O ABUSO SEXUAL INTRAFAMILIAR NO CONTO SHIRLEY PAIXÃO DE CONCEIÇÃO EVARISTO

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7929838


Andressa Pereira Matos
Rayslane Santos Ribeiro
Orientadora: Dra. Rosália Maria Carvalho Mourão


RESUMO

O presente trabalho fará uma abordagem a respeito do estupro praticado pelo pai na filha Seni, dentro do ambiente familiar, a partir da leitura do conto “Shirley Paixão”, de Conceição Evaristo, publicado no livro “Insubmissas lágrimas de mulheres” (2011). A Constituição Federal do Brasil de 1988 ao trazer expressamente e reconhecer a proteção integral de crianças e adolescentes, e os direitos fundamentais de titularidade de crianças e adolescentes, em seu bojo dispõe sobre o direito à convivência familiar e comunitária. O conto abordou a problemática no ambiente familiar, a criança em desenvolvimento está sujeita a violação de seus direitos fundamentais, como no caso trazido, que foi à prática de abuso sexual e que estes abusos sofridos durante a infância resultam em sequelas por toda a vida. A relevância social do tema consiste na importância da fiscalização, dever e cuidados que os pais devem ter durante a fase de desenvolvimento das crianças e adolescentes. O presente trabalho tem por objetivo investigar como a experiência da violência sexual intrafamiliar impacta a vida de Shirley e Seni no conto “Shirley Paixão”, de Conceição Evaristo. A metodologia utilizada baseou-se em um estudo descritivo-analítico, desenvolvido por meio de pesquisa bibliográfica com base em artigos e trabalhos publicados na internet. O estudo teve como resultado que a violência intrafamiliar em crianças e adolescentes é endêmica, e que é necessário melhorar a legislação e locais de atendimento para atender as vítimas e punir/reeducar agressores, assim como rever valores e preceitos enraizados na sociedade brasileira.

Palavras – chave: Criança e Adolescente. Violência Intrafamiliar. Família e Sociedade.

ABSTRACT

The present work will approach the rape practiced by the father on his daughter, within the family environment, based on the reading of the short story Shirley Paixão, by Conceição Evaristo, published in the book Insubmisso tears of women (2011). The present work will approach the rape practiced by the father on his daughter, within the family environment, based on the reading of the short story Shirley Paixão, by Conceição Evaristo, published in the book Insubmisso tears of women (2011). The Federal Constitution of Brazil of 1988, by expressly bringing and recognizing the full protection of children and adolescents, and the fundamental rights of ownership of children and adolescents, in its core provides for the right to family and community coexistence. The short story addressed the problem in the family environment, the child, in development, is subject to the violation of their fundamental rights, as in the case presented, which was the practice of sexual abuse and that these abuses suffered during childhood result in consequences for life. The issue under analysis has, due to its social relevance, the importance of supervision, and care that parents should have during the development phase of children and adolescents. The present work aims to investigate how the experience of intrafamilial sexual violence impacts the lives of Shirley and Seni in the short story “Shirley Paixão by Conceição Evaristo”. The methodology used was based on a descriptive-analytical study, developed through bibliographical research based on articles and works published on the internet. The study had as a result that intrafamily violence in children and adolescents is endemic, and that it is necessary to improve legislation and places of care to assist victims and punish/re-educate aggressors, as well as review values ​​and precepts rooted in Brazilian society.

Keywords: Child and Adolescent. Intrafamilial. Violence. Family and Society.

INTRODUÇÃO 

A violência sexual intrafamiliar contra crianças e adolescentes é um ato que acontece desde os primórdios da antiguidade até os dias atuais não apenas em famílias desestruturadas, e mais vulneráveis financeiramente, mas em todas as esferas da sociedade, que independente de gêneros, crenças ou idade, esses abusos podem prejudicar o desenvolvimento psicológico e social de crianças e adolescentes promovendo diversas psicopatologias. Um problema grave que viola gravemente os direitos humanos e deixa profundas marcas no desenvolvimento da criança e reflete diretamente sua vida adulta.

Como forma de possibilitar uma discussão e aprofundamento do estudo sobre este tema socialmente relevante, o estudo em questão foi desenvolvido tendo como base teórica a narrativa do conto “Shirley Paixão”, de Conceição Evaristo (2016) o conto trata da questão da violência doméstica, especificamente,  estupros praticados pelo pai em Seni e as sequelas dessa violência sobre as atitudes da filha dentro e fora do ambiente familiar. 

O conto em estudo narra a história da família de Shirley Paixão, mãe de cinco filhas, três que o marido trouxe e duas que eram dela. As cinco eram crianças, com idades que variam entre os cinco e os nove anos de idade, à época em que Shirley casou. Nos sete anos que sucederam o casamento, a família vivia como uma família normal e comum, assim como as demais famílias da época, como a protagonista conta: “Vivíamos bem, as brigas e os desentendimentos que, às vezes, surgiam entre nós eram por questões corriqueiras, como na vida de qualquer casal” (EVARISTO, 2016, p. 25-26). 

A família começou a mudar com o aparente comportamento de Seni na escola, a preocupação da professora no que diz respeito à educação dada em casa a Seni, e a desvalorização dela pelo pai, um aparente contrassenso às atitudes corretas da filha. Em um dado momento do conto é narrado o estupro sofrido por Seni pelo pai, e a reação das irmãs, mãe e vizinhos em perceber que o pai, que na verdade era para cuidar e proteger a filha, era de fato o seu estuprador. E o quanto esse crime repercutiu na vida futura de toda a família, e a partir disso começa a reflexão no porquê do silêncio vivenciado por Seni.

O presente trabalho tem por objetivo geral: Investigar como a experiência da violência sexual intrafamiliar impacta a vida de Shirley e Seni no conto “Shirley Paixão”, de Conceição Evaristo. E por objetivos específicos: debater a legislação e os obstáculos a sua aplicação; discutir o papel fundamental da escola na atenção à criança para detectar o problema do abuso sexual intrafamiliar; analisando os diferentes contextos em que o abuso intrafamiliar ocorre.

A justificativa do trabalho baseia-se na análise necessária a respeito do abuso sexual intrafamiliar roteirizado no conto em questão de Conceição Evaristo (2016), que é um crime recorrente na sociedade até os dias atuais, dificilmente combatido, e enfrentado por envolver, na maioria dos casos, pessoas que possuem laços familiares afetivos que convivem juntos ou fazem parte das relações de afeto da vítima ou da família da vítima. Assim sendo, já se consegue observar que todas as crianças e adolescentes estão vulneráveis a se tornarem vítimas deste crime que ocorre de forma silenciosa e que em um dos seus efeitos secundários silencia a vítima.

O atual ordenamento jurídico ainda está em fase de desenvolvimento, pois ainda não disponibiliza medidas mais eficazes e políticas públicas em conjunto com o poder público e os demais órgãos de fiscalização, a fim de promover treinamentos com a rede de profissionais da educação e programas e palestras para os tutores e pais dessas crianças, para que eles consigam identificarem comportamentos e encontrem gatilhos que se desenvolveram por meio da situação de abuso sexual e psicológico e a posterior erradicação do problema.

No intuito de que aos primeiros vestígios de que aquela criança foi vítima deste crime, ela receba todo amparo e cuidado com profissionais qualificados e medidas judiciais mais eficientes para que o infrator seja identificado com maior brevidade e que seja retirado do convívio familiar e social.

Segundo os dados do levantamento de dados do caderno Violência Intrafamiliar (2002), do Ministério da Saúde, os responsáveis por 70% dos casos são os maridos. Ou seja, o mais comum é a violência do marido contra a esposa, chegando a 68.5% dos casos, mas também é significativo o índice de violência sexual contra os filhos como foi narrado no conto de Shirley Paixão. Com base no relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Diante dos fatos apresentados é inegável e indispensável a necessidade de um número maior de pesquisas que estudem a questão e que ajude a encontrar uma solução eficaz para o problema.

O método científico a ser utilizado neste trabalho será o dedutivo, observando a confrontação de informações existentes sobre o tema em questão. A pesquisa será bibliográfica narrativa, no qual é uma modalidade de pesquisa bastante utilizada, e são desenvolvidas através de material já elaborado, constituído principalmente de livros, artigos, revistas, periódicos, legislação e dissertação em geral, considerando a opinião baseada em pesquisas e em estudos de autores a respeito do assunto. 

Esta pesquisa é constituída da introdução, do capítulo um que consiste nos aspectos históricos da formação social da família: A criança como detentora de direitos; capítulo dois: O abuso sexual e suas consequências; capítulo três: reflexos da violência sexual intrafamiliar na vida da criança vítima: como fica o direito à convivência e a Conclusão.

O trabalho está estruturado de modo a se fazer uma análise do tema numa abordagem acerca da formação social da instituição família, dos direitos a proteção da criança e ao seu desenvolvimento sadio, enfatizando-se a violência sexual intrafamiliar contra crianças em seus aspectos sociais e jurídicos, trazendo à discussão o problema da dificuldade em se apurar o delito e elenca, ainda, sugestões de possíveis medidas protetivas a serem adotadas ante esse tipo de violência.

1. ASPECTOS HISTÓRICOS DA FORMAÇÃO SOCIAL DA FAMÍLIA: A CRIANÇA COMO DETENTORA DE DIREITOS

A família é uma das instituições mais antigas já criada pela sociedade. Assim sendo, sempre existiu regras que regiam a convivência familiar, no entanto nem sempre houve regras que protegessem os direitos das crianças. No decorrer de toda a história da humanidade, verifica-se que houve uma ineficiente ou mesmo inexistência de proteção jurídica em relação à violência praticada contra crianças e adolescentes, seja dentro de um ambiente familiar ou fora. São diversos os casos de agressões, física e verbal, tais como abandono, espancamento, repúdio, violência sexual e psicológica. 

Cabe enfatizar que, na antiguidade, esta violência recebia apoio das leis, quando se destaca o Código de Hamurabi, elaborado há cerca de 1700 a.c, no primeiro império Babilônico, por determinação do imperador Hamurabi. Esse Código tem, como base, a Lei de Talião “olho por olho dente por dente“, quando reza em seu artigo 192 que “se o filho de um dissoluto ou de uma meretriz diz a seu pai adotivo ou a sua mãe adotiva: “tu não és meu pai ou minha mãe”, dever-se-á cortar-lhe a língua” (SILVA, 2012, p.02).

Pode-se observar que em um primeiro momento as manifestações de violência contra crianças eram permitidas em formato de castigo e disciplina, em nome da obediência e hierarquia dos pais e às regras impostas, sem que houvesse uma preocupação com as sequelas emocionais, traumas e a preservação da integridade física, moral e psicológica.

Para garantir a educação e disciplina houve uma forte valorização dos castigos, punições físicas e espancamentos sempre com a intenção de ensinar a disciplina e obediência, conforme preleciona Azambuja (2004 p.13): “Acreditavam que as crianças poderiam ser moldadas de acordo com os desejos dos adultos, sendo que a estrita obediência era o único modo de escapar às punições”.

A sociedade dispensou a princípio um tratamento e preocupação  legislativa às crianças em cada fase de desenvolvimento, não existiu uma definição precisa do significado de infância presente em cada momento histórico. Dessa forma, nos primórdios da antiguidade eram praticadas diversas formas de violência à criança e ao adolescente, até pela fragilidade dos mesmos em se defenderem, a literatura assim aduz: “desde os egípcios e mesopotâmios, passando pelos romanos e gregos, até os povos medievais e europeus” tais povos não considerava a infância como uma fase especial e merecedora de direitos e cuidados especiais e tinham o apoio tanto das normas como dos costumes da cultura dominante (AZAMBUJA apud Andrade, 2000.p.02). 

Foi apenas no final do século XVIII que a infância passou a ser vista com um outro olhar pela sociedade, isto é, uma fase distinta da vida adulta. As escolas eram frequentadas por crianças e adultos. Com a distinção das fases de desenvolvimento do ser humano e o reconhecimento da infância surgiram os castigos, punições, espancamentos como forma de disciplina e hierarquia utilizadas na educação.

Em 1871, o caso da criança Mary Ellen ganhou repercussão e revolta na cidade de Nova York, a partir desse caso foi fundada a Sociedade para a Prevenção da Crueldade contra as Crianças. A história conta que Mary Ellen era uma menina órfã de mãe, abandonada pelo pai, que sofreu severos maus-tratos e violações na família substituta.

O caso ganhou tamanha indignação social na época, que a população percebeu que para este tipo de situação não havia um órgão destinado a receber a denúncia da situação ocorrida, e nem um amparo de socorro à criança. Como opção, o caso foi denunciado na Sociedade para a Prevenção da Crueldade contra os Animais, isto é, até os animais na época tinham mais direitos assegurados que as crianças. Mary Ellen teve que ser equiparada a um animal para que fosse socorrida e seu caso pudesse ser examinado pelo Tribunal da época. A partir desse evento, algum tempo depois Inglaterra instituiu uma sociedade de fins semelhantes com a finalidade de proteger crianças vítimas de maus tratos (AZAMBUJA, 2006, p.03).

Com relação ao Brasil, a punição de maus tratos e proteção garantida às crianças não era diferente dos demais países, estas não tinham proteção e nem direitos por parte do Estado. A história denota que desde a falta de proteção e direitos no ambiente familiar, as primeiras embarcações vindas de Portugal ao Brasil, eram povoadas de crianças órfãs e de homens. As crianças recebiam as tarefas de auxílio aos serviços na viagem, já que esta era trabalhosa e duradoura, por sua fragilidade física, era submetida aos abusos sexuais praticados pelos marujos rudes e violentos. Em caso de tempestade, ou de algum problema surgido em alto mar, eram as primeiras cargas a serem lançadas ao mar, ou seja, as crianças eram tratadas como objetos, a depender da circunstância (AZAMBUJA, 2006).

No Brasil, a situação com relação à criança e ao adolescente veio mudar com a promulgação da Constituição Federal de 1988, intitulada constituição cidadã. A partir de 1988, com a implantação de diversos direitos assegurados a todo e qualquer ser humano, e com a definição da idade a ser consideração criança e adolescente, a legislação em concordância com a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, inaugurou uma época de reconhecimento da defesa de  direitos de personalidade, cuidado e proteção àqueles que não atingiram os dezoito anos de idade (AZAMBUJA, 2006).

A partir da Constituição de 1988, a criança passou a ser vista como sujeito de direitos e elevada à categoria de prioridade absoluta, e de sujeito em desenvolvimento, como bem assegura a nossa Carta Magna em seu art. 227:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

A Magna Carta de 1988, base fundamental e principiológica de todo o ordenamento jurídico do Brasil, é tida como uma das mais democráticas do mundo. Uma vez que, traz em seu conjunto de normas e princípios que garantem uma sociedade mais digna, justa, solidária e sem discriminações a qualquer ser humano, independentemente de classe social, em total consonância aos princípios da dignidade humana, cidadania e em especial proteção ao ser humano em fase de desenvolvimento, isto é, a criança e o adolescente (SILVA, 2012).

2. O ABUSO SEXUAL E SUAS CONSEQUÊNCIAS 

No tópico a seguir serão abordadas as características do abuso sexual, especificamente no abuso cometido dentro de um ambiente familiar, bem como seus reflexos na vida adulta e sequelas traumáticas pelo ato de abuso cometido por alguém próximo à criança ou adolescente que deveria ser sinônimo de cuidado da mesma, no que tange à integridade física e à mental, inclusive pelo afastamento do agressor ou da criança ou adolescente do convívio familiar.

2.1 O Abuso Sexual e Suas Principais Características 

O conto ora em estudo tem como ênfase um relato de violência sexual que ocorreu  na família de Shirley Paixão, mãe de cinco filhas, três que o marido trouxera e duas que eram dela. As cinco eram pequenas, com idades entre os cinco e os nove anos, quando Shirley casou. Durante os primeiros anos de casamento, não havia nada de estranho, a família era uma família comum,  de acordo com o que é contado pela protagonista: “Vivíamos bem, as brigas e os desentendimentos que, às vezes, surgiam entre nós eram por questões corriqueiras, como na vida de qualquer casal” (EVARISTO, 2016, p. 25-26). 

Quem não conhecia a família de perto, achava que todas as crianças eram filhas de Shirley e do marido devido a harmonia e amizade existentes de ambas as partes. Shirley narra: “Mãe me tornei de todas. E assim seguia a vida até o incidente que mudou a vida de toda a família ocorrido com Seni” (EVARISTO, 2016, p. 28).

Seni sofria abuso sexual cometido pelo pai, e em decorrência disso era a filha que possuía atitudes diferentes das demais. No conto Seni era silenciada e ainda que, passados trinta anos da noite terrível em que Shirley presencia a cena de estupro da filha e toda a vizinhança fica sabendo do ocorrido, as lembranças do passado sobrevivem na vida daquelas mulheres, nos quais os laços de amor prevaleceram sobre o fatídico crime (EVARISTO, 2016).

Shirley conta: “[…] continuamos a vida. Das meninas, três já me deram netos, estão felizes. Seni e a mais nova continuam morando comigo (EVARISTO, 2016, p. 34).” Sem dispensar as lembranças dolorosas, a narradora diz que “Seni continua buscando formas de suplantar e amenizar as dores do passado” (EVARISTO, 2016, p. 34). Cabe ressaltar que Seni, dedicou-se à cura, a dela e a das demais pessoas, mas nunca se esqueceu dos traumas e das dores que passou. Se tornou médica, pediatra, escolheu “proteger e cuidar da vida das pessoas” (EVARISTO, 2016, p. 34). 

O livro de Conceição Evaristo (2016) aborda um tema socialmente relevante para a família brasileira, qual seja, a violência doméstica. O conceito de violência sexual é compreendido como o ato ou atitude de obrigar, embora contra sua vontade, um indivíduo a ter conjunção carnal ou qualquer outro tipo de ato libidinoso para a satisfação de sua vontade sexual ou a de outrem, para a configuração do abuso é necessário a grave ameaça, independentemente da utilização de força física, assim como também cumulado aos quesitos anteriores tem que inexistir o livre consentimento ou a manifestação de vontade (CHAVES, 2011).

Ainda de acordo com Chaves “a violência sexual, dentro de um contexto histórico-social e com raízes culturais, uma das espécies de crime de violência, atinge todas as faixas etárias, de diferentes classes sociais e pessoas de ambos os sexos” (CHAVES, 2011, p. 342 e 343). A violência sexual é um crime complexo, presente no mundo todo, variando de intensidade em um contexto de diferentes dinâmicas culturais, das relações de poder e comportamento, um fenômeno combatido por diferentes países como o Brasil, por violar os direitos humanos, culturais, e fundamentais, impedindo o bom desenvolvimento da criança e do adolescente, ocasionando sequelas futuras e graves danos mentais, emocionais e psicológicos às vítimas, na maioria dos casos por toda a vida adulta (CHAVES, 2011). 

Para que seja considerada uma violência sexual contra crianças e adolescentes, o fator definidor se torna a faixa etária da vítima, isto é, a idade, que deve ser menor de dezoito anos e o agressor uma pessoa com idade superior à da vítima, ou maior de 18 anos de idade que tenha desenvolvimento mental e psicossexual mais avançado em relação à vítima (CERQUEIRA- SANTOS, 2015).

Ainda segundo entende Cerqueira Santos (2015) existe uma certa dificuldade de se conceituar e compreender a violência sexual contra crianças, já que o assunto em comento é permeado por preconceitos, traumas, incertezas, medos, dores, vergonha, como o crime é cometido na maioria das vezes por pessoas próximas ou de familiares, há a questão de não denunciar de tentar resolver dentro da própria família, ou mesmo de culpar a vítima, há casos também que a baixo nível de escolaridade e o contexto social não permite a família identificar uma situação de abuso e de reconhecê-la como crime.

A Lei nº 13. 431/2017, existente no ordenamento jurídico brasileiro, que dispõe sobre o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, em seu artigo 4º, III, definiu o que seria a violência sexual como qualquer conduta que constranja a criança ou o adolescente a praticar ou presenciar conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso, inclusive exposição do corpo em foto ou vídeo por meio eletrônico ou não (BRASIL, 2017). 

Assim sendo, constata-se que a violência sexual quando envolve crianças ou adolescente tem seu conceito jurídico amplo atingindo não apenas a conjunção carnal em si, mas também atos de contado físicos, que variam desde o toque humano até aos atos visuais como fotografias e vídeos, para proteger à dignidade humana, a integridade física e psíquica destes indivíduos, que a depender de sua faixa etária não tem o completo discernimento ou compleição psicológica para compreendem a natureza de tais atos e a possível violação e abuso que estão sofrendo.

Do mesmo modo, a doutrina classifica violência sexual como gênero, das quais são espécies o abuso sexual e a exploração, entretanto, a já citada Lei nº 13.431/2017, disciplina que são compreendidos como violência sexual o abuso sexual, a exploração sexual comercial e o tráfico de pessoas com fins de exploração sexual. No que diz respeito à exploração sexual, esta fica caracterizada quando a criança ou adolescente é utilizado para qualquer tipo de proveito, vantagem sexual, ou ainda vantagem pecuniária, que é entregue à criança ou uma terceira pessoa responsável pela mesma (BRASIL, 2017). 

A exploração sexual é um dos maiores atentados aos direitos humanos, pessoas, incluindo crianças, se tornam objetos e mercantilizados para satisfação financeira ou sexual de outras. Isso compromete o desenvolvimento familiar, pessoal da vítima, e da própria família ocasionando danos emocionais, psicológicos e físicos. Assim sendo, percebe-se que esta violência sexual está ligada ao contexto social de desestrutura familiar, ausência de políticas de assistência e proteção às famílias, às crianças e aos adolescentes, sendo comum em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, os quais possuem altos índices de desigualdades sociais como o Brasil. 

Ademais o abusador, por vezes, se utiliza de meios para “seduzir” as vítimas, e mascarar a negatividade de sua conduta seja lhes dando presentes, seja por meio de carícias e carinhos que confundem as crianças ou os adolescentes quanto à sua real intenção, por não ter seu discernimento social completo à criança nem sempre sabe que está sendo vítima de um crime. O agressor, em regra, se aproveita da condição de ser alguém por quem o abusado nutre sentimentos de carinho, afeto e confiança. No caso do conto “Shirley Paixão”, o agressor é o próprio pai, que deveria proteger a filha de qualquer forma de violência.

A partir do exposto, verifica-se que não é tão fácil identificar um crime de abuso sexual, sobretudo quando este ocorre dentro de um ambiente familiar, por diversos fatores como a ausência de denúncia por parte da vítima, o medo de expor a situação constrangedora que sofre, o receio da família em ver o seu parente ou pessoa próxima presa, o crime de abuso tem por características a sua periodicidade, às vezes anos, por não sofrer nenhum tipo de punição ou obstáculo, o abusador se sente à vontade para frequentemente cometer o crime. 

O abusador tem noção de que está praticando um crime, sabe seus efeitos criminais e jurídicos, mas acredita que não será punido, nem descoberto, justamente pelo fato de ter alguma relação de proximidade ou parentesco com a vítima, além de ser uma pessoa que a vítima ou a família da vítima tem alguma relação de afeto ou confiança (LEITE, 2018). O pai de Seni utiliza-se de seu poder de genitor para impedir que a menina conte para qualquer pessoa, seja a mãe ou a professora, o que acontece com ela quando fica a sós com ele.

Desta maneira, o abusador utilizando-se de abertura familiar, a exemplo da coabitação, relação de parentesco, amizade, vizinhança, força física e emocional para executar os atos e sob ameaça, mantém a vítima em silêncio, guardando para si as violências sofridas. O abuso sexual perpetrado no ambiente familiar, como no caso do conto utilizado na presente pesquisa é praticado na maioria das vezes por alguém da família, vizinhos, mães, padrastos, avós, irmãos, tios (CERQUEIRA-SANTOS, 2015).

2.2 Prejuízos Causados à Saúde e ao Desenvolvimento Pleno de Crianças e Adolescentes Vítimas de Abuso Sexual 

A família deve ser um local, sobretudo de segurança, confiança, respeito, cuidados e amor, causando confusões no discernimento de uma criança ou adolescente quando o seu lugar de proteção e cuidado, confunde-se com o seu lugar de vulnerabilidade, risco e perigo, fato que pode ocasionar a medida excepcional de afastamento da criança ou do adolescente do lar para sua proteção, e como mostrado no presente trabalho, os danos emocionais e psíquicos tornam-se irreversíveis. 

A dificuldade em identificar uma situação de abuso impede que o abusador seja punido, por isso é necessário que haja mais denúncias e notificações ao poder público como polícia, conselho tutelar e judiciário para que diminua as incidências dos crimes de abuso, assim como também para que haja mais punições aos abusadores e divulgações a respeito do assunto, para que assim as pessoas sejam influenciadas a denunciar os casos seja no seu ambiente familiar, seja no ambiente familiar de terceiros (SILVA, 2012).

Como já citado no presente artigo, o abuso sexual é um crime complexo, por sua identificação, seus autores e vítimas, e suas consequências durante todo o estágio de vida da vítima. Neste sentido, os atos abusivos cometidos geram inúmeros danos à saúde física, psíquica e emocional das vítimas, e causam consequências graves ao desenvolvimento saudável e pleno de tais indivíduos, por isso afirma-se que o abuso sexual contra crianças e adolescentes é um problema predominantemente de saúde pública (LEITE, 2018). 

O abuso sexual em crianças e adolescente é um crime que ultrapassa a esfera criminal e entra em outras áreas como o serviço social, a saúde, a psicologia, a pedagogia. Assim sendo, a prevenção e soluções para o abuso sexual devem ser pensadas e abordadas de forma multidisciplinar e interdisciplinar, com o auxílio de diversas áreas já citadas, de modo que  a vítima, seja ela criança ou adolescente, sua família e o abusador possam ser atendidos pela rede de forma eficaz para que se minimizem os danos causados e o abusador seja punido. 

As crianças e adolescentes, via de regra, são os mais prejudicados pelo ato de abuso sofrido, uma vez que, por está em fase de desenvolvimento físico e mental, os abusos sofridos afetam o discernimento, a realidade, e a formação do indivíduo. Por não possuírem o entendimento a respeito das violências sofridas, como consequência o abuso resulta em traumas, medos, insegurança, falta de confiança pessoal e baixa autoestima, como uma forma de resposta a uma experiência pessoal inesperada, externa e dolorosa como a violência sexual (SILVA, 2012). 

Desta forma, quanto mais cedo for descoberto o abuso, quanto maior for a rede de apoio, os tratamentos psicológicos e tratamento médicos, menor serão as sequelas futuras. Como decorrência disso, afirma-se que a violência sexual intrafamiliar não produz o mesmo resultado em todas as crianças e adolescentes, pois dependerá de fatores que permeiam o abuso sexual e da própria constituição psicológica e física das vítimas. Dessa forma, é muito importante que haja equipes multidisciplinares treinadas para atender as crianças e os adolescentes que sofrem abuso sexual, desde o seu primeiro atendimento seja ele no hospital, na escola, no conselho tutelar ou em delegacias especializadas, até que estas consigam restabelecer seus desenvolvimentos de forma normal e sadia (LEITE, 2018).

Como já citado no presente trabalho, não é fácil identificar uma situação de abuso sexual com uma criança ou adolescente, pois é um crime que em regra não deixa vestígios materiais ou marcas físicas facilmente perceptíveis, o exame físico que se cumulado com anamnese realizada pelo médico podem ser considerados alertas e despertam a suspeita sobre o fato de crianças ou adolescentes estarem sendo ou não vítimas de abuso sexual, e também há casos em que a própria família da vítima tentam acobertar violência praticada contra a criança ou o adolescente, o que dificulta mais ainda a descoberta pelas autoridades do poder público (LEITE, 2018).

Assim, os profissionais da saúde devem possuir a capacidade técnica de identificar os casos suspeitos de abuso, realizando exames físicos das regiões íntimas, tendo o cuidado para não causar confusões emocionais na vítima, e no caso de ser constatado o abuso acionarem as autoridades competentes. Ademais, não apenas os exames médicos demonstram casos suspeitos de abusos, no conto do livro abordado na pesquisa, Seni tinha um comportamento introspectivo, era arredia, o abuso causa mudanças de comportamentos na criança silenciada, como por exemplo: o baixo rendimento escolar, ausência de interação com os colegas de classe ou dificuldade de socialização, comportamento sexualizado, choro fácil, medo, irritabilidade, agressividade, tristeza, déficit de atenção ou hiperatividade (LEITE, 2018).

Cabe ressaltar, a importância da escola e dos professores ao notar comportamentos estranhos e diferenciados nas crianças, e um papel importante na descoberta de abusos, já que as crianças passam grande parte do seu dia nas escolas, e quando se criam relação de confiança e afinidade com os professores podem relatar situações de abusos sofridas, em forma de pedido de socorro. Além disso, algumas outras alterações comportamentais podem ser perceptíveis pela família diante de uma criança ou adolescente vítima de abusos, como distúrbios do sono, enurese, comportamentos suicida, alta irritabilidade ou comportamentos antissociais, estresse, vômitos, distúrbios alimentares, atraso, perda ou regressão no desenvolvimento, dificuldade no desenvolvimento da fala, ansiedade, tiques e manias, baixa autoestima e autoconfiança (LEITE, 2018). 

Desta forma, pelo estudo abordado verifica-se que o abuso sexual prejudica a saúde, podendo desencadear transtornos mentais, psíquicos e emocionais em crianças e adolescentes, os quais variam a depender da idade das vítimas, é comum consequências como transtornos de estresse pós-traumático, transtorno de estresse agudo, dissociação, transtornos de ansiedade, transtornos de humor, transtorno de déficit de atenção ou hiperatividade, transtornos alimentares (LEITE, 2018). 

Isso posto, a importância da família, da comunidade e a reestruturação familiar que tem por finalidade ser um apoio na recuperação da vítima, sendo priorizado o afastamento do abusador do lar, apenas na impossibilidade dessa medida o afastamento da vítima do lugar em que sofreu o abuso, preservando à convivência familiar e social, sendo uma solução a colocação de criança ou adolescente em família ampliada, substituta ou acolhedora e em último caso, quando todas as medidas anteriores não forem possíveis é que se determina a colocação em acolhimento institucional, de forma a conservar os direitos, cuidados, proteção e os interesses da criança e do adolescente em fase de desenvolvimento (LEITE, 2018).

3. REFLEXOS DA VIOLÊNCIA SEXUAL INTRAFAMILIAR NA VIDA DA CRIANÇA VÍTIMA: COMO FICA O DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR?

O direito à convivência familiar, é um direito previsto na Constituição Federal (1988) direcionado a todas as crianças e adolescentes, por ser um direito basilar que integra a condição humana, preservação do indivíduo e dignidade da pessoa.  Todavia, na maioria das vezes quando os casos de violência intrafamiliar chegam ao sistema Judiciário, a criança já foi afastada de seu ambiente familiar, seja pela retirada do abusador, seja pela colocação em família substituta. Ou seja, quando ocorre o abuso, pondera-se o direito da preservação da entidade familiar, em prol do direito à proteção e integridade da criança, é uma ponderação realizada pelo judiciário para resultar no melhor interesse e proteção da criança (CURY, PAULA e MARÇURA, 2002).

A criança tem o direito de conviver com seus pais a não ser quando essa convivência se torna incompatível aos seus direitos e interesses, o direito de manter contato com ambos os pais caso seja separada de um ou de ambos e as obrigações do estado nos casos em que tal separação resulta de ação do Estado segundo dispõe a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança. Assim como é dever do Estado manter a integridade física e mental da criança, em forma de proteção especial, no caso de as crianças não poderem conviver dentro do seu meio familiar, e assegurar um ambiente alternativo ou colocação em instituição apropriada, sempre considerando o ambiente cultural da criança (CURY, PAULA e MARÇURA, 2002).

A família desenvolve um papel de primordial importância, como já citado no presente trabalho a formação, desenvolvimento, crescimento sadio e ensinamentos durante a vida de um ser humano em formação. Quando há um caso de abuso dentro de uma entidade familiar, se torna um problema da criança e demais membros, principalmente quando este abuso é praticado por alguém dentro da comunidade familiar. Na maioria das vezes a mãe atribui esse comportamento a outros motivos, o abuso nem sempre é acreditado ou perceptível pela mãe, a exemplo do que ocorre no conto, em que assim aduz a narradora: “Shirley, a madrasta, achava que Seni era aquela menina silenciosa e exigente com ela mesma devido à morte da mãe” (EVARISTO, 2016, p. 28-29).  

Não é uma tarefa fácil a ser ponderada pelo poder público competente, isto é, analisar os possíveis caminhos a serem escolhidos, até assumir, com responsabilidade, a ação a ser realizada, a qual anteriormente passou por um processo de reflexão, decisão, planejamento, para culminar na sua execução quando se decide que o melhor para o interesse e proteção da criança é a sua retirada de seu meio familiar (CURY, PAULA e MARÇURA, 2002).

Há uma necessidade futura de reconstrução, adaptação, afeto, valores e confiança.  As crianças necessitarão de cuidados dos pais substitutos e de um recomeço através da confiança, para que assim possam vencer as etapas iniciais de desenvolvimento e aprendizado, até se tornarem civilmente livres. As consequências do abuso, sobretudo os de cunho sexual, repercutem por toda a vida futura da vítima, nas condições emocionais, no conto “Seni continuou buscando formas de suplantar as dores do passado, aprofundando, a cada dia, o seu dom de proteger e cuidar das pessoas, se tornando médica” (EVARISTO, 2016, p. 34), sendo como foi bem salientado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, “interesse da sociedade e do Estado o desenvolvimento biopsicológico da população infanto-juvenil em condições de normalidade” (CURY, PAULA e MARÇURA, 2002, p.238).

 A Lei nº 9.086/90 ratifica a possibilidade, há muito tempo esperada,   traz a possibilidade, de afastamento do agressor da moradia familiar, no caso de haver configurada  a hipótese de opressão ou abuso sexual impostos pelos pais ou responsável (art. 130 do ECA), sendo que “a provisional autorizada pelo artigo deve ser concedida liminarmente, sem audiência do agressor, ad cautelam, exatamente para não frustrar a proteção, apesar de terapêutica” (CURY, PAULA e MARÇURA, 2002, p. 239).

Tal dispositivo, na prática nem sempre se demonstrou como uma medida eficaz, uma vez que embora a Justiça determine o afastamento do agressor, nem sempre ele definitivamente se afasta, nem sempre a companheira quer de fato o total afastamento do agressor do lar comum do casal, principalmente nos casos em que a companheira se demonstrava omissa com relação ao dever de fiscalização da situação de abuso praticado, ou mesmo diante da situação de abuso, em muitos casos o abusador retorna a frequentar a casa. O afastamento da vítima, por vezes, demonstra ser uma segunda punição a própria vítima, que tem que ser retirada de seu lar por conta de um infrator, o que consistiria em mais uma violência contra ele. 

Especialistas através de estudos sobre famílias que tiveram casos de vítimas de abuso nas quais tinham um filho alocado fora constataram que a idade mais avançada da criança, a baixa condição financeira, o contexto histórico-social são alguns dos fatores que resultaram em uma maior gravidade problema, sensação de injustiça, situação comportamental escolar na resultaram em uma  má evolução no esforço de reabilitação, e de uma necessidade de cuidado institucional permanente para as vítimas, o que na prática gera uma situação complicada e de grande vulnerabilidade da vítima estar longe da família (hospitalização, casa de parente, vizinho ou instituição. A primeira preocupação deve ser a de avaliar a capacidade da família de proteger a criança de novos abusos e a necessidade ou não do afastamento imediato da criança (FURNISS, 1993).

No que tange a política pública de enfrentamento a violência sofrida por crianças e adolescentes, como já citado uma das decisões mais complexas do poder judiciário é decidir pelo afastamento do lar da vítima. O Judiciário não raro se depara com situações em que a mãe não reconhece a situação de abuso para proteger o companheiro, ainda que a comprovação da situação de violência seja um fato incontroverso, fator esse que impede o desempenho da necessária proteção que a criança necessita. Nestes casos, faz-se necessário que o Poder Judiciário demonstre a real situação da mãe vir a perceber o risco enfrentado pela filha, cabendo salientar: o trabalho da negação da situação de abuso geralmente leva a mudanças psicológicas e interacionais que possibilitam à mãe reconhecer e acreditar na criança, e tornar-se protetora. Não tem como alguém proteger uma pessoa de uma situação que ela nega ou não a reconhece, como um potencial risco ou uma situação gravosa.

A negação da situação resulta ao Judiciário na impossibilidade da mãe proteger a criança, isto é, a criança não ficará segura e protegida com a mãe, o que na prática inviabiliza mudanças e melhorias na recuperação da criança, e facilita ao abusador retornar ao meio familiar. Importante ressaltar que a separação da criança da família, em razão do abuso sexual intrafamiliar, somente deve ocorrer na impossibilidade real de afastar o abusador da habitação familiar, hipótese em que a criança deve receber uma completa explicação dos motivos de seu afastamento e acompanhamento, pois, caso contrário, se sentirá acusada, punida e abandonada, não havendo razão para impedir o contato entre a criança e sua mãe, irmãos e amigos, exceto quando as mães não acreditam na criança, a acusam e rejeitam pelos problemas que se seguem à revelação (FURNISS, 1993).

Não havendo possibilidade de a criança retornar ao lar, em caráter temporário ou definitivo, por absoluta falta de condições de os pais assumirem os deveres para com o filho, oferece a lei a medida de proteção, prevista no art. 101, inciso VIII, do Estatuto da Criança e do Adolescente, consistente na colocação em família substituta, através da guarda, tutela e adoção. 

CONCLUSÃO

A presente pesquisa resultou na ratificação a respeito da importância do direito à convivência familiar, base fundamental e necessária para o bom desenvolvimento da criança e do adolescente expressamente assegurado na Constituição Federal de 1988 é expresso no Estatuto da Criança e do Adolescente, sendo consequência do direito à proteção integral e dos direitos humanos. 

Assim sendo, como é reconhecido que a criança e o adolescente se encontram em situação peculiar de desenvolvimento físico e cognitivo possuem o direito de ter sua convivência resguardada com seus pais, de desenvolverem laços afetivos, de ter sua formação de identidade preservada de ser educado, cuidado, protegido e criado com amor e proteção daqueles que pela lei se esperam o cumprimento destas funções, isto é, seus familiares. Independente da formação e conjuntura familiar à criação e formação da criança e do adolescente transcendem aquilo que é previsto na lei e na Constituição Federal, pois, é um ser sujeito de direitos e de uma vida futura.

Ademais, a pesquisa também corroborou com o entendimento que embora o abuso sexual intrafamiliar seja uma violação dos direitos humanos, um desrespeito a direitos fundamentai, um problema grave familiar e um problema que acontece no Brasil e em todo o mundo, além de ser enquadrado como crime, pela legislação penal brasileira. A violência intrafamiliar é endêmica no Brasil por várias razões, entre elas, no que tange à criança, por razões culturais. Foi a partir do ano de 1980 até os dias atuais, que o Brasil tem se posicionado e demonstrado preocupação a respeito dessa questão, seja através da implantação de delegacias especializadas, seja através da realização de pesquisas mais sistemáticas sobre o assunto. 

A violência doméstica precisa, portanto, precisa ser um tema de maior destaque nas faculdades de ensino superior e nas escolas, para que assim as pessoas saibam reconhecer situações de abusos, com a finalidade de que seja mais descentralizado o estudo sobre o tema e apontado as soluções sobre esse problema social, já que o presente trabalho demonstrou ser complexo e em alguns casos bem difícil o reconhecimento jurídico e familiar que de fato o caso é um uma situação de abuso sexual intrafamiliar, um crime.

O livro de Conceição Evaristo, traz diversos temas sociais e familiares, mas sobretudo o conto estudado, politicamente e socialmente relevantes, são questões sensíveis que indicam a necessidade da sociedade e do poder público prestar uma maior importância e atenção às questões que se circunscrevem à violência de gênero, seja ela contra crianças e adolescentes, seja contra mulheres adultas. O conto “Shirley Paixão” retrata um alerta para o silêncio dos inocentes, a censura velada que ocorre dentro de casa que acarreta traumas e consequências negativas posteriores na formação do ser humano na fase de desenvolvimento. Que a sociedade possa reconhecer mais “Seni´s” por aí e aprender a acolher e não a julgar, que esses casos não se repitam, não se perpetuem na sociedade, que as leis sejam mais severas a estes tipos de crime.  

As medidas adotadas pela legislação procuram sempre manter a criança no vínculo familiar, apenas em última hipótese a criança é retirada do  seio familiar, e colocada em uma instituição que possa prover seu devido desenvolvimento. O estudo sobre o aludido tema tem crescido muito nos últimos anos devido a sua importância social e pública, há muito a ser feito pelo poder público como políticas sociais, programas mais eficazes de acolhimento a vítima de abusos e uma maior fiscalização do Estado, sem no entanto, esquecer-se que o melhor lugar ao desenvolvimento sadio da criança é ao lado de sua família, evitando a colocação em família substituta, e adotando esta medida realmente como forma de exceção. 

Analisando a colocação em uma instituição, falta um maior incentivo do governo em verbas para garantir o devido desenvolvimento nestes estabelecimentos. Embora não seja um tema novo, cabe uma abordagem maior de forma a estabelecer as devidas providências não apenas para a criança vitimizada, mas as medidas a serem adotadas para prevenir a violência intrafamiliar. Para que possamos efetivamente proteger a criança vítima de violência sexual intrafamiliar é preciso investir em novas alternativas, pois, caso contrário, estaremos repetindo práticas que não mais se coadunam com as regras constitucionais.

Por ser um tema sensível e delicado, necessário seria que os profissionais, integrantes ou não do sistema de Justiça, tenham a consciência de que, invariavelmente, cometerão erros e desacertos ao lidarem com o abuso sexual da criança, em decorrência da complexidade que o tema se reveste, devendo a constatação ser colocada a serviço da reflexão, da avaliação e da busca de melhores condições para o desempenho de suas funções. Revisar condutas e, em especial, liberar a criança da responsabilidade de ser ouvida com o fim de produzir prova são medidas urgentes, oportuno salientar, que o sistema da Justiça começou a perceber a relevância do seu papel, compreendendo que somente o trabalho realizado sob o crivo da interdisciplinaridade pode proporcionar maior proteção e integridade à criança e ao adolescente.

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