OS CADASTROS TERRITORIAIS MULTIFINALITÁRIOS E OS INSTRUMENTOS URBANÍSTICOS DO ESTATUTO DA CIDADE: REFLEXÕES SOBRE A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA 

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7942612


Guilherme Linheira
Eduardo Schmidt Longo
Isabela Benedet Bardini
Francisco Henrique de Oliveira


RESUMO

O acelerado processo de urbanização ocorrido no Brasil gerou uma série de problemas nas cidades brasileiras, como a desigualdade social, a segregação espacial, a precariedade das condições de moradia, a falta de infraestrutura adequada, o déficit habitacional, o desemprego, a violência urbana e a degradação ambiental. Diante deste cenário, o governo federal publicou a Lei Federal nº 10.257/2001, conhecida como Estatuto da Cidade, que instituiu uma série de instrumentos urbanísticos para proporcionar ao poder público municipal os meios de atuação visando garantir o cumprimento das prerrogativas constitucional sobre o desenvolvimento urbano das cidades brasileiras. Apesar do denso conteúdo, o Estatuto da Cidade não faz qualquer menção sobre a produção de dados cartográficos para subsidiar as análises e decisões sobre a ocupação urbana. Em contrapartida, o governo federal vem empenhando-se nas últimas décadas para organizar diretrizes para a criação de Cadastros Territoriais Multifinalitários por parte dos municípios brasileiros. Neste sentido, a Portaria n° 3242/2022 destaca-se como principal diploma jurídico que trata sobre o tema, apresentando um conjunto de conceitos e orientações para a produção do CTM por parte dos municípios brasileiros. Ao analisar o conteúdo da Portaria, foi possível verificar que os CTM produzidos a partir de suas orientações podem tornar-se instrumentos importantes para a aplicação dos instrumentos urbanísticos, potencializando as ações do poder público no contexto da execução da política urbana brasileira.

Palavras-chave: Cadastro Territorial Multifinalitário; Estatuto das Cidades; Instrumentos Urbanísticos.

1 INTRODUÇÃO

O processo de urbanização no Brasil foi marcado por um intenso crescimento demográfico ocorrido ao longo do século XX. Esse processo foi influenciado por uma série de fatores, como a industrialização, a migração interna, a modernização da agricultura e a concentração de renda. Ao analisar este cenário, Santos (2000) considera que a urbanização no Brasil ocorreu de forma desigual e combinada, ou seja, ao mesmo tempo em que algumas cidades se desenvolveram rapidamente, outras permaneceram estagnadas ou mesmo em declínio. Isso se deveu em grande parte à concentração de investimentos em determinadas regiões e setores da economia, em detrimento de outras (SANTOS, 2000).

Ainda segundo Santos (2000), a urbanização no Brasil foi marcada pela segregação espacial e social, com a formação de áreas metropolitanas com elevado grau de desigualdade e exclusão social. Esse processo foi alimentado pela especulação imobiliária, que incentivou a ocupação desordenada do espaço urbano e a expulsão de populações mais pobres para as periferias. Para Maricato (2001), as cidades brasileiras vivem uma situação de profunda crise urbana, que engloba problemas como a desigualdade social, a segregação espacial, a precariedade das condições de moradia, a falta de infraestrutura adequada, o déficit habitacional, o desemprego, a violência urbana e a degradação ambiental.

Maricato (2001) considera que para enfrentar a crise urbana é necessário adotar um conjunto de medidas que visem a superação dos problemas estruturais que afetam as cidades brasileiras. Entre essas medidas, destacam-se a adoção de políticas de planejamento urbano integrado, com a participação da sociedade civil, a promoção da reforma urbana e da função social da propriedade, a melhoria das condições de habitação e transporte, a ampliação do acesso a serviços públicos de qualidade, a proteção ambiental e o fortalecimento da democracia participativa.

Reconhecendo os enormes problemas urbanos no Brasil, o Estado brasileiro instituiu em 2001 a Lei Federal nº 10.2751/2001, que ficou conhecida como Estado da Cidade (BRASIL, 2001). Esse conjunto de normas estabeleceu diretrizes para o planejamento urbano e para a gestão democrática das cidades, com o objetivo de promover um desenvolvimento urbano sustentável e inclusivo. Entre as principais diretrizes previstas no Estatuto estão a promoção da função social da propriedade urbana, a garantia do direito à moradia e ao transporte público, e a participação popular no processo de planejamento urbano. É válido destacar ainda que a norma instituiu uma série de instrumentos urbanísticos que permitem ao poder público orientar e controlar o uso do solo e garantir o modelo de desenvolvimento desejado.

Evidentemente, para cumprir as diretrizes e utilizar os instrumentos urbanísticos previstos no Estatuto da Cidade é fundamental que os municípios conheçam detalhadamente seu território. Neste contexto, a cartografia desempenha um papel primordial pois permite o registro, a representação e a análise das informações espaciais que são relevantes para o planejamento e gestão das cidades. Em termos práticos, a contribuição principal da cartografia ocorre por meio do processo de mapeamento e dos produtos que são gerados como resultado deste processo. Um desses produtos é o Cadastro Territorial, compreendido de forma simplificada como um inventário cartográfico oficial e sistemático que reflete a ocupação do território de forma detalhada. Sua utilidade abarca questões fiscais, tributárias, sociais e ambientais, sendo, por este motivo, frequentemente designado como Cadastro Territorial Multifinalitário (CTM) (FREITAS, 2016).

Apesar da importância dos Cadastros Territoriais, o Estado brasileiro nunca tratou a questão como política pública no âmbito do ordenamento territorial urbano e tão pouco estabeleceu normas obrigando os municípios a executá-los. Como resultado, não é incomum que municípios brasileiros desconheçam a ocupação de seus territórios em nível de detalhe, fator que dificulta a correta execução das políticas de ordenamento territorial previstas na legislação vigente.

Todavia, é necessário reconhecer que tem havido esforços significativos na materialização de diretrizes sobre o tema. Neste sentido, é fundamental ressaltar a publicação da Portaria nº 3242/2022, que apresentou uma série novas definições sobre o tema, anteriormente abordado na Portaria nº 511/2009. Ante o exposto, o presente artigo tem como foco analisar, refletir e discutir sobre o papel dos Cadastros Territoriais no contexto do Estatuto da Cidade, considerando as novas diretrizes propostas pela Portaria nº 3242/2022. Em termos metodológicos, a pesquisa caracteriza-se como de natureza básica, utilizando abordagem qualitativa para atingir objetivos de caráter descritivo-explicativo. Os procedimentos empregados foram a revisão bibliográfica sobre Cadastros Territoriais e Estatuto da Cidade e análise documental da Portaria nº 3242/2022.

Em termos de estrutura, o trabalho é composto por 3 itens, além desta introdução. Neste caso, o item 2 aborda questões fundamentais sobre o Estatuto da Cidade e seus instrumentos urbanísticos. O item 3 apresenta uma abordagem conceitual sobre Cadastros Territoriais, ressaltando sua materialização no Brasil bem como as características do novo conjunto de diretrizes constantes na Portaria nº 3242/2022. Na sequência, o item 4 apresenta as considerações finais da pesquisa, refletindo sobre as possíveis contribuições dos cadastros territoriais na aplicação dos instrumentos urbanísticos.

2 O ESTATUTO DAS CIDADES E OS INSTRUMENTOS URBANÍSTICOS

A criação do Estatuto da Cidade foi motivada pela necessidade de estabelecer diretrizes mais claras para o desenvolvimento urbano no país, promovendo a sustentabilidade e a justiça social nas cidades. O processo de elaboração do Estatuto da Cidade teve início na década de 1990, com a participação de diversos setores da sociedade civil, como organizações não governamentais, movimentos populares e entidades de classe. Foram realizadas diversas conferências, fóruns e debates para discutir o tema e elaborar propostas para a política urbana. Como resultado, o Estatuto da Cidade foi publicado em 2001, regulamentando assim a política urbana brasileira seguindo os princípios preconizados pelos artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988.

Neste contexto, é importante destacar que o artigo 182 é taxativo ao prever que a política de desenvolvimento urbano executada pelo poder público municipal tem como objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade de modo a garantir o bem-estar de seus habitantes. O artigo apresenta parágrafos, que versam sobre a elaboração de Plano Diretor, a função social da propriedade, a desapropriação de imóveis urbanos e a obrigatoriedade de aproveitamento do solo urbano. Neste último caso, o artigo 182 prevê sob a pena para os municípios com mais três penas que deverão ser aplicadas em sequência: o parcelamento ou edificação compulsórios; o aumento progressivo dos valores cobrados por meio do imposto territorial predial urbano; a desapropriação do imóvel mediante pagamento em títulos da dívida pública (BRASIL, 2001).

O artigo 183, por sua vez, versa sobre a possibilidade de usucapião em áreas urbanas. Neste caso, define que qualquer pessoa que possuir uma área urbana com até 250 metros quadrados, por um período de cinco anos ininterruptos e sem qualquer oposição, utilizando para sua moradia e desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural, poderá adquirir o domínio real sobre a área. Vale ressaltar que, conforme o parágrafo 2º, o direito de usucapião não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez, enquanto que o parágrafo 3º define que os imóveis públicos não poderão ser adquiridos por usucapião (BRASIL, 2001).

Para atender as questões abordadas nos artigos 182 e 183, o governo federal publicou a Lei 10.251/2001, que ficou conhecida como Estatuto da Cidade. A norma apresenta 57 artigos, divididos nos seguintes capítulos: Diretrizes Gerais, Instrumentos da Política Urbana, Plano Diretor, Gestão Democrática das Cidades e Disposições Gerais. Ao analisar o Estatuto das Cidades Saule Júnior e Rolnik (2001) argumentam que a nova lei proporcionou às cidades “um conjunto inovador de instrumentos de intervenção sobre seus territórios, além de uma nova concepção de planejamento e gestão urbanos”. Os autores classificam as inovações contidas no Estatuto das Cidades em três campos: o primeiro que contempla um conjunto de novos instrumentos urbanísticos relacionados com as formas de ocupação do solo; o segundo que incorpora a ideia da participação dos cidadãos em processos decisórios e o terceiro que amplia as possibilidades de regularização fundiária das posses urbanas (SAULE JÚNIOR e ROLNIK, 2001:05).

Os instrumentos citados por Rolink (2001) estão integralmente inseridos no Capítulo II, denominado “Dos instrumentos da Política Urbana”. O capítulo é composto apenas pelo artigo 4, que apresenta seis incisos, que detalham os instrumentos que podem ser utilizados no contexto da política urbana. Os incisos I e II destacam que o município pode utilizar como instrumentos, respectivamente, os planos nacionais, regionais e estaduais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social e o planejamento das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões. O inciso III apresenta os instrumentos vinculados ao processo de planejamento municipal, elencando em suas alíneas: a) o Plano Diretor;

b) a disciplina do parcelamento, do uso e da ocupação do solo;

c) o zoneamento ambiental;

d) o plano plurianual;

e) as diretrizes orçamentárias e orçamento anual;

f) a gestão orçamentária participativa;

g) os planos, programas e projetos setoriais;

h) os planos de desenvolvimento econômico e social (BRASIL, 2022).

Ainda tratando dos instrumentos contemplados no artigo 4º, o inciso IV versa sobre os institutos tributários e financeiros, detalhando em suas alíneas:

a) o imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana (IPTU);

b) a contribuição de melhoria e;

c) os incentivos e benefícios fiscais e financeiros.  

O inciso V contempla os institutos jurídicos e políticos, sendo o inciso com o maior número de instrumentos, perfazendo, ao todo, dezoito alíneas:

a) a desapropriação;

b) a servidão administrativa;

c) as limitações administrativas;

d) o tombamento de imóveis ou de imobiliário urbano;

e) a instituição de unidades de conservação;

f) a instituição de zonas especiais de interesse social;

g) a concessão do direito real de uso;

h) a concessão de uso especial para fins de moradia;

i) o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios;

j) o usucapião especial de imóvel urbano;

l) o direito de superfície;

m) o direito de preempção;

n) a outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso;

o) a transferência do direito de construir;

p) as operações urbanas consorciadas;

q) a regularização fundiária;

r) a assistência técnica e jurídica gratuita para grupos menos favorecidos;

s) o referendo popular e plebiscito. Por fim, o inciso VI elenca como instrumento o estudo prévio de impacto ambiental (EIA) e o estudo prévio de impacto de vizinhança.

Ao analisar o Estatuto da Cidade, Saule Júnior e Rolnik (2001) consideram que seus instrumentos podem ser diferenciados em três grandes grupos, de acordo com sua natureza. O primeiro grupo engloba os instrumentos que contemplam orientações, critérios ou planos relacionados diretamente com o processo de ocupação e uso do solo urbano. O segundo grupo é constituído pelos instrumentos de natureza tributária, isto é, os impostos cuja responsabilidade de cobrança é do poder público municipal. O terceiro grupo, por sua vez, engloba os instrumentos de regularização fundiária, que devem ser utilizados pelo poder público municipal para lidar com as questões de informalidade de algumas ocupações urbanas.

Verifica-se, portanto, que o Estatuto das Cidades estabeleceu uma série de instrumentos para cumprimentos das previsões constitucionais sobre a política urbana no Brasil. Assim, os instrumentos constituem o arcabouço jurídico que permite aos municípios atuar ativamente no processo de ordenamento territorial. Todavia, é importante salientar que há uma série de fatores que podem dificultar a aplicação destes instrumentos, como, por exemplo, a desatualização ou inexistência de dados geoespaciais e mapas que possam subsidiar a tomada de decisão dos gestores municipais. 

3 CADASTROS TERRITORIAIS NO BRASIL

Antes de abordar as questões específica do Brasil, considera-se fundamental apresentar um conceito de cadastro territorial. Dentre as possibilidades, uma das mais difundidas internacionalmente foi proposta pela Federação Internacional de Geômetras – FIG (1995), onde é compreendido como sendo o “inventário público de dados metodicamente organizados concernentes à ocupação territorial, dentro de certo território, baseado nas medições precisas dos seus limites” (FIG, 1995). 

A figura 01 ilustra o “conceito cadastral”, que resulta da integração de dados relacionando a geometria espacial dos objetos existentes no território, com documentos e dados que descrevem sua situação do ponto de vista jurídico. O cadastro poderá ser utilizado para fins fiscais, para auxiliar na transferência legal das propriedades, e na gestão territorial para fins administrativos ou de planejamento. Além de facilitar as questões administrativas e de planejamento o cadastro pode ainda auxiliar na proteção ambiental e de outras áreas de interesse, favorecendo o desenvolvimento sustentável (FIG, 1995).

Figura 1: Ilustração do conceito cadastral

Fonte: Steudler (2014)

No Brasil, as primeiras iniciativas de cadastros territoriais datam da década de 60, com iniciativas do governo federal no sentido de desenvolver cadastros territoriais urbanos do Brasil. Tal fato está relacionado com a promulgação da Constituição Federal de 1946 que possibilitou maior autonomia aos municípios brasileiros, permitindo a partir daquele momento que iniciassem, dentre outras ações, a cobrança de tributos referente à ocupação territorial. Diante dessa nova realidade que se estabeleceu, o governo federal criou em 1964 o Serviço Federal da Habitação e Urbanismo – SERFHAU, que tinha como objetivo planejar e executar as políticas de desenvolvimento urbano no Brasil. Com relação ao cadastro urbano, o SERFHAU efetuou o financiamento de projetos do gênero em algumas cidades grandes e médias do país. Naquele período, as iniciativas de cadastramento tiveram como objetivo específico a questão da tributação, não agregando volume de informações que pudessem subsidiar questões de planejamento territorial (CUNHA et. al, 2019).

Em 1977, outra iniciativa federal beneficiou o desenvolvimento do cadastro territorial urbano dos municípios brasileiros. Dessa vez a iniciativa teve origem no Serviço de Processamento de Dados – SERPRO lançou o projeto CIATA – Convênio de Incentivo ao Aperfeiçoamento Técnico-Administrativo das Pequenas Municipalidades.  Diferentemente da iniciativa anterior promovida pelo SERFHAU, o CIATA foi destinado aos pequenos municípios brasileiros, que à época apresentavam uma defasagem cadastral maior do que os municípios de porte médio e grande, beneficiados no programa anterior. Novamente, o objetivo dos cadastros realizados esteve concentrado na questão da cobrança de impostos (CUNHA et. al, 2019).

Embora tenham existido as duas iniciativas citadas, os municípios brasileiros acabaram por não incorporar a atualização sistemática de seus cadastros nas suas ações de gestão territorial. Além disso, não houve esforços significativos para ampliação da quantidade de informações armazenadas por estes cadastros, ficando seu uso restrito às questões de cobrança de impostos territoriais, ainda assim com sérias defasagens na quantidade de imóveis registrados e consequentemente nos valores arrecadados.  Diante da amplitude dos problemas urbanos no Brasil, o governo federal fundou em 2003 o Ministério das Cidades, cuja organização contava com as seguintes secretarias nacionais: Desenvolvimento Urbano, Habitação, Mobilidade Urbana e Saneamento.

Ainda em 2003 o ministério criou o Programa Nacional de Capacitação das Cidades com o objetivo de capacitar os técnicos e gestores municipais visando o atendimento da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano.  Após a realização de uma série de seminários, oficinas e cursos, o Ministério das Cidades editou em 2009 a Portaria Interministerial nº 511, que estabeleceu as diretrizes técnicas para elaboração do Cadastro Territorial Multifinalitário por parte dos municípios brasileiros. No entanto, cabe destacar que a portaria apresentou apenas um caráter orientativo para os municípios, isto é, não trouxe nenhum tipo de obrigatoriedade para sua realização.

Em 2022, o governo federal publicou a Portaria nº 3242, que apresentou nova diretrizes para o Cadastro Territorial Multifinalitário (CTM), revogando a Portaria nº 511/2009. A norma, composta por 28 artigos, foi organizada em 06 capítulos que apresentam: I. Disposições Gerais; II. Da Parcela e dos Objetos Territoriais; III. Dos Dados Cadastrais; IV. Da Avaliação de Imóveis; V. Da Gestão; VI. Do Marco Jurídico (BRASIL, 2022). Em resumo, a portaria constitui uma atualização das diretrizes para a criação de um cadastro territorial que forneça informações precisas e confiáveis sobre as parcelas e objetos territoriais, que são fundamentais para a gestão territorial e o planejamento urbano.

Dentre o conteúdo da Portaria nº 3242/2022, considera-se fundamental apresentar os conceitos que a estruturam, com destaque:

a) Cadastro Territorial Multifinalitário (CTM): conjunto formado pela combinação dos dados do cadastro territorial e dos cadastros temáticos;

b) Cadastro Territorial: inventário oficial e sistemático das parcelas de um município;

c) Cadastros Temáticos: compreendem conjuntos de dados relacionados a aspectos estruturais, como sociais, ambientais, habitacionais e tributários do município;

d) Parcela: representação de uma porção territorial de extensão contínua, com coordenadas de vértices, um código de identificação único;

e) Objetos Territoriais: Os objetos territoriais são considerados nos cadastros temáticos para identificar direitos, restrições ou responsabilidades sobre as parcelas

Sobre a parcela, vale destacar que a portaria elenca como elementos constituintes as coordenadas dos vértices de limite, o código de identificação único, inequívoco e estável, os direitos individuais e coletivos que a originam e os identificadores que possibilitem o relacionamento com os cadastros temáticos. Neste contexto, a norma instituiu a classificação das parcelas como certificadas e não certificada. A primeira caracteriza-se ela obtenção de seus limites com apoio geodésico, seguindo precisão estabelecida em norma específica, representando os limites legais ou de fato para que torne possível levá-la a registro. A segunda é aquela oriunda das bases de dados geoespaciais existentes ou delimitada por métodos de levantamento que não resultem em precisão posicional compatível com a definida em norma específica.

A classificação, entre parcelas certificadas e não certificadas, visa o aperfeiçoamento dos cadastros territoriais no Brasil, possibilitando que sejam contempladas as diferentes configurações relacionadas com a ocupação do solo urbano no país, muitas vezes realizada de forma completamente informal no contexto do direito de propriedade. Outro avanço existente na portaria é a inclusão do conceito de objeto territorial. Tal fato visa permitir o registro e armazenamento de dados de objetos que, embora não alterem um direito de propriedade, impõem algum tipo de restrição responsabilidade ou direitos à parcela. A figura 02 ilustra uma situação de ocupação territorial em que há necessidade de modelagem de objetos territoriais.

Figura 2: Exemplos do cadastro de objetos territoriais

Fonte: França et. al (2018)

Conforme pode ser observado, na figura 02 estão representadas cinco parcelas territoriais, representadas com a letra “P”, enquanto os objetos territoriais estão representados pela sigla “OT”. Os objetos territoriais OT03, OT04 à OT19, OT20, OT21 à OT23, OT24 e OT25 referem-se à situação física, representado a existência de edificações, um curso d’água e uma linha de transmissão de energia, enquanto o OT01 refere-se às restrições de ocupação das margens de cursos d’água e “OT02” refere-se às restrições de ocupação nas faixas de servidão de linhas de transmissão de energia elétrica (FRANÇA et. al, 2018).

Outra questão que merece destaque no contexto da Portaria nº 3242/2022 é a designação da necessidade de vinculação das coordenadas das parcelas territoriais à Rede de Referência Cadastral Municipal. A rede proporciona a infraestrutura de apoio geodésico e topográfico, vinculando todas as coordenadas ao Sistema Geodésico Brasileiro.  Esse é um ponto crucial na questão dos Cadastros Territoriais, visto que sua base de dados espaciais deve apresentar alto nível de previsão e exatidão posicional das parcelas. Não obstante, em 2022 foi publicada pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), a NBR 17047 que definiu os procedimentos do levantamento cadastral territorial para registro público. 

Ainda tratando sobre a Portaria nº 3242/2022, merecem destaque também as questões referentes ao processo de avaliação de imóveis, que deve ser realizada com base em métodos capazes de estimar os valores praticados pelo mercado imobiliário. Assim, visa-se assegurar a equidade, isonomia, justiça fiscal e social no processo de tributação de imóveis, devendo ocorrer uma revisão da avaliação no máximo a cada quatro anos (BRASIL, 2022).

É importante destacar ainda, que a Portaria nº 3242/2022 é realista ao indicar que a multifinalidade do cadastro deverá ser alcançada por meio de um processo evolutivo e aberto, de integração gradativa entre diferentes atores e dados temáticos, em um processo que deve ser protagonizado pela Administração Municipal.  Por fim, vale ainda destacar que a portaria estabelece a necessidade de intercâmbio de informações com os serviços notariais e registrais para manter atualizados os dados sobre a situação jurídica dos imóveis, permitindo assim que o CTM consiga prover informações necessárias à implementação das políticas públicas pela Administração Municipal.

Diante das informações apresentadas é possível concluir que existe atualmente no Brasil um arcabouço teórico-metodológico que orienta os municípios na organização de seus Cadastros Territoriais. De forma complementar, ressalta-se a existência de normas técnicas estabelecidas pela ABNT que orienta com relação aos procedimentos a serem realizados no processo de levantamento de dados. Cabe, portanto, aos gestores municipais a decisão de empenhar seus recursos financeiros e humanos na criação do Cadastro Territorial de seus municípios.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme apresentado no item 3, os primeiros Cadastros Territoriais produzidos no Brasil tinham objetivo específico de subsidiar os cálculos e cobranças dos impostos territoriais urbanos. Neste caso, o conjunto de dados produzidos era reduzido, restringido suas aplicações às questões tributárias, não alcançando assim a proposta de multifinalidade. No contexto atual, as orientações da Portaria n° 3242/2022 destacam que a base de dados cadastrais deve ser estruturada pelos limites espaciais dos imóveis, pela descrição de suas características construtivas e por informações sobre os proprietários ou posseiros. É fundamental ressaltar que, via de regra, as bases de dados produzidas no contexto dos Cadastros Territoriais apresentam um alto nível de precisão e exatidão posicional, devendo ser atualizadas de forma sistemática. Assim, é possível afirmar que os Cadastros Territoriais constituem o retrato mais fidedigno da ocupação fundiária de um município.

Conforme apresentado no item 2, o Estatuto da Cidade regulamentou a Política Urbana do Brasil, estabelecendo diretrizes, competências e criando uma série de instrumentos urbanísticos para os municípios lidarem com suas demandas. Apesar do denso conteúdo, a norma não faz qualquer menção sobre o processo de mapeamento e produção de bases de dados cartográficos na escala municipal.  Todavia, ao analisar o teor da norma e, especialmente, os instrumentos urbanísticos, é possível depreender que os dados espaciais constituem um insumo básico para o efetivo cumprimento das previsões legais. Neste contexto, os Cadastros Territoriais, quando organizados sob a lógica da Portaria nº 3242/2022, apresentam capacidade de preenchimento desta lacuna, proporcionando à gestão municipal um conjunto de dados consistentes que podem ser utilizados em diversas frentes, incluindo as ações de gestão territorial mediada pelos instrumentos urbanísticos.

A potencialidade dos Cadastros Territoriais no contexto da gestão territorial municipal pode ser facilmente verificada ao analisar o principal instrumento do Estatuto da Cidade, isto é, o Plano Diretor Municipal. Em função da importância destes planos, o Ministério das Cidades lançou em 2022 uma atualização de um guia, originalmente lançado em 2019, com orientações para sua elaboração. Neste caso, o documento aponta que o primeiro passo para elaboração de Plano Diretor pelos municípios é “conhecer a estrutura fundiária e suas tendências de desenvolvimento” (BRASIL, 2022).

O documento cita ainda a elaboração de mapas temáticos sobre o território. Dentre os temas citados estão as áreas de riscos para ocupação urbana, as áreas para preservação cultural, a estrutura fundiária, a evolução histórica da cidade e do território, a inserção regional do município, os indicadores de mobilidade e circulação. Cita também a necessidade de mapeamento de caracterização e distribuição da população e seus movimentos, englobando aspectos como a população por bairro e densidade, faixa etária e escolaridade, condições de emprego e renda familiar e crescimento ou evasão da população. Prevê ainda a necessidade de mapeamento do uso do solo e de toda infraestrutura urbana e o mapeamento das atividades econômicas do município. Verifica-se, portanto, que a organização de um Plano Diretor com qualidade depende fundamentalmente de um conjunto de dados espaciais que possibilitem a caracterização de suas características físico-geográficas e, sobretudo, de ocupação territorial do município (BRASIL, 2022).

Além do Plano Diretor outros instrumentos urbanísticos do Estatuto das Cidades também requerem o reconhecimento das características da ocupação do território municipal para sua efetiva aplicação. Sendo assim, também podem ser beneficiados pela existência de cadastro territorial com dados atualizados e confiáveis. Como exemplos destes instrumentos elencam-se: a instituição de zonas especiais de interesse social, a regularização fundiária, as limitações administrativas, o parcelamento, edificação ou utilização compulsória, as desapropriações e a instituição de unidades de conservação (BRASIL, 2001).

Evidentemente, a elaboração e manutenção de Cadastros Territoriais exige investimentos do poder público municipal. Esses investimentos, por sua vez, podem ser recuperados diretamente em função da atualização dos valores de tributação territorial municipal e indiretamente pela otimização das ações de gestão territorial. Neste sentido, é necessário que os municípios brasileiros criem um ciclo de retroalimentação positiva entre os Cadastros Territoriais e a execução da Política Urbana por meio dos instrumentos urbanísticos.

É importante destacar que a existência de Cadastro Territorial não é uma condição para aplicação de instrumentos urbanísticos. Inclusive, há uma série de instrumentos de caráter jurídico-administrativo cuja aplicação não depende do mapeamento cadastral do território, como, por exemplo, as diretrizes orçamentárias e orçamento anual e a gestão orçamentária participativa. Sendo assim, os Cadastros devem ser compreendidos como facilitadores da aplicação dos instrumentos, contribuindo diretamente com o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, garantindo o bem-estar de seus habitantes conforme preconiza o artigo 182 da atual Constituição Federal.

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