ABUSOS AO PODER DE TRIBUTAR COMO PRESSUPOSTO PARA A REVOLUÇÃO AMERICANA (1776) E OS ARTIGOS FEDERALISTAS COMO MANIFESTO PELO ESTADO FISCAL

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7826569


André de Souza Dantas Elali1
José Lucas de Oliveira Marques2


RESUMO

O presente trabalho dedica-se a análise da influência dos arbítrios estatais ao exercer o poder de tributar em revoluções populares, sobretudo nos contextos inerentes à Revolução Americana e a Inconfidência Mineira. Partindo do pressuposto de que os cidadãos estão rotineiramente expostos à tributação, seja, por exemplo, a partir da aquisição de produtos e serviços, ou pelo auferimento de renda, e que a majoração ou criação de novos tributos influenciam diretamente a vida de todos os cidadãos, conclui-se que as garantias do contribuinte nesse processo é matéria de máxima importância, sendo tratada desde meados do século XVIII, a exemplo do art. 13 da Declaração Universal de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. O contexto histórico dessas rupturas é o rompimento entre o “estado patrimonial” (marcado pela arrecadação de valores decorrentes da exploração econômica das riquezas nacionais) e a inauguração do “estado fiscal” que, por sua vez, baseia sua arrecadação no exercício do poder de tributar. Essa cisão entre os mencionados modelos de financiamento da despesa pública representa a despersonalização do patrimônio estatal. Todo esse contexto socioeconômico conduziu à abordagem da “cidadania fiscal”, que surge mais fortemente a partir da segunda metade do século XX, preconizando uma maior participação popular nos debates acerca da arrecadação e aplicação do erário.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Constitucional. Direito Tributário. História do Direito. Cidadania Fiscal

ABSTRACT

This essay aims to analyze the influence of the power to tax in popular revolutions, especially in the contexts inherent to the American Revolution and the “Inconfidência Mineira”. Assuming that citizens are routinely exposed to taxation, be it, for example, by acquiring products and services, or by earning income, and that the raising or creation of new taxes directly influences the lives of all citizens, it is concluded that the taxpayer’s guarantees in this process are a matter of utmost importance, being treated as such since the mid-eighteenth century, as in art. 13 of the Universal Declaration of Human Rights of 1789. The historical context of these ruptures is the passing of the “patrimonial state” (marked by revenue from the economic exploitation of national assets) to the “fiscal state” which, in turn, bases its proceeds on the power to tax. This split between the mentioned financing models represents the depersonalization of the state’s assets. This entire socioeconomic context led to the approach of “fiscal citizenship”, which emerged more strongly from the second half of the 20th century onwards, and advocates for greater popular participation in debates about tax revenue and public spending.

KEYWORDS: Constitutional Law. Tax Law. History of Law. Tax citizenship

1 INTRODUÇÃO

Juridicamente, o conceito de tributo é trazido pelo art. 3º, do Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172/1966) que o conceitua como “toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”.

A história narra que os primeiros registros de cobrança de impostos são placas de barros encontradas na região da antiga Mesopotâmia, produzidas aproximadamente no ano 4.000 a.C.

Fato é que a cobrança de impostos é algo tão rotineiro e inerente à própria ideia de organização social que, sua origem muitas vezes sequer é investigada pelos contribuintes (ou pagadores de impostos).

Entretanto, seus excessos e abusos são sentidos por todas as camadas sociais, especialmente aquelas mais pobres, pois, tais ingerências afrontam diretamente o poder de consumo de bens, muitas vezes, essenciais para a sobrevivência do povo.

Tal fato já foi o estopim para diversas revoltas e revoluções na história, a exemplo da Revolução Americana, Revolução Francesa, Inconfidência Mineira, dentre tantos outros casos.

O ciclo econômico que marcou o Brasil no século XVIII foi a extração de ouro, sobretudo na região de Minas Gerais. “Desde então, um método fiscal por estimativa impunha o envio anual de cem arrobas de ouro para Portugal, como forma de pagamento dos direitos reais sobre o quinto da extração aurífera”. (GASPAR, 2010, p. 52)

A desproporcionalidade tributária ocasionou uma situação economicamente insustentável para os colonos brasileiros, que impossibilitados de pagarem a integralidade das cem arrobas (mil e quinhentos quilos) de ouro, viram uma crescente dívida em benefício da Coroa Portuguesa.

A partir da ameaça de cobrança compulsória dessa dívida, através da “derrama” – instrumento pelo qual se confiscaria qualquer espécie de ouro que estivesse em posse dos colonos em benefício da Coroa Portuguesa – os brasileiros, sobretudo aqueles que viviam na região de Minas Gerais, insurgiram-se contra a metrópole, em um movimento conhecido como “Inconfidência Mineira”.

O clima de receio relacionado aos tributos que imbuíam a sociedade mineira da época é traduzido no seguinte trecho:

“O tema fiscal adentrou os diálogos, num movimento de expectativa que percorreu todos os setores sociais. É integrado às comunicações rotineiras, para adquirir, pouco depois, uma intensidade extraordinária. Percorrer o segundo semestre do ano de 1788 é ser obrigado a avaliar a crescente predominância do assunto que, de medida institucional, passa ao ambiente público de Minas Gerais. Em alongamentos comunicativos variados, as pessoas especulavam, dentre outras coisas, sobre os possíveis valores totais da dívida, sobre qual seria a data da cobrança, sobre a quantia que caberia a cada um pagar e, finalmente, sobre os meios existentes para quitar o débito. Começavam a se propagar rumores de uma expectativa generalizada”. (GASPAR, 2010, p. 55)

 Segundo o historiador Joaquim Norberto de Souza Silva (1837, p. 34):

“[…] para se lançar de uma só vez sobre o povo, já tão tiranamente tributado, e a fazê-lo o governo podia contar por certo que desencadeava a revolução. E, pois, repousando no lançamento da derrama as esperanças dos conjurados, preciso era que não deixassem passar a ocasião para o pretexto do levante popular”.

A natureza tributária da derrama faria com que tal cobrança recaísse de forma mais enfática sob a camada mais rica da população, conforme assevera GASPAR (2010, p. 68): “A tese do pretexto é limitada, e não pode dar conta da riqueza política envolvida no episódio. Sob determinado aspecto, a derrama afetaria menos os pobres do que os ricos”.

É salutar destacar que apesar dos impostos relacionados à atividade aurífera não interferirem diretamente na vida cotidiana dos colonos que não vivesse diretamente da mineração, ou que não tivessem ouro em seu patrimônio que se sujeitasse à eventual derrama, toda a matriz econômica da época baseava-se em tal atividade comercial, exercendo forte influência na vida de todos os cidadãos.

Ademais, também deve-se rememorar que a elite política e intelectual da região, ao perceber que teria seu patrimônio pessoal posto em risco para honrar o pagamento arbitrariamente devido à Coroa Portuguesa, exerceria a devida influência política nas demais áreas da sociedade.

Enquanto pode-se fazer a crítica quanto à baixa adesão popular à Conjuração Mineira em razão da pouca influência direta das medidas abusivas de tributação (e execução da dívida pública correlata) na vida de todos os colonos, uma vez que esses abusos eram sentidos intensamente apenas pelos produtores de ouro, o exemplo trazido pela Revolução Americana é justamente o oposto.

Em razão dos excessos ao poder de tributar praticados pela Inglaterra em desfavor de seus colonos americanos terem se centrado em bens de consumo adquiríveis por todas as camadas sociais, o que foi sentido em todos os colonos americanos, independente da classe social, conforme se verá adiante.

A Revolução Americana iniciou-se em 04 de julho de 1776 com a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, que por não ter sido aceita pela metrópole inglesa, fez eclodir o movimento que apenas finalizou-se em 1783 com a assinatura do Tratado de Paris, que reconheceu a libertação das Treze Colônias.

O contexto histórico que prenunciou tal fato histórico foi o fim da Guerra dos Sete Anos (1756 – 1763) que, apesar de registrar uma vitória da coalizão Anglo-Prussiana, importou em grande prejuízo econômico para o Governo Britânico. A solução britânica para tal déficit financeiro foi aumentar a exploração econômica sob as colônias americanas.

Tal interferência foi mais perceptível a partir dos “Atos Townshend” (1764), um conjunto de leis idealizadas pelo então Ministro do Tesouro Inglês Charles Townshend, que culminou em edições e majorações de impostos, aos quais pode-se citar: lei do açúcar, lei da moeda, lei do selo e lei do chá.

Além do aumento exacerbado da carga tributária, destaca-se a edição de leis que dificultaram o desenvolvimento econômico local a partir do impedimento à livre iniciativa, sobretudo quanto às limitações à instalação de fábricas, bem como, a partir da necessidade de custear uma maior presença de tropas inglesas em solo americano, a lei da hospedagem.

Inicialmente, os colonos aceitaram as medidas de taxação da metrópole por terem acesso a bens contrabandeados, ou seja, de alguma maneira conseguiam driblar o aumento de preços oriundos da alta taxação.

Entretanto, ao perceber que os colonos maliciosamente adquiriam produtos contrabandeados para evitar os produtos ingleses (altamente taxados), o Parlamento Inglês passou a editar leis que garantissem o monopólio do comércio à Companhia das Índias Orientais, de controle britânico, cuja carga tributária elevada era diretamente controlada pela metrópole, que pretendia recuperar as riquezas gastas na “Guerra dos Sete Anos” através desse incremento comercial.

Em um ato de resistência, “[…] Cerca de duzentos homens, com o rosto pintado de preto e mais ou menos fantasiados como índios mohawk, ocuparam sorrateiramente três navios no Porto de Boston, usaram machadinhas para abrir 342 caixas de chá e atiraram seu conteúdo no mar” (CHERNOW, 2020, p. 68). Este evento ficou conhecido como “Boston Tea Party”, sendo um dos marcos da Revolução Americana.

A reação inglesa ao levante ocorrido em dezembro de 1773 foi a edição das “Leis Intoleráveis” (ou “Leis Coercitivas”), que previam o fechamento do Porto de Boston enquanto a Companhia das Índias Orientais não fosse indenizada pela carga de chá perdida, a ocupação militar de Boston, obrigatoriedade dos colonos em custear e hospedar os militares ingleses, suspensão da reunião das colônias de Massachussetts, proibição de qualquer manifestação contrária à Metrópole, os julgamentos de crimes cometidos em território americano seriam realizados por autoridades inglesas e a redução do território das colônias norte-americanas em favor da ampliação do território canadense.

Conforme narra Ron Chernow na biografia de Alexander Hamilton: “A reação britânica provocou uma união ainda tênue entre os colonos que rejeitavam a ideia de que o Parlamento britânico pudesse impor impostos sem o consentimento deles”. (CHERNOW, 2020, p. 69)

Até essa data, as treze colônias norte-americanas eram vistas como estados separados, unidas apenas por um certo grau de missão ou identidade comum. É justamente no cenário de vilipêndio às liberdades dos colonos que estes se indignam e fomentam a ideia de unir-se em prol da independência.

A partir desse episódio, surge a forma federativa moderna, conforme preleciona Sahid Maluf (1995, p. 166):

“A forma federativa moderna não se estruturou sobre bases teóricas. Ela é produto de uma experiência bem-sucedida – a experiência norte-americana. As federações ensaiadas na Antiguidade, todas elas, foram instáveis e efêmeras. Extinguiram-se antes que pudessem comprovar resultados positivos em função dos problemas que as inspiraram.

É justamente a partir do surgimento do modelo moderno de Federação que há a dissociação entre as verbas públicas (que idealmente devem servir ao povo) das riquezas da Coroa (especificamente, do monarca). Ou seja, a tributação passa a ser encarada como método arrecadatório para fazer frente às despesas públicas, de forma impessoal, diferentemente de quando a tributação tinha como principal ação a arrecadação de valores a ser destinado conforme vontade do soberano.

2 OS ARTIGOS FEDERALISTAS E AS CONSIDERAÇÕES ACERCA DAS QUESTÕES TRIBUTÁRIAS

Pode-se sintetizar o contexto histórico de arbitrariedades anteriormente mencionado, nas palavras do Professor Fredys Orlando Sorto (1996, p. 134):

“As colônias tinham desfrutado de ampla liberdade durante a administração colonial […]. Após a Guerra dos Sete Anos (1763), que culminou com o Tratado de Paris, a Inglaterra impôs restrições ao comércio colonial e taxou vários produtos. Foram tributados o açúcar (Sugar Act, 1764) e todo o material impresso nas colônias (Stamp Act, 1765). Este último imposto, instituído pela denominada Lei do Selo, provocou violenta reação dos colonos, que constituíram uma associação chamada Filhos da Liberdade, para combater a referida lei”.

Assim, “apesar de todo o derramamento de sangue e a confusão, a Revolução Americana tinha unificado os treze estados, reunindo-os em uma nação esperançosa, ainda que agitada e indócil” (CHERNOW, 2020, p. 270). Entretanto, tal cenário foi abruptamente modificado após a Convenção Constitucional, transformando-se em um ambiente de grande polarização social.

O povo americano dividiu-se em dois grupos. O primeiro grupo era formado por apoiadores da nova administração e de um governo central forte, sendo (incoerentemente) denominados “Federalistas”. Enquanto a segunda agremiação reunia aqueles que se opunham à Constituição formulada, defendendo os “Artigos da Confederação” que regiam a organização das treze colônias até aquele momento, argumentando que os estados perderam autonomia frente à União, sendo denominados de “Antifederalistas”.

Importa salientar que a Constituição proposta, para ser aceita, não necessitaria de ratificação unânime, bastando que nove dos treze estados que compunham a federação ratificassem seus termos. “A indulgência só pode ter tido origem num inevitável reconhecimento do absurdo de sujeitar o destino dos doze Estados à perversidade ou corrupção de um décimo terceiro” (HAMILTON, MADISON, JAY, 1993, p. 287). Logo, é evidente que parcelas descontentes com a proposta de carta constitucional se opusessem a tal texto.

É nesse contexto social que Alexander Hamilton, James Madison e John Jay – ambos sob o pseudônimo de “Publius” – elaboram textos que visam a defesa da Constituição, em uma tentativa de justificar e explicar as inovações trazidas pela nova Carta Magna. A reunião desses artigos originou a clássica obra da teoria constitucional “Os artigos Federalistas”.

Comentar-se-á as ideias encampadas pela Constituição Americana no tocante à questão tributária, a fim de que se compreenda quais as soluções pensadas para frear o arbítrio estatal que havia conduzido os colonos ao desequilíbrio tributário ensejador da revolta popular que convergiu para deflagração da Revolução Americana, e ainda assim garantir a arrecadação estatal para financiar os projetos nacionais, conforme se percebe da seguinte justificativa:

“Uma nação não pode existir por muito tempo sem receita. Privada de seu esteio essencial, tem de abrir mão de sua independência e mergulhar da condição degradada de província. Este é um extremo a que nenhum governo chegará por escolha própria. A receita, portanto, não pode deixar de ser obtida”. (HAMILTON, MADISON, JAY, 1993, p. 150)

Sendo cediça a necessidade arrecadatória da União, havia o receio quanto a forma pela qual tal tributação se desenvolveria, uma vez que parte dos fundamentos que desencadearam a própria Revolução Americana diziam respeito aos abusos tributários, sobretudo aqueles que recaíam sob o consumo e impactavam diretamente a vida dos colonos.

Nesse sentido, deve-se pontuar a ressalva feita a fim de justificar tal modalidade de tributação:

“Já foi sugerido que os impostos sobre o consumo propriamente ditos estão muito pouco de acordo com os sentimentos do povo para que se possa fazer grande uso desse modo de tributação; além disto, nos Estados onde a agricultura é quase a única atividade, os itens adequados a esse tipo de imposto não seriam suficientes para permitir grande arrecadação por essa via”. (HAMILTON, MADISON, JAY, 1993, p. 150)

Assim, estando patente a necessidade de arrecadação de receitas para custear o funcionamento da União, além da clarividente opção pela tributação incidente sob o consumo como principal forma de arrecadação, “a conclusão é que um poder geral de tributar, de uma maneira ou de outra, deve estar intimamente combinado à estrutura do governo” (HAMILTON, MADISON, JAY, 1993, p. 231). O desafio da Constituição seria prever como realizar tal ato sem cometer arbitrariedades, conforme preconizou o próprio Hamilton no artigo XXXV da obra supramencionada, “É possível demonstrar que o sistema de finanças mais produtivo será sempre o menos opressivo”. (HAMILTON, MADISON, JAY, 1993, p. 257)

De forma oposta, tinha-se o seguinte cenário:

“Com efeito, a elevação da figura do ‘povo’ ao posto de fundamento de validade do poder do Estado também deve ser enxergada como uma reação aos reiterados abusos do Parlamento, que jamais hesitou em marginalizar os direitos dos cidadãos das colônias em prol da consecução dos objetivos fiscais da coroa. A postura britânica sempre refletiu a ideia de que os direitos dos colonos decorriam da autoridade do Parlamento que, por sua vez, estaria acima de qualquer garantia individual” (MOREIRA, 2017, p. 62)

A contradição entre um movimento que surgiu a partir da insatisfação popular com os excessos no poder de tributar, viu-se diante de um “ponto de inflexão”, pois, deparou-se com a necessidade de planejar as formas de financiamento do orçamento público, que se daria majoritariamente a partir da tributação, tendo em conta a desvinculação com a lógica patrimonialista do regime absolutista, conforme citação:

“O dinheiro é considerado, com razão, o princípio vital do corpo político; é o que lhe sustém a vida e os movimentos, permitindo-lhe desempenhar suas funções mais essenciais. Portanto, um poder pleno de obter um suprimento regular e adequado de receita, na medida em que os recursos da comunidade o permitam, pode ser encarado como um ingrediente indispensável de toda constituição. De uma deficiência neste particular, um de dois males pode ocorrer: ou o povo ficará sujeito a uma contínua pilhagem, em lugar de um modo mais aceitável de suprir as necessidades públicas, ou o governo mergulhará numa atrofia fatal e, dentro de pouco tempo, perecerá” (HAMILTON, MADISON, JAY, 1993, p. 232)

“Os artigos federalistas” dedicam os artigos XXX a XXXVI para tratar das inovações relacionadas à tributação trazidas pela nova constituição e seus desdobramentos. Ao desenvolver tais ideias, há forte preocupação em demonstrar que o sistema tributário que se desenha não caminhará para cobranças de tributos abusivas e confiscatórias, mas que há necessidade em arrecadar valores que façam frente às despesas públicas, conforme transcrição abaixo:

“Um governo deve conter em si mesmo todo o poder necessário à plena realização das finalidades que lhe foram atribuídas e a completa execução dos encargos que lhe foram confiados, livre de qualquer controle além da consideração pelo bem público e pela consideração do povo” (HAMILTON, MADISON, JAY, 1993, p. 237)

Contrariamente a tal defesa, os “Antifederalistas” insurgiram-se afirmando que não haveria necessidade de instituições de tributos nacionais em detrimento dos tributos estaduais já cobrados, uma vez que conforme estabelecido pelos “Artigos da Confederação”, a União poderia requisitar valores dos estados a fim de fazer frente a despesas extraordinárias. Entretanto, tal crítica não se sustentava em razão da dificuldade do sistema de requisições que expunha o tesouro nacional, sobretudo em tempos de guerra, quando mais se precisava de verbas para fazer frente às despesas extraordinárias.

O cerne desse debate tributário em torno dos artigos da constituição dos EUA era justamente acerca da delimitação da atuação governamental, na qual o Governo Federal (central) passaria a abarcar competências conflitantes com os estados.

Contudo, conforme sustentado pelos autores, à medida que se desenha um governo central com mais responsabilidades e incumbido de mais deveres, deve-se resguardar o aumento proporcional de suas receitas, que se dão, precipuamente, pelo pagamento de impostos. Ademais, só seria vedado aos estados a instituição de tributos sob artigos importados e exportados, reservando a maior gama de produtos tributáveis aos estados, em concorrência com a União.

Além da preocupação decorrente da grande insatisfação popular com a tributação excessiva, a preocupação com a questão tributária também decorreu da noção que “Nenhum setor da administração governamental exige tão ampla informação e tão completo conhecimento dos princípios da economia política como a questão da tributação. O homem que compreende esses princípios estará menos propenso a recorrer a expedientes opressivos, ou a sacrificar qualquer classe particular de cidadãos à obtenção de receitas” (HAMILTON, MADISON, JAY, 1993, p. 257)

3 O ESTADO FISCAL E UM MODELO DE CIDADANIA FISCAL

Toda a discussão travada no presente debate pode ser resumida no anseio do povo em ter respeitado suas garantias cidadãs, especificamente no tocante a cobrança de impostos, que deve ser atrelada a prestações sociais decorrentes da boa aplicação do montante arrecadado e do equilíbrio fiscal, o que pode ser traduzido a partir do jargão consagrado durante o deslinde da Revolução Americana: “No taxation without representation”.

Ou seja, o ônus de ser tributado deve ser acompanhado, além das garantias inerentes aos contribuintes, da devida representação política, a fim de que os cidadãos possam se insurgir, até mesmo, contra eventual aprovação de atos que aumentem a carga tributária.

Ainda ilustrando o cenário pré-revolucionário de arbítrio tributário e de patrimonialismo da Coroa ao tributar seus súditos, indica-se importante obra cultural moderna, o musical “Hamilton: an american musical”, que ao abordar a vida e obra de Alexander Hamilton (pai fundador e primeiro Secretário do Tesouro dos EUA, além de um dos autores de “Os artigos federalistas”) nos brinda com uma majestosa apresentação da música “You’ll be back” (MIRANDA, 2015),reveladora desse caráter patrimonialista da tributação exercida pela metrópole em desfavor à colônia.

“You say
The price of my love’s not a price that you’re willing to pay
You cry
In your tea which you hurl in the sea when you see me go by
Why so sad?
Remember we made an arrangement when you went away
Now you’re making me mad
Remember, despite our estrangement, I’m your man”3

Apesar do evidente caráter irônico desta música, sua contribuição para a interpretação dos fatos analisados está na concepção de que a tributação imposta pela metrópole sob sua então colônia dedicava-se aos caprichos financeiros da monarquia, que mesmo sendo limitada pelo Parlamento Inglês, tal limitação de poder não significava nada para os colonos, ante a ausência de representantes destes na mencionada casa legislativa, sendo até a causa do mote revolucionário “no taxation without representation”, ou seja, os colonos não aceitariam imposição de impostos sem que lhes fossem resguardados direitos políticos hábeis a se insurgir contra tais abusos, sejam arbítrios fiscais ou tolhimento de liberdades.

Essa concepção pode ser percebida, também, a partir do prelecionado por Friederich Hayek (2011, p. 262):

“In England, after the complete victory of Parliament, the conception that no power should be arbitrary and that all power should be limited by higher law tended to be forgotten. But the colonists had brought these ideas with them and now turned them against Parliament”4 (HAYEK, 2011, p. 262)

A abordagem de Hayek evidencia que apesar dos ingleses terem limitado os poderes do monarca a partir da soberania conquistada pelo Parlamento, essa noção de que nenhum poder poderia ser arbitrário e que todo poder deve ser limitado por uma “lei maior” foi se tornando tão rotineira que sequer se atentaram para o desrespeito à essa premissa em relação aos direitos dos colonos, que, por sua vez, ainda tinham esse fundamento em suas mentes, como resquício da origem inglesa.

O ideal revolucionário prega o afastamento da estrutura governamental do absolutismo. Entretanto, ao conceber a figura central do chefe do executivo nacional como centralizador de muitas prerrogativas em detrimento da anterior “independência” dos estados, os “Antifederalistas” passaram a criticar a figura do presidente associando-a ao monarca britânico, tanto que o artigo LXIX dedicou-se a diferenciar as prerrogativas do presidente dos poderes absolutistas do rei.

Dentre inúmeras diferenças, os artigos federalistas bem sintetizaram essa dissociação nos seguintes termos: “O presidente dos Estados Unidos seria um servidor eleito pelo povo por quatro anos; o rei da Grã-Bretanha é um príncipe perpétuo e hereditário. Um seria passível de julgamento e desonra pessoais; a pessoa do outro é sagrada e inviolável”. (HAMILTON, MADISON, JAY, 1993, p. 440)

A separação entre um presidente (republicano) que condensa poderes nacionais e um soberano (absolutista) detentor de privilégios sociais, ainda que sofra regulações do Parlamento, é justamente o grau de controle legal de suas prerrogativas. Tal controle era evidente para a sociedade inglesa que se valia do sistema parlamentarista, mas, esse controle não era exercido em relação às colônias, devido a ausência de representação política dos colonos, conforme confirma Friederich Hayek (2011, p. 265):

“Their experience had also taught them that any constitution that allocated and distributed the different powers thereby necessarily limited the powers of any authority. A constitution might conceivably confine itself to procedural matters and merely determine the source of all authority. But they would hardly have called ‘constitution’ a document which merely said that whatever such and such a body or person says shall be law. They perceived that, once such a document assigned specific powers to different authorities, it would also limit their powers not only in regard to the subjects or the aims to be pursued but also with regard to the methods to be employed. To the colonists, freedom meant that government should have powers only for such action as was explicitly required by law, so that nobody should possess any arbitrary power5 (HAYEK, 2011, p. 265)

Anteriormente estava-se diante de um “estado patrimonialista”, baseado em um agigantamento do patrimônio estatal percebido através das fontes arrecadatórias, que eram predominantemente oriundas do comércio praticado por essas nações ou por empresas públicas que detinham monopólios concedidos por estes países, e que se confundiam com o próprio patrimônio da Coroa.

Enquanto o Estado Fiscal caracteriza-se pela descentralização da arrecadação, que impõe a necessidade de desenvolvimento de uma atividade arrecadatória baseada principalmente na tributação, mantendo equilíbrio entre a tributação e o desenvolvimento econômico e comercial da nação.

“Com o advento do Estado Fiscal de Direito, que centraliza a fiscalidade, tornam-se, e até hoje se mantêm, absolutamente essenciais as relações entre liberdade e tributos: o tributo nasce no espaço aberto pela autolimitação da liberdade e constitui o preço da liberdade, mas por ela se limita e pode chegar a oprimi-la, se o não contiver a legalidade.” (TORRES, 2005, p. 3)

Aliado ao desenvolvimento da ideia supramencionada, surgiu os primórdios do que atualmente se convenciona “cidadania fiscal”, que é precisamente, a ampliação do antigo conceito de cidadania (reconhecimento de direitos individuais face o estado) para abarcar também a proteção às garantias individuais frente ao jus tributandi, além de estimular maior participação popular no acompanhamento da aplicação das verbas públicas.

Nesse sentido, é salutar destacar o disposto no art. 13 da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, que já em 1789 preconizava: “Para a manutenção da força pública e para as despesas de administração é indispensável uma contribuição comum que deve ser dividida entre os cidadãos de acordo com suas possibilidades”.

4 CONCLUSÃO

O contexto de revoltas populares aqui tratadas (Revolução Americana e Inconfidência Mineira) desenvolveram-se em estados absolutistas monárquicos. É necessário pontuar que tais movimentos visavam o estabelecimento de governos que se voltassem ao povo, protegendo essa população de arbitrariedades, muitas das quais ligadas à abusos no exercício do poder de tributar.

A antiga concepção de que os cidadãos não deveriam se importar com a destinação dada aos recursos arrecadados pelo estado, nem sobre a justeza ou exigibilidade dos tributos, foi contraposta à ideia de que devem existir garantias mínimas que protejam todos os cidadãos dos abusos eventualmente cometidos pelo estado ao tributar seu povo, além das noções de devido processo legal (também aplicáveis a execuções tributárias) e de vedação à surpresa, garantindo aos contribuintes o mínimo de previsibilidade quanto às suas obrigações tributárias.

A necessidade de se estabelecerem garantias mínimas aos contribuintes, além da desincompatibilização entre os recursos estatais e o patrimônio do monarca, e a importância que se dá à aplicação e arrecadação desses recursos, marca a transição de um “estado patrimonialista” para um “estado fiscal”, vez que nascido com o estado liberal, uma série de limitações ao poder estatal, fazendo surgir as limitações ao poder de tributar (art. 150 e seguintes da Constituição Federal de 19886, que no seu antecessor Estado Patrimonial era ilimitado.

Ademais, é cediço que o art. 145, § 1º, da CRFB/887 impõe o dever de pagar impostos, independentemente da vontade ou “autorresponsabilidade” dos contribuintes. Ressalvando, entretanto, o respeito a garantias individuais dos contribuintes como capacidade contributiva, vedação ao confisco etc. Ainda, considerando os valores republicanos e democráticos que envolvem a Constituição Federal de 1988, acertadamente se aponta a perfeita confluência entre o Estado Fiscal e a CRFB/88, que impõe o financiamento da despesa pública, em maior medida, pelos impostos, ressalvando as prerrogativas do contribuinte.

Essa análise lança as bases de um modelo de cidadania fiscal, pelo qual os contribuintes passam a exercer função mais ativa no processo de arrecadação, aplicação e fiscalização do dinheiro público, sendo um importante instrumento de conscientização da sociedade sobre os seus direitos e deveres fiscais.

REFERÊNCIAS

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HAYEK, Friederich August von. The constitution of liberty: the definitive edition / edited by Ronald Hamowy. Chicago: The University of Chicago Press, 2011.

HIBBERT, Christopher. George III: A personal history. 1ª. ed. Nova Iorque: Basic Books, 2000. In: CHERNOW, Ron. Alexander Hamilton / Ron Chernow. Tradução: Donaldson M. Garschagen; Renata Guerra. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.

MALUF, Sahid. Teoria geral do estado. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 1995.

MIRANDA, Lin-Manuel. You’ll be back. New York: Atlantic Records. 2015. (Duração: 3:28).

MOREIRA, João Paulo Aguiar. Tributação e Direitos Fundamentais: As origens tributárias dos direitos fundamentais na Revolução Americana. Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de Brasília. Brasília, p. 71. 2017.

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SORTO, Fredys Orlando. O federalista e a constituição dos Estados Unidos. Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte, n. 82, p. 134-158, jan. 1996.

TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. 3. vol. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.


3Tradução nossa: “Você diz / Que o preço do meu amor não é um preço que você pagará / Você chora / Sob o chá que você arremessa no mar quando você me ver passar / Por que tão triste? / Lembre-se que fizemos um acordo quando você foi embora / Agora você está me chateando / Lembre-se, apesar do nosso distanciamento, eu sou seu homem”

4Tradução: Na Inglaterra, depois da completa vitória do Parlamento, o conceito de que nenhum poder deve ser arbitrário e de que todo poder precisa estar limitado por uma lei superior foi caindo no esquecimento. Os colonizadores, entretanto, haviam trazido consigo essas ideias e agora as usavam contra o Parlamento.

5Tradução: A experiência também lhes ensinara que, assim como uma Constituição define e separa os diferentes poderes, também limita, necessariamente, os poderes de toda autoridade. Uma Constituição podia talvez restringir-se a assuntos processuais e simplesmente determinar a fonte de toda autoridade. No entanto, não chamariam de Constituição um documento que apenas afirmasse ser lei aquilo que um ou outro organismo administrativo, ou pessoa, específicos a diferentes autoridades, também os limitaria não só quanto às questões ou aos fins a perseguir, como também quanto aos métodos que haviam de utilizar. Para os habitantes da colônia, liberdade significava que o governo deveria ter poderes apenas para ações explicitamente previstas por lei, a fim de que ninguém pudesse estar investido de poder arbitrário.

6Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;
II – instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;
III – cobrar tributos:
a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado;
b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou;
c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b;
IV – utilizar tributo com efeito de confisco;
V – estabelecer limitações ao tráfego de pessoas ou bens, por meio de tributos interestaduais ou intermunicipais, ressalvada a cobrança de pedágio pela utilização de vias conservadas pelo Poder Público;
VI – instituir impostos sobre:
a) patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros;
b) templos de qualquer culto;
c) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei;
d) livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão.
e) fonogramas e videofonogramas musicais produzidos no Brasil contendo obras musicais ou literomusicais de autores brasileiros e/ou obras em geral interpretadas por artistas brasileiros bem como os suportes materiais ou arquivos digitais que os contenham, salvo na etapa de replicação industrial de mídias ópticas de leitura a laser.

7Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos:
I – impostos;
II – taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição;
III – contribuição de melhoria, decorrente de obras públicas.
§ 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.


1Doutor em Direito, UFPE (2011). Mestre em Direito Político e Econômico, MACKENZIE (2006). Especialista em Direito Tributário, UFRN (2003). Graduado em Direito, UNP (2001). Professor Associado do Departamento de Direito Público da UFRN. Advogado. E-mail: andreelali@gmail.com.
2Mestrando em Direito, UFRN. Graduado em Direito, UFPB (2021). Advogado. E-mail: joselucaso.marques@gmail.com.