REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7487175
Elbiane Leal Novaes de Carvalho Lima1
Wellington Vieira Mendes2
Introdução
O estágio curricular é um relevante ato para o processo de formação inicial de acadêmicos que têm a oportunidade de aprofundar conhecimentos teóricos, integrando-os à prática, por meio de experiências vivenciadas in loco, que perpassam pela etapa observação e, posteriormente, pela etapa da “reflexão na ação” profissão, o que significa a possibilidade de desenvolver habilidades comportamentais e práticas.
É importante destacar que o PPC de Licenciatura em Química do IF Sertão PE Campus Floresta argumenta, com base em (Pimenta, Lima, 2011), que “o estágio possibilita que sejam trabalhados aspectos indispensáveis à construção da identidade, dos saberes e das posturas específicos ao exercício profissional docente”.
Nessa perspectiva, sabendo que a escrita do gênero relatório de estágio mobiliza escolhas léxico gramaticais capazes de atribuir significados às experiências que são registradas com base no contexto de situação, possibilitando, portanto, identificar percepções, comportamentos, definições e fazeres que revelem a construção de uma identidade docente, empreendemos nossa investigação partindo de inquietações que conduzem a uma pesquisa de caráter interdisciplinar, fundamentada em categorias linguísticas que nos darão pistas para, também, calibrar nossa lente por meio de categorias empíricas, advindas dos pressupostos da didática escolar.
Dessa forma, as reflexões feitas em torno do nosso sistema-de-interesse3, fizeram-nos chegar à seguinte pergunta norteadora da pesquisa: o que as escolhas léxico gramaticais presentes na escrita dos relatórios de estágio do curso de Licenciatura em Química do IF Sertão PE Campus Floresta revelam a respeito dos saberes da docência e identidade de professores em fase de formação inicial?
Para alcançar as respostas, apresentamos como objetivo geral desta pesquisa: investigar, nos relatórios de estágio, as escolhas léxico gramaticais, orientadas pelo Sistema de Transitividade, para representar as experiências dos professores em fase de formação inicial.
Ressaltamos que a literatura nos apresenta diversos trabalhos realizados com base na LSF, a exemplo de Souza (2006) – Transitividade e Construção de sentidos; Santos (2007) – A função do verbo ser no discurso; Ghio e Fernández (2008) – Linguística sistémico funcional: aplicaciones a la lengua española; Mendes (2010) – As circunstâncias e a construção de sentidos no blog; Fuzer e Cabral (2010) – Introdução à gramática sistêmico-funcional em língua portuguesa; Furtado da Cunha e Souza (2011) – Transitividade e seus contextos de uso; Figueiredo-Gomes (2012) – A transitividade de orações: o escopo do modalizador epistêmico contrastivo é que no português moderno; Heberle (2018) – Apontamentos sobre linguística sistêmico-funcional e transitividade com exemplos de livros de literatura infantil.
Como podemos perceber, dos trabalhos empreendidos na perspectiva da LSF, com foco na transitividade, nenhum se volta para a observação da escrita de discentes que cursam áreas exatas, como Licenciatura em Química. De um modo geral, é perceptível que pouco se investe na compreensão de produção de gêneros acadêmicos que são escritos fora da área de linguagens, o que representa uma lacuna.
Como orientação teórica que embasa e fundamenta essa pesquisa, a fim de validar cada objetivo deste trabalho, focamos na corrente funcionalista, ancorada na teoria do linguista inglês Michael A. K. Halliday, denominada de Linguística Sistêmico-Funcional (LSF), em que o foco de interesse está no uso da língua como ferramenta de interação entre os falantes.
Em relação ao delineamento metodológico, esta pesquisa se insere no paradigma quali-quantitativo, tendo em vista que buscamos produzir resultados analisados não apenas através de procedimentos estatísticos ou de quantificação, mas também por meio de interpretação qualitativa com base na Linguística Sistêmico-Funcional. Assim, inicialmente, as informações geradas num corpus formado por 19 relatórios foram armazenadas e tratadas com o auxílio do programa computacional WordSmith Tools 8.0 (BEBER-SARDINHA, 2009), servindo de base para interpretações.
Do ponto de vista organizacional, este artigo está estruturado em mais duas seções, sendo a primeira acerca dos conceitos básicos da LSF e a segunda sobre a interpretação dos dados. Por fim, elencamos nas considerações finais alguns pontos de reflexão frente às descobertas oportunizadas por este trabalho.
A LSF: origem e conceitos básicos
A LSF tem sua origem ainda no século XX, quando o antropólogo Bronislaw Malinowski reconhece que a língua é uma das mais importantes manifestações da cultura de um povo, introduzindo a teoria sobre a relação entre língua e uso em contexto, o que, posteriormente, influencia o linguista John Rupert Firth a iniciar estudos de sistematização desse princípio na linguagem. O linguista britânico M. A. K. Halliday, atuando como discípulo de Firth, passa a desenvolver as ideias de seu mestre e, desde então, a LSF tem sido disseminada em várias partes do mundo e utilizada por pesquisadores nas mais diversas áreas (FUZER; CABRAL, 2014).
Como observamos, o diálogo profícuo entre antropologia e linguística fez surgir a LSF, cuja base teórica considera a linguagem um recurso para fazer e trocar significados, nos mais diversos contextos de uso, de modo que o indivíduo possa desempenhar papéis sociais (FUZER; CABRAL, 2014 p. 21), valorizando a intima relação que existe entre linguagem e práticas sociais.
Neste contexto, corroborando a utilidade da LSF para a interpretação de textos, Gouveia (2009, p. 14) reforça o nosso entendimento ao destacar
[…] Para além de ser uma teoria de descrição gramatical, razão pela qual adquire muitas vezes a designação mais restrita de Gramática Sistêmico-Funcional (GSF), ela fornece também instrumentos de descrição, uma técnica e uma metalinguagem que são úteis para análise de textos.
Para tanto, objetivando estudar a língua em uso, nos moldes da LSF, interesse primordial deste artigo, torna-se importante retomar algumas reflexões sobre as dimensões da linguagem, seus princípios e ordens que a constituem, trazendo conceitos fundamentais para o entendimento deste trabalho, a partir do arcabouço teórico orientado por Halliday e Matthiessen (2014) e seguidores, conforme expomos no Quadro 1:
Quadro 1 – As dimensões da linguagem, seus princípios e ordens de organização
Dimensões | Princípios | Ordens | |
1 | Estrutura | Rank | Oração~grupo/fase |
2 | Sistema | Delicadeza | Gramatica ~léxico[léxico-gramática] |
3 | Estratificação | Realização | Semântica~lexico-gramática~fonologia~fonética |
4 | Instanciação | Instanciação | Potencial~sub-potencial/tipo de instância ~instância |
5 | Metafunção | Metafunção | Ideacional[lógica~experêncial]~interpessoal~textual |
Fonte: traduzido de Halliday e Matthiessen (2014, p. 20)
O Quadro 1 reforça a nossa percepção de que a linguagem incorpora dimensões, princípios e ordens que não são observados em outros sistemas. Para Halliday e Matthiessen (2014), vários sistemas como a dança, a música e outras expressões de arte compartilham certos recursos da linguagem, mas nenhum deles incorpora todos, de forma complexa. Apenas a linguagem humana, seja na modalidade falada ou escrita, é capaz de incorporar uma pluralidade de significados. A utilização pelos interlocutores, com propósitos situados, em diferentes ambientes sociais, faz a linguagem ser um sistema sociossemiótico.
1.1 Metafunção experiencial: a construção de sentidos no nível lexicogrammatical
Na LSF, contamos com uma teoria elaborada para representar a experiência humana, em que os sentidos vão se construindo por meio das orações, dos complexos oracionais e dos textos, através de recursos da léxico-gramática que são acessados pelos usuários da língua em cada metafunção: ideacional, interpessoal e textual, pois, de acordo com Halliday e Matthiessen (2014, p. 211), a linguagem “é uma construção multi funcional que consiste em três linhas metafuncionais de significados”.
Dessa forma, destacamos que, para quem atua na compreensão de textos a partir dos pressupostos da LSF, em termos de interpretação dos significados dos textos, o centro da descrição se situa não no texto, mas na oração, conforme Gouveia (2009, p.20) destaca, “de facto, enquanto instanciação do sistema, o texto é a nossa unidade de descrição, mas é a oração que é a unidade principal de processamento da gramática, já que tudo se processa à volta da oração: acima de, abaixo de, para além de”, conforme podemos observar na figura (05) que diz respeito à escala de níveis:
Figura – 05 – Escala de Níveis
Fonte: Adaptado de Gouveia (2009, p.21)
Com efeito, as metafunções são responsáveis pela construção de sentidos nos textos, cuja unidade de interpretação é a oração, considerando que, de acordo com Halliday e Matthiessen (2014, p.237), “cada um dos componentes [Ideacional, Interpessoal e Textual] faz sua contribuição para a construção total da Oração”. E o que identificamos como uma Oração é o produto do conjunto dos processos semântico-funcionais desses três tipos”. O foco desta pesquisa recai na metafunção ideacional, por isso direcionamos nossa fala ao Sistema de Transitividade.
1.2 O Sistema de Transitividade
A Transitividade é a categoria léxico gramatical relacionada à metafunção ideacional da linguagem que “constrói a experiência do mundo” (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2014, p. 220), referindo-se a um sistema gramatical da Oração – Sistema de Transitividade – que constrói um mundo de experiências através de vários tipos gerenciáveis de Processos que se desdobram no tempo, podendo conter Circunstâncias que, embora não estejam envolvidas diretamente na cláusula, estão atentas a elas. As figuras classificadas na gramática da oração são formadas por Participante + Processo + Circunstância (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2014, p. 213).
1.3 Processos e circunstâncias
Considerando que os diferentes tipos de processos fazem contribuições distintas para a interpretação da experiência nos textos (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2014, p. 219) e considerando que cada processo possui particularidades que implicam a relação de certas entidades, com características peculiares, em função do tipo de processo ao qual se liga. Já os participantes fazem parte de cada processo, sem, no entanto, indicar que alguns operam com o status de principal, por estar envolvido diretamente com os processos.
Assim, com o intuito de refletir na prática as abordagens teóricas apontadas, apresentaremos uma amostra do corpus da pesquisa em que os processos e seus participantes e circunstâncias são interpretados em fases distintas do estágio.
AS FASES DO ESTÁGIO – DA OBSERVAÇÃO À REGÊNCIA: as escolhas léxico gramaticais e a representação de uma identidade docente em fase de formação inicial
Esta seção tem como finalidade apresentar a compreensão das representações dos saberes da docência construídos pelos discentes-mestres de Licenciatura em Química, do IF Sertão PE Campus Floresta, durante a vivência do Estágio Curricular Supervisionado, e que são possíveis de identificar através das escolhas léxico gramaticais contidas nos relatórios de estágio que compõem nosso corpus. Para tanto, faremos um relato descritivo e interpretativo dos dados, buscando refletir (etapa observação) na ação (etapa regência), sobre a ação e sobre a reflexão na ação por uma identidade necessária de professor (PIMENTA, 2012).
As duas etapas – observação e regência – estão estruturadas por meio da mesma linha de raciocínio:
1) Breve contextualização e caracterização da etapa de estágio selecionada para compreensão;
2) Interpretação do Sistema de Transitividade, com orações distribuídas por eixo temático: experiência, conhecimento e saberes pedagógicos, identificando em cada etapa/eixo as implicações das escolhas a partir dos componentes da oração Processos, Participantes e Circunstâncias.
2.1 A etapa da observação: o Tempo da reflexão sobre a ação
De acordo com o Dicionário Online de Português – Dicio – Observação é “o ato ou efeito de observar, é exame, análise, nota, reflexão”. Da palavra observação deriva-se o verbo transitivo direto observar, que, por sua vez, realiza semanticamente um Processo do tipo mental e, em alguns contextos, comportamental, pois são fronteiriços. Esses Processos indicam, portanto, uma percepção que influencia no comportamento dos Participantes que experimentam e comportam-se, sendo responsáveis por mudar a realidade. O Experienciador ou o Comportante são tipicamente humanos que se comportam, sentem, pensam, percebem, desejam.
De acordo com o PPC do curso de Licenciatura Plena em Química, na fase de observação “o aluno pode perceber situações de ensino aprendizagem, assim como conhecer o professor supervisor e os alunos da sala de aula no campo de estágio”. Imaginamos que ao perceber situações do cotidiano escolar, o discente-mestre inicia um processo de reflexão da ação de outrem, do fazer pedagógico, que o ajudará a adotar uma postura frente aos desafios que irá encarar na profissão docente.
No relatório R15RS (2016), que é parte do corpus desta pesquisa, o autor aponta que ao realizar o estágio, “o futuro professor começa a enxergar melhor a educação”, procurando entender a realidade da escola”[…] e “com isso faz uma nova leitura do ambiente […] para intervir positivamente”. Esses argumentos destacam bem o percurso progressivo que o licenciando faz durante o estágio, evoluindo da etapa observação à regência.
Nessa amostra, temos um Processo mental perceptivo (começa a enxergar) que é seguido de outros Processos mentais do tipo cognitivo, como em (procurando entender) e que representam a fase da observação. Na sequência, deparamos com o verbo de ação (faz) que, no contexto, está realizando um Processo mental (fazer uma nova leitura significa refletir) e finaliza indicando um Processo material (intervir) que conduz a realização de ações próprias da fase regência.
Como vimos, O Participante Experienciador, representado pelo professor, tem na etapa da observação a oportunidade de refletir sobre vários aspectos que envolvem a docência, além de contar com um espaço para ressignificar conceitos e ideias sobre a realidade escolar, tendo em vista que, para alguns alunos, as experiências construídas do que seja ser professor estão pautadas por estereótipos por eles criados. Aliás, como perceberemos nas interpretações, o Processo Relacional é bastante usado na escrita dos relatórios, especialmente na etapa observação, quando os alunos caracterizam, identificam, atribuem sentidos ao que vivenciam.
Desse modo, a etapa da observação representa o tempo da reflexão, importante período em que o futuro professor é colocado na posição passiva de observador. Em relação ao tempo cronológico utilizado pelos alunos para a vivência dessa fase, há queixas postas nos relatórios, tendo em vista que consideram pouco tempo para esse fim. Infelizmente, não conseguimos mensurar bem a duração desse tempo, pois nem o PPC do curso nem o Regulamento de Estágio deixa claro qual carga horária a etapa de observação deve conter. A única informação que o PPC nos passa em relação à carga horária é que há um total de 400 horas para a vivência do estágio como um todo.
2.1.1 Representação dos saberes da docência no Sistema de Transitividade – Etapa Observação
Experiência
De acordo com Pimenta (2012), o primeiro passo para mediar o processo de construção da identidade dos futuros professores ocorre pela mobilização dos saberes da experiência. Ciente de que identidade não é um dado imutável nem externo que não possa se adquirir, pois se constitui como processo de construção do sujeito historicamente situado, a experiência é, com efeito, muito significativa para a formação de uma identidade. Assim, nos excertos 01 e 02 ilustramos com amostras que significam sentidos construídos léxico gramaticalmente pelos discentes-mestres que revelam crenças, posturas, conceitos sobre a experiência docente na fase da observação.
(01)
“Durante as observações, foi percebido que as turmas eram compostas por um grande quantitativo de alunos, dificultando assim o trabalho das professoras. Essa situação não é inédita na rede pública, pois geralmente as turmas têm um número elevado de alunos”. R16PA(2017) |
O discente-mestre R16PA(2017) constrói seus significados com base em seus valores, seu modo de situar-se no mundo, conforme observamos no excerto 58. Faz escolhas por Processos Mentais e Relacionais para externar experiências que ocorrem no mundo da consciência. Ao enunciar suas percepções, caracterizando as turmas observadas e apontando para o grande quantitativo de alunos, o discente-mestre revela que possui experiências anteriores, seja na condição de aluno ou de professor, que o habilita a julgar que, na rede pública (circunstância de lugar), o problema de salas lotadas não é novo. Na primeira oração, o estagiário assume a função de Participante Experienciador, complementando o processo pelo que é percebido através do Participante Fenômeno por meio de uma oração projetada “que as turmas eram compostas por um grande quantitativo de alunos”. O trecho é finalizado por um Processo Relacional Possessivo (têm) para estabelecer uma relação de posse entre o Participante Possuidor (as turmas) e o Possuído (um número elevado de alunos), reforçando a percepção de que as turmas são “geralmente” (circunstância de modo – grau) lotadas.
(02)
“A instituição possui um espaço físico bastante agradável com todas as salas de aula climatizadas, o que de certa forma traz melhores resultados quanto à aprendizagem”. R15RS(2016) |
No excerto (02), deparamo-nos com um Processo Relacional Possessivo, em que o Participante Possuidor (a instituição) estabelece uma relação de posse com o Possuído (um espaço físico bastante agradável), para argumentar com base na sua experiência que aulas ministradas em salas climatizadas oferecem melhores resultados na aprendizagem. Esse também é um dado que se adquire através da experiência da vida escolar como aluno ou como professor. Naturalmente, para afirmar que salas climatizadas geram mais aprendizagem, o discente-mestre deve ter vivenciado a experiência de forma prática. Desse modo, algumas questões estruturais, como o problema apontado no excerto (58) sobre salas lotadas, independem de o professor alterar a realidade, já que se trata de questões estruturais. No entanto, o professor pode apresentar uma postura ativa na busca de soluções inteligentes para o seu ambiente de trabalho.
2.2 A etapa da regência: o tempo da reflexão na ação
De acordo com o Dicionário Online de Português – Dicio – a palavra regência é um substantivo feminino que significa ação ou efeito de reger. Trata-se de uma palavra plurissignificativa que, no contexto do estágio, o verbo reger representa conduzir a aula. Do ponto de vista do Sistema de transitividade, reger realiza um Processo material, uma ação, do fazer ou acontecer, referindo-se, portanto, às experiências do mundo externo.
Assim, depois de passar pela etapa de observação, que se refere às experiências do mundo da consciência, na etapa regência a postura do aluno deixa de ser passiva, passando a ser ativa em relação ao processo ensino-aprendizagem, ou seja, na fase de regência, o licenciando deixa de ser expectador do que acontece na sala de aula, tendo em vista que essa é a oportunidade que o estagiário tem para ser protagonista, sujeito agente na condução da turma, tratando-a ao seu modo, conforme o seu planejamento. É, de fato, um período que colabora muito para o amadurecimento do licenciando do ponto de vista das experiências e do conhecimento pedagógicos essenciais à profissão docente.
Na escrita do gênero relatório de estágio, isso se confirma, pois os relatos desenvolvidos pelos estagiários para se referir à etapa da regência são basicamente construídos por Processos materiais, por ser um espaço para relatar as ações realizadas pelos discentes-mestres. Embora a predominância seja para Processos materiais, também encontramos outros tipos de Processos, como os mentais, relacionais, verbais, todos eles colaborando para indicar uma identidade docente.
Com base na fala construída em R15RS(2016) que diz: “na regência o licenciando assume a responsabilidade pela direção de atividades em sala de aula” […] “isso implica em uma postura adequada”, percebemos que o “agir” ocorre por meio de reflexões, de comportamentos. Há uma mistura de reflexão na ação totalmente favorável à construção de comportamentos propícios para o amadurecimento das práticas pedagógicas.
Desse modo, embora haja uma recorrência de Processos materiais nos relatórios de estágio, na etapa regência, percebemos que essa fase não se trata apenas de registrar ações, fazeres, acontecimentos, uma vez que transcende a essa finalidade, pois outros Processos entram em cena para representar sentimentos, percepções, reflexões, identificações, comportamentos. Isso é o que as orações têm demonstrado, conforme trataremos na próxima seção.
3.2.2 Representação dos saberes da docência no Sistema de Transitividade – Etapa Regência
Experiência
(03)
“Comecei a lecionar a partir do dia 22 de março a 28 de maio. Nesse momento elaborei o projeto para vivenciar no decorrer do estágio. A primeira aula foi fazer a revisão do conteúdo trabalhado na aula passada, Número Atômico, onde utilizei o quadro branco e o livro didático; auxiliei os alunos na resolução de exercícios do livro”. R1KS(2013) |
Como esperado para o contexto de situação, na etapa do estágio direcionada à regência, em que o discente-mestre/Participante Ator do processo verbal passa a reger a sala de aula, encontramos a presença de orações em que se desdobram Processos Materiais do tipo “fazer e acontecer”. Em “Comecei a lecionar” temos uma oração intransitiva acompanhada de uma Circunstância de Extensão que informa a duração da ação, há, portanto, o envolvimento de um participante apenas, o Ator.
Nas outras duas passagens, as construções são transitivas com o envolvimento do Ator e da Meta. Em “foi fazer” o ator – registra sua participação através de um Processo Material do tipo criativo, considerando que a Meta, representada pelo projeto, é um participante que é trazido à existência no desenvolvimento do processo. A vivência de projetos traz possibilidades de desenvolvimento de experiência, conhecimento e saberes pedagógicos, tornando-se necessário para a construção da identidade docente.
Na oração “auxiliei” observamos outro Processo Material, sendo do tipo transformativo, na categoria elaboração/operação, tendo em vista que a Meta – alunos – é afetada por uma mudança ou alteração em algum aspecto.
(04)
“Os conteúdos foram vivenciados, em boa parte, tradicionalmente, utilizando-se quase sempre do quadro e do livro didático, sendo reforçados através de práticas de exercícios. Em outros momentos foram ministradas aulas com o auxílio de data show, notebook, práticas e recursos da internet”. R2JS(2013) |
Neste excerto, destacamos dois Processos Materiais realizando orações distintas, organizadas em estruturas passivas, com sujeitos não explícitos, mas, pelo contexto de situação o Participante Ator é identificado como sendo o próprio estagiário enquanto que “os conteúdos” e “aula” cumprem respectivamente a função do participante Meta, tendo em vista que são afetados pela ação verbal.
Percebemos, portanto, o posicionamento do estagiário/participante ao reconhecer que suas práticas são pautadas por um fazer tradicional, “em boa parte”, conforme é destacado por ele, pois apenas “em outros momentos” são introduzidos recursos que podem favorecer uma aula menos tradicional.
Isso denota que o discente-mestre tem consciência da necessidade de planejar e ministrar aulas mais atrativas, ao promover, ainda que de forma implícita, uma autorreflexão. Podemos compreender também que as experiências da vida escolar que ele carrega enquanto aluno o faz entender o que representa uma aula significativa ou mesmo através dos estereótipos construídos inconscientemente em torno de aulas bem sucedidas, aspectos que colaboram para a construção de uma identidade docente.
Considerações Finais
Os resultados iniciais mostram que as escolhas feitas pelos estagiários dão pistas do que eles sentem, pensam e de como agem ao cumprirem os propósitos comunicativos do gênero relatório de estágio, constatação feita através da interpretação de Processos, Participantes e Circunstâncias presentes nas orações que compõem o corpus da pesquisa. A partir dessa evidência, entendemos que […] “usar a língua significa fazer escolhas na envolvência de outras escolhas”(HALLIDAY, 1978, p.52). Percebemos também, que, de um modo geral, as categorias empíricas experiência, conhecimento e saberes pedagógicos são representadas e reconhecidas pelos estagiários em seus textos como sendo importantes para a formação, visto que enaltecem muito em suas falas a necessidade de haver professores atuando em sua área, com sólida formação acadêmica, o que, para eles, representa poder e status para instituição de ensino, considerando que, no período analisado, não tínhamos na região do Sertão do Submédio do São Francisco, território onde o Instituto Federal está inserido, professores com formação em Química; destacam a importância de experimentar diversas situações no cotidiano escolar e, dão pistas de ações que se vinculam aos saberes pedagógicos, muito voltados às práticas.
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3Adotamos o termo sistema-de-interesse em substituição ao tradicional objeto de pesquisa, por compreender ser mais adequado à abordagem sistêmica, conforme propõem Mendes (2016; 2018) e Silva (2016)
1Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Letras – PPGL da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte – UERN, Campus Paus dos Ferros.
2Doutor em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN.