LETRAMENTO-OUTRO: O (MULTI)OLHAR DA EDUCAÇÃO DE SURDOS

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7761449


Michelle Fernandes Viana1


RESUMO- Este artigo tem como foco principal apresentar uma sintética análise conceitual sobre as formas de letramento na e para a educação de surdos, considerando em destaque a impossibilidade de o professor fornecer de forma concreta e fechada os letramentos aos alunos, mas sim demonstrando formas de trabalho, valorização e incitação desses modos de leitura aos seus discentes de acordo com o contexto sociocultural e político em que estão inseridos. Para isso, serão esmiuçados pensamentos de autores como Bauman, Cavalcanti e Rojo a fim de compreender a sociedade atual e buscar mecanismos de trabalho significativo para com ela, respeitando suas peculiaridades e as utilizando em favor de um processo de ensino e aprendizagem mais prazeroso.

PALAVRAS-CHAVE: Tecnologias; Multiletramentos; Surdos. 

1 INTRODUÇÃO

Com as legislações favoráveis à educação de surdos em âmbito inclusivo e bilíngue, muitos trabalhos sobre esse assunto foram produzidos, no entanto, em alguns casos reunir um povo por apenas uma característica assemelha-se a uma homogeneização indesejada. 

Ao deparar-se com a sala de aula muitos professores sofrem com as agruras de uma turma heterogênea, em que propostas pedagógicas gerais não se aplicam.

Por isso a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) torna a União responsável pela capacitação dos professores para estarem aptos a compartilhar conhecimento com todos os discentes, mas a partir de possíveis falhas na formação continuada, nem sempre se alcança o êxito.

Com o mundo contemporâneo e a liquidez de informações, torna-se cada vez mais difícil realizar um processo de ensino e aprendizagem prazeroso aos alunos, visto que, a escola e o professor precisam se adaptar às diversas características sociais, políticas e culturais trazidas pelos alunos.

Esses docentes por muitas vezes apresentam dificuldade para acompanhar as diversas formas de ensino, pois diante da globalização e da evolução da tecnologia, o aluno e o professor ganham novos nomes representativos por Prensky (2001): o aluno, por ser um “falante nativo” da linguagem e lógica digitais dos computadores, recebe a denominação de “nativo digital”; o professor, por não ter outra escolha caso queira ter uma relação mais saudável e produtiva com o seu aluno, recebe o nome de “imigrante digital” – destinado àqueles que não nasceram nesse contexto e se empenham em adentrar nele. 

Atualmente os dispositivos móveis ampliaram ainda mais as formas de trabalho na educação. O mobile learning, conforme análises de dados fornecidos pelo CETIC (2014), ainda é pouco explorado no ambiente escolar, apenas 35% de dos 95% de alunos que possuem essas ferramentas, ou seja, é um instrumento já existente na vida da maioria dos discentes, contudo, pouco explorado. 

Sharples (et al., 2005) pontua que a mudança para a era móvel é extremamente necessária no processo de aprendizagem, em razão do m-learning possibilitar interação entre os sujeitos, flexibilização e adequação ao contexto do educando reconhecendo diferenças sociais, cognitivas e físicas com potencial em “conseguir levar a aprendizagem a pessoas, comunidades e países isolados, oferecendo aos alunos a possibilidade de assumirem o controle da sua aprendizagem de uma forma diferente” (ABREU; CARDOSO, 2016). 

Destarte, também é preciso levar em consideração essa sociedade em que o aluno surdo está inserido. As propostas devem ampliar seus olhares para além de uma diferença linguística, deve reconhecer os multiletramentos e/ou hipermídias existentes na vida do aluno.

Acredita-se, portanto, que um estudo bibliográfico acerca do texto hipermidiático, e dos multiletramentos poderá ajudar esses profissionais a terem como base a consciência de um letramento-outro para a educação de surdos e a criarem materiais significativos para uma práxis que beneficie os alunos surdos a viverem uma aprendizagem mais prazerosa.

2 TECNOLOGIA E LIQUIDEZ 

Sobre o processo de ensino-aprendizagem, Wanderley Geraldi (2017), em entrevista, trata sobre o fato de os jovens alunos não compreenderem o que leem, contudo, ele inicia sua fala afirmando que essa dificuldade não começou na atualidade, mas sim desde a década de 60 quando ele começou a lecionar. Segundo o professor, isso tornou-se mais visível a partir dos anos 70, nos quais os vestibulares deixaram de ser somente de múltipla escolha e a redação foi novamente introduzida como requisito, com o intuito de incentivar os discentes a uma melhoria, no entanto, se ainda hoje vivenciamos esse problema, percebe-se que a solução não está na modificação de sistemas de avaliação.

Geraldi enfatiza então, uma forte característica da população atual que lê e escreve a todo momento nas redes sociais, mas textos curtos. Uma vez que a memória, nos dias de hoje, deixou de ser interna ao ser humano para ser externa, presente no mundo digital, poupando os indivíduos da obrigação de memorizar as coisas, logo, não temos atualmente alunos que não compreendem as coisas, temos alunos que não lembram, pois estão lendo textos qualitativamente minúsculos nas redes, e que se tornam desse modo devido sua extrema ligação com o contexto deles. 

É possível compreender a difícil tarefa dos professores ao apresentar conteúdos que não fazem parte claramente do cotidiano dos educandos diante das tecnologias. Amaral e Barros (2017) expõem pensamentos sobre as mudanças do processo de ensino e aprendizagem nessa era e apontam que a educação vem tentando adaptar-se a essas grandes alterações tanto no âmbito teórico quanto didático. 

Para eles a tecnologia[2] exerce influência na aprendizagem por meio de três aspectos: a flexibilidade, a diversidade e os formatos; ou seja, os conteúdos devem ser apresentados de maneira flexível, usando uma diversidade de línguas, reflexões e ideologias o que proporcionará “uma interação entre o ambiente, a experiência prévia e o conhecimento do aluno” (ibid., p. 5). 

A cognição é um dos fatores elencados pelos autores como influenciadores da aprendizagem humana, e suas metamorfoses constituem o mote das tecnologias. Assim sendo, o processo cognitivo humano não sofreu alterações em sua estrutura física, mas sim no modo do raciocínio e de sua potencialização, além disso os aspectos cognitivos, nos dias que correm, sofrem uma veloz avalanche de informações. Cabe ao ser humano um esforço cognitivo maior para pinçar o que é construtivo ou não para ele, isto posto, a forma de aprendizado é modificada. 

A partir disso, entende-se a necessidade da introdução de novas mídias e modos no ambiente escolar, em favorecimento ao aprendizado de todos os alunos que estão vivendo essa era cibernética e não tem mais uma percepção linear como os jovens de gerações passadas, mas sim diversificada e com capacidades extraordinárias de assimilar, conjuntamente, múltiplos formatos de informação. Essa estratégia de ensino pode ser uma grande aliada dos docentes pois,

Sobre a atenção no espaço virtual, destaca-se que o esforço para ter atenção foi redobrado na contemporaneidade. Além disso, a atenção é flexível e, por ser abstrata, está tendencialmente voltada ao visual. A imagem é muito forte e a virtualidade transformou o texto em imagem: não só em imagens coloridas, mas a própria forma texto foi convertida em imagem pelas possibilidades do hipertexto e pelas demais ferramentas da tecnologia, que são inúmeras. (AMARAL; BARROS, 2017, p. 21)

O mesmo acontece com os jovens surdos, não primordialmente por causa das tecnologias, mas porque o mundo para eles sempre foi visual e sua aprendizagem ocorre de forma semelhante aos ouvintes, que como vimos anteriormente, estão cada vez mais destinados a “enxergar o mundo por meio dos olhos”.

Ronice Quadros e Ingrid Finger (2017), nos apresentam um arcabouço teórico que auxilia o entendimento da aquisição da linguagem do indivíduo surdo a partir de leituras de estudiosos, como Chomsky, que efetuaram suas pesquisas em pessoas ouvintes adquirentes das línguas orais e neste momento refletiremos sobre a perspectiva gerativista, escolhida por defender o fato de todos os seres humanos possuírem “um mecanismo inato responsável pela aquisição da linguagem denominado de Gramática Universal (GU)” (QUADROS; FINGER, 2017, p. 41).

Na teoria Chomskyana reconhece-se que o ser humano possui um dispositivo independente para a linguagem, ideia essa que já se tinha, mesmo que a priori, na idade antiga motivando o pensamento de desumanidade dos surdos por Aristóteles, já que não se compreendia o significado de linguagem e língua. Consequentemente, segundo Descartes, “somos humanos ou não somos, pois não existem graus de humanidade, e não há variação essencial entre os humanos, a não ser no nível da superficialidade, isto é, nos aspectos epifenomenais[3]” (QUADROS; FINGER, 2017, p.43).

Esses aspectos epifenomenais que apontam as diferenças dos surdos, dado que estão expostos a aprender a Língua Portuguesa na modalidade escrita como segunda língua, sendo de uma cultura diferente das pessoas que a têm como língua materna. O linguista americano não esmiúça sobre teoria inatista relacionada à aquisição de segunda língua, no entanto, existem no meio acadêmico estudiosos que tratam dessa perspectiva, como a linguista Lydia White, a qual aponta essa diferença ressaltando que

Os aprendizes de L2 já têm um meio de representar a linguagem, isto é, a gramática da língua materna. Deste modo, pode ser que não haja, de fato, nenhum problema de subdeterminação: se os alunos de L2 demonstrarem o tipo relevante de conhecimento inconsciente, pode ser que eles estejam utilizando a gramática L1, em vez de a própria GU […] (WHITE, 2003, p. 22, tradução nossa[4])

Portanto deve-se reconhecer que o estágio inicial da aquisição de uma segunda língua é a língua materna, ou seja, não se pode ignorar a língua materna do surdo (LIBRAS) ao se ensinar a Língua Portuguesa, já que a última depende da outra que acaba se sobrepondo à gramática universal inata.

Esse pensamento permite que se identifique a diferença em ensinar Língua portuguesa a nativos que permite ter como objetivos “a formação de usuários capazes de usar a língua de modo adequado a cada situação de interação comunicativa […]” e “ensinar teoria gramatical ou linguística (atividades de gramática teórica), formando analistas da língua […]” (TRAVAGLIA, 2002, p.136). E ensinar a Língua Portuguesa aos surdos como segunda língua, objetivando um ensino de língua como instrução e de momentânea necessidade visto que a Língua Portuguesa ainda “é a língua oficial e majoritária” (FERNANDES, 2007, p.2).

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman expôs ao mundo o seu pensamento resultante da análise do meio social e dos fatos que causaram modificações nele durante décadas, afirmando que a sociedade atual nada mais é que altamente instável. Assim, ao caracterizar os tempos nos quais se vive como líquidos, Bauman trabalha com a metáfora utilizando as características que os fluidos e os gases possuem para explicar como as organizações sociais não conseguem mais seguir a um padrão por muito tempo, já que “se decompõem e dissolvem mais rápido que o tempo que leva para moldá-las e, uma vez reorganizadas, para que se estabeleçam” (2007, p. 7). Ele, então, associa a característica peculiar carregada naturalmente pelos líquidos de não manter as suas formas diante do tempo e do espaço – tornando-se propensos a mudá-las – com a sociedade moderna: para Zygmunt (2001), não se pode ignorar o efeito que o tempo provoca no espaço e, consequentemente, naqueles que o ocupam; acreditar que a evolução do contexto não ocorre em paralelo com a evolução do povo que o preenche é entender equivocadamente que a sociedade não sofre modificações com a alteração dos ponteiros do relógio.

[…] os líquidos, diferentemente dos sólidos, não mantêm sua forma com facilidade. Os fluidos, por assim dizer, têm dimensões espaciais claras, mas neutralizam o impacto e, portanto, diminuem a significação do tempo […] os fluidos não se atêm a qualquer forma e estão constantemente prontos (e propensos) a mudá-la; assim, para eles, o que conta é o tempo, mais do que o espaço que lhes toca ocupar […] Em certo sentido, os sólidos suprimem o tempo; para os líquidos, ao contrário, o tempo é o que importa. Ao descrever os sólidos, podemos ignorar inteiramente o tempo; ao descrever os fluidos, deixar o tempo de fora seria um grave erro. Descrições de líquidos são fotos instantâneas, que precisam ser datadas. (BAUMAN, 2001, p. 8)

De um jeito interessante, Bauman relata que a sociedade está deixando de ser tratada em sua totalidade e tal qual uma estrutura, passando a ser considerada como uma rede. Fazendo uso das suas próprias palavras, a sociedade está sendo “percebida e encarada como uma matriz de conexões e desconexões aleatórias e de um volume essencialmente infinito de permutações possíveis” (2001, p. 9). É nesse contexto que o sociólogo também explicita, em sua obra denominada como “Globalização: as consequências humanas” (1999) um par de dias que servirá de base para a compreensão da sociedade influenciada pela globalização na atualidade, que de aparentemente sólida passou a ser líquida: global e local. 

Trazendo o par global/local para o ambiente escolar marcado significativamente pela globalização e posteriormente pelo advento das novas mídias digitais, entende se que os seres globais podem ser representados por aqueles que, dentro da escola, diante da sua posição privilegiada na hierarquia social, conseguem ter em mãos e seguir as atualizações das tecnologias da comunicação e da informação em tempo real – tendo o seu auxílio para as atividades escolares. Em outro ponto, os seres locais, que podem ser representados por aqueles que ocupam posição desfavorecida na hierarquia, possuem dificuldades quanto ao acompanhamento das modificações dos softwares[5] e hardwares[6] para com a atmosfera educacional, criando raízes na desatualização das informações e fixando-se no espaço.

Todos nós estamos, a contragosto, por desígnio ou à revelia, em movimento. Estamos em movimento mesmo que fisicamente estejamos imóveis: a imobilidade não é uma opção realista num mundo em permanente mudança. E, no entanto, os efeitos dessa nova condição são radicalmente desiguais.

Alguns de nós tornam-se plena e verdadeiramente “globais”; alguns se fixam na sua “localidade” – transe que não é nem agradável nem suportável num mundo em que os “globais” dão o tom e fazem as regras do jogo da vida. […]

Ser local num mundo globalizado é sinal de privação e degradação social. (BAUMAN, 1999)

Complementando as ideias discutidas anteriormente por Bauman, ao criticar a obra do autor, Barroso afirma que “a localidade, além de produzir a imobilidade, no mundo da alta velocidade imobiliza o indivíduo” (2011, p. 78) e que “a localidade no mundo global significa amarras, significa sofrer consequências danosas de um processo de exclusão do espaço criado pelo ciberespaço. Não há espaço para opiniões locais.” (Idem). Por esse ponto que podemos discutir o conceito de mídia, produto que vem se desenvolvendo desde 1940, na época da ordem industrial (DORIGONI & SILVA, 2017, p. 1) e que já passou por diversas transformações até então, que também relacionado ao ciberespaço, tem interferido diretamente na atmosfera escolar, nas maneiras de dar aula e nas formas de aprendizagem discente.

3 OS (MULTI)LETRAMENTOS E OLHARES 

Anteriormente, expôs-se o fato de que a sociedade atual está cada vez mais heterogênea, fluida e imersa a uma avalanche de mídias e modos de expressão. Essas multimídias e multimodos estão presentes no dia a dia dos discentes e não podem ser ignoradas, visto que, podem ser a chave para um processo de ensino e aprendizagem prazeroso e significativo.

Seguindo os olhares de Saviani ao declarar que “os homens são essencialmente diferentes, cada indivíduo é único, e a escola precisa se adaptar a isso, ‘socializar’ o aluno” (2009), levantamos a reflexão e questionamento de como associar a cultura surda ao mundo tecnológico fluido em que vivemos e a resposta pode ser mais simples do que a pergunta aparenta.

Consoante Rojo (2012), essa inquietação já havia sido tratada pelo Grupo de Nova Londres (GNL) desde 1996 e já apontava a necessidade de a escola apropriarse dos novos letramentos presentes na sociedade, incluindo nos currículos a variedade de culturas e as novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs).

Nesse tempo, iniciavam-se as preocupações sobre uma educação que fosse apropriada para a diversidade cultural e linguística minoritária nos países, apontada para os indígenas, imigrantes, mulheres, entre outros povos minoritários. Essa intenção de currículo plural e multiletrado, neste momento, volta-se para o povo surdo que também deve ser considerado em sua totalidade e criticidade.

A GNL salientava o fato de os atuais alunos possuírem novas e inúmeras possibilidades de acesso às informações, não sendo mais o professor detentor de todo o conhecimento, o que gera como consequência um grande surgimento de novos letramentos de formas multimodal ou multissemiótico, devido a vivenciarem eventos e práticas de letramento em diferentes modos e mídias.

No capítulo anterior, pode-se perceber que as mídias digitais oferecem um arsenal de imagens unidos a textos que nem sempre conversam entre si, mas que nos oferecem essa possibilidade multimodal.

Essa união fornece uma forte ferramenta também para a educação de surdos, os quais utilizam o mundo visual como fonte de comunicação para/com o mundo e muito se é pesquisado no contexto intra e extra acadêmico sobre a utilização de imagens para a educação de surdos em diversos conteúdos, inclusive no ensino de Língua Portuguesa como segunda língua.

Contudo, aqui, tem-se a intenção de reflexão sobre como utilizá-las de forma significativa, como utilizar um letramento visual atrelado a todos os multiletramentos ou letramentos hipermidiáticos (ROJO, 2019) que o aluno possui previamente e constrói a todo instante, cada vez mais rápido, fluido e líquido.

Rojo (2019) aponta que se pensarmos em letramento sendo além da alfabetização, isto é, além da codificação e decodificação de palavras, mas sim em um olhar amplo, crítico, interpretativo e ressignificativo, será preciso proporcionar aos alunos acesso a todos os tipos de mídias textuais para que eles possam utilizá-los em seus usos sociais.

Os multiletramentos, conceito desenvolvido pela GNL, 

aponta para dois tipos específicos e importantes de multiplicidade presentes em nossas sociedades, principalmente urbanas, na contemporaneidade: a multiplicidade cultural das populações e a multiplicidade semiótica de construção dos textos por meio dos quais ela se informa e se comunica. (ROJO, 2012, p. 13)

Considerando essa necessidade social, entende-se que homogeneizar o processo de ensino e aprendizagem não é aconselhável, inclusive na educação de surdos, pois promover metodologias amplas nem sempre será significativo para todos. Isso se dá devido ao aluno surdo não possuir apenas a cultura surda como característica a ser pontuada e tratada, é mister compreender o meio em que ele vive, por isso defende-se neste texto um “(multi)olhar” para com eles, considerando seus aspectos socioculturais e suas múltiplas práticas e eventos de letramento, pois, como nos pensamentos de Bauman, a sociedade moderna não consegue mais seguir um padrão por muito tempo. E a escola precisa adaptar-se a essas peculiaridades buscando um letramento-outro voltado para os surdos em seu olhar global de forma a 

[…] possibilitar que os alunos participem das várias práticas sociais que se utilizam da leitura e da escrita (letramentos) na vida da cidade, de maneira ética, crítica e democrática, [para] […] potencializar o diálogo multicultural, trazendo para dentro de seus muros não somente a cultura valorizada, dominante, canônica, mas também as culturas locais e populares e a cultura de massa, para torná-las vozes de um diálogo, objetos de estudo e de crítica. (ROJO, 2009, p. 11-12)

Essa formação integral do sujeito defendida por Roxane Rojo é uma busca pela consideração pedagógica dos multiletramentos prévios dos alunos e a serem desenvolvidos. Para a autora esse conceito permeia os aspectos culturais e das linguagens no âmbito comunicativo, fato que demonstra a amplitude de possibilidades a serem trabalhadas em sala de aula utilizando mídias e modos variados. 

4 LETRAMENTOS MINORITÁRIOS 

Prosseguindo nos estudos de Roxane Rojo, cuja abordagem sobre as mudanças midiáticas dos textos declara que, a partir dos anos 1990, vêm transformando o texto escrito e impresso em digital devido às mudanças das mídias, permitindo assim, que todas as linguagens (imagens estáticas e em movimento, sons e música, vídeos de performances e danças, texto escrito e oral) se misturem em um mesmo artefato, que continuamos a chamar de texto, agora adjetivado como multissemiótico ou multimodal. Esse conceito flexível, capaz de acompanhar tantas mudanças, é o conceito de letramentos. (ROJO, 2019, p. 1, grifo nosso)

Essa flexibilidade responde às agruras levantadas no capítulo anterior fazendo dos letramentos fonte de flexibilidade para a sociedade na qual se está imerso atualmente. Nesses letramentos, também se deve levar em consideração a questão política que está por trás da cultura linguística que envolve a “minorização” da Língua Brasileira de Sinais. 

Como o foco do presente estudo são os multiletramentos que envolvem o aluno surdo em seus múltiplos olhares, é importante abordar os pensamentos de Marilda Cavalcanti (1999), a qual questiona o termo “minoria” que segundo a autora representa um quantitativo menor, fato não condizente com a realidade, pois expõe que o bilinguismo impera por todo mundo, visto que existem mais línguas do que países, e aponta pesquisas de Grosjean (1982:vii) e Romaine (1995:9) nas quais declaram que aproximadamente metade da população é bilíngue e portanto o monolinguismo é que representa a minoria e deveria ser ele o caso especial. Dessa forma, tratar-se-á a diferença linguística da LIBRAS como minoritária, já que a sociedade a considera assim em apoio à hegemonia do monolinguismo utópico.

Essa “minorização” cultural atinge a educação em diversos âmbitos, inclusive na literatura, em que as obras privilegiadas imperam nos materiais escolares. Candido (1970) e Santiago (1971) já apontavam essa imparcialidade na escolha do canônico e não canônico relativo à influência direta da cultura Europeia sobre a Latinoamericana. Segundo os autores, não é possível ignorá-la, mas que é preciso deixar de ser apenas um servo produzindo cópias servis, isto é, seguir padrões da cultura dominante sem expressar suas peculiaridades e forças.

Nesse sentido vê-se a necessidade de a comunidade surda e seus (multi)olhares marcarem suas características linguísticas, culturais, sociais e políticas dentro e fora dos muros da escola, assimilarem apenas o que necessitam da cultura dominante e expor suas riquezas, pois “o leão é feito de carneiro assimilado” (SANTIAGO, 1971, p.19)

Nogueira (2019) trazendo para si os pensamentos de Skiliar (2002) e Souza (2002) aborda a concepção de letramento-outro no qual expressa esse desejo da comunidade surda em marcar sua diferença linguística tornada minoritária pela sociedade. Esse tipo de letramento é próprio que, como esmiuçado no decorrer deste trabalho, deve reconhecer as propriedades individuais do sujeito surdo em um ambiente escolar com novas práticas midiáticas e multimodais, enaltecendo os eventos políticos, sociais e linguísticos dos discentes. 

5 CONCLUSÃO

Diante de todas as discussões levantadas, um fato requisita ênfase: a sociedade está mudando cada vez mais rápido e todos os outros aspectos, tanto materiais quanto imateriais, precisam acompanhar o mesmo ritmo. Dessa maneira, o que levaria a ser diferente com o ambiente escolar? Como se pode fechar os olhos para o caráter cada vez mais líquido das circunstâncias que permeiam a sociedade, quando o que se está em jogo é tanto a formação plena do discente – conforme discute a lei 9.934/96 ao apontar que a educação deve preparar para o exercício da cidadania e para a qualificação no mercado de trabalho – quanto o amadurecimento profissional positivo do docente? É necessário que, especialmente o professor, como “imigrante digital” (PRENSKY, 2001) entenda que a permanência na metodologia tradicional de ensino, ignorando o suporte incontestável que as novas mídias proporcionam, resulta na falta de interesse na aprendizagem e em desperdício no aproveitamento dos vastos recursos disponíveis. 

Sucessos passados não aumentam necessariamente a probabilidade de vitórias futuras, muito menos as garantem, enquanto meios testados com exaustão no passado precisam ser constantemente inspecionados e revistos, pois podem se mostrar inúteis ou claramente contraproducentes com a mudança de circunstâncias. (BAUMAN, 2007, p. 9) 

Outro fator relevante a ser ressaltado é que as considerações feitas neste artigo não ignoram a realidade precária das instituições escolares brasileiras. É abalizado as condições de diferentes contextos histórico-sociais:

Com o rápido crescimento do processo de globalização, vários problemas estão afetando muitos países ao mesmo tempo. Questões como inflação, meio-ambiente, têm preocupado diferentes autoridades em todo o mundo. E também, com o assustador crescimento do conhecimento, torna-se impossível para o aluno e o professor dominarem tudo. (p. 15) 

Logo, entende-se necessário uma mutualidade de interesse no ambiente escolar entre professor-aluno-mídias, esses devem trabalhar juntos. A educação de surdos depende da inserção dos artefatos hipermidiáticos, multiculturais, multimodais e com isso multiletrados. Schwartzman corrobora com este pensamento, o qual resume o corolário dessa pesquisa:

“Não pode haver melhoria significativa no ensino em qualquer nível sem a participação ativa e a emancipação dos professores dos níveis fundamental, secundário e superior. O ensino é algo que se dá na interação cotidiana entre professor e aluno ou não se dá de forma alguma, não obstante os avanços recentes da educação através da informática, do ensino à distância e assemelhados. […]” (SCHWARTZMAN, 2005, p. 38)

Essas diversas metodologias unidas à intenção de desenvolvimento e qualidade do processo de ensino e aprendizagem são bem-vindas e auxiliam no processo de letramento dos alunos, o qual é contínuo, pois “[…] não se trata do ser e não ser da escrita e da leitura e sim do ‘estar sendo’ da escrita e da leitura. Letramentos é um gerúndio, não é uma essência.” (SKLIAR, 2002, p. 7).

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2Em consonância à perspectiva inclusiva.
3“Epifenômenos são fenômenos adicionais que se sobrepõem a outros, mas sem modificá-los, nem exercer sobre eles qualquer influência, são fatores sociais, econômicos, políticos, culturais, etc.” (QUADROS; FINGER, 2017, p.43)
4“L2 learners already have a means of representing language, namely the grammar of the mother tongue. Thus, it might be that there is, in fact, no underdetermination problem: if L2 learners demonstrate the relevant kind of unconscious knowledge, it might be the case that they are drawing on the L1 grammar, rather than on UG itself […]” (WHITE, 2003, p. 22)
5Dentro do contexto, a palavra “softwares” se relaciona aos aplicativos e programas que são lançados para o âmbito educacional visando auxiliar no processo de ensino-aprendizagem.
6Dentro do contexto, a palavra “hardwares” se relaciona aos aparelhos palpáveis que comportam as novas tecnologias da informação e comunicação, a exemplo dos novos celulares com cada vez mais funcionalidades.


1Mestranda em Educação Bilíngue (Instituto Nacional de Educação de Surdos – INES), especialista em Libras e em Gestão Escolar (Administração, Supervisão, Orientação e Inspeção), graduada em
Licenciatura em Letras – Português e Literaturas (Instituto Federal Fluminense – Campus Campos Centro), Pedagoga, licencianda em Letras Libras e técnica em Eletrônica. Área de pesquisa: aquisição da Língua Portuguesa como segunda língua, educação bilíngue, Surdez e Libras, letramento visual, ensino e tecnologia. E-mail: vianamichelle18@gmail.com