UMA ANÁLISE DA INTERFACE ENTRE PSICOLOGIA E POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL DESAFIOS PARA A ATUAÇÃO PSICOSSOCIAL E POSSIBILIDADE DE INTERVENÇÃO

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7509924


Ana Paula Bessa da Silva
Rafaela França da Silva Della Santa


RESUMO

A assistência social se consolida como política pública em 1988 com a promulgação da vigente Constituição Federal Brasileira, que a inclui como política setorial constituinte do chamado tripé da Seguridade Social. Ao longo das décadas subsequentes essa política pública foi sendo implementada, estudada e organizada, tendo em 2006 incluído a Psicologia como saber necessário para a execução de suas ações, abrindo, então, um novo panorama para a atuação e a formação desse profissionais. Em paralelo, a psicologia regulamentada como profissão em 1962, vem construindo uma trajetória enquanto ciência e profissão cheia de contradições e desafios, como é o caso do seu exercício dentro das políticas sociais, que implica em grades curriculares que vão ao encontro dessas necessidades, o que nem sempre acontece. Nesse sentido, por meio de pesquisa bibliográfica, esse artigo teve como objetivo compreender a interface entre psicologia e a política de assistência social, a partir da identificação dos desafios de atuação e possibilidades de intervenção. Conclui-se que embora grande parte das psicólogas/os servidores públicos esteja atuando nessa política setorial, a formação curricular nos cursos de graduação apresentam grande déficit no que diz respeito à preparação desses profissionais para a atuação psicossocial, que fomenta e fortalece a limitação dos acadêmicos no interesse pela psicologia clínica. Além disso, identificou-se que a Psicologia Social Sócio-Histórica se apresenta como fundamentação teórica e metodológica concernente com as demandas que formam o campo de trabalho social desenvolvido pelas psicólogas/os nos serviços socioassistenciais.

Palavras-chave: Psicologia. Assistência Social. Psicologia Social Sócio-Histórica

1 INTRODUÇÃO

Os anos de 1980 foram marcados no Brasil por intenso movimento popular para redemocratização do país e construção de uma nova Constituição Federal, que fosse um instrumento jurídico capaz de dar a todos os brasileiros respaldo legal para condições objetivas de vida fundamentadas na igualdade. Para isso, com a outorga da Constituição Federal de 1988, construída a partir das reivindicações populares, estabeleceu-se no Brasil uma gama de direitos sociais e políticas públicas para efetivá-los, como foi o caso da Seguridade Social. Sendo um conjunto de ações que possa garantir os direitos relativos à saúde, previdência social e assistência social, a Seguridade Social, de acordo com Art. 194 da Constituição Federal (1988) tem como objetivo:

 I – universalidade da cobertura e do atendimento; II – uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais; III – seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços; IV – irredutibilidade do valor dos benefícios; V – eqüidade na forma de participação no custeio; VI – diversidade da base de financiamento, identificando-se, em rubricas contábeis específicas para cada área, as receitas e as despesas vinculadas a ações de saúde, previdência e assistência social, preservado o caráter contributivo da previdência social;    VII – caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados.         

No caso específico da assistência social, objeto de estudo desse artigo, identificamos na nova Carta Magna brasileira um importante divisor de águas para sua efetivação, que até aquele momento era marcada por práticas benevolentes, atreladas ao primeiro damismo, não existindo normativas e direcionamentos para além da boa ação e suprimento de necessidades básicas para sobrevivência de grande parcela da sociedade. Quando a assistência social alcança o patamar de política pública começa em âmbito nacional um processo de organização desta política setorial, o que envolve diversas legislações, estabelecimento de objetivos e finalidades que buscam romper radicalmente com o assistencialismo de outrora.

Em 1993, com a aprovação da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), os dispositivos constitucionais pertinentes são regulamentados e a Política de Assistência Social passa a ser conceituada em seu Art. 1º “A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas” (Brasil, 1993), tendo como objetivos específicos: 

I – a proteção social, que visa à garantia da vida, à redução de danos e à prevenção da incidência de riscos, especialmente:  a) a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; b) o amparo às crianças e aos adolescentes carentes c) a promoção da integração ao mercado de trabalho; d) a habilitação e reabilitação das pessoas com deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; e e) a garantia de 1 (um) salário-mínimo de benefício mensal à pessoa com deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família; II – a vigilância socioassistencial, que visa a analisar territorialmente a capacidade protetiva das famílias e nela a ocorrência de vulnerabilidades, de ameaças, de vitimizações e danos; III – a defesa de direitos, que visa a garantir o pleno acesso aos direitos no conjunto das provisões socioassistenciais.

No decorrer da década de 1990 e dos anos 2000, a referida política setorial foi se desenvolvendo e criando seus dispositivos de atuação, instrumentais balizadores e normatizações para sua execução. Em 2005, aos moldes do sistema elaborado pela política de saúde, é criado o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), que transformado na  Lei 12.435 sancionada em 2011, provê alguns princípios norteadores para a gestão das ações, como a divisão de deveres orçamentários, de gestão e de cooperação técnica entre as três instâncias de governo, bem como a responsabilidade de cada um, a participação popular, a implementação de gestão do trabalho e educação permanente, a gestão integrada de serviços e benefício, dentre outros; além do estabelecer como primeiro objetivo a proteção social visando a garantia da vida, redução de danos e prevenção da incidência de riscos. Em 2006, com a Norma Operacional Básica  de Recursos Humanos no SUAS, o Governo Federal determina quais profissões devem entregar as equipes de referência dentro dos níveis de proteção social e dos equipamentos socioassistenciais, dentre esses profissionais estão as/os  psicólogas/os.

Diante desse cenário de ampliação das políticas públicas e do campo de atuação dos formados em psicologia, surgem novas realidades, desafios e interfaces que precisam ser pesquisas, estudas e compreendidas para um alinhamento entre saber e prática que fortaleça a garantia de direitos e a efetividade das políticas públicas, bem como consolide a psicologia no seu compromisso ético e social com a população brasileira.

Importante destacar que após dezessete anos de aprovação da NOBRH-SUAS, uma recente pesquisa elaborada pelo Conselho Federal de Psicologia (2022) identificou que dentro do serviço público, o trabalho na política de assistência social é o segundo campo de maior inserção de psicólogas/os, perdendo apenas para saúde. Em contrapartida diversos estudioso como é o caso de Scarparo e Guarechi (2007),Bock (2010), Furlan (2018), Richtman e Bock (2019) dentre outros  têm há tempos estudado a discrepância entre a formação de psicólogas/os e a preparação das mesmas para a atuação dentro das políticas públicas.

Nesse sentido, esse artigo busca como objetivo compreender a interface entre psicologia as políticas públicas, desvelando desafios e possibilidade de atuação para os profissionais de psicologia dentro do âmbito da política de assistência social especificadamente, bem como oferecer alternativa a partir da Psicologia Social Sócio-Histórica para a construção de um caminho teórico e metodológico de práxis junto aos usuários dessa política. Para isso, será realizada pesquisa bibliográfica que nos forneça subsídios para a compreensão da ciência psicológica desde sua gênese e desenvolvimento até uma inclusão como saber especializado dentro da política de assistência social.              

2 PSICOLOGIA

Regulamentada como profissão em 1962 por meio da Lei n. 4119 de 27 de Agosto e sancionada pelo então Presidente da República Joao Goulart, a psicologia brasileira percorreu e ainda percorre um caminho de construção e consolidação que, não diferente das demais profissões, encontra-se atrelado ao movimento objetivo, econômico e social da sociedade capitalista.

Vilela (2012) ao se debruçar sobre esse processo de construção da psicologia brasileira, desvela a intrínseca relação entre o desenvolvimento dessa e as necessidades materiais de cada período histórico do Brasil. Iniciando no período colonial, a autora destaca que o saber psicológico, embasado na filosofia e na teologia e disseminado nos seminários, estava voltado a compreensão do funcionamento infantil, sendo difundido preceitos conservadores e religiosos, úteis para o adestramento moral dos brasileiros. Com a vinda da família real para o Brasil e o início do Império, grandes transformações sociais aconteceram no país, como a complexificações nas relações comerciais, a chegada da imprensa e a inauguração de instituições educacionais de nível superior,Vilela (2012) destaca que nesse período foram empenhados grandes  esforços para a construção de uma identidade nacional atrelada ao surgimento de uma classe média intelectualizada, formada por filhos dos grandes latifundiários que de formavam no continente europeu e voltavam para dar aulas nas recém inauguradas Universidades do Brasil. Nesse período, a psicologia europeia e estadunidense eram disseminadas nas faculdades brasileiras de medicina .

Com o advento da Primeira República, Vilela (2012) explica que a higienização era o foco do governo e a educação a principal ferramenta, tendo a psicologia fundamentado manuais de atuação para os professores, discutindo, especialmente, personalidade e desenvolvimento. Com a industrialização nos governos Vargas e Kubistscheck a psicologia se volta para o campo de orientação e seleção e psicodiagnósticos infantil clínicos (Vilela, 2012). Antunes (2012, p.57) acrescenta que “foi nesse período que a Psicologia, respondendo a demandas impostas pelo modelo desenvolvimentista de economia e de uma política de intervenção do Estado no processo produtivo, se estabelece como ciência reconhecida e se consolidam as modalidades de atuação prática que, pode-se dizer, gestaram as condições para sua consolidação como ciência e profissão”.

Em 1962 a Psicologia é regulamentada e após dois anos o Governo João Goulart sofre um golpe político e a Ditadura Militar é instaurada no Brasil, realidade que pendurou por duas décadas. Antunes (2012) pontua que durante esse período é sancionada a Lei nº 5440, que permite que cursos de nível superior sejam ofertados por instituições de ensino privadas, que na maioria das vezes estava atrelada aos objetivos mercantilistas e não aos princípios da educação de qualidade. Dentre os cursos ofertados por essas instituições encontrava-se o de psicologia, marcado, segundo Antunes (2012), pela falta de profissionais qualificados, em péssimas condições de trabalhos, sem atividades de extensão e pesquisa, configurando um cenário de grande perda de qualidade do ensino dessa ciência. Para a autora, nesse período, a atuação da/o psicóloga/o se limitava à clínica, testes psicológicos para seleção no campo do trabalho e psicodiagnóstico na educação.

 Entendendo que o movimento real da sociedade em que contradições caminham juntas em um plano de desenvolvimento não linear, mas sim, dialético, ao mesmo tempo que a psicologia se voltava, durante a Regime Militar, para os interesses hegemônico das classes dominantes do capitalismo, surgia, também, o desenvolvimento de áreas da psicologia voltada para os problemas sociais, como foi o caso da Psicologia Comunitária, Hospitalar (posteriormente saúde pública) e Jurídica. Sobre isso, Bock contribui quando afirma que:

Os psicólogos, quando entravam na saúde pública e levavam o modelo de trabalho que estavam acostumados a utilizar com a elite, encontravam dificuldades muito grandes para exercer esse trabalho, porque as técnicas e as ferramentas eram todas intelectualizadas, os recursos de linguagem sofisticados, e não serviam para a maioria da população. Isso é vivido como uma crise que se acentua nos anos 70 com o desenvolvimento do pensamento crítico na sociedade, decorrente da ampliação do movimento social que se organizou para combater a ditadura militar. É o lado contraditório da ditadura. Ela vem para nos calar, para nos impedir, mas, contraditoriamente, produz um tensionamento, uma insatisfação, e vai produzindo nas universidades e na sociedade em geral um pensamento crítico.(Bock, 2010, p.249)

A autora explica que durante o período de vigência da Ditadura Militar, os intelectuais de esquerda se refugiaram nas Universidades e as ideias de Marx, que até então estavam limitadas há um pequeno grupo de estudiosos, se espalhou nos cursos de nível superior no Brasil, especialmente nas Universidades Públicas e, também, nos cursos de Psicologia. Soma-se a isso a entrava das/os psicólogas/os, na década de 1980, na saúde pública e os estágios curriculares envolvendo o trabalho da/o psicóloga/o nas comunidades, Iniciava-se, então a construção de uma psicologia voltada para a população pobre, excluída e marginalizada, fazendo um contrapondo com a história que até o momento unia o conhecimento psicológico aos interesses da elite brasileira.

Com o fim do Regime Militar no Brasil em 1985, iniciou-se um processo de reconstrução da democracia que culminou na atual Constituição Federal, conhecida como constituição cidadã, por contemplar reivindicações de diversos movimentos sociais no que tange direitos e exercício da cidadania. Entretanto, no campo econômico, assistimos o desenvolvimento de políticas neoliberais, que se consolidaram com o Governo de Fernando Henrique Cardoso, eleito em 1994. Carinhato (2008, p.38) explica que “A ideologia neoliberal contemporânea é, fundamentalmente, um liberalismo econômico, que exalta o mercado, a concorrência e a liberdade de iniciativa privada, rejeitando veemente a intervenção estatal na economia”.

Carinhato (2008) pontua que se contrapondo ao modelo de Estado de Bem-estar Social, inaugurado no período pós Segunda-Guerra Mundial, os princípios filosóficos do neoliberalismo, que ganham espaço mundialmente após a Crise do Petróleo de 1973 e no Brasil na década de 1990, identificam no igualitarismo uma ameaça à dinâmica natural e harmoniosa de mercado que se autorregula, assim, o Estado a partir dessa lógica deve ser forte na represália às organizações de trabalhadores e fraca nos gastos sociais e intervenções econômica. Nesse sentido, as políticas sociais para efetivação dos direitos trazidos pela Constituição Federal de 1988, perder força política de efetivação, uma vez que para os neoliberais, a desigualdade é um fenômeno natural que impulsiona o desenvolvimento econômico do país (Carinhato, 2008).

Diante disso, Carinhato (2008, p.43) explica que:

a correlação de forças que favorecera a promulgação do modelo constitucional havia mudado. As propostas neoliberais – oriundas do bloco conservador que gravitava no entorno da candidatura de Collor de Mello – ganharam espaço no cenário político e econômico, de forma a minar os avanços propostos pela Constituição Cidadã. A Seguridade Social, por exemplo, foi um dos focos privilegiados dessa nova investida conservadora. Assim, ao tempo em que, no Brasil, criavam-se dispositivos político-democráticos de regulação da dinâmica capitalista, no âmbito político e econômico mundial tais mecanismos perdiam vigência e tendiam a serem substituídos, com a legitimação oferecida pela ideologia neoliberal, pela desregulação, pela flexibilização e pela privatização – elementos inerentes a mundialização (globalização) operada sob o comando do grande capital.

O autor saliente que apenas em 1995, com um governo controlado por coalização centro-direita, as políticas sociais, como instrumentos institucionais para a oferta dos mínimos necessários para a vida, voltam ao campo de debates e em 1996 o Governo Federal, em busca de ações que promovessem o desenvolvimento social, estabeleceu três eixos de atuação: “O reforço dos serviços básicos de caráter universal; – A ênfase nos programas de trabalho, emprego e renda; – O destaque a programas prioritários, voltados para o combate à pobreza, porém concebidos com a mescla entre políticas universais e políticas focalizadas”. (Carinhato, 2008 apud DRAIBE, 2003; TIEZZI, 2004).

Porém, tendo como pano de fundo as políticas econômicas neoliberais, o acirramento das mazelas e exclusões sociais marcavam aquele momento e a inserção do saber psicológico nas políticas públicas se tornava imprescindível, uma vez que se distanciando do caráter benevolente e filantrópico, a política pública tem como um dos seus pressupostos a oferta de condições objetivas de vida (educação, saúde, moradia, assistência social etc) que garantem a proteção social e, para além disso, ações estratégicas e técnicas especializadas que possam subsidiam o desenvolvimento da autonomia dos sujeitos para superação da situação de vulnerabilidade, risco, violência e violações de direitos.

Assim, Motta e Scarparo (2013) afirma que só a partir da década de 1990 que a formação acadêmica das/os psicólogas/os começa a deixar de ser fragmentada e tecnicista, focada em medidas, avaliações e atendimento clínico e passa a construir a interface entre fenômenos psicológicos e sociais. “Parece-me que não fazia parte da cultura psicológica, ou seja, a confirmação das/os psicólogas/os reconhecidos no espaço, em especial o das políticas públicas” (Motta e Scarparo, 2013, p. 232).

A partir de uma análise crítica, um importante indicativo da tardia inserção da psicologia nas políticas públicas é que apenas 42 anos após a regulamentação da profissão há um movimento nacional por meio do Conselho Federal de Psicologia de dispor um equipamento institucional especializado para a construção de saberes que ligam psicologia e políticas públicas, o CREPOP – Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas, como deliberação do V Congresso de Psicologia. Em 2006 o CREPOP entra em atividade com representação em todos os Conselhos Regionais de Psicologia.

3 POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL NO REVÉS DA BENEVOLÊNCIA

Como toda política pública nessa sociedade surge para das respostas aos riscos sociais provenientes da forma de apropriação capitalista, com a assistência social não foi diferente. Divergindo sistematicamente das ações de cunho assistencialistas e associadas fortemente às figuras das primeiras damas e suas ações benevolentes junto à população mais pobre e vulnerável, a política pública de assistência social no Brasil tem como principal marco regulatório a Constituição de 1988, que determina a assistência social, ao lado da saúde e da previdência social, como políticas constituintes do Sistema Seguridade Social brasileiro.

caput do art. 194 da CF/1988 estabelece que “a seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”. Motta (2006, p.01) explica que

“em geral, os sistemas de proteção social são implementados através de ações assistenciais para aqueles impossibilitados de prover o seu sustento por meio do trabalho, para cobertura de riscos do trabalho, nos casos de doenças, acidentes, invalidez e desemprego temporário e para manutenção da renda do trabalho, seja por velhice, morte, suspensão definitiva ou temporária da atividade laborativa”.

Assim, a partir do processo de redemocratização e outorga na atua Constituição Federal de 1988, a Política de Assistência Social começa a se desenvolver no campo brasileiro, percorrendo um caminho legal de consolidação. Em 1993 tem-se a aprovação da Lei Federal nº 8.742 – Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) que estabelece em seu Art.1º que: “A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas”. (Brasil, 1993).

Dispondo sobre a organização da Assistência Social, a LOAS determina seus três objetivos: proteção social, vigilância socioassistêncial e a defesa dos direitos, ressaltando a necessidade de ação conjunta com as demais políticas para o enfrentamento da pobreza e garantia dos mínimos sociais, além de estabelecer diretrizes que consolidam a descentralização, a participação social e a primazia de responsabilidade do Estado na oferta dos serviços socioassistenciais. Além disso, em seu Art.6º, prevê a criação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), o qual, seguindo modelo do Sistema Único de Saúde (SUS) “é uma rede que tem como base a localidade e articula serviços públicos e privados, voltados a colaborar com a inclusão social, os quais se ocupam do atendimento, do encaminhamento e do acompanhamento das famílias e indivíduos em situação vulnerável de destituição (Botorelli, 2008, p.38).

Após a IV Conferência Nacional de Assistência Social acontecida em dezembro de 2003, o Conselho Nacional de Assistência Social aprova a Política Nacional de Assistência Social(PNAS), que traz as diretrizes para a efetivação dessa política: primazia do Estado da gerência dos serviços socioassistenciais; descentralização e responsabilidades específicas para  cada esfera de governo (municipal, estadual e federal), inclusive financeira; territorialização; parceria entre Estado e sociedade civil; e controle social.

Em 2006, por meio da Resolução nº 269, o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) aprova a Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do Sistema Único de Assistência Social (NOB-RH/SUAS), que busca consolidar o direito socioassistencial por meio da qualificação dos serviços ofertados, orientando as três esferas de governo, os trabalhadores e as entidades privadas que também ofertam serviços socioassistenciais. Com a NOB-RH/SUAS, princípios éticos e políticos são delimitados no que tange a atuação dos profissionais responsáveis pela proteção social ensejada pela PNAS. Consoante a isso, a referida norma também faz menção à equipe de referência, constituída de servidores qualificados para a organização e oferta dos serviços.

De acordo com a NOB-RH/SUAS o profissional de psicologia é obrigatório em todos os níveis de proteção social determinados pela PNAS e ratificados em 2009 pela Tipificação dos Serviços Socioassistencias, conforme ilustrado abaixo: I – Serviços de Proteção Social Básica: a) Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família – PAIF; b) Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos; c) Serviço de Proteção Social Básica no domicílio para pessoas com deficiência e idosas; II – Serviços de Proteção Social Especial de Média Complexidade: a) Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos – PAEFI; b) Serviço Especializado em Abordagem Social; c) Serviço de Proteção Social a Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida – LA, e de Prestação de Serviços à Comunidade – PSC; d) Serviço de Proteção Social Especial para Pessoas com Deficiência, Idosos(as) e suas Famílias; e) Serviço Especializado para Pessoas em Situação de Rua; III – Serviços de Proteção Social Especial de Alta Complexidade: a) Serviço de Acolhimento Institucional, nas seguintes modalidades: – abrigo institucional; – Casa-Lar; – Casa de Passagem; – Residência Inclusiva. b) Serviço de Acolhimento em República; c) Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora; d) Serviço de Proteção em Situações de Calamidades Públicas e de Emergências.

Concomitantemente com outros saberes, em especial, os profissionais de serviço social, a atuação das/os psicólogas/os dentro da política de assistência social não foge de um dos princípios que regem todas as políticas sociais, que é o provimento de condições materiais para a subsistência, associado à um trabalho social técnico e intervencionista de desenvolvimento da autonomia do sujeito e o fortalecimento da sua subjetividade para superação das situações de vulnerabilidade, risco e violações.

Em 2011, com a aprovação da Lei Federal nº 12.435 que altera a Lei nº 8.742, é sacramentado o Sistema Único de Assistência Social, como um modelo de gestão que busca, a partir de uma gestão descentralizada e participativa fomentar a articulação entre as esferas municipais, estaduais e federal.

Todo esse percurso marcado por avanços legislativos e de qualificação do trabalho ofertado, se justifica na entrega aos usuários de uma política pública que chancela proteção social no Brasil, compreendendo esse conceito como uma gama de garantias para que cidadãos em condições de risco e vulnerabilidade possam exercer sua cidadania tendo acesso aos seus direitos constitucionais.

Por óbvio que todo esse movimento de construção, consolidação e perpetuação de uma  política pública necessita de uma base material para sua efetivação, uma financiamento que providencie o necessário para a execução dos serviços, sejam equipamentos, equipes técnicas, equipes administrativas, materiais permanentes, para ações, aquisições de benefícios eventuais etc,. Nos últimos anos esse financiamento público tem sofrido grande impacto negativo de desmantelamento promovidos pelo último governo.

Seguindo a lógica neoliberal aqui já mencionada, Silva et al (2021) afirmam, a partir dos resultados de pesquisa realizada recentemente sobre o período de 2017 a 2021, que desde o golpe que levou ao impeachment da presidenta Dilma e Michel Temer assumiu a Presidência, em 2016, e a posterior aprovação da PEC 95/2016, conhecida como PEC do teto, há no governo federal uma gestão que permanentemente esvazia o orçamento social, sob o pretexto de ajustes fiscais justificados ideologicamente, que levam nossos recursos públicos a trabalharem em prol da proteção de instituições financeiras e bancos em detrimento da população mais vulnerável. Sobre isso, Teixeira e Carneiro (2019, p.316) corroboram ao afirmarem que:

De fato, as reformas políticas propostas pelo Governo Temer, de nítida orientação neoliberal, que enfatiza o equilíbrio das contas públicas, com destaque para a EC 95, criam uma perspectiva nebulosa para a sustentabilidade e até mesmo para a continuidade do modelo de ofertas de primazia estatal e descentralizadas da política de assistência social.

Teixeira e Carneiro (2019) salientam que com o Governo Temer intrinsecamente ligado aos interesses do capital e a aprovação da Emenda Constitucional 95/2016, estabeleceu-se que por 20 anos (de 2016 a 2036)  o orçamento brasileiro destinado ao financiamento de políticas públicas devem respeitar um teto de gastos que corresponda ao valor gasto no ano anterior corrigido pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), o que corresponde a um imenso retrocesso.

Estudo realizado pela Secretaria Nacional do Tesouro Nacional demonstra que os gastos públicos com a política de assistência social passou de 0.5 do PIB brasileiro em 2002 para 1.5 em 2015, com a EC 95/2016 o aporte de recursos federais para o financiamento dessa política reduziu em 54%, sendo que em 2019 o percentual de 1.5 do PIB caiu para 0.70% (Teixeira e Carneiro, 2019). Ainda segundo os autores, a previsão é que em 2026 os recursos federais sob a EC 95/2016 sejam capaz de financiar apenas o custeio dos benefícios não contributivos, em especial o Benefício de Prestação Continuada, destinado às pessoas idosas em situação de baixa renda, o que significa menor investimento na ampliação e qualificação dos serviços socioassistenciais.

Teixeira e Carneiro (2019) identificam a situação apresentada como uma encruzilhada, uma vez que os municípios, executadores dos serviços socioassistencias, se vêm diante de uma Constituição Federal e legislações garantidoras de direitos sociais e, do outro, uma queda homérica de repasses orçamentários da União, pois, mesmo que o financiamento da política de assistência social envolva recursos orçamentários da três esferas de governo de forma descentralizada, os municípios sem o aporte federal não conseguem dar continuidade e ampliação a oferta dos serviços (Teixeira e Carneiro, 2019).

Diante o exposto tem-se que além de sua gênese contraditória, a Política de Assistência Social apresenta avanços e recuos que desembocam em uma realidade complexa que subsidia sua efetivação.

4 INTERFACES: DESAFIOS E POSSIBILIDADES QUE PERMEIAM A RELAÇÃO ENTRE PSICOLOGIA E A POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL

O estabelecimento da assistência social como constituinte do tripé da seguridade social, a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, deu a esta o patamar de política pública, rompendo legalmente com práticas assistencialistas e fortalecendo a rede de proteção social brasileira destinada à população pobre, que surge como contradição do sistema capitalista e sua intrínseca produção de desigualdade e mazelas sociais.

O percurso histórico de desenvolvimento dessa política pública conta com a organização dos serviços socioassitenciais e das seguranças afiançada em cada nível proteção social criado, construindo um sistema organizado de gestão e financiamento marcado pela descentralização e participação popular. A importância de profissionais capacitados e qualificados para a efetivação do trabalho social e a implementação dos serviços marca esse processo, tendo como atores fundamentais os trabalhadores de psicologia.

Estabelecidos como essenciais à efetivação da política de assistência social pela NOBSUAS-RH, os profissionais de psicologia estão em todas as unidades de funcionamento dessa política setorial, compartilhando o espaço especialmente com assistentes sociais e advogados. Essa interdisciplinaridade tem como finalidade a compreensão do usuário da política de uma maneira integral e multifacetada, que para além da demanda social apresentada, precisa ser compreendido e trabalhado como um ser dotado de subjetividade e capacidade de autonomia e transformação, sendo que um dos caminhos para o alcance desse resultado é o acesso aos seus direitos fundamentais concomitantes às intervenções psicológicas necessárias para o desenvolvimento de novas formas de agir e se colocar no mundo. Tamanhas são as possibilidade de atuação, entretanto, há um impasse entre esse vislumbre e a realidade dos formandos em psicologia que chegam ao serviço público carentes de uma  formação acadêmica que abranja grades curriculares que realmente direcionem os cursos para as demandas reais dos usuários das políticas públicas brasileiras.

Além da gênese da psicologia no Brasil estar atrelada, como vimos anteriormente, aos interesses da elite capitalista, ainda hoje os cursos de formação de psicólogas/os apresentam déficit quando se fala em preparar teórica e metodologicamente o estudante para a prática da Psicologia Social ou Comunitária, que é aquela atrelada ao trabalho psicossocial dentro das políticas públicas.

Furlan (2018) aponta que em pesquisa realizada pela Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPPEP)40% dos profissionais de psicologia estão atuando nas políticas públicas, identificando que:

Em que pese o tema da relação entre Psicologia Social e Políticas Públicas tenha adentrado  de  modo  tímido  as  disciplinas  obrigatórias  nos  currículos  dos  cursos  de  Psicologia,  e,  quando aparece, geralmente seja apenas nos estágios de último ano  no momento da formação em que o  estudante  precisa  cumprir  suas  atividades  práticas  de  estágios  obrigatórios , uma  parcela significativa  de  profissionais  da  psicologia  tem  se  inserido  no  trabalho  social  no  campo  das políticas públicas, como apontamos (Furlan,2018, p.94)

O autor destaca que essa timidez na incorporação da Psicologia Social e Políticas Públicas nos cursos de formação é ainda maior quanto às questões relacionadas à altas complexidades das políticas públicas de assistência social e saúde, ao passo que a ênfase clínica continua sendo a mais preponderante.

 Scarparo e Guarechi (2007, p. 3) salientam que “parece que o imaginário que fundamenta grande parte da formação e dos projetos profissionais, se refere à lógica do profissional autônomo, bem sucedido, respaldado por amplo cadastro de ‘pacientes particulares”. Nesse sentido, não é só a organização da grande curricular que insiste em uma psicologia individualizada, mas os próprios alunos não saem desse estereótipo da psicologia um a um, formando-se, assim, um círculo vicioso, fato ratificado por pesquisa realizada por Bock (2010, p. 06), em que a autora chega à conclusão de que os próprios cursistas dos cursos de psicologia identificam-se com a Psicologia a partir de um viés de trabalho individualizado e clínico.

As pesquisas têm mostrado que, quando se pergunta aos profissionais por que foram cursar Psicologia, os quatro tipos de resposta não se referem a uma atividade social. Referem-se a um prazer com o conhecimento, um prazer em conhecer o outro, em conhecer-se melhor e em ajudar o outro. Em nosso campo, é difícil encontrarmos a clareza de que a Psicologia é um trabalho na e para a sociedade; as respostas indicam um projeto mais voltado para si mesmo ou para os sujeitos individualizados.

Em pesquisa mais recente, Richtman e Bock (2019)  contataram-se que entre uma amostra de 145 estudantes de psicologia, 35,6% têm pretensão profissional voltada para consultório clínico, seguido por Instituições de Saúde 21,5% e  apenas 10,7% tem interesse em trabalhar na Política de Assistência Social.

Tal realidade desemboca em profissionais da psicologia que adentram o serviço público para a oferta de políticas públicas com demasiado estranhamento (Furlan, 2018) sobre as práticas psicossociais, seja pelos interesse dos acadêmicos estarem limitados à atuação crítica e receberem durante a formação pouco acesso às demais possibilidades de trabalho, seja pela existência de um movimento de despolitização da psicologia, pois “há ainda uma psicologia  que  se   submete   a   concepções   tradicionais   e ultrapassadas,  que  não  se  atualiza  e  que  atua  com  base  em  modelos  já  analisados,  criticados  e superados há décadas” (Furlan, 2018, p.95).

Somados a isso tivemos anos de desmantelamento das políticas públicas, em especial a devido a aprovação da EC 95/2016, que na assistência social “o impacto potencial do novo regime fiscal poderá chegar, de acordo com a referida análise, a uma redução de 54% do aporte de recursos para a oferta de serviços, programas, projetos e benefícios setoriais, se considerados os padrões atuais, correspondendo a uma perda potencial de R$ 868 bilhões até 2036” (Teixeira e Carneiro, 2019). Noutras palavras, se essa emenda constitucional não for revogada ou ao menos revista no novo Governo que assume em 2023, os impactos na oferta dos serviços socioassistenciais continuarão se perpetuando, o que em modos pragmáticos significa menos condições de trabalho e profissionais qualificados adequados ao número de demanda.

Diante desse cenário apresentado temos alguns grandes desafios para que a psicologia se consolide como um saber científico interventivo dentro da política de assistência social: a gênese da psicologia brasileira atrelada aos interesses elitistas somada a uma escassa grande curricular dos cursos de formação no que tange a Psicologia Social e a psicologia voltada para às políticas públicas, que fomentam o interesse limitado dos cursistas voltado, preponderantemente, para a atuação clínica; além disso, temos nos últimos anos um imenso retrocesso nas políticas sociais, que vêm sendo sucateadas por seus parcos recursos oriundos da lógica neoliberal, ao passo que as populações vulneráveis que necessitam dos serviços socioassistenciais cresce, representando um momento de pouco investimento em adequação quantitativa de servidores e capacitação e qualificação dos mesmos para o exercício da função.

Nessa peleja, percebe-se o quanto é desafiador, ainda hoje, o estabelecimento de cursos de psicologia que, para além da aparência – estágios obrigatórios (Furlan, 2018) –, realmente se impliquem na construção de grades curriculares que balizem uma formação acadêmica que contemple as demandas sociais que atravessam a realidade brasileira e desembocam no trabalho social desenvolvido pelas/os psicólogas/os nas políticas públicas. Com isso, fazer o contraponto com as psicologias individualizadas, que dominam o ideário e o interesse dos acadêmicos, para que assim, tendo acesso às demais possibilidades de atuação, possam escolher com mais consciência suas trajetórias profissionais. Além disso, não podemos nos furtar da responsabilidade ético-político de profissionais que, regidos por um Código de Ética, primam pelo acesso e garantia de direitos, de escolhermos representantes políticos que compreendam a importância das políticas públicas para a sobrevivência e manutenção da vida de milhões de brasileiros e brasileiras. Governos alinhados à lógico neoliberal de cortes orçamentários em gastos sociais, trabalham para a precarização das políticas públicas e contribuem para o aumento demasiado das desigualdades e mazelas sociais inerentes ao sistema de produção capitalista.

No que tange as possibilidades que ligam a psicologia à política de assistência social, destaca-se nesse estudo as contribuições da Psicologia Social respaldada na Psicologia Soviética de Vigotski, Luria e Leontiev, que no Brasil tem como fundadora e maior expoente Silvia Tatiane Maurer Lane que, contrapondo-se à Psicologia Social Norte-Americana, desenvolveu a Psicologia Social Sócio-histórica (Bock et al, 2007), buscando consolidar uma nova psicologia no Brasil marcada pelo compromisso social da ciência e profissão. “Sílvia Lane, seus alunos e colaboradores se voltaram, dessa forma, para a tarefa de construir uma alternativa teórica que estivesse consoante com os problemas enfrentados no cotidiano da realidade brasileira” (Bock et al, 2007, p.50).

Lane (2002, p.10) defende que o objeto da Psicologia Social é “ a relação essencial entre o indivíduo e a sociedade, esta entendida historicamente, desde como seus membros se organizam para garantir sua sobrevivência até seus costumes, valores e instituições necessários para a continuidade da sociedade” e acrescenta mais adiante “ a grande preocupação atual da Psicologia Social é conhecer como o homem se insere neste processo histórico, não apenas em como ele é determinado, mas principalmente, como ele se torna agenta da história, ou seja, como ele pode transformar a sociedade em que vive (Lane, 2002, p. 10).

Nota-se que o objetivo de Silva Lane foi a construção desta nova psicologia que não se limita ao entendimento do homem, seu funcionamento e suas singularidades, mas que enfoca os sujeitos enquanto capazes de promover transformação social um vez que são entendidos como seres ativos e sociais. Assim, inauguração uma nova concepção de homem, tendo Lane se fundamentado no método elaborado por Karl Marx e Frederich Engels, o materialismo histórico-dialético além de ter “acesso à obra dos soviéticos Luria, Leontiev e Vigotski e, a partir deles, desenvolveu o estudo das categorias do psiquismo: atividade, consciência e identidade. Articulou seus estudos sobre linguagem e processo grupal à compreensão das categorias como processos constituídos por mediações. Trabalhou também, nessa perspectiva, com a teoria das representações sociais de Moscovici”. (Bock et al., 2007, p.52).

De maneira sintetizada, Bock (1997) sinaliza para cinco principais pontos trazidos pela psicologia sócio- histórica para a compreensão do homem a partir de sua concepção histórica e dialética: 1. Os homens não são possuidores de uma essência humana. A ideia de natureza humana é inverossímil, pois mascara e mistifica as determinações sociais as quais os homens e sua constituição então postos; 2 As condições biológicas adquiridas ao longo da filo-gênese não são suficientes para explicar a nossa humanidade, porém são as bases para o nosso desenvolvimento sócio-histórico; 3. Não somos seres simplesmente passivos sobre a realidade. O homem é um ser ativo capaz de transformar sua realidade a partir de suas necessidades; 4. É a partir do contato com a cultura transmitida por outros homens que os indivíduos desenvolvem sua consciência e sua capacidade de intervir sobre o mundo; 5. O objetivo da Psicologia deve ser o homem contextualizado e concreto, inserido na totalidade social na qual está imerso.

Desse modo, a partir das contribuições trazidas pela Psicologia Sócio-Histórica para o entendimento do homem enquanto ser concreto e social, podemos afirma que somos síntese de toda a materialidade a qual estamos postos – momento histórico, político, cultural, condições objetiva de vida e de sobrevivência – a partir do acesso aos signos que são mediados dentro dos grupos aos quais fazemos parte desde o primeiro momento do nosso nascimento, desenvolvendo modos de pensar, agir e sentir em um movimento dialético em que sujeito e a sociedade são inseparáveis e se constituem mutuamente.

A partir dessa perspectiva, o trabalho psicossocial do profissional de psicologia na política de assistência social, pode ser direcionada por uma compreensão de homem que possibilita a instrumentalização desse para a transformação social, indo ao encontro dos objetivos de uma política pública que, fazendo a necessária ruptura com o assistencialismo, tem como um de seus objetivos o desenvolvimento de subjetividades autônomas e conscientes dos homens sobre a própria vida, como forma de proporcionar o atravessamento das situações de vulnerabilidade, risco e violações de direitos, sem perder de vista que a desigualdade e as mazelas sociais que assolam os usuários dessa política, são consequências diretas do modo de apropriação capitalista, que traz em si suas contradições e possibilidades de superação.

5 CONCLUSÃO

Com a outorga da Constituição Federal de 1988, que contemplou reivindicações de diversos setores da sociedade e dos movimentos sociais, os direitos se ampliam e a forma de garanti-los também. A assistência social que até aquele momento era marcada pelas ações assistencialista e clientelistas atrelada ao primeiro damismo, assume o estágio de política pública, formando, juntamente com a política de saúde e previdência social a Seguridade Social, tripé responsável pela proteção social da população brasileira. Importar salientar que esse movimento nasce das contradições do próprio modo de produção capitalista, que arraigado na exploração do homem pelo homem, produz riqueza e também miséria, desigualdade e exclusão, sendo necessárias políticas públicas que possam garantir os mínimos necessários para a vida da população mais vulnerável a esse processo e que promovam ações interventivas especializadas no sentido de instrumentalizar subjetivas para a superação das condições de violações de direitos vividas.

Ao longo dos anos 1990 e 2000 a política de assistência social vai se desenvolvendo e se organizando, estabelecendo em 2006, na Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do Sistema Único de Assistência Social – NOB-RH/SUAS, a obrigatoriedade do profissional de psicologia nos equipamentos de oferta dos serviços socioassistencias.

As grades curriculares dos cursos de psicologia, que ainda hoje se mostram escassas em disciplinas que discutam teórica e metodologicamente a relação entre psicologia e políticas públicas, e o interesse dos acadêmicos, predominantemente, voltado para a psicologia clínica, não sabendo aqui qual precede qual, configuram desafios para a consolidação de um trabalho psicossocial de qualidade e referência. Além disso, os constantes ataques orçamentários vividos pela política de assistência social dificultam o engajamento dos gestores para a ampliação e  qualificação do quadro de profissionais técnicos de referência, realidade que nos chama para o compromisso ético da profissão e da democracia, levando em consideração que fazemos parte de uma ciência e profissão implicada na garantia dos direitos humanos.

Nesse sentido, apresentamos a Psicologia Social Sócio-Histórica, como fundamento para a práxis do profissional de psicologia na política de assistência social, uma vez que a mesma propõe a ruptura com a visão tradicional da psicologia brasileira, buscando, a partir de uma nova concepção de homem, compreendê-lo a como síntese de um movimento dialético entre sujeito e sociedade, como um ser social e concreto formado a partir do acesso às mediações que lhes são transmitidas dentro da cultura a qual faz parte e, assim, consequentemente, se forjando como um ser ativo capaz transformar a sociedade em que vive.

Assim, esse artigo teve como objetivo identificar alguns desafios e possibilidades que marcam a relação e formam a interface entre psicologia e a política de assistência social.

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