proceder com as presentes pretensões desta investigação, recorreu-se a pesquisa bibliográfica, buscando nos estudos linguísticos teorias, conceitos e recomendações acerca da abordagem gramatical para o ensino de língua. O conhecimento científico já produzido é a fonte para as discussões deste artigo e o meio em que se buscou aprofundar a complexidade do processo linguístico-educacional, no tocante a relação gramática normativa – ensino de língua. 

Desse modo, utilizou-se como procedimento de coleta de dados o levantamento de bibliografia pertinente ao estudo do problema norteador e como procedimento de análise dos dados fez-se a análise e interpretação crítica do material levantado: em primeiro plano, uma crítica externa, averiguando a importância e valor histórico e científico do documento; e, posteriormente, uma crítica interna, a qual se debruça sobre o sentido e valor do conteúdo, uma vez que “os dados por si só nada dizem, é preciso que o cientista os intérprete, isto é, seja capaz de expor seu verdadeiro significado e compreender as ilações mais amplas que podem conter” (MARCONI; LAKATOS, 1992, p. 51).

É pertinente destacar que esta pesquisa traz uma abordagem qualitativa, já que foi necessário analisar e interpretar mais profundamente teorias, conceitos e recomendações advindos da Linguística sobre gramática e suas implicações para o ensino de língua materna, pois na pesquisa qualitativa “o objetivo da amostra é de produzir informações aprofundadas e ilustrativas: seja ela pequena ou grande, o que importa é que ela seja capaz de produzir novas informações.” (DESLAURIERS, 1991 apud GERHARDT; SILVEIRA, 2009, p.32), sendo dessa forma, conforme Marconi e Lakatos (2011), uma possibilidade de compreender de modo detalhado significados e características situacionais.

Assim, uma vez que o presente trabalho se pauta no uso da gramática normativa aplicada ao ensino a partir das concepções teórico-metodológicas advindas do desenvolvimento dos estudos da Linguística, este artigo vem somar com as reflexões do campo da Linguística Aplicada ao ensino, levantando uma discussão que pode oferecer uma ponderação relevante sobre a complexidade do processo linguístico-educacional e contribuir para reflexão de práticas docentes sobre o uso da gramática.

GRAMÁTICA NORMATIVA E ENSINO: BREVE HISTÓRICO

Historicamente é possível perceber, consoante apresentado por Gurpilhares (2004, p. 45) que as primeiras gramáticas constituídas pelos estudiosos denominados alexandrinos, por volta dos séculos III e II a.C., codificadas em forma de glossários e compêndios gramaticais, mesmo que incompletas e pouco sistemáticas, eram baseadas na língua escrita e possuíam dois objetivos: 1) elucidar a língua grega dos textos literários arcaicos, principalmente as obras de Homero, para torná-los acessíveis aos seus contemporâneos, pelo fato desses textos clássicos já se distanciarem bastante do grego então falado; 2) proteger o grego clássico de corrupção determinando o “uso correto” da língua, enquanto pronúncia e gramática. 

 Dessa forma, observa-se que a concepção moderna da denominada gramática normativa não se difere em essência do que era proposto pelas primeiras gramáticas na antiguidade, desde seu foco em esclarecer determinada variedade da língua a partir da língua escrita, até as noções de “certo” e “errado” como modo de estabelecer qual o “bom” uso da língua. Carlos Franchi em seu texto” Mas o que é mesmo gramática?”, publicado pela primeira vez em 1991, que definiu gramática normativa nos seguintes termos:

Gramática é o conjunto sistêmico de normas para bem falar e escrever, estabelecidas pelos especialistas, com base no uso da língua consagrado pelos bons escritores. Dizer que alguém “sabe gramática” significa dizer que esse alguém “conhece essas normas e as domina tanto nocionalmente quanto operacionalmente”. (FRANCHI, 2006, p. 16)

 Percebe-se que o entendimento que possuímos de gramática normativa hoje deriva do que inicialmente começou a se constituir como gramática na antiguidade. Atualmente os estudos linguísticos mostram que a definição de gramática relacionada à prescrição de normas para o bom uso da língua não abarca o entendimento de gramática em toda sua complexidade, pois a gramática não se limita ao aspecto prescritivo no qual foi tradicionalmente constituída, podendo ser concebida por diferentes aspectos a partir do objetivo pretendido e/ou perspectiva assumida. A exemplo, pode-se recorrer a Possenti (1996, p. 63-64) que, ao apresentar a gramática como conjunto de regras, demonstra que essa definição pode ser entendida de três diferentes maneiras, relacionando-as a três respectivas denominações: 1) conjunto de regras que devem ser seguidas, gramática normativa; 2) conjunto de regras que são seguidas, gramática descritiva; 3) conjunto de regras que o falante da língua domina, gramática internalizada.

 É válido atentar para o fato de que as normas estabelecidas pela gramática normativa, pelo menos as tradicionalmente constituídas e as geralmente abordadas pela escola, restringem-se a variedade linguística conhecida como norma padrão por fazer referência à língua usada pelos “bons” escritores e/ou estabelecidas por especialistas. Ao indicar quais normas deveriam ser seguidas, a gramática normativa contribuiu para a consolidação, ao longo de muitos séculos, da concepção da variedade culta como a única boa, bela e desejável aos falantes, consagrando tal variedade como norma-padrão a ser seguida, mesmo tendo como base fatores não estritamente linguísticos, mas critérios como “purismo e vernaculidade, classe social de prestígio (de natureza econômica, política, cultural), autoridade (gramáticos, bons escritores), lógica e história (tradição)” (TRAVAGLIA, 2002, p. 25). 

Tradicionalmente a gramática normativa sempre esteve presente no ensino de língua portuguesa, até porque “ao longo da história, a Gramática foi sempre uma disciplina normativa” (ILARI, 20-?, p.03). Dentre os fatos apresentados por Ilari (20?) sobre o ensino de língua portuguesa no Brasil por volta do século XX, destaca-se a prática da análise sintática juntamente com o estudo sistemático de gramática como atividade central.

No “colegial” da época, o estudo de Gramática consistia em ler na sequência todos os capítulos de um desses compêndios, onde cada “regra” vinha acompanhada de uma lista mais ou menos longa de exemplos descontextualizados e de uma lista mais ou menos longa de exceções. Um tratamento análogo era dado ao estudo da acentuação gráfica e, até onde era possível, à grafia. A prática da análise sintática se fazia também à base de sentenças descontextualizadas (sobretudo quando tinha a finalidade de exemplificar a aplicação das regras); mas em alguns casos, era colocada a serviço da análise de textos, sobretudo quando era encarada como uma etapa necessária para a compreensão de autores como Camões ou Vieira, célebres por seus períodos gramaticais complexos e cheios de inversões em relação à “ordem direta” dos termos e das orações. (ILARI, 20-? p.04)

Com isso, a partir do desenvolvimento dos estudos da linguística no Brasil, a principal crítica ao ensino de gramática, que se iniciou nas últimas décadas do século XX, teve como base o caráter excessivamente normativo com o qual se concebia e se ensinava gramática, conjugada à abordagem em demasia de nomenclaturas e classificações das unidades gramaticais para a abordagem das práticas relacionadas à análise sintática.

A restrição à prescrição da norma culta foi criticada pelo entendimento de que essa abordagem conduzia para a adoção da noção de que as demais variedades linguísticas, as não prestigiadas, são inferiores, e que, consequentemente, isso contribuía para que as camadas populares de perfil linguístico diferente do cultopadrão fossem desprestigiadas linguística e socialmente. A crítica também pautouse no entendimento de que outros aspectos linguísticos relevantes ao ensino eram/são negligenciados quando o foco se restringe a gramática normativa

uma gramática predominantemente prescritiva, preocupada apenas com marcar o “certo” e o “errado”, dicotomicamente extremados, como se falar e escrever bem fosse apenas uma questão de falar escrever corretamente, não importando o que se diz, como se diz, quando se diz, e se se tem algo a dizer. Para essa gramática, professores e alunos só vêem a língua pelo prisma da correção e, o que é pior, deixam de ver outros muitíssimos fatos e aspectos linguísticos (os fatos textuais e discursivos, por exemplo), realmente relevantes (ANTUNES, 2003, p. 33)

 No tocante as terminologias e conceitos gramaticais, foi criticado, segundo Antunes (2007), o fato de que na prática prevalecia o simples intuito da fixação das nomenclaturas e teorias apresentados, sem nenhuma abordagem ou reflexão ligada a fatos linguísticos, deixando-se de eleger regras gramaticais significativas para abordar nomenclaturas e classificações demasiadamente, embora nomear e classificar apresente certa relevância para realização de atividades de análise e reflexão linguística, enquanto instrumento metodológico para construção do saber linguístico, pois “a nomenclatura é mais uma ferramenta no processo de aprendizagem, o que não equivale a eleger como objetivo das aulas o domínio dos termos técnicos” (MENDONÇA, 2006, p. 217).

 Mas, mesmo diante das críticas levantadas à abordagem da gramática normativa para as aulas de língua portuguesa, há estudos que se posicionam em favor da pertinência de se trabalhar com a normatização da língua. Faraco e Castro colocam que

apesar de todas as críticas que possamos fazer à gramática em virtude de suas imperfeições e impropriedades conceituais e empíricas, temos de admitir que ela ainda é a principal fonte de referência da normatização da linguagem-padrão falada e escrita do país. Além disso, a tradição gramatical nos fornece uma metalinguagem bastante útil para tratar das línguas humanas, metalinguagem que a própria linguística contemporânea pouco alterou. (FARACO; CASTRO, 1999, p.0)

 É certo que há um valor político e cultural a se considerar quando falamos em gramática normativa, bem como uma utilidade pedagógica e metodológica na utilização da metalinguagem encontrada nessa gramática, entretanto cabe aqui refletirmos se a pertinência da gramática normativa pode ser somada ao mais recente foco do ensino de língua: os objetivos sociocomunicativos.

GRAMÁTICA NORMATIVA: APRENDIAGEM DE NORMA OU DE SENTIDO?

Sabe-se que o entendimento acerca de língua/linguagem adquiriu diferentes concepções com o avançar das pesquisas científicas sobre a linguagem, o que trouxe implicações diretas para entendimento de como se deve realizar o ensino de língua e, consequentemente, o ensino de gramática. Assim, com a emergência da concepção da linguagem como processo de interação, a qual considera o fenômeno linguístico como resultado da relação linguagem e sociedade, vinculando-o às circunstâncias de uso, o ensino de língua foi despertado para a necessidade de abordar, consciente e amplamente, a língua enquanto atividade de interação verbal e atuação social. 

Por isso, os estudos da linguística têm direcionado o texto como objeto central do ensino de língua, uma vez que o homem utiliza a língua funcionalmente para se comunicar interagindo com o outro através de textos. Nesta perspectiva, Irandé Antunes (2003, p. 42) afirma que o texto deve constituir ponto de referência para a definição de todas as opções pedagógicas como os objetivos, os programas de estudo e pesquisa, a escolha das atividades e do modo particular de realizá-las e avaliá-las.

O ensino consciente dessa noção de língua procura ampliar nos educandos as habilidades discursivas que estes possuem enquanto falante de uma língua, ou seja, desenvolver a competência de se expressar verbalmente, adequando-se a situação interacional-comunicativa, além de compreender o discurso de unidades de sentido, sejam essas orais ou escritas, em diversas modalidades discursivas.

Travaglia (2011) explica que essa adequação assume dimensões várias como: 

a) ser adequado à possibilidade de produzir os efeitos de sentido desejados de modo a atingir os objetivos pretendidos ao dizer; b) ser adequado quanto ao atendimento de normas sociais de uso da língua em termos de variedades da língua a serem usadas; c) ser adequado quanto ao direcionamento argumentativo; d) ser adequado quanto ao atendimento de exigências de naturezas diversas, tais como estética, polidez etc. (p.14-15)

Assim, entende-se que o ensino da primeira língua adquire certa consciência do dever de possibilitar aos falantes o contato com o uso real das práticas discursivas, materializadas em diversas circunstâncias, com diferentes finalidades e diversificados níveis de formalidade, de modo a desenvolver suas habilidades de sujeitos da comunicação. 

Não obstante, não se pode negar o aspecto sistemático que a língua possui como forma e estrutura representativa de emanentes efeitos e sentidos, como nos explica Marcuschi (2008):

Não se deixa de admitir que a língua seja um sistema simbólico (ela é sistemática e constitui-se de um conjunto de símbolos ordenados), contudo ela é tomada como uma atividade sociointerativa desenvolvida em contextos comunicativos historicamente situados. (p.61)

 Reconhece-se uma dualidade de aspectos fundamentais da língua, um atrelado ao significante e outro ao significado, ambos interdependentes. Neste sentido, é interessante observar que o texto enquanto unidade central de ensino nas aulas de português é um aspecto legitimado por documentos governamentais[1] sem deixar de reconhecer a natureza simbólica da língua, uma vez que considera que “o domínio da linguagem, como atividade discursiva e cognitiva, e o domínio da língua, como sistema simbólico utilizado por uma comunidade linguística, são condições de possibilidade de plena participação social” (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 1998, p19).

 Costa Val em seu artigo “A gramática do texto, no texto” (2002, p.108-109) expõe a tendência de buscar integrar três conflituosas vertentes sobre língua e gramática, por considerar que cada uma contempla um dos subsistemas componentes de uma língua natural: 1) a língua como estrutura que focaliza o aspecto gramatical, as unidades formais e suas possíveis combinações no interior do sistema; 2) a língua como atividade mental que revela o saber linguístico internalizado do falante; 3) língua como atividade social que prioriza uma visão funcionalista da linguagem. A autora considera que as três revelam, respectivamente, as dimensões gramatical, semântio-cognitiva e discursiva da língua como concepções mutuamente construtivas e interdependentes e conclui que é possível pensar em gramática do texto/no texto, enquanto “saber internalizado dos falantes que os habilita a lidar com os recursos linguísticos – gramaticais – na produção e na compreensão dos textos que circulam nas práticas sociais de linguagem”.

Essa integração, que perpassa pela relação gramática-texto e forma-sentido, permite dizer que as formas do sistema necessitam do contexto/funcionamento social para emanar sentido, ao passo que o falante para produzir efeito de sentido através do uso da língua necessita valer-se das formas do sistema, de modo que quanto mais o falante dominar recursos e mecanismos da língua, maior habilidade de interagir linguisticamente na produção e compreensão de textos, pois

Todos os recursos da língua – em todos os seus planos (fonológicos, morfológicos, sintáticos, semânticos, pragmáticos) e níveis (lexical, frasal, textual-discursivo) –, em termos de unidades e estruturas (sejam elas fonológicos, morfológicos, sintáticos, textuais), funcionam como pistas e instruções de sentido que são coadjuvados nesta função por mecanismos, fatores e princípios (TRAVAGLIA, 2011, p. 41)

 Nesta perspectiva, o autor explica, em consonância com o que encontramos também em Antunes (2003) e Marcuschi (2008), que não podemos separar o gramatical do textual e vice-versa, porque quando estudamos os aspectos gramaticais de uma língua, estamos estudando os recursos disponíveis nessa língua para produzir efeito(s) de sentido pretendido(s) pelo falante/escritor. Isso porque, considerando que o falante não tem total liberdade de inventar cada um a seu modo as palavras que dizem, nem de organizá-las de qualquer forma nos enunciados, sob o risco de construir um sequência não-inteligível e/ou não-interpretável, a gramática de uma língua é entendida como conjunto de regras que especificam o funcionamento de uma língua[2] para que se alcance uma combinação de palavras que resulte em uma sequência linguística inteligível e interpretável, independente da variedade linguística.

 Por isso, a gramática a ser trabalhada para auxiliar o desenvolvimento da competência comunicativa do educando não deve pautar-se tão somente na aplicação de nomenclaturas, classificação de unidades da língua, frases sem apoio de manifestações textuais, pois essas práticas não representam regras de gramática, como também não induzem à ampliação das noções já internalizadas pelos alunos; fazem referência, na verdade, ao que Travaglia (2011, p. 74-75) chama de teoria gramatical ou linguística, pois se refere apenas ao conhecimento teórico descritivo e explicativo sobre a língua, sobre o qual o autor sugere a eliminação ou redução na abordagem em sala de aula, uma vez que a poucos usuários e/ou profissionais (linguistas, gramáticos, teóricos da língua em geral, professores de língua materna e estrangeira, revisores, jornalistas, publicitários, etc.) importam o conhecimento aprofundado sobre a língua.

É interessante deixar claro, conforme a explicação do autor, que mesmo não possuindo fins diretos ao alcance dos objetivos sociocomunicativos de produção e compreensão de textos, é possível acreditar que em dado momento do ensino fundamental e médio há razões para se trabalhar teoricamente com o ensino de língua, contudo não cabe a este artigo apresentá-las.[3]

Cabe, entretanto, buscar uma definição para o que vem a ser regras de gramática: 

Regras de gramática, como próprio nome já diz, são normas, são orientações acerca de como usar as unidades da língua, de como combiná-las, para que se produzam determinados efeitos, em enunciados funcionalmente inteligíveis, contextualmente interpretáveis e adequados aos fins pretendidos na interação. (ANTUNES, 2003, p. 86)

Assim, elencando alguns exemplos citados pela própria Irandé Antunes (2003, p. 86), podemos destacar como regras de gramática: a descrição de como usar as flexões verbais para indicar diferenças de tempo e de modo; de como estabelecer relações semânticas entre partes do texto (relações de causa, de tempo, de comparação etc.); de quando e como usar o artigo indefinido; de quando e como usar a complementação do verbo ou de outras palavras.

Se considerarmos ainda que regras de gramática contemplam o conjunto de normas sociais para o uso da língua, agregamos mais precisamente o que é concebido como gramática normativa, dessa forma, pode-se destacar também como exemplo de regras de gramática: a descrição de como combinar e flexionar os elementos linguísticos na constituição da frase (concordância nominal e verbal); de como utilizar os conectivos de valores lógico-semânticos nas relações que se estabelecem entre os verbos e os termos que os complementam (regência verbal); e de como podem ser usados recursos gráficos próprios da linguagem escrita para estabelecer valor expressivo, pausas e entonações.

Nesta perspectiva, a gramática normativa pode ser utilizada para que o falante/usuário da língua adquira determinadas habilidades linguísticas ligadas ao uso da norma culta. E, sendo essa gramática uma fonte relevante ao conhecimento e domínio da variedade culta, ela ganha grande relevância para o desenvolvimento de um saber linguístico que conduz o falante ao bom desempenho comunicativo diante da necessidade de valer-se de uma variedade de prestígio social-econômicopolítico. Isso porque, embora sejam de ordem menos linguística e comunicacional, as regras estabelecidas pela gramática normativa fazem referência à língua em uso, geralmente, utilizada em um contexto de prestígio social, econômico e cultural, de modo a possibilitar ao falante que possui a habilidade de produzir e/ou compreender textos orais ou escritos nesta variedade um desempenho comunicativo eficaz em circunstâncias que seja mais adequado a utilização dessa norma culta.

Refletindo sobre as discussões levantadas pelos estudos realizados por Sírio Possenti, Costa Val destaca que 

Segundo esse autor, a escola deveria se empenhar em conhecer, respeitar e desenvolver a gramática internalizada dos alunos; ensinarlhes elementos da gramática normativa necessários em determinadas situações de convívio numa sociedade não igualitária e discriminadora como a nossa; promover reflexões epilinguísticas, e metalinguísticas, que esclareçam e contribua para o uso adequado da língua em diferentes circunstâncias (COSATA VAL, 2002, p. 111-112)

Certo de que o ensino de língua materna não deve reduzir-se apenas ao objetivo de possibilitar ao aluno o domínio da norma culta, é válido, entretanto, destacar a dimensão política do ensino dessa variante em relação à importância de se compreender, falar e escrever em acordo como seu funcionamento, o que conduz ao entendimento de que a gramática normativa é instrumento útil para o aluno desenvolver competências necessárias para não sofrer privações e exclusões em determinadas situações sociocomunicativas. Por isso, sendo a sociedade não igualitária e discriminadora, como colocado pelo autor, e embora não seja essa a solução para superarmos o preconceito linguístico ainda enraizado em determinadas estruturas sociais, o ensino da gramática normativa vem a ser uma fonte pertinente para levar o educando a adquirir habilidades linguísticas para ser um membro atuante em circunstâncias de prestígio social.

Mas, por que trabalhar com o ensino de gramática normativa se o falante adquire a habilidade de usar a gramática de sua língua através da interação comunicativa com falantes com os quais convive socialmente? Não bastaria ao aluno o contato direto com a atividade linguística – o texto – lendo, ouvindo, falando e escrevendo na variedade culta para desenvolver as habilidades necessárias para usá-la?

Faraco e Castro (1999, p.02) apresentam que, mesmo implicitamente, ao se apropriar do texto como objeto central do ensino, a concepção/teoria que está se abordando é que o aprendizado com a linguagem ocorre exatamente através do uso que o falante faz dela na interação que estabelece com o outro e, por isso, muitas vezes entende-se que seria suficiente exercitar a intuição e abandonar totalmente o ensino de gramática, porém, segundo os mesmos autores esse abandono é um equívoco.

 Em consonância com essa posição, Costa Val (2002, p. 119) alerta que o processo de ensino da gramática do texto/no texto “não pode ficar a mercê das eventuais características linguísticas dos textos com que se trabalha”, partindo-se da observação de um aspecto a outro sem sistematicidade ou organicidade no processo, como por exemplo, da abordagem da crase partir para o uso do imperfeito do subjuntivo e, logo depois, para recursos anafóricos.

 A sistematização da abordagem dos elementos linguísticos/gramaticais constituintes do texto possibilita ao professor organizar o processo de ensino aprendizagem de modo progressivo a realidade linguística dos alunos, além de possibilitar o estabelecimento e organização de estratégias pedagógicas, não deixando que a prática docente fique condicionada a eventualidade dos fatos linguísticos ocorridos nos textos. O texto seria a ferramenta utilizada para vislumbrar os recursos gramaticais previamente selecionados em efetivo uso comunicativo, para, só então, alcançar uma abordagem de cunho epilinguístico, isto é, uma abordagem que possibilite uma observação e reflexão consciente do recurso desejado.

Não se pode confundir, no entanto, essa necessidade de sistematização com o pretexto de utilizar o texto para um ensino puramente prescritivo, pois, como Faraco e Castro (1999) colocam, é possível sim trabalhar com a gramática tradicional sem realizar um ensino puramente normativo. Partindo do mesmo entendimento, encontramos em Travaglia (2011) afirmações da possibilidade de utilizar normas prescritas pela gramática normativa para desenvolver atividade de outra natureza, como de uso ou reflexiva:

qualquer aspecto da língua é possível de uma abordagem teórica, uma abordagem não teórica ou uma abordagem normativa, e que todo elemento da gramática da língua pode ser metodologicamente trabalhado usando os quatro tipos de atividades de ensino de gramática propostos e exemplificados: atividades de gramática de uso, reflexiva (que configuram abordagens não teóricas), teórica e normativa. (TRAVAGLIA, 2011, p. 77)

 Interessa-nos observar a possibilidade de abordar elementos da gramática normativa a partir de uma metodologia menos prescritiva, através do uso de uma atividade de cunho reflexivo. Por isso, recorremos ao exemplo apresentado por Travaglia (2011), o qual considerou a seguinte regra de concordância verbal, advinda da gramática normativa: 

quando se tem sujeito composto com os núcleos unidos pela preposição “com”. Dizem as gramáticas que o verbo pode ir para o singular ou para o plural. A preferência é para o plural, mas o verbo pode ir para o singular se estiver anteposto ao sujeito ou se se quiser dar relevância ao primeiro sujeito (cf. Rocha Lima, 1973: 361, 362 e Cegalla, 1976: 296). (TRAVAGLIA, 2011, p. 77-78)

 Em seguida, explicou como é possível trabalhar com essa regra de variados modos aplicando atividades de naturezas distintas, e que, no tocante a realização de uma atividade reflexiva, o professor poderia discutir com os alunos as diferenças significativas e as possibilidades de utilização em textos das duas formas possíveis de concordância apresentadas na regra, e também estabelecer em que situação cada forma pode e/ou deve ser utilizada, consoante as atividades apresentadas nas figuras a seguir: 

A atividade do quadro nº 01 não se limita a apresentar o conhecimento de que as duas possibilidades de concordar o verbo com o sujeito são aceitáveis à norma culta e quais as circunstâncias estruturais para essa aceitabilidade, mas propõe a reflexão acerca de possíveis alterações de sentido mediante o uso do verbo no singular ou no plural, bem como pensar nas possíveis situações comunicativas a se empregar uma concordância ou outra.

 Na atividade contida no quadro nº 02 é explorado de forma mais direta a reflexão acerca da circunstância comunicativa, levando o aluno a observar o efeito de sentido provocado pelo uso do singular ou do plural, mediante o interesse de alcançar determinado objetivo em detrimento de outro.

 Em ambas as atividades observamos que a dimensão textual-discursiva é contemplada, pois independente da extensão da sequência linguística aborda-se o entendimento de texto como sequência de adotada pelo usuário da língua em uma situação de interação comunicativa. Assim, é possível perceber que a norma/prescrição da gramática normativa pôde ser trabalhada para conduzir os alunos a refletirem os possíveis efeitos de sentido a partir da intencionalidade do falante em dado contexto, fugindo da abordagem tradicional-prescritiva. 

Visto isso, conforme o objetivo com o qual o professor delimita a abordagem da gramática normativa, ela poderá: 1) ser instrumento para o desenvolvimento do conhecimento relacionado à adequação à norma culta; 2) poderá ser meio a proporcionar o entendimento da noção de aceitabilidade ou não de determinada construção linguística, segundo o sentido pretendido pelo usuário. Com isso, o falante tem a possibilidade de atuar na situação sociocomunicativa com maior autonomia, no tocante a funcionalidade da língua e as condições de significação, conjugado aos objetivos comunicativos pretendidos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando a pluralidade de perspectivas e abordagens do conjunto de regras que é a natureza gramatical, a gramática normativa vem a ser, não o único ou o predominante, mas, um instrumento possível e, até mesmo, necessário a se alcançar metas sociocomunicativas desejáveis ao ensino de língua.   

Dentre essas metas, podemos destacar a gramática normativa como: 1) um meio sistemático para a aquisição de uma variedade da língua que possibilita ao falante dominar recursos e mecanismos pertinentes a condições socioculturais de prestígio e de inquestionável valor político (a norma culta), em que a valoração do trabalho com a variedade culta não se dá por considerá-la uma variante linguisticamente superior, mas pelo seu prestígio cultural-econômico-político, sendo assim, importante ao aluno/cidadão, ampliar seu conhecimento linguístico conhecendo/dominando outra(s) variedade(s); 2) um meio para desenvolvimento de competências comunicativas relacionadas à produção e/ou compreensão de efeito(s) de sentidos apropriado(s) ao objetivo desejado em certa situação interacional-comunicativa, atentando-se não somente à adequação às normas sociais, mas também à adequação quanto ao efeito de sentido pretendido.

A metodologia a se trabalhar com as regras da gramática normativa em sala de aula tem interferência determinante para a permanência da abordagem puramente prescritiva ou para a “inovação” de uma abordagem mais reflexiva, a qual configura a possibilidade de fugir do predomínio das atividades de fixação de regras e identificação de fatos que seguem ou contrariam a regra exemplificada, cedendo espaço para reflexão das possibilidades de significação e utilização em textos e, consequentemente, ao alcance de objetivos sociocomunicativos. Nesta perspectiva, pode-se dizer que pautar o ensino da gramática normativa na sistematização de atividades reflexivas e de uso é, não apenas uma possibilidade, mas uma necessidade quando se pretende alcançar um ambiente favorável ao desenvolvimento das competências comunicativas atualmente almejadas. 

REFERÊNCIAS 

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[1] Cf. Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa – MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 1998.

[2] Cf. Antunes (2003, p.85)

[3] Para aprofunda-se na questão: TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Para que ensinar teoria gramatical. In:_____Gramática ensino plural. 5ª ed. São Paulo: Cortez, 2011. 


1Mestranda em Estudos Linguísticos pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)