POR UMA PEDAGOGIA DO CORPO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

FOR A PEDAGOGY OF THE BODY IN TEACHER TRAINING

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7788973


MARCOS VINICIUS AMARAL RIBEIRO


Resumo: O presente estudo traz em seus procedimentos o seguinte campo problemático: – Como acionar a potência do corpo na formação de formadores em pedagogia? A escrita se propõe a reposicionar o conceito de corpo entre o currículo docente e a didática, gerando deslocamentos entre tais instâncias e produzindo, por isso, desvios nas maneiras oficiais de se exercitar as relações de ensino e aprendizagem entre professores. Parte-se da urgência que os estudos do corpo se caracterizam como uma grande ferramenta na formação em geral, possibilitando novas conexões nos diversos processos educativos através dos seus conceitos e perspectivas diversas. Para além do esquema dualista, em que o conceito de corpo se vê representado na tradição de ensino na pedagogia, o presente estudo tem como objetivo apresentar alternâncias com a didática diária na sala de aula através de seus efeitos geradores. Problematizamos, pois, outros sentidos (e práticas) de corpo que, não estando ancorados na dicotomia corpo/cognição, desloquem a formação nas licenciaturas em pedagogia para outros encontros curriculares, que permitam a emergência de uma sinestesia na ação docente. Para essa finalidade, a política de narratividade do texto estabelece vizinhanças conceituais entre a teoria do conhecimento, a teoria do currículo com os estudos do corpo, tendo como aliados desse diálogo as interferências das filosofias da diferença de Deleuze e Espinosa na formação docente.  

Palavras-Chave: Corpo; Currículo; Didática; Sinestesia; Formação de professores.

Abstract: The present study brings in its procedures the following problematic field: – How to activate the power of the body in the formation of educators in pedagogy? The writing proposes to reposition the concept of body between the teaching curriculum and didactics, generating displacements between such instances and producing, therefore, deviations in the official ways of exercising the teaching and learning relations between teachers. It starts with the urgency that studies of the body are characterized as a great tool in education in general, enabling new connections in the various educational processes through their different concepts and perspectives. In addition to the dualistic scheme, in which the concept of body is represented in the tradition of teaching in pedagogy, the present study aims to present alterations with daily teaching in the classroom through its generating effects. We problematize, therefore, other senses (and practices) of the body that, not being anchored in the body/cognition dichotomy, displace training in teaching degrees in pedagogy to other curricular encounters, which allow the emergence of a synesthesia in teaching. For this purpose, the policy of narrativity of the text establishes conceptual neighborhoods between the theory of knowledge, the theory of the curriculum with the studies of the body, having as allies of this dialogue the interferences of the philosophies of difference of Deleuze and Spinoza in teacher education.

Keywords: Body; Curriculum; Didactics; Synesthesia; Teacher training.         

1.    Considerações iniciais: apresentação do campo problemático 

“O que pode o corpo?”.
                                                       Espinosa

A didática é um espaço de encontros. Nesse viés, a pedagogia crítica reivindica a necessidade de uma emancipação do corpo em seus diversos processos educativos, sobretudo, na introdução dos estudos do corpo entre os formadores nas licenciaturas, em que a didática possa ser exercitada através de uma sinestesia na ação docente.  

A crítica ao excesso de racionalidade instrumental no âmbito da didática afirma outros percursos curriculares fora da representação do conceito de corpo instituída pela tradição da teoria do conhecimento na pedagogia. Junto ao referencial teórico das filosofias da diferença de Gilles Deleuze e Félix Guattari outras perspectivas vêm sendo propostas, possibilitando ressonâncias dos seus estudos entre diversos pesquisadores no campo da educação como nos apresenta Gallo (2008), assim como o trabalho de pesquisa sobre corpo, formação e aprendizagens (RIBEIRO, 2011, 2015, 2018) desenvolvido pelo autor deste artigo (Doutor em educação pela UFJF e professor no IFMG de Ouro Branco – MG; co-criador do curso “Estudos do Corpo” – Formação de professores).  Por essa via, essa escrita relaciona o conceito de corpo com a didática no ensino da pedagogia, propondo trânsitos curriculares entre os docentes.

A sinestesia pode ser definida como uma figura de linguagem caracterizada pela união de gestos e ações que expressam diferentes percepções sensoriais, mas aqui ela aparece como uma oportunidade favorável para o fazer docente através de um tipo de didática sensória que afirma a potência do corpo.   Problematizamos, pois, a implicação do corpo no exercício diário com o ensino, em que os docentes se vêem desafiados a produzir bons encontros entre a sua intencionalidade, os conteúdos trabalhados e os discentes. Nessa perspectiva, a política de narratividade do texto elabora sua discussão junto aos estudos do corpo, fazendo vizinhanças conceituais (DELEUZE; GUATTARI, 1992) com outros saberes, que relacionam a pedagogia com a teoria do conhecimento, a teoria do currículo, a arte e as filosofias da diferença.

Vamos explicar essa problemática fazendo uma analogia com uma peça de teatro grego. O ponto de partida de uma peça é sempre uma narrativa, que usualmente é muito simples e pode ser contada linearmente ou de várias maneiras. Seja o caso da história do Rei Édipo. Podemos fazer um resumo que começa com o nascimento de Édipo, depois a maldição, depois sua condenação etc. Uma vez que temos uma história interessante, exercitamos o seu roteiro. O roteiro pode começar contando a história pelo meio, como acontece em muitas direções. É o que acontece com as versões clássicas de Édipo, que se iniciam em plena desgraça da cidade. Uma vez encenado o roteiro, chega a hora do trabalho do diretor. Ele junta as diversas cenas, faz cortes, passagens, transições. Seu trabalho dá o ritmo da peça, ligando e dando sentido ao seu acontecimento. Uma história muito boa pode virar uma chatice nas mãos de um diretor preguiçoso e sem imaginação. E o contrário é verdadeiro. Muitas vezes lemos a sinopse da peça e achamos que será uma tolice, mas o diretor nos pega pela mão e nos leva a ver algo que afeta o nosso corpo em sua totalidade. 

A ação do docente com a didática pode ser comparada ao trabalho dos diretores de teatro ou cinema; trata-se do conjunto de decisões e procedimentos – estratégicas, técnicas, oportunidades favoráveis – que tomamos, as alternativas que consideramos relevantes num caso particular de ensino e aprendizagem em pedagogia. Se um professor tem uma boa história, ela nos afeta através do seu conjunto de problemas, temas e textos propostos. Essa estrutura de temas e problemas são um conjunto de histórias à espera de diretores inspirados que as transformem em situações potentes (e inspiradoras) de ensino e aprendizagem. Toda comparação tem alguma fraqueza e essa tem o defeito de sugerir que a aula é algo que se assiste por fora da cena ou, que possui “uma imagem” a ser acessada pelo professor. Mas, o bom teatro nos envolve – a gente chora e ri, não? Com uma má didática a aula não tem graça, como acontece quando a gente conta a história de Édipo começando assim: era uma vez um filho que matou seu pai! Acabamos com a história na primeira frase, pois, nos faltou um roteiro (ou um plano de aula motivador) para contar essa história de uma maneira potente.

Para a estruturação deste trabalho, buscamos nossas ferramentas teóricas nas relações nômades das filosofias da diferença com os conteúdos da arte como nos convida Schöpcke (2004). Tais filosofias são assim definidas por trazerem para a filosofia da educação conceitos que começam a ser gestados a partir dos anos 1960 entre a epistemologia francesa. Seus filósofos, os quais com inspiração na vertente afirmativa de Nietzsche (PELBART, 2013), vão compondo uma paisagem teórica que aponta outras perspectivas para as noções da teoria do conhecimento, da estética, do poder, da política, do corpo e da ética. Esses autores, sobretudo Deleuze e Guattari, não se reduziram a uma história oficial da filosofia, mas também ao campo existencial e geográfico em que ela se lança, levando a noção de conhecimento para outros domínios fora do saber oficial e da razão histórica, entre eles, o território da arte e os estudos do corpo como alavancas na produção de conhecimento na contemporaneidade. 

Ocorre, com essa seara teórica, de se pensar uma articulação entre a teoria/prática na didática e não a anulação ou sobreposição de uma delas. A experiência, esse encontro sensível entre o plano de aula do docente com a percepção do discente, implica relações de espanto, de estranhamento, curiosidade e de transmissão/assimilação (LIBÂNEO, 1992, 2002) dos conteúdos nas licenciaturas em pedagogia. Aqui, cabe atentarmos para o elemento potencial da experiência que faz o uso do corpo como uma importantíssima estratégia para uma formulação curricular docente outra; implicando que a sua dimensão sensível pode instituir a aprendizagem de novos problemas tanto na educação básica quanto na prática da didática com os problemas específicos do ensino na pedagogia.  

Em sintonia com Candau (2002) o currículo pode ser qualificado como um conjunto de procedimentos por meio dos quais os processos educativos procuram realizar determinados propósitos educacionais, sempre abertos à revisão crítica periódica e visando a uma efetiva realização prática. O currículo tem vários níveis de explicitação – do formal ao informal – que vão desde aquele que consta nas diretrizes oficiais e nas políticas públicas até os acontecimentos diários da sala de aula, que lançam aluno e professor em infinitas relações didáticas. O currículo visa ao surgimento das condições adequadas para a apropriação do conhecimento, por parte do aluno, das habilidades, saberes e atividades nos conteúdos de um modo minoritário. Ele é uma ferramenta essencial para que a tarefa da formação discente não seja o resultado aleatório de esforços individuais e isolados. Desse modo, um currículo funciona como uma bússola para todos os sujeitos envolvidos nos processos educativos. 

As licenciaturas em pedagogia, na medida em que se norteiam pela ideia de currículo crítico (SILVA 2001), podem implicar-se como um processo educativo cujos procedimentos são orientados por propósitos que se deixam medir (ou avaliar) os conteúdos vivenciados de um modo sensório. Sim, o currículo está diretamente ligado ao corpo. E, esses processos formativos entre docentes podem nortear as informações e os afetos relevantes ao objetivo curricular comum; isso significa que cada professor deve ter uma noção do que está acontecendo no processo de formação do aluno para que sua aula não seja mais uma intervenção cega ao contexto ou, apenas agregada ao currículo disciplinar da escola. Por essa via, um currículo se atualiza no(s) corpo(s).

 E o que acontece com o planejamento curricular e didático em pedagogia? Fazer planejamento nessa área deve levar em conta o fato de ela ser uma disciplina especial, que trata de problemas fundamentais e localizados no território do ensino e da aprendizagem. Os temas e problemas pedagógicos, como se sabe, muitas vezes podem ser percebidos no cotidiano e nas outras disciplinas e licenciaturas; mas isso não é a regra ou o ponto de partida de uma atividade didática; usualmente o que ocorre é o oposto; o corpo e a vida cotidiana são levados por nós educadores em certa desatenção quanto a esses temas fundamentais nas relações de ensino, quase sempre despercebidos; assim, precisamos elaborar metodologias que valorizem o cotidiano do aluno e as suas visões de mundo. Este cotidiano inclui o seu corpo no mundo vivido e a sua experiência sensória de realidade, no sentido mais amplo (mundo social, existencial, sensível, profissional e político), e o mundo das vivências e aprendizagens escolares, ou seja, o mundo da “cultura escolar” em que os conceitos da pedagogia podem produzir bons ou maus encontros interdisciplinares entre a diversidade dos corpos.

As diversas experiências vivenciadas no currículo de formadores produzem problemas, saberes, questionamentos, afetos, enfrentamentos e novas perguntas, podendo estar diretamente ligadas à afirmação da vida e de outras maneiras de nos posicionarmos como educadores através daquilo que nos provoca no nosso dia a dia. “Todo conceito remete a um problema, a problemas sem os quais não teria sentido, e que só podem ser isolados ou compreendidos na medida de sua solução” (DELEUZE ; GUATTARI, 1992, p. 27). A partir dessa perspectiva, este artigo relaciona corpo e didática, para implicar os conceitos e práticas da pedagogia no cotidiano da ação do docente. Nesse sentido, a pergunta orientadora do nosso diálogo pode ser a seguinte: Como promover encontros entre a didática em pedagogia com a potência do corpo na formação de formadores? 

2.      A didática nas licenciaturas em pedagogia: um espaço de encontros sensórios 

            “A alma, prisão do corpo”. 
                                    Foucault 

Uma aula de funciona como um corpo vivo, ela pode se caracterizar como um espaço sensório onde encontramos afetos, conceitos, objetivos, sensações e conteúdos. Ela possui oportunidades favoráveis para a nossa ação docente. Por esse viés, uma percepção da didática com um procedimento de sinestesia corporal já nos indica uma oportunidade favorável ao flexibilizar as práticas conservadoras de ensino, desviando, assim, das práticas tradicionais e possibilitando novos encontros. 

A didática se exercita através de revezamentos de afetos, isto é, como uma ação relacional entre os sujeitos, os objetivos, os conteúdos e as práticas, criando novas estratégias que podem gerar outros agenciamentos na ação pedagógica.  Desse modo, uma maior implicação do corpo no ensino torna-se uma necessidade diante de suas possibilidades de emancipação, que afetam diretamente a composição curricular dos discentes nas licenciaturas. Uma aula sinestésica ao tratar de seus problemas fundamentais, essencialmente inacabáveis, pode fazer com que o aluno aproprie-se dos instrumentos conceituais que enriquecem a compreensão de um problema, levando o estudante a um patamar mais complexo de reflexão no seu cotidiano e do processo de escolarização. Esse é um dos objetivos do exercício com uma didática sinestésica, ou seja, afetar o corpo do aluno na sua integralidade.  

Junto a Silva (1999, 2001) afirmamos que um currículo é um tipo de atividade formativa, aberta à revisão e à construção permanentes. Isso quer dizer: o currículo deve atender a alguma tática pedagógica inerente ao tipo de situação formacional a que ele visse. Em consequência disso, os projetos de ensino em pedagogia devem incluir a explicitação dos critérios que usamos para selecionar as atividades, os textos, os autores, os conhecimentos e as habilidades que julgamos relevantes para cada etapa da licenciatura dos futuros docentes. Esses critérios devem atender a certos padrões mínimos de intencionalidade profissional e ideológica, sobretudo, pela inserção do ensino e da prática nos processos educativos conectados com a potência do corpo. 

  O que queremos dizer com isso é que não podemos fazer nossas escolhas de forma aleatória, ou simplesmente baseados numa inexistente tradição de ensino em educação; toda atividade didática está sujeita a responder a perguntas do tipo: – Por que esses temas estão sendo debatidos dessa forma nesta aula? – Por que foram escolhidos esses textos num determinado contexto? – Qual o sentido dessa atividade prática com esse grupo de discentes? Ou seja, para ensinar é importante que nos coloquemos as seguintes perguntas básicas: – Com que corpo se ensina e com que corpo se aprende? – Qual a finalidade de se ensinar esses conteúdos junto aos alunos com os quais vamos trabalhar? – Quais são seus efeitos sinestésicos entre os sujeitos envolvidos? – Em que esses saberes (e afetos) são relevantes para o progresso formativo, para o avanço intelectual e para o desenvolvimento desses alunos na perspectiva da sua inserção no trabalho com a educação básica? 

 Fica claro, aqui, que o formador de formadores tem autonomia para fazer a seleção das atividades, textos, conteúdos, procedimentos etc. A liberdade de escolha, no entanto, deve ser exercida junto com a apresentação de critérios que mostram que o plano de aula é precedido por algo que vai além da boa vontade e do gosto pessoal do docente. Entre os critérios que devemos examinar estão o cuidado com a tradição do pensamento pedagógico, a lembrança de que ele sempre teve conexões íntimas e duradouras com os resultados das ciências, da filosofia e das artes, que a pedagogia não é uma área a ser vivenciada mediante decorebas, ou seja, é um exercício reflexivo e prático que possui uma natureza própria e autônoma no fazer educacional. 

 Uma aula possui muitas relações com o mundo vivido e com o conhecimento sistematizado por ela pela via do corpo. De onde pode vir a potência (ou a alegria) de uma aula? Potência, não custa lembrar, é aquilo que nos afeta diretamente no nosso corpo e nos move. Temos aqui um desafio do saber/fazer com a didática; de um lado, ela possui temas que capturam com naturalidade a atenção dos discentes; de outro, se esses temas foram mal colocados, resvalarão no senso comum e da falta de interesse deles. 

 A alegria (ou potência de ação) de uma aula pode começar por aqui: como tratar de temas complexos e inacabáveis em educação sem cair nos dogmatismos? Uma das saídas é a ênfase – depois de engatada a discussão – no exame dos conceitos e práticas instrumentais ali presentes. Esse esquema é semelhante a uma refeição na qual primeiro usamos os talheres e o prato, depois comemos a comida. Essas sequências tradicionais tornam o estudo artificial e vazio sem afetar diretamente a fome e a sede de saber dos alunos.  Assim, os corpos não são afetados, ou seja, a didática gera mais conservação e menos movimento. A alegria do ensino a que nos referimos tem a ver com a capacidade da didática em afetar a potência de ação de um corpo.

Porém, todo cuidado é pouco para utilizar, senão, slogans vazios sobre o conceito de corpo na educação, ao menos, conceitos desgastados pelo uso indiscriminado de modo instrumental. Sob o prisma da sensibilidade, um sentido de formação que se constrói entre os sujeitos não se reduz ao incentivo técnico-operativo da participação/cooperação – que se subordina, meramente, a critérios cognitivos e motores – mas, antes, se vale de uma sensibilidade aberta como possibilidade de estabelecer uma invenção entre sujeitos em colaboração. No entanto, quando falamos da necessidade desse outro corpo em expansão junto aos conteúdos, de que corpo se trata? 

Não se trata da forma do corpo, do corpo biológico, do corpo como um fenômeno ou como um objeto. Muito pelo contrário, Foucault (1987) ao questionar o liame estreito entre o saber/poder que designa o que seja um corpo, lança as ciências e os diversos saberes (os quais assumem os binômios corpo/alma, sujeito/objeto e razão/mundo) para uma relação epistemológica de múltiplos interesses que aproximam corpo, conceito e vida. Daí a sua analítica do biopoder (FOUCAULT, 1988) com os saberes científicos ter se desdobrado sobre uma diversidade de domínios que vão da filosofia à medicina e desta, à pedagogia e ao direito, todos eles lançando aquilo que “sabemos” sobre o corpo para outras esferas não designadas do conhecimento. Portanto, o sentido do conceito de corpo não está dado, fechado e acabado, mas passível de ser transposto nas diversas relações em que se lança. É, pois, “corpo” aquilo que desloca a nossa potência de ação para outro lugar.

Para Deleuze (2017) os corpos são relações de força que produzem mais potência e menos potência de ação. Enquanto tais, não se definem, apenas, por seus encontros fortuitos e seus atritos, mas se instauram pelas conexões que se estabelecem entre eles na imanência. Nesse sentido, um corpo não é apenas uma materialidade física ou uma representação abstrata, mas ele se define pelas relações que ele estabelece com outros corpos, implicando que o que afirma a sua existência é essa teia de conexões em que se lança. Desse modo, um corpo se constitui por sua relação contínua com outros corpos, ou seja, a produção de um corpo, nesse viés, se define por suas infinitas relações e composições.

Há, então, processos de composição e decomposição dos corpos, segundo suas experiências que ampliam ou diminuem a sua potência, ou mesmo, das oportunidades favoráveis que se lançam em seus efeitos pela vida. Dois ou vários corpos formarão uma composição, isto é, outros corpos mais potentes à medida que compuseram suas relações respectivas em circunstâncias favoráveis à sua potência de ação. E o mesmo acontece com as oportunidades desfavoráveis geradoras de embates e menos potência de ação. E isto, é o que cabe ao exercício da didática naquilo que é palpável num corpo, ou seja, o ponto relacional que instiga a fazer com que os conteúdos se encontrem segundo relações componíveis ou formativas entre os alunos.

Sendo educadores, como podemos potencializar mais através de nossas ações com a didática? Na experimentação e nas relações com outros corpos, ideias, sensações, conceitos, espaços, afetos, conteúdos e problemas em sala de aula.  Desse modo, a nossa potência de ação  é o que define nosso corpo, pois ele está constantemente afetando e sendo afetado. Estes afetos aumentam a potência de vida de outro corpo, produzindo alegria, ou a diminuem, gerando tristeza ou inércia. Esse exercício se processa entre os corpos e as forças, envolvendo os territórios da ética e da educação estão permeados por bons ou maus encontros, que modificam e ao mesmo tempo, aumentam nossa capacidade de ser novamente afetado. 

Se os docentes em pedagogia forem capazes de produzir bons encontros através da sua potência de ação, eles podem operar na construção de outro tipo de currículo pela via sensível. A aprendizagem através da sensibilidade relaciona os corpos dos discentes, criando um diálogo entre os conteúdos curriculares com sua vida cotidiana. São procedimentos do ensino que se inscrevem pela experiência sensível para a construção do conhecimento sistematizado na formação e seus efeitos geradores. Onde acontece essa outra inscrição de conteúdos? Em nossos próprios corpos de educadores e nas relações em que eles se lançam com os alunos e deles com outros corpos.

Essa construção curricular desafiadora que sinalizamos não significa seguir apenas os caminhos demarcados, pois afetar os corpos tem a ver em nos colocarmos em relação com a experiência sempre na medida dos novos desafios cotidianos. Não é sempre para uma apropriação instrumental que se direciona os conteúdos curriculares. Disso decorre que, afetar os alunos e criar novas estratégias didáticas pela via do corpo implica, necessariamente, em experimentar as infinitas relações que essas duas ferramentas nos possibilitam como educadores, principalmente, na nossa urgência de ativar  a vida e  a sensibilidade nas escolas brasileiras.

 Portanto, cumpre enfatizar um desafio – profundamente articulado nos infinitos revezamentos da teoria/prática, no que se concerne ao discurso formativo para uma composição curricular desafiadora na didática em pedagogia: de um lado, criar novos dispositivos de aprendizagens através das nossas próprias práticas diárias com os conteúdos; de outro, possibilitar que as aulas sejam espaços de bons encontros entre os conteúdos e os sujeitos envolvidos nos processos educativos. Ambos os casos, sem oposição, reiteram uma mesma urgência, qual seja, a implicação de nós educadores numa outra travessia, que afirma a inserção da sinestesia do corpo na educação.

3.  Considerações finais: uma pedagogia através do corpo  

“Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas”.
Deleuze

A palavra sinestesia lança nossa percepção para dinâmicas, sensações e pensamentos, fazendo a nossa atenção mudar alternadamente de uma coisa para a outra nas estratégias de ensino. O ato, processo ou efeito de implicar o aspecto sensório do corpo no ensino da pedagogia possibilita outros encontros, produzindo, por isso, dispositivos de aprendizagens que se produzem nos desafios diários. 

Deleuze (2005) nos aponta que nas palavras e nos dispositivos existem curvas de visibilidade e curvas de enunciação. As primeiras são compostas por linhas que constituem os seres imanentes (às práticas) e as segundas por enunciações (os discursos), que revejam suas posições dentro de um plano de imanência. Ainda assim, um único dispositivo possui linhas diversas, como as linhas de força que atravessam toda a sua constituição e que se tornam problema para o pesquisador e para o formador de formadores.

Tendo em vista que as linhas possibilitam uma relação de devir entre as palavras e coisas, as mesmas propiciam discutir os efeitos da composição curricular na didática sem fechar os sentidos a ela atribuídos. O conceito de corpo aqui apresentado não encerra um sentido único com os acontecimentos que ele entra em relação, mas abre a palavra “ensino” para negociações não determinadas com outras áreas do conhecimento como nos sinaliza Foucault (1988). 

Uma aula, por esse viés, se torna um corpo aberto permeado por muitos encontros e linhas de enunciação. Grande parte dos conteúdos da pedagogia provoca no aluno um forte afeto (DELEUZE, 2017); esse tipo de encontro pode potencializar a atenção dele ao processo argumentativo e crítico; assim, o(a) professor(a) pode buscar neste ponto de envolvimento uma oportunidade favorável para agir. Esse elemento pode ser obtido deslocando-se, didaticamente, a atenção do aluno do tema (ou problema) para a sua realidade concreta de cidadão no mundo. Com isso, queremos dizer que o critério para a seleção dos conceitos instrumentais a serem exercitados é dado pelo tipo de tema ou problema em discussão; ora, não tomamos sopa em prato raso com um garfo. Nesse sentido, um procedimento central de uma didática poderia ser o seguinte: o cuidado com as ferramentas dá-se em seu uso efetivo para o cultivo dos bons encontros, pois, a didática se efetiva na relação entre os corpos.

O exercício entre a didática e a formação de professores precisa estar aberto e ir ao encontro dessas novas relações sensórias, como propõe Ribeiro (2018) em sua tese de doutorado em educação na qual os conceitos de corpo e de produção de conhecimento se vêem articulados à formação. Como um bom filme, como uma boa peça de teatro, como um bom romance ou uma grande narrativa, pois a prática com o conhecimento deve estar à altura do drama e da vida dos(as) estudantes. Estar à altura é elevar-se a si mesmo e ao outro. Isto é potência de ação para Espinosa (Ibidem, 2017). E isso não se consegue menosprezando as capacidades e as virtudes dessa juventude que quer se implicar criticamente na vida. E, como uma boa peça de teatro, uma aula deve saber acolher o encontro imprevisível.

Alternam-se, por isso, as relações que envolvem a teoria do conhecimento na filosofia da educação, o currículo e o ensino, bem como as maneiras oficiais de se problematizar a relação das dinâmicas do corpo com os conteúdos numa sala de aula. Em suma, uma sinestesia do conhecimento pode ser promovida através de uma pedagogia do corpo capaz de levar a construção curricular ao encontro de outros saberes pela via sensível. E para esse salto é preciso que nos lancemos para além das nossas imagens cristalizadas de ensino e aprendizagem. Torna-se urgente encararmos os desafios que surgem em nossa própria trajetória como educadores, para que assim, eles possam potencializar outros efeitos geradores. 

4.    Referências 

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