REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7975290
Flávia Martins Malaquias1
RESUMO
A análise da representação feminina na literatura desempenha um papel essencial na compreensão e discussão da desigualdade de gênero enfrentada pelas mulheres em diversos contextos sociais. Conscientes do poder transformador da literatura, que contribui com a formação do leitor crítico/reflexivo, e amplia seu horizonte de expectativas, neste estudo buscaremos explorar a representação feminina no livro “A Bolsa Amarela”, de Lygia Bojunga, para analisar as vivências da protagonista e adversidades enfrentadas pela protagonista. Para alcançar os objetivos, realizaremos uma análise reflexiva apoiada nas contribuições teóricas de Brait (2017), Costa Lima (1981), Candido (2002), Todorov (2009), Ginzburg (2012) e Zilberman (1994). Essas perspectivas teóricas enriqueceram este estudo, promovendo uma reflexão crítica e aprofundada sobre as questões supracitadas.
Palavras-chave: A bolsa amarela; representação feminina; literatura; relação de gênero.
INTRODUÇÃO
A narrativa “A Bolsa Amarela”, escrita por Lygia Bojunga, publicada em 1976, apresenta em seu enredo questões acerca da identidade e liberdade aliadas à representação feminina e as condições enfrentadas pelas mulheres em uma sociedade patriarcal. Por meio de uma narrativa na voz infantil, apresenta uma protagonista que enfrenta conflitos com a família que acredita que “criança não têm vontade”, reprimindo suas vontades deixar de ser criança, ter nascido garoto em vez de menina e a vontade ser escritora, tendo que escondê-las dentro de uma bolsa amarela. Nesta narrativa, é questionado e contestado os estereótipos de gênero e os preconceitos que os envolvem.
É natural questionar se um livro destinado a esse público pode, de fato, suscitar discussões sobre a sociedade patriarcal e as imposições enfrentadas pelas mulheres. No entanto, é nesse contexto que a força da literatura reside na capacidade de abordar temas complexos e desafiadores de maneira acessível e significativa para as crianças, ampliando as percepções do leitor.
Objetivamos analisar e problematizar sobre a representação feminina presente no livro, com vistas a discutir sobre suas contribuições para a construção de identidades femininas e para a percepção das relações de poder entre os gêneros. Para procedermos à essa análise delineamos objetivos específicos que visam contextualizar os conceitos de mímesis e representação, identificar a simbologia dos objetos utilizados na narrativa para representar determinadas situações vivenciadas pela protagonista. Assim também uma análise reflexiva utilizando uma seleção específica de trechos da obra como corpus, com o objetivo de aprofundar a compreensão da condição da mulher na sociedade atual, embasando-se na representação feminina presente na literatura da narrativa.
A pesquisa adotará uma abordagem bibliográfica e de corpus. A fundamentação teórica baseia-se em autores renomados, tais como Costa Lima (1981), Candido (2002), Todorov (2009), Ginzburg (2012), Zilberman (2014) e outros, que fornecem subsídios teóricos relevantes para a compreensão da representação feminina na literatura e a contribuição para a formação de leitores literários críticos e autônomos.
Dessa forma, buscamos contribuir para uma reflexão crítica sobre as questões de gênero, ampliar o entendimento das complexidades da representação feminina e destacar a importância da literatura infantojuvenil como meio de promover discussões significativas sobre a sociedade patriarcal, suas consequências das desigualdades de gênero para as mulheres.
Perspectivas teóricas sobre a construção da personagem protagonista Raquel
Ao explorar as perspectivas teóricas da literatura na construção da personagem protagonista Raquel, é possível destacar algumas abordagens relevantes que contribuem para uma compreensão mais profunda desse processo criativo.
Candido (2000), enfatiza a relação intrínseca entre a arte, a literatura e os aspectos sociais. Segundo o autor, a literatura reflete os conflitos vivenciados pelas personagens, buscando denunciar situações que exigem uma mudança de paradigmas socioculturais. Por conseguinte, em sua obra Literatura e Sociedade, afirma que
A criação literária corresponde a certas necessidades de representação do mundo, às vezes como preâmbulo a uma práxis socialmente condicionada. Mas isto só se torna possível graças a uma redução ao gratuito, ao teoricamente incondicionado, que dá ingresso ao mundo da ilusão e se transforma dialeticamente em algo empenhado, na medida em que suscita uma visão de mundo (CANDIDO, 2000, p. 49).
Nesse sentido, a ficção pode refletir a realidade de maneira significativa, retratando situações em que pessoas se deslocam em busca de trabalho e melhores condições de vida. Essa temática, tão presente na sociedade, é abordada tanto na literatura quanto na realidade vivida por muitas pessoas. Na construção da personagem protagonista em “A bolsa amarela” percebe-se claramente um reflexo das questões e desafios enfrentados pelas crianças na sociedade, explorando temas como a liberdade, a identidade e a busca por autonomia.
Outra abordagem relevante é a perspectiva de Todorov (2009) em relação à interação da literatura com diversos discursos vivos.
A literatura não nasce no vazio, mas no centro de um conjunto de discursos vivos, compartilhando com eles numerosas características; não é por acaso que, ao longo da história, suas fronteiras foram inconstantes. Senti-me atraído por essas formas diversas de expressão, não em detrimento da literatura, mas ao lado dela (TODOROV, 2009, p.22).
Sabe-se que a literatura não existe isolada, mas se entrelaça com outros campos do conhecimento, enriquecendo-se por meio desse diálogo constante. Essa interação amplia as possibilidades da literatura e proporciona uma compreensão mais ampla e profunda do mundo ao conectar-se com diferentes áreas de conhecimento.
Ela não surge no vazio, mas está associada a inúmeras características e diálogos com diferentes áreas do conhecimento. Dessa forma, a construção da personagem protagonista pode ser enriquecida por elementos provenientes de diversas disciplinas, como a psicologia, a pedagogia e a sociologia. Isso possibilita uma compreensão mais ampla e complexa da personagem, suas motivações e seu impacto no leitor.
Ademais, é válido considerarmos o gênero literário como um elemento influente na construção da personagem protagonista. Bojunga utiliza elementos do gênero da narrativa infantojuvenil, explorando as vivências e os dilemas das crianças. A personagem protagonista, nesse cenário, assume uma posição central na história, sendo construída de forma a representar as experiências e os sentimentos comuns nessa fase da vida. Através da construção da personagem, a autora é capaz de transmitir mensagens, despertar a empatia do leitor e promover reflexões sobre temas relevantes para o público infantojuvenil.
A construção da personagem protagonista está inserida em um contexto de transformações sociais. A literatura comparada tem discutido amplamente as relações entre exclusão social e valor literário, questionando visões patriarcais e conservadoras que foram predominantes por muito tempo. Nesse sentido, a construção da personagem protagonista, especialmente no que se refere à representação feminina, ganha importância ao desafiar estereótipos e promover a inclusão de perspectivas diversas.
Destarte, ao considerar as perspectivas teóricas da literatura, podemos compreender a riqueza e a complexidade desse processo criativo, que vai além da mera representação de uma figura central na narrativa. A construção da personagem é influenciada por elementos sociais, diálogos interdisciplinares e reflexões sobre gênero e inclusão, resultando em uma obra que aborda
Nas transformações recentes, a literatura comparada tem amplamente discutido as relações entre exclusão social e valor literário. Os princípios comuns à sociedade patriarcal e ao conservadorismo canônico têm passado por mudanças, acompanhando as transformações das últimas décadas e despertando interesse na crítica ao cânone e aos seus valores. Dessa forma, o nacionalismo literário tem reavaliado, de maneira pertinente, a inclusão das mulheres na literatura, o que tem ganhado importância (GINZBURG, 2012).
Além das palavras: a construção da personagem protagonista
No tocante ao narrador, Beth Brait (2017) explica que sendo em primeira ou terceira pessoa, as técnicas selecionadas pelo autor pode ser por meio de descrição detalhada ou sintética, com os discursos direto, indireto ou indireto livre, diálogos e monólogos para atender às suas intenções e formas para sua manipular o discurso, construindo as personagens que, quando completas, escapam de comando, reduzindo se em palavras expostas aos receptores que podem trazer outras possibilidades de produção de sentidos.
De acordo com Brait (2017), na construção de uma personagem, o escritor usa artifícios disponíveis através de um código para gerar as criaturas de seus textos, provenientes de sua vida real ou imaginária, sonhos, pesadelos, e mesmo, de mesquinharias do cotidiano. Ainda, afirma que
“A condução da narrativa por um narrador em primeira pessoa implica, necessariamente, a sua condição de personagem envolvida com os “acontecimentos” que estão sendo narrados. Por esse processo, os recursos selecionados pelo escritor para descrever, definir, construir os seres fictícios que dão a impressão de vida chegam diretamente ao leitor através de uma personagem. Vemos tudo através da perspectiva da personagem, que, arcando com a tarefa de “conhecer-se” e expressar esse conhecimento, conduz os traços e os atributos que a presentifica e presentifica as demais personagens” (BRAIT, 2017, p. 83).
Nessa perspectiva, observa-se que a construção da protagonista Raquel, é conduzida de forma sutil e delicada ao longo da narrativa. Bojunga utiliza técnicas narrativas eficazes para transmitir as emoções e os pensamentos da protagonista, mergulhando na mente da criança e explorando seus conflitos internos. A partir do discurso indireto livre e uma linguagem predominantemente coloquial, o leitor tem acesso direto aos sentimentos de Raquel, criando uma conexão emocional profunda com suas vontades e seus conflitos familiares.
Ressalta-se que para a construção do personagem pode ser construída somente por meio de um jogo de linguagem, que seja tangível a sua presença, sendo de movimentos sensíveis. Sendo o texto um produto, sendo ele o único que concretiza os elementos usados pelo escritor para dar consistência à sua criação para causar estímulos às reações dos leitores. Nesse sentido, constroem-se as personagens seguindo determinadas leis, mas que somente o texto fornece.
Ao se observar o processo de construção de personagens de um texto, por meio da comparação, pode-se compreender como o autor realiza seu processo de criação de criaturas que compõem seu texto, levando em conta o conjunto de sua obra. É preciso ter em mente que esse entendimento é definido por meio da análise, aliada a uma perspectiva crítica, bem como pelas bases teóricas usadas ao analisar. No entanto, o leitor comum pode tão somente desfrutar da personagem sem a preocupação de um analista (BRAIT, 2017).
No tocante à construção da personagem protagonista Raquel, é possível observar a habilidade de Bojunga em criar uma personagem cativante e complexa. A protagonista, enfrenta desafios emocionais e busca encontrar sua própria identidade. Essa construção é conduzida de forma sutil e delicada ao longo da narrativa. A autora utiliza técnicas narrativas eficazes para transmitir as emoções e os pensamentos, mergulhando na mente da criança e explorando seus conflitos internos.
O uso do discurso indireto livre permite ao leitor ter acesso direto aos sentimentos da personagem, criando uma conexão emocional profunda. Além disso, a protagonista é apresentada como uma criança imaginativa e sonhadora, cuja bolsa amarela é um símbolo importante na história. Através da bolsa, a personagem protagonista expressa seus desejos, medos e anseios mais profundos, revelando sua necessidade de se libertar das expectativas e pressões sociais. A bolsa torna-se uma metáfora poderosa para a busca da individualidade e da autenticidade.
Ao longo da narrativa, a personagem enfrenta desafios e confronta os valores e normas impostos pela sociedade, especialmente no que diz respeito ao papel da mulher. Questiona os estereótipos de gênero e busca se libertar das limitações impostas, reivindicando seu espaço e sua voz.
Essa construção destaca a importância da autenticidade e da busca pela identidade própria. A autora retrata de forma sensível e realista os dilemas enfrentados pelas crianças ao tentarem se encaixar em padrões sociais pré-estabelecidos. Raquel representa a luta pela individualidade e a necessidade de se expressar livremente, deixando uma mensagem poderosa para os leitores de todas as idades.
A Mimesis e a Representação: entre a imitação e a criação
A representação não ocorre por vontade própria, mas busca tornar-se visível e dar visibilidade ao outro, em um aspecto paradoxal. A prática da mimesis faz com que a linguagem perca sua identidade habitual, deixando de expressar apenas implicações imediatas sobre o mundo. Da mesma forma, o produtor da linguagem se despoja de sua própria identidade e passa a falar ou escrever para dar vida a fantasmas, que não são meras projeções de seu eu empírico (COSTA LIMA, 1981, p. 230). O autor também destaca que a mimesis atua na representação de representações, estabelecendo um distanciamento entre elas e a própria cena, o que torna possível apreciá-las, conhecê-las e questioná-las. Esse distanciamento pode impedir a ação prática sobre o objeto, mas, ao mesmo tempo, permite que se pense nele, experimentando-o. A distância mantém o objeto próximo daquilo que o alimenta, assim como da proximidade do mundo sensível que está em seu horizonte (COSTA LIMA, 1981, p. 231).
Aristóteles (2011) compara tragédia e comédia, mostrando que a representação ou imitação está associada aos personagens, que podem ser pessoas com características inferiores ou superiores inerentes aos seres humanos reais. A mimesis é tanto imitativa quanto criativa, pois denota a inclinação do ser humano em representar as coisas como deveriam ser, mas não são. A literatura é uma fonte de experiências sobre o comportamento humano. No entanto, o efeito mimético não é o mesmo que sentir a situação narrada, pois ele é subjetivo. Ao longo do tempo, a literatura perdeu sua importância em gerar reflexões próprias e abordar questões humanas. Na época de Aristóteles, a literatura desempenha um papel crucial e estava integrada à vida cultural da sociedade. No entanto, na contemporaneidade, a literatura cria personagens por meio da imitação de ações humanas. As personagens imitam o ser humano da mesma forma que o ser humano se molda por meio da imitação.
Segundo Zilberman (1994), os livros têm o potencial de ensinar valores às crianças por meio da moral da história, proporcionando à literatura infantil um espaço para discutir questões sociais, uma vez que ela desempenha um papel fundamental na formação das crianças. As histórias infantis utilizam animais como uma forma de alegoria para expressar seu mundo interior, relacionando-se com sua forma física, comportamento, virtudes e características humanas.
Na literatura infantil, é comum encontrar a representação do gênero feminino estereotipado como mulher frágil e indefesa. Nas histórias infantis, as mulheres frequentemente são retratadas como passivas, aguardando que os homens, ativos, as “salvem” e as despossem sem considerar sua vontade (ALVES e PITANGUY, 1985, p. 64). Desde os primórdios da literatura infantil, os contos de fadas apresentam princesas enfrentando perigos, à espera de seus príncipes heróis para resgatá-las e viverem felizes para sempre.
Aristóteles (2011), ao abordar gêneros literários como poesia, fábula, teatro, epopeia, entre outros, atribui uma importância fundamental ao enredo. O enredo é essencialmente o desenvolvimento da história, com mudanças que buscam novos rumos. Essas mudanças dependem da semelhança e da necessidade de se basearem na história, que deve ter um começo, meio e fim para alcançar um ponto. Na imitação das ações humanas, é necessário reconhecer uma reviravolta, que ocorre quando o ser humano sai da ignorância e adquire conhecimento sobre algo que antes desconhecia, causando uma mudança abrupta. Se essa mudança leva a um desfecho negativo, chega-se à catarse, uma comoção emocional que leva à purificação. A catarse proporciona uma liberação emocional intensa, representando o clímax da história e constituindo uma das partes da narrativa.
Estereótipos culturais e novas identidades: a representação feminina na literatura
O sexo é uma questão política, pois envolve relações de poder. O movimento feminista surge como uma ruptura aos modelos políticos tradicionais que desconsideram o espaço individual e definem a política apenas na esfera objetiva. O discurso feminista denuncia a natureza subjetiva da opressão e dos aspectos emocionais, revelando as relações interpessoais e buscando organizar a política pública. Essas relações contêm elementos de poder e hierarquia entre homens, mulheres e outras categorias. Em todas as esferas da vida, seja no âmbito doméstico, no trabalho ou em outros contextos, as mulheres buscam recriar essas relações, valorizar a feminilidade e repensar e reconstruir a identidade de gênero, sem a necessidade de se adaptarem a modelos hierarquizados. É importante considerar as qualidades femininas e masculinas como atributos integrais do ser humano (ALVES & PITANGUY, 1991).
Bourdieu (2002) argumenta que existe uma dominação masculina que priva as mulheres por meio de um sistema de regras opressoras que julga o corpo feminino. Essas concepções estão enraizadas e muitas vezes invisíveis na sociedade, originando se de princípios morais e religiosos que impõem normas que valorizam o corpo masculino e reduzem o corpo da mulher a um objeto sexual. Essa situação de desigualdade é perpetuada sem justificativa, silenciando e subordinando as mulheres, que são excluídas da participação e relegadas ao papel de donas de casa. Existe uma divisão entre os sexos na ordem social que parece tão normal e natural que se torna inevitável, pois está profundamente internalizada nas mentes e funciona como esquemas perceptíveis, resultando em relações de poder sobre a mulher. Esses esquemas sociais atribuem ao homem um papel de dominador e opressor, impondo uma ideia de masculinidade que limita a liberdade da mulher de escolher outros caminhos para sua vida.
Segundo Zolin (2011), os textos canônicos produzidos por escritores masculinos representam a mulher por meio de estereótipos culturais, retratando-a como sedutora, perigosa, imoral, megera, indefesa ou incapaz, ou ainda como um anjo capaz de se sacrificar pelo bem-estar familiar. A partir dos anos 90 do século XX, as personagens femininas nos textos literários escritos por mulheres passaram a ser construídas com o intuito de agregar novas identidades, desafiando a ordem patriarcal por meio de abordagens feministas. Essa tendência na literatura feminina caracteriza-se pela produção de textos literários novos e autônomos que denunciam a opressão e buscam promover uma nova identidade feminina. Em seu estudo sobre Ana Maria Machado e Nélida Piñon, demonstrou que a transformação das mulheres que antes estavam aprisionadas nas relações de gênero, sendo identificadas como mulheres-objeto, em personagens femininas protagonistas de narrativas que as constroem como mulheres sujeitas. Essas personagens são dotadas da capacidade de construir sua própria trajetória e desafiar as manifestações do poder de ideologias patriarcais, as quais estão perdendo força na sociedade.
Desconstrução dos estereótipos de gênero em “A Bolsa Amarela”: a voz da protagonista Raquel
Procedemos ao diálogo entre as teorias apresentadas na fundamentação teórica e o corpus selecionado. Narrada em primeira pessoa pela personagem protagonista, traz uma criança que vive em meio a adultos e sente que não tem voz dentro de sua família. A narrativa desenvolve-se a partir de sua perspectiva subjetiva, permitindo que a narradora participe ativamente da história. Segundo Brait (2017), a escolha entre a primeira e a terceira pessoa na narrativa permite ao escritor detalhar ou sintetizar sua narrativa, manipular o discurso e construir personagens completas. Nesse sentido, Raquel é uma personagem e, ao mesmo tempo, narradora, conferindo-lhe participação e controle sobre tudo o que é narrado.
Raquel é uma menina questionadora, com uma imaginação fértil e uma personalidade marcante. Ela se recusa a aceitar os papéis socialmente impostos a seu gênero e idade, entrando em conflito com sua família patriarcal. Raquel guarda dentro de uma bolsa amarela seus desejos reprimidos, como o desejo de ser adulta, de ter nascido menino e de se tornar escritora, pois não concorda com as imposições às quais está exposta. No entanto, ao tentar esconder esses desejos sufocados, eles apenas crescem ainda mais:
“Eu tenho que achar um lugar para esconder as minhas vontades. Não digo vontade magra, pequenininha, que nem tomar sorvete a toda hora, dar sumiço da aula de matemática, comprar um sapato novo que eu não aguento mais o meu. Vontade assim todo o mundo pode ver, não tô ligando a mínima. Mas as outras – as três que de repente vão crescendo engordando toda a vida – ah – essas eu não quero mais mostrar […]” (BOJUNGA NUNES, 2020, p. 9).
Assim, a personagem sofre com a tradição familiar patriarcal, sendo uma criança do sexo feminino sem espaço para expressar sua vontade, uma vez que seu desejo não é considerado legítimo em uma sociedade machista que não leva em conta o desejo infantil. Em uma sociedade tradicional que concede autoridade aos pais, principalmente aos pais do sexo masculino, as crianças, especialmente as meninas, se submetem a essa autoridade.
Na narrativa, não se nota a presença das vozes de seus pais em seu mundo infantil, o que demonstra uma desigualdade entre o adulto e a criança. Por isso, ela deseja ser adulta: “gente grande é uma turma muito difícil de entender” (BOJUNGA, 2020, p.18).
Entretanto, sua narrativa denota a predominância de valores do masculino sobrepondo-se aos femininos, a menina demonstra isso em um jantar na casa de sua tia Brunilda, que mantém a família financeiramente: “Puxa vida, por que é que eu não tinha nascido Alberto em vez de Raquel? Pronto! Mal acabei de pensar aquilo e a vontade de ter nascido garoto deu uma engordada […]” (BOJUNGA, 2020, p. 77).
A vontade de ser homem não está associada à sexualidade da personagem, mas sim, à vontade de ter voz e ter liberdade na sociedade patriarcal, ela quer ter o direito de jogar bola, soltar pipa, ter o mesmo direito que um menino. Raquel em sua fala ao irmão deixa evidente como se sente em relação à essa desigualdade,
Vocês podem ter um monte de coisas que a gente não pode. Olha: lá na escola, quando a gente tem que escolher um chefe pras brincadeiras, ele sempre é um garoto. Que nem chefe de família: é sempre o homem também. Se eu quero jogar uma pelada, que é o tipo do jogo que eu gosto, todo mundo faz pouco de mim e diz que é coisa pra homem; se eu quero soltar pipa, dizem logo a mesma coisa. É só a gente bobear e ficar burra: todo mundo tá sempre dizendo que vocês têm que meter as caras no estudo, que vocês é que vão ser chefe de família, que vocês é que vão ter tudo. Até para resolver casamento – então eu não vejo? – a gente fica esperando vocês decidirem (BOJUNGA, 2012, p. 16-17).
Ela não gosta do modo com que a tratam, isso por perceber que ela como menina não possui a força e a liberdade que os meninos têm, pois recebe um tratamento inferior em sua família que é composta por adultos, sendo ela a única criança e ainda ser menina. Sua vontade de ser homem, portanto, ocorre pelo anseio de liberdade como a de seu primo Alberto, filho de sua rica tia Brunilda.
Alves e Pitanguy (1985) mostram que a literatura infantil representar o gênero feminino através do estereótipo de mulher de frágil e indefesa, reproduzindo histórias infantis criam mulheres submissas à espera de um príncipe encantado que salve sua vida e se case com ela como prêmio, não importando seu desejo de se casar ou não com o príncipe que lhe aparece.
Inicialmente, possui um equilíbrio, pois apresenta um enredo estável, com Raquel vivendo com sua família, participando dela submetendo-se a regras tradicionais que configuram sua família. Mas surgem as vontades da menina que vão se intensificando, gerando o desequilíbrio. Para fugir desse problema, Raquel usa seu imaginário para fugir dessa situação, e assim, ela deixa sua casa e somente retorna, após organizar seus conflitos. Passa de um equilíbrio para o desequilíbrio, tornando-se insegura e revoltada com a forma de tratamento dado por sua família. Entretanto, no final, a adolescente passa a compreender os adultos. O leitor pode ver a passagem do equilíbrio para o desequilíbrio e o retorno ao equilíbrio emocional. Ela possui três desejos que crescem em sua mente: ser homem, ser escritora e crescer para ficar adulta.
É nesse cenário, que a garota se vale de fantasias para narrar acontecimentos sobrenaturais, imaginações que são usadas para a busca de equilíbrio emocional. Desse modo, ela cria um mundo de imaginação, por meio de amigos imaginários André e Lorelai; além de animais, galos, galinhas e objetos a bolsa amarela e seus sete filhotes, alfinete, guarda-chuva, que falam, sentem e realizam as imaginações dela. A essas imaginações, Costa Lima (1981) chama de representação para tornar o outro visível em uma prática mimética na qual o objeto de imaginação perde sua habitual identidade, não consistindo em algo que traga implicações imediatas sobre o mundo. Ao usar a mimesis, o personagem fala ou escreve para animar fantasmas, que não são meramente projeções empíricas. A mimesis supõe um distanciamento entre as representações e a cena apresentada, possibilitando o questionamento ou conhecimento.
Essas imaginações da menina marcam a importância e a simbologia da bolsa para Raquel. Ela vivia com sua família em uma zona rural, mas eles mudaram para a cidade e com isso, sentiu falta do quintal da casa. Sua família passou a ter uma vida triste e irritada, talvez devido à dificuldade financeira e condições de trabalho na cidade muito ruins. Passou a ter saudade do quintal e da felicidade de todos naquele espaço onde ela podia brincar e usar a imaginação.
Assim que a menina ganhou uma bolsa amarela, única peça que a família não quis entre várias roupas e acessórios sua tia Brunilda doou, ela olhou dentro da bolsa e fez uma analogia com o quintal dizendo: “tava até parecendo o quintal da minha casa, com tanto esconderijo bom, que fecha, que estica, que é pequeno, que é grande. E tinha uma vantagem: a bolsa eu podia levar sempre a tiracolo, o quintal não” (BOJUNGA, 2020, p.28-29).
Desse modo, a velha bolsa amarela abrigou suas três vontades, passando a ser seu quintal, lugar para ela depositar passou a depositar seus desejos, usando a imaginação. A bolsa torna a menina sensível e criativa e simboliza um conflito que a divide em dois mundos, um real e outro imaginário, através dos quais ela estabelece uma relação que mostra as incoerências da realidade e como a imaginação pode trazer compreensão para suas dificuldades em viver em um mundo marcado por imposições que tolhe a liberdade das pessoas, seja qual for sua sexualidade. No mundo real, estavam as vozes paterna e materna que representavam a sociedade patriarcal, e de outro, as vozes criadas que subverteram essa realidade. A bolsa permanecia com Raquel o tempo inteiro e em todos os lugares por onde ela levava seu inconsciente com uma organização para cada situação, configuradas nos bolsos da bolsa aos quais ela chamava de filhotes da bolsa amarela.
Cheguei em casa e arrumei tudo que eu queria na bolsa amarela. Peguei os nomes que eu vinha juntando e botei no bolso sanfona. O bolso comprido eu deixei vazio, esperando uma coisa bem magra pra esconder lá dentro. No bolso bebê eu guardei um alfinete de fralda que eu tinha achado na rua, e no bolso de botão escondi uns retratos do quintal da minha casa, uns desenhos que eu tinha feito, e umas coisas que eu andava pensando. Abrir um zipe; escondi fundo minha vontade de crescer; fechei. Abri outro zíper; escondi mais fundo minha vontade de escrever; fechei. No outro bolso de botão espremi a vontade de ter nascido garoto (ela andava muito grande, foi um custo pro botão fechar). Pronto! a arrumação tinha ficado legal. Minhas vontades estavam presas na bolsa amarela, ninguém mais ia ver a cara delas (BOJUNGA, 2020, p. 30-31).
Foi assim, que ela criou personagens animais e objetos para esconder na bolsa suas vontades da família. Essas personagens possuem uma história própria com início, meio e fim, ainda que não tenha o tradicional final feliz. A criação de personagens fantásticas como os galos Afonso e Terrível, a Guarda-Chuva, o Alfinete de Fraldas e o pessoal da Casa dos Consertos simboliza as várias etapas de crescimento emocional da personagem, alegorias dos desejos mais intensos da personagem-protagonista.
Entre as personagens criadas está o galo Rei, que quebra o estereótipo masculino. Ele foge do galinheiro e pede abrigo na bolsa amarela, dizendo que seu nome não identifica com seu modo de pensar e que ele não queria mandar nas galinhas. Pediu a Raquel para mudar seu nome, desse modo ele próprio escolheu o nome de Afonso. Ela não gostou do nome, dizendo que o galo não combinava com Afonso, entretanto respeitou sua vontade.
Primeiro, a menina cria o Rei que se tornou Afonso. Ele não queria reinar no galinheiro, porque diz não gostar de mandar e, foi por essa razão, que não se sentia confortável com o nome Rei. Mais tarde, ela criou outro galo ao qual chamou de Terrível para dividir o galinheiro com Afonso que não se sentiu ameaçado, o que não aconteceria com os homens. Ele aceitou terrível, mas o galinheiro se revoltou com essa situação.
Os episódios dos galos trazem as considerações de Bourdieu (2002) sobre a dominação masculina que inferioriza a mulher. Essa concepção está cristalizada ou invisíveis na sociedade e buscam impedir a mudança de paradigma como aconteceu o galo Afonso aceitar outro galo ajudando com as galinhas. Em outras palavras, o sistema social, não aceita comportamentos diferentes daqueles que são impostos socialmente.
Também Candido (2000) considera que a literatura pode denunciar condutas que precisam mudar paradigmas socioculturais.
Para Raquel, o Alfinete de Fraldas era pequeno e insignificante como ela se sentia, e por isso, ela não deu nenhuma função para ele em seu mundo imaginário, mas mesmo deixando-o, ele representa a prisão da criança, pois ela deseja crescer e ser adulta. As ideias de Zilberman (1994) podem ser associadas à alegoria que crianças usam para exteriorizar seu mundo interior, no caso do alfinete de fraldas, ele é uma associada à forma física, na representação do que é ser criança.
A menina inventa uma personagem chamada André para quem escreve uma carta reclamando que nasceu após todos seus irmãos, em um momento em que a mãe não queria mais filhos, dizendo que se sua mãe não queria ter mais filhos, por que ela nasceu. Nessa carta ela faz uma reflexão referente à liberdade de querer um filho ou não, dizendo que as pessoas deveriam nascer se a mãe quisesse e pergunta a André o que ele pensa disso. (BOJUNGA, 2020). Aqui a autora entra em um assunto muito controverso e bastante questionado pela sociedade de forma leve e sutil, o direito da mulher de ter ou não um filho indesejado. Essa passagem do livro questiona a autonomia que a mulher deveria ter sobre seu corpo com relação à reprodução, além de estar em conformidade por Raquel não gostar de sua condição de ser uma criança, demonstrando seu sofrimento por ter nascido em uma família adulta, com problemas financeiros, sendo mais um fardo para a família, e ainda ser criança e menina. Essa sua insignificância fez com que ela criasse estratégias para fugir da realidade para dar conta de trabalhar suas emoções.
Zolin (2011) faz menção sobre uma literatura feminina caracterizada pela denúncia da opressão contra a mulher, trazendo-lhe uma nova identidade. Para Ginzburg (2012), há um nacionalismo literário de inserção de mulheres na literatura que tem crescido e aumentado sua importância no mundo da literatura de cunho social (GINZBURG, 2012).
Em outra parte do enredo, Afonso entrega a Raquel um guarda-chuva, descobrindo que esse objeto ao ser produzido, pode ser homem ou mulher. Ela escolheu que este seria feminino, no caso uma guarda-chuva. Ela escolheu que a guarda-chuva seria pequena, mas essa sua escolha era contraditória, uma vez que queria ser menino e adulta. Nesse momento, ela estava diminuindo sua vontade de ser garoto e a aceitação de sua identidade feminina. A guarda-chuva mesmo sendo pequena podia crescer e agir como criança no sentido de brincar e se divertir. Ela podia escolher crescer ou ser pequena por meio do cabo que podia se mover para aumentar ou diminuí-la. Ela queria crescer, mas continuar brincando, o que não acontece com os adultos: “viu que uma coisa não tinha nada a ver com a outra: ela podia muito bem ser grande e ela podia muito bem continuar brincando.” (BOJUNGA, 2020, p.50).
Raquel leva o guarda-chuva para consertar na Casa dos Consertos e foi lá que ela teve ajuda para acabar com suas vontades. Nesse lugar, ela encontra uma realidade bem divergente da sua, lá todos possuem o mesmo tratamento, exercem as mesmas funções sendo homens ou mulheres. Conversa com Lorelai, outra personagem que ela criou. Quer saber quem é o chefe da casa, se é o pai ou o avô dela. Lorelai diz lhe pergunta para que chefe e a menina diz que é para resolver as coisas e Lorelai respondeu:
A gente senta aí na mesa e resolve tudo que precisa. Resolve como é que vai enfrentar um caso que a vizinha criou; revolve se vai brincar mais que trabalhar; resolve o que é que vai comer; quanto é que vai gastar em roupa, em comida, em livro; resolve essas transas todas. Cada um dá uma ideia. E fica resolvido o que a maioria acha melhor (BOJUNGA, 2020, p. 114).
A menina foi surpreendida com uma realidade diferente daquela de sua família na qual os homens têm uma posição de poder privilegiado em relação às mulheres, bem como dos adultos em relação aos mais jovens como ela. Na família da Casa de Consertos, ela percebeu que as mulheres fazem trabalhos considerados para homens pela sociedade patriarcal, também os homens fazem trabalhos domésticos que essa sociedade destina às mulheres.
Nasceu nela o desejo de ser como Lorelai que gosta de ser criança e mulher ao mesmo tempo, ainda que a sociedade imponha normas que tiram a liberdade e a independência das mulheres. A descoberta dessa família que desconsidera as imposições sociais, liberta as vontades de Raquel que percebe que pode soltar pipa como os meninos e de ser grande, contudo, a vontade de ser escritora continua. Ela preferiu continuar a esconder essa vontade e parar de escrever, para evitar o deboche de sua família. Entretanto, não consegui, porque a vontade cresceu mais ainda. Segundo Raquel, “falaram que tanta coisa era coisa só pra garoto, que eu acabei até pensando que o jeito era nascer garoto. Mas agora eu sei que o jeito é outro”. Foi assim, que ela resolveu escrever e depositar na bolsa amarela que estava cada dia mais pesada.
Acabei até mudando de ideia: resolvi que se eu queria escrever qualquer coisa eu devia escrever e pronto. Carta, romancinho, telegrama, o que me dava na cabeça. Queriam rir de mim? Paciência. Melhor rirem de mim do que carregar aquele peso dentro da bolsa amarela. (BOJUNGA, 2020, p. 103)
Sua descoberta maior foi a de que queria ser escritora, coisa que ela exercitou ao criar personagens, escreveu cartas para André e Lorelai, inclusive no final a conheceu pessoalmente Lorelai e sua família que ela fantasiou. Nesse momento, descobriu que pode mudar. Observa-se que as histórias inventadas pela menina estão em conformidade com as ideias de Todorov (2009), que afirma que a literatura não nasce no vazio, mas sim, através de um conjunto de discursos vivos, com várias características, não ocorrendo por acaso. “A bolsa amarela” é uma obra que nasceu das vontades vivas de Raquel, cujos discursos resultaram em sua imaginação, componentes da obra literária de Lygia Bojunga.
Bojunga utiliza diversas metáforas para simbolizar elementos essenciais na narrativa, abordando temas como o inconsciente infantil, a repressão das vontades e os conflitos internos. Abaixo seguem análises que contribuem para a compreensão dessas metáforas.
• A bolsa amarela simboliza o inconsciente infantil e a repressão das vontades. Ela representa o espaço onde a protagonista, Raquel, guarda seus segredos mais profundos e desejos não expressos. A bolsa amarela torna-se um símbolo da importância de dar voz às emoções e vontades reprimidas, permitindo que Raquel explore sua individualidade e expresse suas necessidades.
• As cartas escritas por Raquel ao longo da história possuem um significado mais profundo. Elas funcionam como um exercício de escrita e uma forma de expressão pessoal para a protagonista. As cartas simbolizam a busca de Raquel por encontrar sua voz como escritora e afirmar sua identidade. Por meio delas, ela revela seu processo de descoberta e autodescoberta, compartilhando suas experiências e reflexões.
• O guarda-chuva representa o projeto de Raquel de ser grande e pequena simultaneamente. Essa metáfora reflete o desejo de Raquel de explorar o mundo e
desafiar as limitações impostas pela sociedade e pelos adultos. O guarda-chuva simboliza a dualidade de Raquel, sua busca por equilíbrio entre a liberdade de expressão e as responsabilidades da vida cotidiana.
• O alfinete de fralda é utilizado por Raquel para controlar e fiscalizar suas próprias vontades. Essa metáfora representa a autodisciplina e a internalização das regras sociais. Ela reflete o conflito interno de Raquel entre suas vontades individuais e as expectativas externas, mostrando a necessidade de encontrar um equilíbrio saudável entre suas necessidades e as demandas do mundo ao seu redor.
• A Casa de Consertos simboliza a família idealizada por Raquel, onde todos os problemas e conflitos seriam resolvidos. Essa metáfora expressa o desejo de Raquel de encontrar um ambiente familiar harmonioso e acolhedor, onde suas vontades e necessidades sejam compreendidas e atendidas. A casa de consertos representa a busca por segurança emocional e o anseio por um espaço onde Raquel possa ser verdadeiramente ela mesma.
• O Galo Terrivel representa a limitação da liberdade de pensamento. Essa metáfora simboliza as restrições impostas pela sociedade, que restringem a expressão das ideias e o questionamento das normas estabelecidas. Reflete a dificuldade de Raquel, a protagonista, em expressar sua individualidade e ter suas opiniões valorizadas.
• André é um personagem que representa a comunicação e a imaginação. Sua presença na história estimula Raquel a se expressar e explorar sua criatividade. A metáfora de André destaca a importância da comunicação como meio de expressão e conexão com os outros. Além disso, sua presença também desperta a imaginação de Raquel, abrindo portas para novas possibilidades e descobertas.
• Lorelai é um símbolo das descobertas realizadas por Raquel ao longo da narrativa. Essa metáfora representa a jornada de autodescoberta da protagonista, sua busca por compreender a si mesma e ao mundo ao seu redor. Lorelai simboliza as experiências transformadoras e reveladoras que contribuem para o amadurecimento de Raquel.
Essas metáforas contribuem para uma reflexão mais profunda sobre temas como a liberdade de pensamento, a importância da expressão pessoal, a busca pela identidade e a reconciliação dos conflitos internos. Através desses símbolos, a autora nos convida a refletir sobre as experiências da infância, a necessidade de autoconhecimento e a importância de encontrar um espaço onde possamos expressar quem realmente somos.
Funcionam como recursos que serviram para superar a opressão dos adultos sobre ela. Essas metáforas configuradas em amigos pessoas, amigos objetos e amigos animais metamorfoseados. A bolsa estabelece a mediação entre a realidade e a fantasia.
Assim, no final, quando Raquel esvazia a bolsa, ela está passando por um rito de passagem entre a criança pré-adolescente que deixou de ser criança e se transformou em uma adulta jovem que conseguiu sua libertação. Através desses símbolos, a autora nos convida a refletir sobre as experiências da infância, a necessidade de autoconhecimento e a importância de encontrar um espaço onde possamos expressar quem realmente somos.
Considerações finais
A representação feminina em “A Bolsa Amarela”, de Lygia Bojunga, aborda as condições das mulheres na sociedade patriarcal por meio de uma narrativa na voz infantil. Ficou evidente que é possível abordar e refletir sobre a sociedade patriarcal na literatura infantil, promover uma problematização e reflexão sobre as temáticas apresentadas na obra, conforme estabelecido nos objetivos deste estudo.
O aporte teórico ratifica que, por meio da mimese, é possível tratar de temas considerados pesados para crianças. As teorias e a própria obra nos mostram que os jovens leitores podem se beneficiar desse tipo de texto, pois contribui para a formação de identidade, além de proporcionar caminhos para reflexão e equilíbrio interior. Raquel, a personagem principal, vivencia aventuras engraçadas e divertidas, utilizando-as como pretexto para denunciar a sociedade patriarcal.
A obra pode ser considerada feminista, levando à discussão sobre gênero ao romper com paradigmas através de personagens como o Galo Afonso e a família da Casa de Consertos, por meio da imaginação. Abre espaço para diversas análises, incluindo questões de gênero, aborto, preconceito social, consumismo, identidade, liberdade, entre outros. Além de questões sociais, o livro também possui uma metalinguagem da criação literária, uma vez que Raquel acaba produzindo textos e situações que se tornam histórias imaginárias, podendo servir como ponto de partida para discussões sobre técnicas de produção textual.
Por fim, além de analisar a representação feminina, a obra oferece a oportunidade de explorar temas que despertam questionamentos sobre a sociedade patriarcal que vivemos e promove reflexões/discussões enriquecedoras sobre as relações de
desigualdades de gênero e social. Contribui significativamente para o desenvolvimento de leitores críticos/reflexivos e para a promoção da leitura literária.
REFERÊNCIAS
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BOJUNGA, Lygia. A bolsa amarela. 35. ed., Rio de Janeiro: Casa Lygia Bonjunga, 2020
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 2. ed., Rio de Janeiro: BERTRAND BRASIL, 2002.
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GINZBURG, Jaime. O narrador na literatura brasileira contemporânea. Quaderni di letterature iberiche e iberoamericane, 2 (2012), p. 199-221
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ZOLIN, Lúcia Osana. A construção da personagem feminina na literatura brasileira contemporânea (re)escrita por mulheres. Revista Diadorim / Revista de Estudos Linguísticos e Literários do Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro. v. 9, jul. 2011. Disponível em: Acesso em: jan 2021.
1Doutoranda em Estudos de Linguagens (PPGEL/UFMS). Docente na Rede Estadual de Ensino de Mato Grosso do Sul.