A VIRTUDE REPUBLICANA E O DISCURSO POLÍTICO DO JUIZ

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7823814


Raphael Rosalvos Barcellos¹


RESUMO

O presente trabalho tem como escopo fazer uma breve análise sobre o discurso político dos agentes públicos sob uma perspectiva republicana. Com a ampliação das esferas de debate através de redes sociais, vê-se que muitos agentes com altos cargos, como os provenientes da magistratura, acabam enveredando por este caminho, expondo seu pensamento e proferindo opinião, muitas vezes sobre casos que estão em curso ou sobre assuntos que poderão ser afetos à sua jurisdição em certo momento. O estabelecimento de um sistema republicano, bem como limitações na exposição de opiniões de juízes, que podem interferir em sua imparcialidade ou suspeição perante a sociedade, são muitas vezes temas que conflitam com liberdades individuais. Estes assuntos foram desenvolvidos ao longo do trabalho que contou, preferencialmente, com a revisão bibliográfica e legislativa sobre o tema.

Palavras-chave: liberdade, expressão, judiciário, político, república

ABSTRACT

The present paper aims to make a brief analysis of the political discourse of public agents from a republican perspective. With the expansion of the spheres of debate through social networks, it is seen that many agents with high positions, such as those from the judiciary, end up taking this path, exposing their thoughts and giving opinions, often on cases that are ongoing or on matters that may come under your jurisdiction at any given time. The establishment of a republican system, as well as limitations on the exposure of judges’ opinions, which may interfere with their impartiality or suspicion towards society, are often issues that conflict with individual freedoms. These subjects were developed throughout the work, which relied, preferably, on a bibliographical and legislative review on the subject.

Keywords: freedom, expression, judiciary, political, republic

INTRODUÇÃO

O Estado brasileiro tem como pedra angular de sua formação a base republicana. Com isso, cargos dos mais variados, inclusive aqueles que ditam os rumos da sociedade são exercidos por agentes públicos, que tem como compromisso manter o zelo pela coisa pública, seriam os homens virtuosos da atualidade.

Nos dias atuais, a exposição midiática e também o fácil acesso a redes sociais que atravessam as fronteiras das nações, é uma realidade muito diferente da que se experimentava nas idades antigas e medievais. O cidadão moderno vive cercado de ferramentas de internet que o levam a viajar sem ao menos sair do lugar, bem diferente das horas, dias, semanas e até meses que se levava para a informação ir de um lugar ao outro no passado.

Certamente que neste cenário estão inseridos os governantes, os políticos e também os agentes públicos do mais alto escalão. E nisso, destaca-se um deles: o membro do Poder Judiciário. Juízes, desembargadores e ministros são pessoas que ao longo da história sempre se mantiveram equidistantes das temáticas políticas, para que estas não entrassem nos Tribunais, contaminando-os. Mas hoje, isso parece algo impossível de se evitar.

A partir daí, um novo problema se aponta: teriam os juízes como expor sua opinião política publicamente sem afetar as virtudes do julgador?

É nesse sentido que o presente trabalho brevemente se debruçará, inicialmente com o intuito de abordar sobre o republicanismo e as virtudes civis dos ocupantes de seus cargos. Em seguida, os parâmetros em que se insere o discurso político dos membros da magistratura, e, por fim, o formalismo litúrgico exigido para o cargo público de um juiz, que culmina em sua maior restrição aos discursos públicos com viés político.

Este estudo se deu através de pesquisa bibliográfica, bem como a legislação pertinente sobre o assunto e notícias da época. Autores como John Rawls, Martin Shapiro e Canotilho foram utilizados, sem a exclusão de outros também importantes para o desenvolvimento do tema.

1. A VIRTUDE REPUBLICANA

Com a sistemática evolução da sociedade, aquela organização antiquada dos seguimentos estatais foi se aprimorando. Nesse diapasão, surge a figura da República, desde os tempos mais antigos, como idealizada por Platão, até os dias atuais.

Percebe-se que nos dias atuais, o modelo republicano é um dos mais utilizados na formação do Estado, por agregar elementos que se demonstraram mais próximos ao ideal democrático que as sociedades queriam implementar. Nesse sentido, uma importante definição trazida por Afonso da Silva:

(…) uma determinada forma de governo, mas é, especialmente, designativo de uma coletividade política com características da res publica, no seu sentido originário de coisa pública, ou seja: coisa do povo e para o povo, que se opõe a toda forma de tirania, posto que, onde está o tirano, não só é viciosa a organização, como também se pode afirmar que não existe espécie alguma de República (SILVA, 2007, p. 102).

A forma de governo se mostra como preponderante para delimitar o seu escopo, ou seja, aquele voltado para o cidadão. Não há que se imaginar uma instituição republicana que tenha desiderato diferente do que a própria sociedade. Com isso, o poder público, exercido por aqueles que se mantém de alguma forma no topo das funções de Estado, deve ser voltado precipuamente à realização do todo ao qual representa.

Um ponto bastante nítido na relação republicana de Poder é justamente o equilíbrio que o conjunto todo fornece ao sistema social que governa as relações de determinada comunidade. Isso ocorre porque todos os agentes, representantes das instituições públicas, têm em vista o melhor para o coletivo. Sendo assim, é comum que se notabilize a República como um sistema bem definido de competências institucionais.

Isso fica bem nítido na lição de Canotilho:

(…) a ‘forma republicana’ aponta para a ideia de um arranjo de competências e funções dos órgãos políticos em termos de balanceamento, de freios e contrapesos (checks and balances). A ‘forma republicana de governo’ não é tanto ou não é primordialmente uma ‘forma antimonárquica’ mas um esquema organizatório de controlo do poder (CANOTILHO, 2003, p. 229).

Nota-se, portanto, que outras formas de governo não possuem uma pluralidade capaz de balancear as relações que ocorrem no dia a dia da polis. Ao se referir à monarquia, Canotilho apresenta uma questão interessante, posto que monarcas costumam possuir poderes que vão além de instituições, visto que precedem de vínculos sanguíneos que em nada podem refletir os anseios sociais. Talvez por isso, nos dias de hoje, seja cada vez mais raro encontrar-se monarquias, pois seu conceito, em termos gerais, possui certo conflito com anseios estatais representados pela maioria da sociedade, que certamente não faz parte daquela determinada nobreza.

Por ser uma forma de governo amplamente adotada ao redor do mundo, e já testada ao longo de séculos, adotou-se no Brasil, logo em seu preâmbulo, este modelo para reger as relações estatais e sociais em geral. Esse ponto é de importante observação, pois sobreleva no modelo republicano o Homem virtuoso. Esse conjunto de qualidades seria inseparável do agente público que ocupa cargos dentro do sistema, pois, sem elas, não conseguiria apontar um norte de sucesso para o próprio país.

Homens carecedores desses standards não se mostrariam aptos a gerenciar a máquina pública, visto que não exteriorizariam aos administrados exemplos a serem seguidos, e, talvez, confiabilidade nos destinos da nação. Isso é até apontado pelo Filósofo na Grécia antiga, ao dizer que “se o que manda não é sóbrio nem justo, como poderá bem ordenar? Viciado e vadio, não cumprirá nenhum dos seus deveres” (Aristóteles, 2017, p. 40).

Decorre daí que o cargo republicano jamais poderá estar nas mãos do corrupto, do traidor e do improbo. Para que o indivíduo possa se destacar em suas funções, não poderá ele se abster do que é necessário demonstrar como pessoa pública.

Nos tempos atuais, com a vida cada vez mais exposta e com as palavras e pensamentos ecoando pela eternidade através dos famosos prints, as pessoas ficam bem suscetíveis àquilo que outrora disseram ou fizeram, como que num julgamento imprescritível. Daí a necessidade de que aqueles que dirigem os fins estatais possuam alguma blindagem, dependendo do cargo que ocupem.

Mais à frente o Filósofo traz uma lição impreterível para os dias de hoje, quase que uma profecia diante dos excessos cometidos na modernidade, ao afirmar que

eis por que o que ordena deve possuir a virtude moral em toda a sua perfeição: porque a sua tarefa em tudo é a do arquiteto. Ora, aqui o arquiteto é a razão. Dos outros, cada um só necessita de virtude moral até o quanto convém ao seu ofício (Aristóteles, 2017, p. 41).

Fica claro que o papel do que governa, do que decide e, neste caso, extensível ao membro do Judiciário, é exercido com o mais alto grau do virtuosismo. Portanto, ao alto escalão das funções republicanas sempre foi exigido o rigor com a virtude moral. Através desta virtude que se espelha o quanto aquela comunidade tem de avançar para se constituir em algo sólido, digno de apreciação externa.

A virtude do homem não passa apenas pelos clássicos filósofos gregos. Na atualidade, a questão da virtude também se faz presente como componente do bom funcionamento de uma sociedade. Um exemplo contemporâneo é o de John Rawls, que já afirmava que “As virtudes são sentimentos, isto é, famílias relacionadas de disposições e propensões regidas por um desejo de ordem superior, neste caso, o desejo de agir segundo os princípios morais correspondentes” (RAWLS, 2016, p. 236).

Percebe-se que para este autor a virtude em si é constituinte da própria sociedade sadia. Para ele, seria impensável se construir uma sociedade bem ordenada sem que houvesse predisposição dos indivíduos em se tornarem pessoas melhores, para a prosperidade daquela própria comunidade, havendo um princípio moral regente baseado nos predicados do homem. E continua Rawls, ao afirmar que “a justiça como equidade inclui uma interpretação de algumas virtudes políticas – as virtudes da cooperação social equitativa, tais como as virtudes da civilidade e da tolerância, da razoabilidade e do senso de justiça” (RAWLS, 2011, p. 229).

A despeito do ilustre autor, pode-se dizer que a modernidade e a busca pela implementação de ideologias e de manutenção do Poder flexibilizou, em certo ponto, a forma com que se trata a questão da virtude. A briga política, cada vez mais acirrada ao longo do século vinte para a implementação de certas ideologias, que culminaram inclusive com movimentos totalitários, e, atualmente, com redes sociais sendo verdadeiras Ágoras da vida moderna, acabou por permitir que pessoas carentes de um virtuosismo aristotélico, por assim dizer, assumissem cargos de expressão na República. Mesmo assim, essa tendência foi sendo tolerada sob o manto da disputa política e da necessidade da briga ideológica capaz de convencer o eleitor.

Por outro lado, ao tratar-se de instituições capazes de decidir a vida do indivíduo e até do próprio Estado, impondo-lhe sanções concretas ou derrotas irrecorríveis, culminando, inclusive, com o cerceamento de sua liberdade ou direitos políticos, o magistrado sempre esteve numa bolha afastada desses assuntos comezinhos. Isso ocorria até mesmo para a sua proteção diante de uma opinião pública ou de perseguições políticas.

Tem-se daí que o Poder Judiciário seria a verdadeira expressão do virtuosismo, em que a sociedade entregaria a pacificação social de seus conflitos a homens e mulheres que representariam o ápice da austeridade moral. Porém, o que se vê são muitos, talvez não a maioria, juízes, em todas as instâncias, que ao expressarem desenfreadamente a sua opinião de maneira pública em redes sociais ou grandes veículos de imprensa, acabam por se tornar vítimas de suas próprias palavras.

Tweets, compartilhamentos, fotos e vídeos acabam se eternizando em uma rede interconectada mundialmente, mostrando muitas vezes posicionamentos militantes e ativistas que serão responsáveis por julgar casos dos quais acabam se envolvendo em debates políticos. E neste ponto, a forma republicana esperada das mais altas autoridades judiciais acaba colocada em dúvida, o que é danoso à toda estrutura em si, visto que as virtudes formam a base moral do republicanismo.

2. O DISCURSO POLÍTICO DO JUIZ

Ao se conceber o Estado republicano, ele precisa de pessoas que possam atuar em suas mais diversas funções. E ao se pensar num país como o Brasil, logo se vem em mente o tamanho da estrutura administrativa que deve existir para que a máquina pública possa funcionar e atender a todas as demandas da sociedade.

Logo no artigo 2º da Constituição da República, são determinados os três poderes que irão reger todo o ordenamento estatal em âmbito federal, sendo eles o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Cada um destes Poderes possui órgãos e milhares de cargos que são ocupados para dar funcionamento ao Estado.

Em outra valiosa lição de José Afonso da Silva, vê-se que

o órgão é, assim, uma unidade jurídica, que compreende seu titular (elemento subjetivo) e suas competências, atribuições e seus meios técnicos, informativos, coativos etc., que caracterizam o cargo, emprego ou função (SILVA, 2007, p. 677).

E mais à frente o próprio autor explica quem é aquele que dá o caráter humano do órgão, ou seja, “o elemento subjetivo do órgão público – o titular – denomina-se genericamente agente público” (SILVA, 2007, p. 678).

A partir disto, não há como escapar da vinculação de um cargo exercido a uma função dentro da República propriamente dita. E, logicamente, os cargos mais altos são ocupados por aqueles, teoricamente, com as maiores virtudes, em especial quando se denota a responsabilidade de julgar a vida de seus semelhantes.

É importante também pontuar que existem agentes públicos que são nominalmente referidos na própria Constituição da República, que em boa parte é replicada nas constituições estaduais e nas leis orgânicas municipais. Esses agentes explicitados na Constituição, seriam preponderantes para as funções estatais e tem destaque em seu papel no governo da sociedade. Já se pode esperar que cargos como de juízes, deputados, senadores, o presidente e seus ministros são apontados na Lei Maior, mas também existem outros que não se faz necessário tecer maiores comentários.

Nesse sentido, Afonso da Silva explica que

agentes políticos, titulares de cargos que compõem a estrutura fundamental do governo, e agentes administrativos, titulares de cargo, emprego ou função pública, compreendendo todos aqueles que mantêm com o Poder Público relação de trabalho, não eventual (SILVA, 2007, p. 678).

Deste modo, haveria uma certa confusão ou até mesmo alguma similitude entre os magistrados e os políticos, pois, na definição do autor, por serem fundamentais ao Estado, ambos seriam agentes políticos. Mesmo assim, não se espera de um político a mesma nobreza no exercício de suas funções como se espera de um magistrado.

O político propriamente dito, longe dessa conceituação jurídica trazida, não é refém de suas promessas. Ele atua no campo do discurso, muitas vezes vazio mesmo, mas capaz de mexer com a emoção das massas, com o intuito de captar apoio para sua eleição. O proselitismo político angaria seguidores que passam a admirar certas ideologias ou personalidades.

Um parlamentar precisa atuar no corpo a corpo não apenas com seus adeptos, mas também com seus adversários, contrapondo-se às ideias para que as suas prevaleçam. Com isso, se faz até mesmo o uso de artifícios retóricos baixos e que causam impacto e desconforto na plateia para atingir seu objetivo. E isso tudo está bem, faz parte do jogo de poder que se vê na atualidade. Essa arena é até propícia a um amadurecimento democrático e das próprias instituições, em que aquele que destoa da vontade popular acaba punido ao ostracismo.

Por outro lado, há o magistrado. A esse não é dado prometer, ele cumpre. O juiz, como sempre aprendido no primeiro período de qualquer faculdade de Direito, “fala” nos autos e não em palestras de cunho político partidário, ou de movimentos socias, seja a favor ou contra o aborto, drogas ou invasão de terras, porque ele, o juiz, pode em algum momento se deparar com estas questões, e aí a sua opinião já estará emitida anteriormente.

Como conceber um juiz virtuoso que dia sim, dia não, está em redes sociais se metendo nas mais diversas questões públicas do país? É algo complicado de se imaginar. Então, por mais que a definição jurídica do agente político possa englobar os membros do Poder Judiciário, isto deve ser visto com muitas ressalvas, sob pena de se viciar o cargo que é expoente da virtude em sua natureza.

Um juiz que se confunda com um influenciador de redes sociais, opinando e transparecendo suas posições sobre os mais diversos assuntos, muitas vezes sem uma reflexão probatória que lhe permita perquirir o justo, acaba refém de suspeitas totalmente pertinentes quando assunto afeto parar em sua mesa para julgamento.

Sendo assim, por mais que se considere o magistrado como agente político, deve-se esclarecer que ele não é um político propriamente dito, pois, para este último, a palavra é a sua arma. Sem querer adentrar em teorias do discurso ou coisas desse tipo, deve-se ter em mente que o discurso político é algo inerente àquele que almeja exercer as funções propriamente políticas, ou seja, aquelas às quais o sujeito é submetido ao escrutínio público.

No Brasil, assim como em tantos outros países, os cargos judiciais não são ocupados através de eleições, mas através de concursos públicos. Logo, não há um discurso ideológico promovido pelos seus ocupantes para angariar votos e, consequentemente, conseguir a maioria capaz de vencer uma eleição para exercê-los.

Já no século passado, Carl Schmitt apontava essas questões que cercam o debate político

Em primeiro lugar, todos os conceitos, representações e termos políticos têm um sentido polémico; eles têm em vista um carácter concreto de contraposição, estão ligados a uma situação concreta cuja consequência última é um agrupamento amigo-inimigo (que se expressa na guerra ou na revolução) e tornam-se abstracções vazias e fantasmagóricas se esta situação estiver ausente (SCHMITT, 2015, p. 59).

Apesar de construções doutrinárias que geraram polêmicas no passado, o conceito trazido por Schmitt é interessante de se observar. Num primeiro ponto, ele já apontava como o discurso político tem um caráter conflitivo. Ele distingue esse caráter por ser intrínseco ao político uma contraposição – que para ele resultará no binômio amigo-inimigo – que nesse trabalho reverberará nesse ponto de dicotomia.

Assim, o discurso de candidatos a eleições precisa mirar um alvo que se contraponha às suas propostas. O candidato, ou aquele político eleito, ou aquele alguém que viva a discussão política na natureza de sua função republicana, irá usar de argumentos sensíveis e que mostrarão de determinada maneira o seu posicionamento no espectro político.

Não se imagina punir, dessa forma, aquele que alinhado a preceitos ditos de direita aponta as falhas de sistemas socialistas, comunistas, progressistas ou internacionalistas, como se queira chamar. Isso ocorre porque há a necessidade do político em trazer à luz tais discussões para a sua própria sobrevivência no cenário em que atua.

Já no caso do juiz isso é diferente. Ele se atém aos autos, ele se atém a provas, ele se atém a fatos, ele está vinculado a regras e princípios. O juiz irá interpretar situações que lhes são postas em observância da lei e dos princípios orientadores do Direito. Mas ele fará isso com a independência e imparcialidade que se espera de uma das mais nobres e importantes funções da República, qual seja, a de julgar o outro. Daí se extrai que a sucessiva exposição do juiz em atos ou discursos que transpareçam suas preferências políticas vicia este processo, ensejando por parte da sociedade a descrença em seu próprio juízo. O cidadão espera a neutralidade do juiz, ou, nas palavras de Dworkin, um juiz Hércules, que busque incessantemente a Justiça acima de tudo.

Continuando o seu raciocínio, Schmitt chega a outra conclusão, afirmando que “segundo: no modo de expressão polémica intra-estatal de hoje em dia, “político” é hoje frequentemente usado como significando o mesmo que “político-partidário” (SCHMITT, 2015, p. 60).

Portanto, vê-se que desde a época em que escrevia sua obra, Schmitt já entendia que o discurso político se misturou com o discurso político partidário, sendo, nos dias atuais, indissociáveis ao olhar mediano. Quando o cidadão olha a posição adotada pelo político A ou B, ele de antemão já sabe que aquela ideia está associada a um tipo de partido. Por exemplo, um fórum que debata sobre a necessidade de legalização das drogas é diretamente associado a partidos de matiz de esquerda, portanto o político que está lá, em regra, será vinculado à esquerda. É aí que reside o problema em um juiz participar de algo neste sentido, pois ele é um representante do Poder julgador, em que tal caso poderá vir a ser debatido tecnicamente, não necessariamente sobre a legalização, mas, por exemplo, em crimes de tráfico. A exposição do juiz, de certo modo, enfraquece sua credibilidade perante a sociedade ao, em seguida, proferir uma decisão.

Essa vinculação entre o decidir e o falar já foi correlacionado por Hanna Arendt, que de maneira bastante feliz demonstrou como a ligação entre os dois verbos faz sentido. Assim, a filósofa ensinou

A ação e o discurso são tão intimamente relacionados porque o ato primordial e especificamente humano deve conter, ao mesmo tempo, resposta à pergunta que se faz a todo recém-chegado: ‘Quem és?’ Essa revelação de quem alguém é está implícita tanto em suas palavras quanto em seus feitos (ARENDT, 2020, p. 221).

Denota-se que ao se estabelecer quem aquele individuo é, tanto suas palavras quanto suas ações o definirão. Como no exemplo acima, um juiz que publicamente se diz apoiador de um movimento a favor de drogas, terá em suas decisões certa leniência com crimes que envolvam drogas. Caso contrário, será ele um hipócrita. Porém, mesmo que haja de acordo com suas emanações públicas, a falta de credibilidade lhe atingirá, visto que seu pensamento já é sabido, sem ao menos haver caso para se avaliar, ponderar e julgar. Parte da população, caso ele decida de acordo com suas emanações, não lhe dará o respeito que seu cargo requer. E caso decida contrariamente, aqueles que apoiam seu discurso também não lhe respeitarão. E a respeitabilidade do cargo em uma República também é fundamental para todo o sistema estatal.

Percebe-se que a partir daí, embora sejam autores totalmente divergentes em seu modo de pensar, tanto Arendt quanto Schmitt conectam o discurso ao próprio individuo em si. E este discurso demonstra exatamente qual espectro político se estará defendendo, pois o discurso político responderá à pergunta de “Quem és?” e também colocará aquele sujeito numa posição político-partidária.

É por isso que Arendt, talvez pelo pavor provocado pelos discursos durante o governo nazista, tem grande preocupação em abordar a relevância do discurso na vida política do cidadão. É importante ressaltar aqui que se está numa época em que internet e redes sociais não eram sequer imaginadas nos debates da época. Por isso, hoje em dia, uma mensagem publicada em rede social ou aparição em veículos de mídia tem potencialidade de atingir um número indefinido de pessoas, certamente capaz de influir muito mais do que os discursos do próprio Führer.

Nesse mesmo sentido, Arendt explica mais uma vez a importância de se observar o que é dito

A ação que ele inicia é humanamente revelada pela palavra, e embora seu ato possa ser percebido em seu aparecimento físico bruto, sem acompanhamento verbal, só se torna relevante por meio da palavra falada na qual ele se identifica como ator, anuncia o que faz, fez e pretende fazer (ARENDT, 2020, p. 221).

É interessante analisar com maior retidão o final do ensinamento proposto pela autora. Ela afirma que é através da palavra (e aqui estenda-se para a palavra escrita também, por uma necessidade de atualização de seu conceito diante de tantas plataformas modernas que amplificam o discurso) que o agente anuncia o que faz, fez e pretende fazer. Esse trecho é bastante curioso porque traz consigo exatamente o que foi falado em se tratando de políticos e magistrados. Aqueles necessitam de discursos mais acalorados e capazes de convencer o público em geral, então, suas propostas, por mais inviáveis que aparentem ser, estão num âmbito que são necessárias para o debate público. Já os últimos, responsáveis pela pacificação social, devem ter a prudência de quem irá decidir vidas, liberdades, sem um voto sequer. O juiz que reiteradamente se coloca num palanque acaba por atravessar esta linha que o separa do político em geral.

O que se vê no Brasil de hoje é uma classe política totalmente fragmentada, em que corruptos conhecidos são rotineiramente eleitos para exercer os cargos mais importantes da República. Muitas vezes, os casos judiciais desses políticos chegam nas mãos de magistrados que já demonstraram publicamente uma inclinação favorável a certo tipo de conduta. Ora, se do magistrado se espera imparcialidade, como discernir entre a fala do juiz e a do cidadão? Ou melhor, haveria diferença? Parece que não. Atento a essa problemática, Martin Shapiro já afirmava que “Parece errado que tribunais e juízes, quaisquer tribunais e juízes, se envolvam em política”²(SHAPIRO, 2011, p. 38). (tradução nossa).

O jurista chama atenção para o fato de que a magistratura não pode se tornar um palanque político-partidário. O conflito instaurado em sede processual é entre fatos e normas. Já o conflito instaurado em sede política é de ideias. Assim como não cabe ao magistrado ser professoral em suas decisões, também não caberia a ele ser partidário de causas que contaminassem suas decisões. Num simples exemplo, imagine-se um juiz publicamente abortista. Sabe-se que a lei penal brasileira criminaliza o aborto e especifica seus casos de exceção. Não cabe a esse juiz abortista estender suas crenças pessoais aos casos que lhe forem afetos, não pronunciando réus, por exemplo, ou usando suas decisões como discursos políticos estranhos ao que se coloca nos autos para dar notoriedade às suas próprias convicções. Essa atitude é antirrepublicana e vai contra os preceitos de virtude já explicitados.

O mesmo Shapiro, ao se debruçar sobre esta questão, faz uma análise que vai ao encontro dos anseios sociais sobre um Judiciário que contemple suas necessidades. O autor explica que

É por esta razão que a maioria das pessoas gostaria que os tribunais de justiça fossem separados da política, pois política é partidarismo, parcialidade e olho por olho, e o que se deseja é um tribunal que pondere fria e imparcialmente as igualdades e desigualdades dos litigantes³(SHAPIRO, 2011, p. 40). (tradução nossa).

É por isso que não se pode confundir a doutrina chamar em agente político um alto cargo da República com o papel político exercido por um cargo ou por alguém sem cargo mesmo. Certamente, se pudessem optar, os cidadãos excluiriam os magistrados desse embate político, pois ele vincula pessoas a espectros que devem corresponder com planos de governo e coisas do tipo, enquanto que de juízes se espera a imparcialidade e a adstrição à lei.

Não se quer aqui falar que um magistrado é um robô, apenas aplicador da lei e de seus princípios. Mas ele está numa posição diferenciada que lhe limita publicamente, sim. Da mesma forma que seria inconcebível que policiais publicassem fotos em locais ou com pessoas sabidamente criminosas, também seria o de juízes participando de movimentos claramente político-partidários. É óbvio que há de se discernir a participação, por exemplo, de ministros do Supremo Tribunal Federal em seminários jurídicos, ou congressos de Direito com reuniões realizadas por partidos políticos ou entidades outras que fujam do aspecto acadêmico. Seria inimaginável, por exemplo, que um juiz participasse de entrevistas ou as atuais lives promovidas por partidos ou movimentos, sejam eles de qualquer espectro político, mas com nítido cunho ideológico-partidário, ou emitindo opiniões hipotéticas sobre casos bastante concretos que provavelmente serão julgados pelo mesmo, ou até mesmo criticando ou apoiando publicamente políticas públicas adotadas pelo governo X ou Y.

Deste modo, parece bem claro que nem todo cargo político, na definição mais técnica apresentada, autorizaria um discurso político, pois estes seriam limitados a agentes político-partidários, que não pode ser o caso dos juízes.

3. A LITURGIA DO CARGO

O cargo público, como se observou acima, em uma sociedade republicana, requer que seu ocupante possua certas virtudes que são inexoravelmente associadas ao cargo em si. Não poderia se imaginar um delegado de polícia ao mesmo tempo associado ao crime organizado. Esse pensamento se espalha por todo o ordenamento jurídico e social.

De acordo com o dicionário Michaellis on-line, o conceito de liturgia é o seguinte

1 HIST Na Grécia antiga, serviço cívico ou religioso prestado pelos cidadãos mais abastados.

2 REL O conjunto dos elementos e práticas que constituem o culto religioso de qualquer instituição.

3 REL Conjunto de palavras e/ou gestos usados na realização de ofícios e sacramentos; rito. (MICHAELLIS, S.D.)

Percebe-se, portanto, que a liturgia nada mais é do que o conjunto de práticas utilizados na realização de certos atos, ou, melhor dizendo, um rito.

O que se chama atenção neste momento, é que o cargo republicano é permeado por um conceito de virtude que já foi satisfatoriamente demonstrado. Logo, todo cargo, em especial aqueles do mais alto escalão, possuem uma liturgia virtuosa de necessária observância. Só assim, através destes preceitos, haverá uma verdadeira sobrelevação àquele que ocupa o cargo.

No topo desta cadeia, e não poderia ser diferente, estão os membros do Poder Judiciário. Isso se dá em razão da sua importante e fundamental posição na pacificação dos conflitos sociais porventura existentes. Os magistrados possuem uma responsabilidade e, logo, um sacrifício maior a fazer em suas liberdades individuais em comparação com outros cargos tão importantes quanto os seus, mas que prescindem de moderação em suas manifestações políticas. Vereadores, deputados e senadores, por exemplo, não julgarão absolutamente nenhum cidadão comum, diferentemente dos juízes.

Por isso, fica estranho perceber que um juiz se utiliza de suas redes sociais ou de programas midiáticos para defender posicionamento político. Isso por que, inicialmente, o próprio artigo 145, do Código de Processo Civil, em seu inciso IV trata do caso de suspeição quando o juiz estiver “interessado no julgamento do processo em favor de qualquer das partes” (BRASIL, 2015). Ora, um juiz que publicamente defende uma posição ideológica, com certeza terá interesse em demonstrar a prevalência dessa posição em caso concreto que recaia em suas mãos, pois, em caso negativo, estará ele dando argumentos contra seu próprio posicionamento público, levando-o, consequentemente, ao descrédito.

Ademais, há limites éticos que são também tratados na legislação ordinária do Brasil. Um exemplo que bastante se comenta neste tópico é a famigerada lei de responsabilidade, que engloba os Ministros do Supremo Tribunal Federal. No artigo 39 desta lei, a de número 1.079 de 10 de abril de 1950, é enunciado que será crime de responsabilidade dos Ministros que procederem “de modo incompatível com a honra e decoro de suas funções” (BRASIL, 1950).

Essa avaliação apresenta uma elasticidade muito grande e até indesejada em seu conceito, em que muitos críticos ao positivismo diriam que, segundo essa corrente doutrinária, a lei deveria abarcar todas as possibilidades e não ser genérica em suas conceituações, diminuindo ao máximo o grau de discricionariedade de seu intérprete. Por isso, agir em desencontro à honra e decoro acaba sendo um preceito um tanto quanto vago, e difícil de enquadrar a conduta do magistrado nesse ponto.

Em uma tentativa de pormenorizar essa questão, a Lei Orgânica da Magistratura – lei complementar nº 35, de 14 de março de 1979, no inciso III de seu artigo 36, traz importante conceito, ao expor que é proibido ao magistrado

manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério (BRASIL, 1979).

Pois bem, uma primeira especificação é feita. O magistrado não pode comentar publicamente sua opinião sobre processos em curso, e menos ainda criticar despachos, votos ou sentenças. A única ressalva é quando o magistrado tece suas críticas em suas próprias decisões processuais, até mesmo porque isso muitas vezes se mostra necessário para apontar a razão que o levou a tomar decisão contrária àquela que está sendo atacada, ou ao ministrar aulas correlatas ao magistério.

Nota-se que o objetivo deste dispositivo é de certa forma blindar a imparcialidade esperada do Judiciário. Não seria coerente com o sistema jurídico que tem precipuamente a obrigação de proteger a população que o mesmo estivesse imiscuído das discussões políticas, medindo forças com atores políticos. A melhor resposta que pode ser dada por um juiz é aquela constante no processo, e não através de bravatas e proselitismo típicos de candidatos e políticos de carreira.

Deve ser levado em consideração o caráter educacional que permitiria ao juiz comentar questões judiciais com maior grau de criticismo, apontando até mesmo suas divergências e seus erros. Isso se dá, logicamente, porque o espaço acadêmico tem como premissa a liberdade de pensamento e opinião, em que o livre mercado de ideias – conforme idealizado por John Stuart Mill – se faz mais do que presente para serem formadas as opiniões dos educandos (e muitas vezes até do próprio educador). Não faria sentido um juiz ser professor, do alto de sua capacidade intelectual apurada, se o mesmo não pudesse comentar com seus alunos em uma sala de aula sobre os casos mais relevantes da sociedade no momento.

Deste modo, em observância à credibilidade que seria exigida do integrante da magistratura, foi editada a resolução nº 60, de 19 de setembro de 2008, que instituiu o Código de Ética da Magistratura Nacional. E neste ponto, três dispositivos são interessantes de se observar: um que trata da imparcialidade e outros dois que tratam da integridade pessoal e profissional do juiz, quais sejam

Art. 8º O magistrado imparcial é aquele que busca nas provas a verdade dos fatos, com objetividade e fundamento, mantendo ao longo de todo o processo uma distância equivalente das partes, e evita todo o tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito.
Art. 15. A integridade de conduta do magistrado fora do âmbito estrito da atividade jurisdicional contribui para uma fundada confiança dos cidadãos na judicatura.
Art. 16. O magistrado deve comportar-se na vida privada de modo a dignificar a função, cônscio de que o exercício da atividade jurisdicional impõe restrições e exigências pessoais distintas das acometidas aos cidadãos em geral (BRASIL, 2008).

Primeiramente, é de suma importância ressaltar que o juiz deve evitar ao longo de todo o processo, isto é, a todo tempo, comportamento que possa indicar sua parcialidade, ou seja, uma tendência de preferir ou repelir algum alguma das partes ou até mesmo as causas que são defendidas por elas.

Isso já coloca em xeque juízes que a todo tempo estão em redes sociais ou programas midiáticos dando inúmeras e incontáveis entrevistas e opiniões sobre assuntos em voga. A esses juízes não cabe simplesmente dizer que estão falando de maneira hipotética, ou se servindo do seu papel de professor, isso não passa de demagogia, pois ele estará passando a sua opinião do alto de seu cargo de autoridade republicana responsável por julgamentos do tipo, pois, caso contrário, certamente seriam incontáveis os especialistas capazes de serem ouvidos além daquele juiz. Quando se ouve a opinião de um ministro de uma Corte superior, por exemplo, é fato que por mais que ele seja um renomado professor e jurista, o interesse em seu posicionamento se dá por conta do cargo republicano que exerce.

Cabe destacar, também, os outros dois artigos, que tratam mais do recato exigido do magistrado. Esses dois artigos se amoldam perfeitamente ao Estado republicano em que se está inserido. Alguns poderiam dizer que esses dispositivos violam a liberdade de pensamento e de expressão, mas não parece correto.

Os magistrados não tem qualquer violação em sua esfera de direitos por ter que cumprir um recato exigível do cargo que ocupam. Não seria dado a um agente de inteligência, que faz papel similar a de um agente secreto dos filmes hollywoodianos, ou de um policial, que utilizassem seu acesso a veículos de comunicação ou redes sociais para expor seus ofícios, funções e até predileções ideológicas de maneira pública e constante. Um juiz, que se encontra no topo das carreiras da República, certamente também deve ter uma divulgação de suas inclinações moderada. Isso não é cassar sua liberdade de opinar, mas ao se galgar certos cargos e atingir alguns patamares da vida pública, o indivíduo passa por mudanças necessárias. Suas opiniões passam a ter peso e repercutem em vários outros setores da sociedade que não apenas seu círculo de amigos.

Essas regras e medidas impostas ao juiz tem como objetivo preservar algo muito importante numa sociedade: a confiança da população nas instituições. Caso o julgador comece a demonstrar de maneira pública a sua inclinação ideológica e depois se deparar com casos correlatos para julgamento, tudo estará sob uma suspeita irreversível.

Sensível a estas preocupações, o Conselho Nacional de Justiça editou a resolução nº 305, de 17 de dezembro de 2019, com o intuito de estabelecer parâmetros para a utilização de redes sociais por membros do Poder Judiciário. E o artigo 4º desta resolução dispõe

Art. 4º Constituem condutas vedadas aos magistrados nas redes sociais:
I – manifestar opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério (art. 36, inciso III, da Loman; arts. 4º e 12, inciso II, do Código de Ética da Magistratura Nacional);
II – emitir opinião que demonstre atuação em atividade político-partidária ou manifestar-se em apoio ou crítica públicos a candidato, lideranças políticas ou partidos políticos (art. 95, parágrafo único, inciso III, da Constituição Federal; art. 7º do Código de Ética da Magistratura Nacional);
§ 1º Para os fins do inciso II deste artigo, a vedação de atividade político-partidária não abrange manifestações, públicas ou privadas, sobre projetos e programas de governo, processos legislativos ou outras questões de interesse público, de interesse do Poder Judiciário ou da carreira da magistratura, desde que respeitada a dignidade do Poder Judiciário (BRASIL, 2019).

Pode-se perceber, então, que a liberdade de expressão dos membros da magistratura possui certos critérios condicionantes, e isso faz total sentido. Aos magistrados é dada a função precípua de decidir sobre conflitos sociais, e os indivíduos que compõem essa sociedade não estão preocupados com o pensamento ou corrente ideológica de seus julgadores, mas, caso o mesmo seja publicizado, eles terão motivos para suspeitar dos propósitos do julgador quando diante de um caso que coloque suas convicções em pauta.

Em que pese o parágrafo primeiro deste artigo fazer uma ressalva que ampliaria o âmbito de liberdade dos juízes, o mesmo deve ser avaliado com os parâmetros que se encontram na própria Constituição da República Federativa do Brasil, em especial no seu artigo 95, parágrafo único, inciso III, que veda expressamente a participação do juiz na atividade político-partidária.

Dessa forma, não cabe a uma resolução expandir o que a Constituição, norma maior, vedou. Os juízes possuem ferramentas em mãos que os colocam em situação de vantagem perto de outros Poderes e instituições, pois serão os mesmos que julgarão, em última instância, os casos que resultarem dessa própria atuação política mal ou bem sucedida.

A questão da exposição que o magistrado tem nos dias de hoje começou a tomar maior relevo no século vinte e um com a expansão das redes sociais. Atento a este movimento, os Tribunais começaram a pedir a seus juízes que se afastassem das discussões que se provocavam nesses ambientes, mas a modernidade se impôs e cada vez mais vê-se juízes utilizando suas redes e deixando claras as suas inclinações. Isso, como demonstrado ao longo do trabalho, tem um impacto muito danoso à República, pois aquele virtuosismo esperado do magistrado acaba se tornando uma caricatura por declarações exacerbadas que o mesmo efetua, gerando uma carência de credibilidade.

Nesse mesmo sentido, retomando-se o pensamento de Schmitt, a Política hoje se confunde com o político-partidário, ficando até mesmo traçar distinções mais precisas. Ao juiz, conhecido por ser o homem da lei, que tem como símbolo a deusa Têmis, com seus olhos vendados e segurando a espada em uma mão e a balança da justiça em outra, fica inviável conceber a atuação midiática ou digital, mas de todo modo pública, na defesa de certos temas ou ideais. Além disso, outro simbolismo dado aos magistrados é a própria toga, que impõe austeridade, solenidade e poder ao seu usuário, sendo vestimenta do Judiciário.

Não só esses simbolismos, mas a própria atuação funcional de juízes é diferenciada se em comparação com outras carreiras e agentes políticos. Permitir que magistrados atuem levantando bandeiras e fazendo um ativismo político recorrente, nada mais é do que conceder-lhes a parcialidade que não deveriam possuir, maculando a imagem que a Justiça deve ter perante todos os cidadãos de uma República.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho buscou colocar enfoque numa questão que vem sendo observada nos últimos anos, qual seja, a manifestação e aparecimento excessivo de membros do Judiciário em mídias e redes sociais. Em nenhum momento se buscou defender uma censura a estes indivíduos ou carreiras, mas, como apontado ao longo do texto, algumas balizas precisam ser fincadas para que não se crie algum descrédito da população no funcionamento da Justiça.

O modelo republicano adotado pelo Brasil, que remete desde a antiguidade, possui até hoje certos standards que devem ser observados. Como um propagador de princípios e virtudes, o trato com a coisa pública exigido dos governantes deve permear sua atuação, tanto na vida pública quanto na vida privada. Contudo, direitos de privacidade e intimidade são dados a todos fundamentalmente, mas a partir do momento que juízes expõe pensamentos contestáveis, como bandeiras pelas quais lutarão, seu campo passa do jurídico para o político.

Ao atravessar a fronteira que separa a técnica da ideológica, os juízes começam a navegar por um mar de conflitos e discursos que tendem o convencimento e a derrota do adversário, qual seja, o campo político. Sabendo que os conflitos de ideias permeiam os debates, fica difícil dissociar um discurso Político (com letra maiúscula mesmo), como pregado de maneira genérica pelo filósofo Aristóteles, do discurso político habitual, vinculado ao politiqueiro, ao político-partidário.

A partir da ampliação do acesso dos cidadãos às redes sociais e às ferramentas tecnológicas de mídia em geral, as opiniões e palavras de magistrados passaram a ser mais acessíveis ao público em geral. Deste modo, o cidadão ribeirinho fica ciente da inclinação de certo juiz da Suprema Corte tanto quanto o mais intelectual dos brasileiros – e o mesmo se alastra por todas as camadas sociais. Ambos, diante de algum cenário concreto que se apresente, já possuem, inclusive a resposta que será dada por este determinado juiz. E isso, como demonstrado, enfraquece a própria confiança da sociedade nos juízes incumbidos de devolver as questões que lhes são postas à normalidade.

Numa tentativa de responder a estas questões, os órgãos reguladores de classe tentaram especificar parâmetros que deveriam ser observados para os juízes não cometerem infrações e expusessem pensamentos capazes de macular suas futuras decisões. Entretanto, não parece que tais ferramentas tenham sido suficientes. Juízes de todos os graus e instâncias, rotineiramente, são flagrados com mensagens, publicações ou entrevistas um tanto quanto questionáveis, quase que em papel de oposição ou apoio a certos governos e figuras políticas. Todas as regras de prudência e moderação exigidas dos mais altos cargos da República, devem ser observadas, seja pelo juiz da menor comarca do país, quanto pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal.

A exposição pública midiática, como já apontado acima, enfraquece uma instituição que deve zelar pela imparcialidade, como é o caso do Poder Judiciário. Até o presente momento, não se evidenciou qual a vantagem à nação de juízes exporem diuturnamente suas preferências políticas, muito pelo contrário: isso tem sido, justamente, um ponto de polêmicas e de elevação de temperatura entre as instituições republicanas e também com a sociedade em geral.

Por fim, o debate acerca deste tema ainda deve ser amplamente difundido e incentivado para que se possa chegar a um denominador comum, a um ponto de equilíbrio entre a liturgia do cargo necessária aos magistrados e a liberdade de expressão dos mesmos, bem como seu papel no republicanismo. O que parece de plano ficar evidenciado é que juízes não podem se confundir com políticos ou influenciadores digitais. Suas funções são de extrema importância, e o recato que as mesmas exigem é fundamental para o bom funcionamento de todo o sistema implementado no Estado Democrático de Direito.

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SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 28ª ed. São Paulo: Malheiros editores ltda, 2007.


¹Mestrando no PPGD da Universidade Católica de Petrópolis – UCP, Bolsista CAPES/PROSUC, no mesmo curso strictu sensu. E-mail: raphabarcellos@gmail.com, http://lattes.cnpq.br/7987324323375690
²it seems wrong for courts and judges, any courts and judges, to be mixed up in politics
³It is for this reason that most persons would want courts of justice separated from politics, for politics is partisanship, partiality, and tit for tat, and what is desired is a court which will coolly and impartially weigh the equalities and inequalities of the litigants