COMUNIDADE SURDA E POVO SURDO – ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7538686


Bianca Langhinrichs Cunha1


Segundo Skliar (2001), há suposição de que os Surdos formem um grupo homogêneo, cujas possíveis subdivisões devem responder à classificação médica das deficiências auditivas. Este erro conduz à crença de que toda sua problemática social, cognitiva, comunicativa e linguística depende por completo da natureza e do tipo do déficit auditivo, sem considerar as variáveis da dimensão social. Entre estas é possível citar: o tipo de experiência educativa dos sujeitos, a qualidade das interações comunicativas e sociais em que participam desde tenra idade, a natureza da representação social da Surdez de uma determinada sociedade e a língua de sinais na família, assim como  na comunidade de ouvintes em que vive a criança.

Os Surdos, através da perspectiva clínico-terapêutica são vistos como deficientes e devem se “normalizar” e se comportar e como sujeitos ouvintes; para tanto, devem aprender a língua oral através de treinos fonológicos. Essa experiência parte do princípio da negação identitária e constitui a surdez um problema em si, localizando no Surdo a obrigatoriedade da sociabilidade na sociedade essencialmente oralizada. Desta maneira, o sujeito é impedido de ser Surdo, sua língua de sinais não é reconhecida como língua natural e sua cultura não é respeitada.

Quadros (2003) destaca que o termo “ouvinte” refere-se a todos aqueles que não compartilham as experiências visuais para comunicar-se enquanto Surdos. É relevante destacar que os “ouvintes”, muitas vezes, não sabem que são chamados desta forma, pois é um termo utilizado pelos Surdos para identificá-los enquanto não Surdos. Isso acontece porque o termo “ouvinte” em oposição ao “Surdo” foi uma dicotomia criada pelos próprios Surdos, intimamente relacionada com a demarcação da diferença. Essa percepção que objetiva reabilitar o Surdo causa sérios danos identitários para o sujeito, conforme destaca Quadros (2003):

Os Surdos passam a perceber tais representações quando começam a interagir com os ouvintes. Eles sofrem e passam por crises de identidade, pois precisam entender as diferenças existentes entre ser Surdo e ser ouvinte, entre ser Surdo do ponto de vista Surdo e do ponto de vista ouvinte com as suas representações de surdez (p. 92).

Opondo-se a esta leitura sobre o Surdo, a comunidade mobilizou-se em torno dos movimentos sociais a fim de que fosse reconhecida como um grupo cultural. Este foi, sem dúvida, o que impulsionou a emergência do sujeito político Surdo e, com isso, a nova concepção de surdez, a de sócio antropológico. Nesta perspectiva, há o reconhecimento da Cultura Surda e do seu jeito próprio de ver o mundo e se comunicar com e por meio do mundo. Ao reconhecer, assumir e respeitar as diferenças existentes entre as possibilidades de comunicação entre sujeitos Surdos e ouvintes, abre-se relações interativas entre grupos culturais com línguas próprias e capazes de se desenvolver socialmente. A importância da visão sócio antropológica se dá no reconhecimento da existência de uma comunidade Surda, respeitando suas especificidades.

Eis um termo importante neste artigo, o qual é repetido algumas vezes: comunidade. Esse termo é responsável pela coesão de um grupo que luta por suas causas. Não significa que em seu interior não existam conflitos e que esses produzam rupturas de posições. 

As organizações sociais Surdas nascem de indivíduos que as constituem. É dentro dele e com ele que afirmamos que as organizações originam-se na necessidade de viver cotidianamente aquilo que lhe é mais íntimo e dado às condições históricas e sociais, ainda são marginalizadas: a Cultura Surda. Portanto, a necessidade de organizações e organização de Surdos origina-se no universo ideal de proteção entre os pares. Ela é capaz de fornecer aos Surdos a segurança da comunidade, além de auxiliar em sua formação identitária. De acordo com Bauman (2003, p. 7-8)

[…] a comunidade é um lugar cálido, um lugar confortável e aconchegante […] Lá fora, na rua, toda sorte de perigo está à espreita; temos que estar alertas quando saímos, prestar atenção com quem falamos e a quem nos fala […] Aqui, na comunidade, podemos relaxar- estamos seguros, […] Podemos confiar no que ouvimos, estamos seguros a maior parte do tempo e raramente ficamos desconcertados ou somos surpreendidos, podemos discutir – mas são discussões amigáveis, pois todos estamos tentando tornar nosso estar juntos ainda melhor e mais agradáveis do que até aqui e, embora levados pela mesma vontade de melhorar nossa vida em comum, podemos discordar de como fazê-lo. Mas nunca desejamos má sorte uns aos outros (BAUMAN, 2003, p. 7-8). 

A consciência de que a comunidade não está lamentavelmente a nosso alcance, como afirma Bauman (2003), me configura um outro cálculo: o de que no futuro o indivíduo, uma vez seguro e consciente de sua subjetividade, perceba que sua singularidade é atravessada por outras inúmeras identidades, podendo, então, se afastar de sua comunidade inicial, já que essa não lhe fornece toda a segurança necessária para sua sobrevivência na sociedade. O Surdo irá buscar, em um eterno movimento de agregação, outras comunidades que, por um dado momento, lhe garantam segurança. Mas, é preciso destacar que, com a eterna procura por segurança, estará sempre presente a identidade Surda. No corpo singular e consciente da sua posição e cultura, o Surdo sempre ampliou os espaços padronizados e normatizados pelos ouvintes. 

Na atualidade, frente à trajetória histórica e social a qual o Surdo foi inserido, os indivíduos ainda se encontram nas frentes de combate, pois ainda enfrentam muitos desafios nos espaços de sua subjetividade e, somente após o fortalecimento individual, os fronts poderão ser realizados em outros espaços. É possível observar, na contemporaneidade, a ampliação e o fortalecimento dos movimentos sociais Surdos, inegavelmente se somam ao crescimento da visibilidade algumas vitórias junto ao Poder Público e no mundo das disputas culturais. No entanto, falamos de uma categoria de diferença facilmente escamoteada pela sanção social. Mas, potencialmente, unida em suas redes de socialização pela ignorância ouvinte. 

Se é inegável que existe uma sociedade “política”, e uma sociedade “econômica”, existe também uma realidade que dispensa qualificativos, e que é a coexistência social, e que poderia ser a “forma lúdica da socialização” (MAFESSOLI, 1987, p. 114-115).

A comunidade endossa, de forma concreta, demandas, possibilidades e metas. Conquistas relacionadas à educação/ensino e às linguagens, no contexto Surdo, estão atreladas à ideia fortificada de comunidade, a qual nutre-se pela sua historicidade e luta. De acordo com as leituras de Duarte (2013, p. 1728), “[…] uma comunidade é um conjunto de pessoas que interagem coletivamente, em um território comum, e compartilha legados históricos e metas a fim de atingir seus objetivos com esforços e envolvimentos.”. É, por isso, que nesse ínterim, somam-se à comunidade Surda toda e qualquer pessoa (Surda ou ouvinte) disposta a fomentar êxitos e qualidade de vida relacional entre os sujeitos que comungam neste/desse grupo. Nesse contexto, estão inseridos o sujeito Surdo, os familiares consanguíneos, os amigos, os cônjuges, os profissionais da educação e todos os demais envolvidos no trato e relação com o Surdo. Diferente da comunidade Surda, da qual fazem parte todos envolvidos na causa surda, a Cultura Surda prevê apenas o sujeito. De acordo com PADDEN (1989, p. 5)

[…] o povo Surdo é constituído por membros com os mesmos traços culturais. O povo Surdo tem uma cultura, que é “um conjunto de comportamentos aprendidos de um grupo de pessoas que possuem sua própria língua, valores, regras de comportamento e tradições” (apud DUARTE, 2013, p. 1728). 

Tanto a identificação desta cultura própria, quanto a inserção do Surdo em sua comunidade mais ampla são fundamentais para o desenvolvimento de sua subjetividade. Parece básica esta afirmativa, mas, salvo os casos escassos de inclusão, relação e aprendizagem de Surdos, era comum até pouquíssimo tempo a negligência da diferença e o isolamento dessa população de seus próprios pares; bem como das possibilidades infinitas de crescimento. Segundo Ferraz (2009, p. 32-33):

O surdo, primeiramente, sofre com a solidão e se sente único, depois
descobre a outra identidade, coletiva, da comunidade Surda, absorve por meio do olhar para transformar a sua vida com a aceitação da língua e da cultura surda e, pode descobrir a realidade do mundo. A maioria das famílias ouvintes de crianças surdas, dentro da cultura ouvintista, não aceita levar a criança para frequentar a escola dos Surdos. Então, elas crescem sem contato com Surdos da comunidade Surda e não se desenvolvem. Essas crianças não usam as informações rotineiras, pelo limite de comunicação, ou seja, as crianças Surdas não escutam as conversas das outras pessoas e por isso não absorvem as informações que estão nessas conversas sonoras. 

As dificuldades ocasionadas por uma não vivência do Surdo em sua cultura e na sua comunidade são conhecidas por boa parte dos que trabalham com esta população. Há o esfacelamento de possibilidades, a castração do desenvolvimento e de demais negativas referentes à saúde do Surdo em todos os aspectos imaginados. Contudo, por outro lado, a “superproteção” acarreta o “não descobrir-se”, como diz Rafael Ferraz (2009) enquanto sujeito e, logicamente, o não uso de todo o cabedal simbólico já produzido na/pela cultura Surda. 

Normalmente, os membros de uma comunidade Surda são batizados, visto que recebem um sinal, que pode estar associado a alguma característica física da pessoa. Esse fato acaba por resigná-lo nominalmente e rompe, do ponto de vista da comunidade Surda, com o nome dado pela oficialidade burocrática do Estado regulado pela lógica ouvinte. Quando penso em minhas experiências ao longo das formações que realizei, lembro-me daquela em que todos os estudantes receberam um sinal no curso básico de Libras. Dalcin (2006, p. 203) destaca que o fato do nome oficial ser substituído pelo sinal ocorre “pelo fato de a língua oral não fazer parte da cultura Surda, a comunidade Surda não se refere às pessoas pelo nome próprio, mas pelo sinal próprio recebido no “batismo” quando o Surdo ingressa na comunidade”. Os ouvintes também são batizados e recebem um sinal assim que começam a participar da comunidade, mas somente algum membro pode batizar uma pessoa.

O Povo Surdo, segundo Strobel (2008), se refere aos sujeitos Surdos que não habitam o mesmo local, mas que estão ligados por uma origem, um código ético de formação visual, independentemente do grau de evolução linguística, tais como a língua de sinais, a cultura Surda e quaisquer outros laços. O povo Surdo vivencia a mesma experiência em qualquer local em que se encontre, pois estão interligados através de suas origens, já que há um elo que o une, seja de qualquer grau de instrução linguística. A importância da identificação individual através de um sinal e do contato entre eles se dá ao passo que:

[…] é ali que acontecem os encontros e a possibilidade de sustentar as novas identificações. Com a emergência do sinal próprio, marca primordial fundada na diferença (esse sinal é escolhido através de critérios pessoais e é único para cada membro da comunidade), na singularidade, o Surdo recebe a possibilidade de se enganchar na cadeia simbólica e a sua subjetividade passa a ser marcada pela qualidade de “ser Surdo”. O sinal próprio é o passaporte para a apreensão da língua de sinais e a ocupação de um lugar de inserção do simbólico, um local de pertencimento, ao contrário do que acontecia com o nome próprio, que o incluía no simbólico, mas fazia com que ocupasse um lugar de exclusão em virtude da impossibilidade de apreensão da cultura ouvinte (DALCIN, 2006, p. 206).

Já a comunidade Surda é formada tanto por pessoas ouvintes quanto por pessoas Surdas, conforme destacam os autores Surdos Padden e Humphieres (2000, p.15) Apud (STROBEL, 2006, p.30).  

Uma comunidade Surda é um grupo de pessoas que vivem num determinado local, partilham objetivos comuns dos seus membros, e que por diversos meios trabalham no sentido de alcançarem estes objetivos. Uma comunidade Surda pode incluir pessoas que são elas próprias Surdas, mas que apoiam ativamente os objetivos da comunidade e trabalham em conjunto com as pessoas Surdas para os alcançarem. (PADDEN; HUMPHRIES, 2000, p.15 Apud STROBEL, 2006 p.30). 

Como destacado pelos autores, a comunidade Surda não é formada somente por pessoas Surdas, mas também por ouvintes engajados nos movimentos, assim como fazem parte da comunidade familiares, intérpretes de libras, professores, entre outros.


1Mestra em História pela Universidade Federal do Rio Grande – FURG