REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7390440
Antonio da Silva Junior1
RESUMO
Neste artigo é abordada a questão da justiça distributiva global e o cosmopolitismo, em confronto com o dever de assistência proposto por John Rawls na obra “O Direito dos Povos”. Nesta obra Rawls propõe cinco tipos de sociedades nacionais, dentre estas, as sociedades sob o ônus de condições desfavoráveis. Tais sociedades oneradas, são o destino do dever de assistência, o qual, não se resume a uma mera distribuição de fundos, bem como tem um alvo e um tempo determinado. O objetivo do dever de assistência é a cultura política e a criação de instituições básicas justas no seio das sociedades oneradas. Na visão de Rawls, os grandes problemas como fome e pobreza são fruto de questões domésticas, a serem corrigidas com o dever de assistência. Neste ponto surge o confronto com a visão da justiça distributiva global e o cosmopolitismo, de Beitz e Pogge, que se contrapõe ao mero dever de assistência proposto por Rawls. Assim, após a apresentação da proposta de Rawls em “O Direito dos Povos” e o esclarecimento sobre o dever de assistência, são tratados o princípio da justiça distributiva global e o cosmopolitismo, concluindo-se pela manutenção do dever de assistência.
Palavras-chave: justiça distributiva, cosmopolistimo, dever de assistência.
1.INTRODUÇÃO
Na obra “O Direito dos Povos”, em que John Rawls se propõe a estender a concepção liberal de justiça para o âmbito global, esse propôs cinco tipos de sociedades nacionais. Dentre estas, estão as sociedades sob o ônus de condições desfavoráveis, ou, simplesmente, sociedades oneradas, as quais tem condições históricas, sociais e econômicas que dificultam ou até impossibilitam atingir um regime bem ordenado, liberal ou decente.
Para possibilitar o ingresso das sociedades oneradas na Sociedade dos Povos, Rawls formulou o princípio do dever de assistência. Tal dever incide sobre os povos bem ordenados, que devem auxiliar até que as sociedades sob o ônus de condições desfavoráveis tenham instituições básicas justas e cultura política. Rawls enfatiza que o dever de assistência tem um alvo e um ponto de interrupção.
A questão controversa surge quando Rawls sustenta que o dever de assistência não se resume a mera distribuição de fundos e, portanto, não se trata de um princípio de justiça distributiva. Igualmente, acende a controvérsia a posição de Rawls de que as injustiças, a fome e a pobreza, são atribuíveis a questões puramente domésticas, internas dos estados.
Nesse ponto, surge a questão da aplicação de um princípio de justiça distributiva global, sustentado por Charles Beitz e Thomas Pogge, em confronto com o mero dever de assistência proposto por Rawls. Também, emerge uma visão cosmopolita, a qual sustenta a existência de um complexo de relações internacionais e interdependência econômica entre os estados, fato esse que também seria responsável pelas injustiças, fome e pobreza.
Desta forma, o artigo se propõe a tratar do princípio de justiça distributiva global e o cosmopolitismo, em confronto com o dever de assistência proposto por Rawls. Serão analisadas, principalmente, as ideias de Charles Beitz e Thomas Pogge.
Para tanto, inicialmente será apresentada a proposta rawlsiana em “O Direito dos Povos”, de estender a concepção liberal de justiça para o âmbito global. Na sequência, será estudado o dever de assistência e as sociedades oneradas. Mais adiante o princípio de justiça distributiva global e, por fim, o cosmopolitismo e o dever de assistência.
2. A PROPOSTA RAWLSIANA EM O DIREITO DOS POVOS
Em 1971 John Rawls publicou a obra “Uma Teoria da Justiça”, em que apresenta a ideia de justiça como equidade. Nesta obra constrói importantes conceitos como a “posição original” e o “véu de ignorância”, imprescindíveis para a compreensão das obras do autor, tanto que estes conceitos continuaram a nortear as obras posteriores, como o “Liberalismo Político”, publicado em 1993 e “O Direito dos Povos”, publicado em 1999.
Na obra “Uma teoria da Justiça”, John Rawls propõe a “posição original”, em que os princípios de justiça são estabelecidos por pessoas livres e racionais, em uma condição inicial de igualdade. Seria uma espécie de estado de natureza. Em tal “posição original” as pessoas desconheceriam sua condição pessoal, ou seja, não saberiam qual seu status, sua classe social, suas habilidades, sua inteligência, força, etc. Desta forma, na posição original o sujeito estaria coberto por um “véu de ignorância”, para então deliberar sobre seus direitos e deveres.
Esta concepção de justiça foi pensada para o âmbito interno de cada sociedade, porém, com a obra “O Direito dos Povos”, Rawls propõe uma concepção global de justiça, ou seja, estender a justiça como equidade para o plano exterior. Nas palavras do autor: “com “Direito dos Povos” quero referir-me a uma concepção política particular de direito e justiça, que se aplica aos princípios e normas do Direito e da prática internacionais” (2019, pág.3). Mais adiante afirma o autor que “O Direito dos Povos espera dizer como seria possível uma Sociedade mundial de povos liberais” (2019, pág.7) Assim, a ideia é estender a justiça como equidade para o âmbito internacional, tendo por fundamento o contrato social.
No direito dos povos, Rawls propõe cinco tipo de sociedades nacionais: os povos liberais razoáveis; os povos decentes2; estados fora da lei; sociedades sob o ônus de condições desfavoráveis e, por fim, os absolutismos benevolentes3. Para desenvolver a ideia Rawls apresenta o que chamou de teoria ideal e teoria não ideal. Nas palavras do autor:
A descrição da extensão de uma ideia geral de contrato social a uma Sociedade dos Povos irá desdobrar-se em três partes, abrangendo o que chamei de teoria ideal e teoria não ideal. A primeira parte da teoria ideal, na parte I, diz respeito à extensão da ideia geral de contrato social à sociedade dos povos democráticos liberais. A segunda parte da teoria ideal, na parte II, diz respeito à extensão da mesma ideia à sociedade dos povos decentes, que, embora não sejam sociedades democráticas liberais, tem certas características que os tornam aceitáveis como membros bem situados numa Sociedade dos Povos razoável. A parte de teoria ideal da extensão da ideia de contrato social é completada mostrando que ambos os tipos de sociedades, as liberais e as decentes, concordariam com o mesmo Direito dos Povos”. (2019, pág. 5).
Observe-se que está presente uma clara divisão nesta primeira parte da teoria ideal, em que se verifica a sociedade dos povos democráticos liberais e a sociedade dos povos decentes. Segundo Rawls um objetivo da parte II é mostrar que podem existir povos não liberais (mas decentes) que aceitem e sigam o Direito dos Povos.
Na parte III, Rawls apresenta a teoria não ideal, tratando dos estados fora da lei, ou seja, estados que não concordam com um Direito dos Povos razoável. Também, na teoria não ideal, são tratados os estados em condições desfavoráveis, que são aqueles que tem condições históricas, sociais e econômicas que dificultam ou até impossibilitam atingir um regime bem ordenado, liberal ou decente. A ideia é expor como povos liberais e povos decentes vão se relacionar com estes estados, tanto para se defender deles quanto para ajudá-los.
Como informado acima, Rawls propõe cinco tipo de sociedades nacionais e, segundo o autor, “o objetivo do Direito dos Povos seria plenamente alcançado quando todas as sociedades tivessem conseguido estabelecer um regime liberal ou decente, por mais improvável que possa ser” (2019, pág.6).
Na sequência, Rawls adverte que o Direito dos Povos não é um tratado ou texto didático sobre Direito Internacional e sim, um trabalho que trata de ser ou não possível aquilo que chamou de utopia realista. Nesse sentido, afirma o autor que
A ideia dessa sociedade é realisticamente utópica no sentido de que retrata um mundo social alcançável que combina o direito político e a justiça para todos os povos liberais e decentes em uma Sociedade dos Povos. Uma teoria da Justiça e o Liberalismo Político tentam dizer como seria possível uma sociedade liberal. O Direito dos Povos espera dizer como seria possível uma Sociedade mundial de povos liberais. Naturalmente, muitos diriam que não seria possível e que os elementos utópicos poderiam ser um sério defeito na cultura política de uma sociedade.” (2019, pág.7)
Neste ponto Rawls afirma que a ideia de uma utopia realista é essencial, e que os grandes males da história humana são fruto de injustiça política, bem como sustenta que tão logo essas formas de injustiça política sejam eliminadas, esses males acabarão por desaparecer. Aí reside a utopia realista.
Adiante, finalizando a introdução, Rawls afirma que a ideia é seguir o exemplo de Kant conforme exposto na obra À Paz Perpétua, tendo por base o contrato social. O contrato neste ponto pertence à concepção política liberal de regime constitucionalmente democrático. Aqui povos liberais fariam acordo com outros povos liberais e, posteriormente, com povos não liberais, mas decentes. Segundo o autor “cada um desses acordos é compreendido como hipotético e não histórico, e neles entram povos iguais simetricamente situados, na posição original, por trás de um adequado véu de ignorância.” (2019, pág.12). Observe-se que, nesse ponto, o autor fala expressamente da “posição original” e do “véu de ignorância”, conceito estes apresentados inicialmente em Uma teoria da Justiça.
Na sequência, Rawls passa a tratar da primeira parte da teoria ideal, trazendo as condições históricas para o Direito dos Povos como utopia realista. Segundo o autor, no âmbito interno essas condições históricas incluem o fato do pluralismo razoável, enquanto na sociedade dos povos “é a diversidade entre povos razoáveis, com suas diferentes culturas e tradições de pensamento, tanto religiosas como não religiosas”. Para Rawls “um Direito dos povos (razoável) deve ser aceitável por povos razoáveis que são assim diversos, deve ser imparcial entre eles e eficaz na formação dos esquemas maiores de sua cooperação”. (2019, pág.16)
Adiante, o autor aponta as condições necessárias para que o Direito dos Povos, fundado numa concepção liberal de justiça, seja uma utopia realista. Neste ponto, escrevendo sobre Rawls, é precisa a lição de Lima:
Rawls propõe algumas condições para que o Direito dos Povos – fundado numa concepção liberal de justiça11 – seja uma utopia realista: (1) que essa concepção pense nos homens como são, mas nas leis como estabelecidas numa “sociedade razoavelmente justa e bem-ordenada”12; (2) que seja apoiada em direitos e liberdades constitucionais que assegure “[…] a todos os cidadãos os bens primários necessários para capacitá-los a fazer uso inteligente e eficaz das suas liberdades”13; (3) que a concepção política de justiça seja subsistente por si mesma, portanto não dependente de doutrinas abrangentes; (4) que os cidadãos adquiram um sentido adequado de justiça e virtudes políticas pertinentes à cooperação “[…] tais como um senso de imparcialidade e tolerância, e disposição para soluções de compromisso com os outros”14; (5) que o Direito dos Povos seja fundamentado “[…] numa concepção política razoável de direito e justiça, afirmada por um consenso sobreposto de doutrinas abrangentes”15. Veja que não se trata de eliminar as doutrinas abrangentes, pois do contrário se estaria cerceando a liberdade de expressão. Trata-se, portanto, de respeitar as diferentes cosmovisões, já que cada grupo na Sociedade dos Povos tem o direito de exprimir razoavelmente suas posturas e tendências; razoavelmente porque não podem ir contra os direitos básicos do ser humano como, por exemplo, a liberdade. Nesse sentido, uma doutrina moral, filosófica ou religiosa que defende a escravidão não é razoável; (6) que a concepção política que fundamenta o Direito dos Povos seja embasada no princípio da tolerância (2013, pág.14)
Na sequência, Rawls aponta as condições paralelas para uma Sociedade dos Povos razoavelmente justa, quais sejam: 1. A sociedade razoavelmente justa dos povos bem ordenados é realista da mesma maneira que uma sociedade interna liberal ou decente, ou seja, os povos são vistos como são e o Direito dos Povos como poderia ser; 2. Um direito dos povos razoavelmente justo é utópico no sentido de que usa ideias, princípios e conceitos (morais) políticos para especificar os arranjos políticos e sociais razoavelmente certos e justos para a Sociedade dos Povos; 3. Todos os elementos essenciais para uma concepção política de justiça devem estar contidos na categoria do político; 4. A lealdade ao Direito dos Povos não precisa ser igualmente forte em todos os povos, mas, idealmente falando, deve ser suficiente; 5. A unidade de uma Sociedade dos Povos razoável não exige unidade religiosa; 6. O argumento a favor da tolerância é válido na Sociedade dos Povos, pois o efeito de estender uma concepção liberal de justiça à Sociedade dos Povos – que contém mais doutrinas religiosas e outras doutrinas abrangentes que qualquer povo individual – torna inevitável que daí advenha a tolerância. (2019, pág. 22-26).
Presentes estas condições e aprendendo os povos a cooperarem política, econômica e socialmente, não mais haverá razão para a guerra, pois não haveria motivo para tanto.
Por fim, Rawls se propõe a esclarecer por que adotou a expressão “povos” e não Estados. Segundo o autor, os povos democráticos liberais e os povos decentes são os atores na Sociedade dos Povos. Assim, no Direito dos Povos, os atores não são os estados. Não se trata de estabelecer regras de direito internacional e eleger os estados como protagonistas. Ainda, o autor esclarece que os Estados têm soberania, enquanto os povos não. O fato de os Estados terem soberania, lhes dá o direito de guerrear. Neste ponto, é importante observar que as características dos Estados em muito diferem dos povos, pois os Estados na busca de seus interesses, por vezes se lançam à guerra.
Adiante, antevendo o questionamento de até que ponto os Estados diferem dos povos, Rawls apresenta a seguinte resposta:
Até que ponto os Estados diferem dos povos fundamenta-se em até que ponto a racionalidade, a preocupação com o poder e os interesses básicos do Estado são preenchidos. Se a racionalidade exclui o razoável (isto é, se um Estado é movido pelos objetivos que tem e ignora o critério da reciprocidade no trato com outras sociedades), se a preocupação de um Estado com o poder é predominante e se os interesses incluem coisas como converter outras sociedades à religião do Estado, aumentar seu império e conquistar território, ganhar prestígio e glória dinástica, imperial ou nacional, e aumentar sua força econômica relativa – então, a diferença entre Estados e povo é enorme. Interesses como esses tendem a colocar um Estado em confronto com outros Estados e povos e a ameaçar a sua segurança, sejam eles expansionistas ou não. (2019, pág.38)
Assim, os povos liberais limitam os seus interesses básicos como exigido pelo razoável, não sendo esta mesma situação verificada no que tange aos interesses dos Estados.
Desta forma, a proposta rawlsiana em “O Direito dos Povos” consiste em estender a concepção liberal de justiça para o âmbito global, com uma Sociedade dos Povos regida pelo Direito dos Povos, com um consenso mínimo para que doutrinas diferentes possam coexistir.
3. SOCIEDADES ONERADAS E O DEVER DE ASSISTÊNCIA EM RAWLS
Conforme exposto no tópico anterior, John Rawls propõe cinco tipos de sociedades nacionais, destas, torna-se relevante para o presente trabalho as chamadas sociedades sob o ônus de condições desfavoráveis, ou sociedades oneradas. Tais sociedades carecem de tradições políticas, culturais, capital humano, conhecimento técnico e até de recursos materiais e tecnológicos para que sejam bem ordenadas (2019, pág.139).
Quando apresentou os princípios do Direito dos Povos, Rawls, no oitavo princípio, trouxe o dever de assistência, nos seguintes termos: “Os povos têm o dever de assistir a outros povos vivendo sob condições desfavoráveis que os impeçam de ter um regime político e social justo ou decente” (2019, pág.48).
Assim, Rawls afirma que os povos bem ordenados têm um dever de assistir as sociedades oneradas, esclarecendo que tal dever não se resume a seguir um princípio de justiça distributiva. Neste sentido, sustenta que os níveis de riqueza podem variar, e que ajustar esses níveis não é o objetivo do dever de assistência. O autor esclarece que nem todas as sociedades oneradas são pobres (2019, pág. 139)
Adiante, Rawls apresenta as diretrizes para o dever de assistência, sendo a primeira, a de que uma sociedade bem ordenada não precisa ser uma sociedade rica (2019, pág.140). Aqui, retomando ideias expostas na obra Uma teoria da justiça, o autor desenvolve o princípio de poupança justa, ou seja, estabelecer instituições básicas justas para uma sociedade democrática. Na sequência, afirma que a poupança pode parar assim que instituições básicas justas (ou decentes) tenham sido estabelecidas. Finalizando, sustenta que a grande riqueza não é necessária para estabelecer instituições justas (ou decentes). Desta forma, os níveis de riqueza entre povos bem ordenados, não são os mesmos (2019, pág.141).
Neste ponto, aparece afirmação de grande importância feita por Rawls, de que “o objetivo é concretizar e preservar instituições justas (ou decentes), e não simplesmente aumentar, muito menos maximizar indefinidamente, o nível médio de riqueza” (2019, pág.141)
Na segunda diretriz, o autor sustenta que para executar o dever de assistência é preciso perceber a cultura política da sociedade sob o ônus de condições desfavoráveis, alertando que não é fácil mudar a cultura política e social de uma sociedade onerada (2019, pág.142). Afirma que os elementos cruciais que fazem a diferença são a cultura política, as virtudes políticas e a sociedade cívica do país, a probidade e indústria de seus membros (2019, pág.142).
Assim, países pobres em recursos, podem se sair muito bem, enquanto outros com melhores recursos materiais, podem estar onerados por conta de sua cultura política e social. Mais uma vez o autor alerta que não se trata de meramente dispensar recursos, pois isso não será suficiente para retificar as injustiças políticas e sociais básicas.
Segundo Rawls, deve haver uma ênfase nos direitos humanos, pois assim, irá existir uma pressão na direção de governos eficientes em uma Sociedade dos Povos bem ordenada. Observa o autor que não existe receita fácil para mudar a cultura política de uma sociedade onerada, sendo que simplesmente atirar fundos é indesejável.
Seguindo no dever de assistência, a terceira diretriz é ajudar as sociedades oneradas a serem capazes de gerir os seus próprios negócios de um modo razoável e racional (2019, pág.146). Aqui reside o “alvo” da assistência. Segundo o autor, “as sociedades bem ordenadas que oferecem assistência não devem agir de maneira paternalista” (2019, pág.146), pois o objetivo final da assistência é a liberdade e a igualdade para as sociedades oneradas.
Em outro ponto, Rawls trata do dever de assistência e a afinidade entre os povos, ou seja, se a assistência pressupõe um grau de afinidade, isto é, um senso de coesão social e proximidade. Conforme o autor, é tarefa do estadista lutar contra a potencial ausência de afinidade entre os diferentes povos (2019, pág.147).
Adiante, o autor trata da justiça distributiva entre os povos e a igualdade entre os povos. Afirma que “uma razão para reduzir as desigualdades em uma sociedade nacional é aliviar o sofrimento e as dificuldades dos pobres” (2019, pág.149). Igualmente, sustenta que na Sociedade dos Povos, quando o dever de assistência é satisfeito, com a implantação de um governo liberal ou decente, não há razão para diminuir a distância entre a riqueza dos diferentes povos (2019, pág.150).
Finalmente, reafirma Rawls que “o papel do dever de assistência é ajudar sociedades oneradas a tornarem-se membros plenos da Sociedade dos Povos” (2019, pág.155), sendo um princípio de transição. Sustenta que
na sociedade dos povos o dever de assistência é válido até que todas as sociedades tenham alcançado instituições básicas liberais ou decentes justas. Tanto o dever de poupança real como o dever de assistência são definidos por um alvo além do qual não são mais exigíveis (2019, pág.155).
Desta forma, o dever de assistência busca elevar os pobres do mundo até que sejam livres e iguais e tem, também, um limite, um ponto de interrupção, qual seja, o dever de assistência deixa de existir assim que o alvo é atingido (2019, pág.156).
4. JUSTIÇA DISTRIBUTIVA GLOBAL E O DEVER DE ASSISTÊNCIA
Como visto no ponto precedente, Rawls tem por princípio que as sociedades bem ordenadas têm o dever de assistir as sociedades sob o ônus de condições desfavoráveis, alertando, contudo, que não se trata de um princípio de justiça distributiva. Também, cabe observar que, conforme o autor, o elemento relevante no desempenho de um país é sua cultura política e não o nível dos seus recursos, ou seja, eventual arbitrariedade na distribuição de recursos naturais não é um problema (2019, pág.153).
Assim, Rawls eleva a aposta no dever de assistência, reconhecendo, porém, que outros princípios, propostos por outros autores, foram formulados para enfrentar a questão das desigualdades entre os povos.
Neste ponto, relevante se apresenta a análise dos princípios formulados por Charles Beitz, o qual, faz uso do arcabouço teórico de Rawls para tratar da justiça internacional (BRAGA, pág. 149), porém, formulando princípios de justiça distributiva, que se distinguem do mero dever de assistência.
Charles Beitz observa que os recursos naturais são distribuídos de modo aleatório, distribuição moralmente aleatória, e que o fato de uma sociedade ter vantagem na distribuição natural dos recursos, não lhe autoriza a excluir outras sociedades dos benefícios que possam derivar desta distribuição natural. Assim, as partes pensariam em um princípio de redistribuição de recursos ou dos benefícios deles derivados (1999, pág. 138)
Ainda, observa Beitz que Rawls vê como problemática essa questão da distribuição natural, fazendo uma analogia com os talentos naturais que a pessoa possui. Neste ponto Beitz se contrapõe argumentando que os recursos naturais não estão naturalmente ligados às pessoas e sim, são encontrados fora, prontos para apropriação por quem chegar primeiro. Isto, em um mundo de escassez de recursos, deixará outros fatalmente desfavorecidos (1999, pág.139). Assim, aqueles privados injustificadamente de recursos poderiam reivindicar ações equitativas.
Argumenta Beitz que, antes da apropriação, ninguém tem qualquer direito natural sobre os recursos, ninguém tem uma relação naturalmente privilegiada com eles. Igualmente, observa o autor que as partes, na posição original internacional, saberiam que os recursos são escassos e distribuídos de forma desigual entre a população, concluindo que há uma distribuição arbitrária, aleatória e que ninguém tem, prima facie, um direito de reivindicar os recursos que estão aos seus pés (1999, pág. 141). Ainda, a apropriação de recursos por uns, demandaria justificativas para com outros e para com as necessidades de gerações futuras.
Adiante, Beitz desenvolve a ideia de interdependência econômica internacional, ou seja, há um fluxo de comércio e serviços entre os países, resultando em um sistema global de cooperação (1999, pág.154). Contudo, observa que não há um sistema de coerção internacional que possa incidir sobre os países ricos para obrigá-los a colaborarem com os países pobres. Não obstante, Beitz sustenta que as coisas podem mudar com o tempo e que não há provas de que não possam ser desenvolvidas instituições capazes de aplicar princípios globais.
Por fim, conclui Beitz (1999, pág.180/181) que deve ser estendido às relações internacionais um princípio de justiça distributiva global, por conta do crescimento da interdependência econômica internacional, reconhecendo que tal princípio pode exigir mudanças na estrutura da ordem econômica mundial e na distribuição de recursos naturais, renda e fortuna.
Outro autor que propõe um princípio de justiça distributiva global é Thomas Pogge, materializado no que chama de Dividendo Geral de Recursos. Para o autor, os estados, os cidadãos e os governos não têm um direito de propriedade absoluto sobre os recursos naturais presentes em seu território. Assim, seriam chamados a pagar um “dividendo”, baseado na ideia de que os pobres do mundo possuem um interesse inalienável sobre todos os recursos naturais limitados (Pogge, pág. 3841)4.
Rawls, por sua vez, na obra O Direito dos Povos, reconhece o objetivo de Beitz e Pogge de igualmente buscar instituições liberais ou decentes, assegurar direitos humanos e satisfazer necessidades básicas, porém, refuta um princípio de justiça distributiva entre as sociedades.
Assim, Rawls defende o dever de assistência e sustenta que o elemento importante no desenvolvimento de um país é sua cultura política e, eventual arbitrariedade na distribuição dos recursos naturais não causa dificuldade nenhuma (2019, pág. 153).
Na defesa do dever de assistência, Rawls aponta que este tem um alvo e um tempo, um ponto de interrupção, é um princípio de transição. O alvo seria o alcance pelas sociedades oneradas, de instituições básicas liberais ou decentes justas e, uma vez alcançadas tais instituições, o dever de assistência pode cessar. Resta claro no dever de assistência o alvo e o tempo. Neste ponto Rawls questiona se um princípio de justiça distributiva tem um alvo e um ponto de interrupção, restando claro que não compactua com a aplicação de tal princípio de modo continuado, sem limite, sem um alvo.
É importante frisar que Rawls está preocupado com as sociedades e não com o indivíduo. A preocupação em “O Direito dos Povos” é no desenvolvimento de sociedades com instituições básicas justas, objetivo este a ser alcançado com o dever de assistência, não havendo uma preocupação com o indivíduo e suas particularidades. Este ponto fica bem esclarecido na lição de Cepaluni e Guimarães, nos seguintes termos:
Em O Direito dos Povos, Rawls argumenta que a visão cosmopolita tradicional de Beitz não está apenas preocupada com a justiça e a estabilidade pelas razões certas da sociedade nacional. Pelo contrário, Beitz preocupa-se com o bem-estar da pessoa e com a possibilidade de suas condições serem melhoradas em quaisquer circunstâncias, e não apenas por meio da justiça entre as sociedades. Beitz prega a necessidade de mais distribuição global, mesmo depois de cada sociedade ter alcançado instituições internamente justas, contrariando o mero “dever de assistência”. O que importa para ele é o bem-estar do indivíduo representativo – aquele que ocupa o quintil inferior de renda e riqueza – que se encontra na posição mais desfavorável globalmente, ao passo que o Direito dos Povos toma como importante a justiça e a estabilidade de sociedades liberais e decentes (2010, pág. 64)
Resta coerente a visão de Rawls sobre o dever de assistência, principalmente no que tange ao alvo e ao tempo da assistência, o seu ponto de interrupção. Tendo em vista que a preocupação de Rawls consiste no desenvolvimento de instituições básicas justas, o dever de assistência se mostra mais adequado do que um princípio de justiça distributiva global. O princípio distributivo carece de limites e vai além da construção de instituições justas.
Observe-se que nunca foi o objetivo de Rawls na obra “O Direito dos Povos” acabar com a fome e a pobreza no mundo, bem como, o autor deixou claro que o dever de assistência não se resume a uma mera distribuição de fundos, pois isso não é suficiente para retificar as injustiças políticas e sociais básicas. A questão gira em torno da cultura política e da solidificação de instituições justas presentes na sociedade.
Não se ignora o argumento de Beitz e Pogge quanto à desigualdade na distribuição de recursos naturais, porém, não se pode afastar a possibilidade de uma sociedade rica em tais recursos e que, não obstante a riqueza natural, seu povo vive na pobreza, por conta de injustiças políticas e ausência de instituições básicas justas e cultura política.
5. COSMOPOLITISMO E O DEVER DE ASSISTÊNCIA
Outro debate que surge quando se fala do dever de assistência envolve o contraste entre as visões cosmopolitas e comunitaristas. Como exposto no ponto precedente, Rawls entende que mais importante do que a distribuição de recursos, é a cultura política e as instituições de uma sociedade. Prosseguindo, Rawls aponta um contraste entre o Direito dos Povos e uma visão cosmopolita, afirmando que o importante para o Direito dos Povos é a justiça e a estabilidade e para a visão cosmopolita é o bem-estar dos indivíduos e a distribuição global de recursos (2019, pág.157).
Rawls sustenta que “cada sociedade tem na sua população um cabedal suficiente de capacidades humanas, dispondo de recursos humanos potenciais para concretizar instituições justas” (2019, pág. 156). Neste ponto surgem críticas ao pensamento de Rawls, pois atribui ao plano doméstico as causas da pobreza e da injustiça, bem como ao plano doméstico as soluções, parecendo ignorar as relações que se estabelecem no plano internacional, a interdependência entre as sociedades, o fluxo de comércio e serviços entre os estados e os reflexos destas relações no ambiente interno de cada sociedade. Neste sentido, esclarecedora a lição de Cepaluni e Guimarães:
Uma teoria da Justiça e O Direito dos Povos são obras que apresentam elementos de continuidade. Contudo, Rawls escolheu uma maneira polêmica para “transpor” sua concepção de justiça doméstica para o plano internacional. Isto é, ao imaginar uma sociedade internacional em que os povos não são interdependentes, Rawls desconsiderou que o sistema internacional e suas instituições produzem assimetrias econômicas e sociais, as quais demandam mecanismos de redistribuição de recursos mais profundos e perenes, pois haveria um “compartilhamento moral global” de responsabilidades com relação à criação de desigualdades econômicas internacionais” (2010, pág.60).
Assim, restou desenhado o embate entre a visão cosmopolita e o dever de assistência formulado por Rawls. Dentre os autores ligados ao cosmopolitismo está Charles Beitz, o qual sustenta que os estados participam de complexas atividades econômicas internacionais, relações políticas e culturais, as quais sugerem a existência de um esquema global de cooperação social (1999, pág. 144)5.
Segundo Beitz a interdependência internacional se reflete no volume de transações que atravessam as fronteiras nacionais, tais como comunicações, viagens, comércio, ajuda e investimentos estrangeiros. Ainda, o autor sustenta que a interdependência aumenta a diferença de renda entre países ricos e países pobres, bem como, que a interdependência tem consequências internas, pois os governos domésticos terão dificuldade de controlar suas próprias economias, influenciadas por desenvolvimentos econômicos de outros lugares (1999, pág.147).6
Com base nestas afirmações, Beitz sustenta um princípio de justiça distributiva global e, neste ponto, diverge de Rawls, o qual defende o dever de assistência, já explicado detalhadamente no ponto 2 deste trabalho. Observe-se que Beitz diverge tanto com base na arbitrária distribuição de recursos naturais entre os estados quanto por reconhecer a interdependência na ordem internacional.
Outro autor que apresenta uma visão cosmopolita é Thomas Pogge, apresentando crítica expressa ao posicionamento de Raws, nos seguintes termos:
Quienes desean negar que las variaciones en el disenõ del orden global institucional tengan um impacto significativo en la evolución de la pobreza severa, explican esta última haciendo unicamente referencia a factores nacionales o locales. John Rawls es um ejemplo prominente. Él afirma que cuando las sociedades fracasan en sus intentos por prosperar, comúnmente el problema es la naturaleza de la cultura política pública y las tradiciones religiosas y filosóficas que subyacen en estas instituciones. Los grande males sociales en las sociedades más pobres han de ser probablemente el Gobierno opressivo y las elites corruptas. [..] Em consonância, Rawls sostiene que nuestra responsabilidade moral en relación com la pobreza severa en el exterior puede describirse en su totalidade como un “deber de asistência”. (Pogge, pág. 2327)7.
Desta forma, Pogge (pág.2337) não compactua com a tese da “pobreza puramente doméstica”, defendendo seu posicionamento com o argumento de que os povos existentes têm chegado a níveis atuais de desenvolvimento social, econômico e cultural através de um processo histórico de escravidão, colonialismo e genocídio, e que mesmo isso pertencendo ao passado, deixou um legado de grandes desigualdades.
Igualmente, Pogge reconhece a interdependência na ordem internacional, observando que
En el mundo moderno, el tráfico de transacciones económicas internacionales e incluso intranacionales está profundamente configurado por un sistema complejo de tratados y convenciones sobre el comercio, las inversiones, los préstamos, las patentes, los derechos de autor, las marcas, la doble tributación, las normativas laborales, la protección ambiental y el uso de recursos del lecho marino, entre otras muchas coisas. estos diferentes aspectos del orden global institucional actual implementan decisiones de acuerdo con un disenõ muy específico dentro de un vasto espacio de posibilidades de disenõ alternativo. a primera vista, resulta increíble que todas estas formas alternativas de estructurar la economía del mundo hayan producido la misma evolución en la incidencia general y la distribución geográfica de la pobreza severa a nivel mundial. (pág.2370)8
Assim, seja por desigualdades resultantes de um processo histórico de exploração, seja por conta da interdependência econômica entre os estados, Pogge apresenta uma visão cosmopolita e sustenta um princípio de justiça distributiva global, que, em sua visão, seria materializado no Dividendo Global de Recursos.
Ainda, apresentando uma visão cosmopolita, é o pensamento de Amartya Sen, para quem, “o mundo para além das fronteiras de um país não pode deixar de entrar na apreciação da justiça dentro de um país […] (2009, pág. 1698). Igualmente, em outra passagem, Sen observa que
Nosso envolvimento com os outros, por intermédio do comércio e dos meios de comunicação, é enorme no mundo contemporâneo, e nossos contatos globais, com relação a atividades literárias, artísticas e científicas, além disso, não nos permitem esperar que qualquer consideração adequada dos diversos interesses e preocupações se restrinja de maneira plausível aos cidadãos de determinado país, ignorando todos os demais. (pág. 8027).
Assim, com base no exposto, verifica-se que a visão cosmopolita é sustentada por diversos autores, divergindo assim do posicionamento de Rawls no que se refere ao dever de assistência. Como visto, para Rawls a pobreza e a injustiça são fruto de cultura política e falta de instituições básicas justas no interior dos povos, não levando em consideração as relações internacionais e uma suposta interdependência internacional.
Neste ponto, forçoso é reconhecer que a visão cosmopolita se revela mais condizente com o atual estágio das relações internacionais, não havendo como negar a interdependência e os reflexos globais nas mais diversas sociedades, pobres ou ricas. A posição de Rawls de que a razão da pobreza é doméstica, não pode ser tida como verdade absoluta.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na obra “O Direito dos Povos” Rawls propôs estender a concepção liberal de justiça para o âmbito global, com cinco tipos de sociedades nacionais. Dentre estas, formulou o
conceito das sociedades sob o ônus de condições desfavoráveis, ou, simplesmente, sociedades oneradas. Estas sociedades seriam carentes de recursos materiais, de cultura política e de instituições básicas justas.
Para propiciar o ingresso das sociedades oneradas na sociedade dos povos, Rawls formulou o princípio do dever de assistência. Por esse dever as sociedades democráticas liberais e as decentes iriam auxiliar as sociedades oneradas a desenvolverem cultura política e instituições básicas justas. Alcançado este objetivo, o dever de assistência deveria cessar. Ainda, na visão de Rawls os grandes problemas como fome e pobreza seriam fruto de questões domésticas, a serem corrigidas com o dever de assistência.
Como visto, esse raciocínio de Rawls foi refutado por Charles Beitz e Thomas Pogge, pois esses defendem a adoção de um princípio de justiça distributiva global, sob o fundamento de que há uma arbitrária e aleatória distribuição de recursos naturais. Igualmente, sustentam a existência de uma complexa rede de relações internacionais de trocas, comércio e serviços que influenciam no âmbito interno de cada sociedade, ou seja, existe uma interdependência internacional. Essa também seria responsável pela injustiça, fome e pobreza.
Ainda que sejam fortes os argumentos de Beitz e Pogge, não se pode rechaçar a ideia do dever de assistência, como proposto por Rawls. Como explicado no ponto 3, o dever de assistência possui um alvo e um tempo definido, um ponto de interrupção, bem como tem por objetivo o desenvolvimento de instituições básicas justas e não uma mera distribuição de recursos. Por outro lado, o princípio distributivo carece de limites e vai além da construção de instituições justas.
Cabe repetir que nunca foi o objetivo de Rawls na obra “O Direito dos Povos” acabar com a fome e a pobreza no mundo, o autor deixou claro que o dever de assistência não se resume a uma mera distribuição de fundos, pois isso não é suficiente para retificar as injustiças políticas e sociais básicas. A questão gira em torno da cultura política e da solidificação de instituições justas presentes na sociedade.
O argumento de Beitz e Pogge quanto a uma arbitrária e aleatória distribuição de recursos naturais é forte, e por certo, influencia no nível de riqueza dos povos, porém, não é a única questão a ser considerada. A adoção de um princípio de justiça distributiva global com base nesse argumento atende a reclamos de ordem moral, porém, não resolve a questão da injustiça política e da ausência de instituições básicas justas no seio das sociedades oneradas. Observe-se que, não se pode afastar a possibilidade de uma sociedade rica em recursos naturais e que, não obstante a riqueza natural, seu povo vive na pobreza, por conta de injustiças políticas e ausência de instituições básicas justas e cultura política.
Quanto à visão cosmopolita de Beitz e Pogge, como já afirmado, essa se revela mais condizente com o atual estágio das relações internacionais, não havendo como negar a interdependência e os reflexos globais nas mais diversas sociedades, pobres ou ricas. A posição de Rawls de que a razão da pobreza é doméstica é uma simplificação do problema.
Contudo, mesmo reconhecida a visão cosmopolita, não é o caso de abandono do dever de assistência, nos moldes formulados por Rawls. De fato, quando uma sociedade liberal democrática ou decente cumpre o dever de assistência, não deixa de estar presente uma visão cosmopolita. Evidentemente, com o dever de assistência, é criada uma relação entre países, não havendo como negar o viés cosmopolita.
Ainda, cabe relembrar que as sociedades sob o ônus de condições desfavoráveis, são sociedades que carecem de tradições políticas, culturais, capital humano, conhecimento técnico e até de recursos materiais e tecnológicos para que sejam bem ordenadas. Pois bem, tais condições das sociedades oneradas, podem ter se estabelecido justamente por conta da arbitrária distribuição de recursos naturais ou pela interdependência econômica. Desta forma, quando operado o dever de assistência, não se está deixando de considerar tais fatores, os quais serão igualmente combatidos. Aqui relativizamos a tese da pobreza puramente doméstica, reconhecendo outros fatores.
Igualmente, na defesa do dever de assistência, concorre o fato de que o princípio de justiça distributiva global sustentado por Beitz e Pogge , bem como sua visão cosmopolita, tem um fundamento moral, preocupado com o bem-estar dos indivíduos, não sendo este o objetivo de Rawls em “O Direito dos Povos”.
Como já explicitado em ponto precedente, o dever de assistência não se resume a uma mera distribuição de fundos, tendo um objetivo maior, que é a construção de uma cultura política e de instituições básicas justas. Como bem observou Rawls, nem todas as sociedades oneradas são pobres.
Outra questão que não pode ser olvidada, é a da evidente dificuldade prática para a implementação de um princípio de justiça distributiva global. Neste ponto, o dever de assistência se mostra mais prático e objetivo.
Por fim, vale relembrar que, o que é importante para o “Direito dos Povos” é a justiça e a estabilidade das sociedades liberais e decentes, como membros da sociedade dos povos.
Referências
BEITZ, Charles R. Political theory and international relations. Princeton University Press, 1999.
BRAGA, Leonardo Carvalho. O debate cosmopolitismo x comunitarismo sobre direitos humanos e a esquizofrenia das relações internacionais. Contexto Internacional, vol.30, nº1, janeiro/abril de 2008, pág.141/169.
CEPALUNI, Gabriel; GUIMARÃES, Feliciano de Sá. Discípulos de Rawls em busca de uma concepção cosmopolita de justiça distributiva internacional. https://www.academia.edu/32719461/Disc%C3%ADpulos_de_Rawls_em_busca_de_uma_Co ncep%C3%A7%C3%A3o_Cosmopolita_de_Justi%C3%A7a_Distributiva_Internacional. Acesso em 20/08/2022.
LIMA, Jozivan Guedes de. A ideia de uma sociedade de povos bem ordenados segundo John Rawls. https://periodicos.ufes.br/index.php/sofia/article/view/6445. Acesso em 06/05/2022.
POGGE, Thomas. Hacer justicia a la humanidad: Propuesta para um dividendo sobre recursos globales. Ebook [s.n] [s.l]
____________. Hacer justicia a la humanidade: Reconocidos y violados por el derecho internacional: Los derechos humanos de los pobres globales. Ebook [s.n] [s.l]
RAWLS, John. O Direito dos Povos; seguida de “Ideia de razão pública revista”. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2019.
____________. O Liberalismo Político. Trad. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. Brasília, DF: Editora Ática, 2000. Col. Pensamento Social-Democrata.
____________. Uma teoria da justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
SEN, Amartya. A ideia de justiça. São Paulo: Editora Schwarcz, 2009.
2Segundo Rawls: “A estrutura básica de um tipo de povo decente tem o que chamo uma hierarquia de consulta decente, e a esses povos chamo povos hierárquicos decentes”.
3Segundo Rawls: “Em quinto, temos sociedades que são absolutismos benevolentes: honram os direitos humanos, mas, porque é negado aos seus membros um papel significativo nas decisões políticas, não são bem ordenadas”.
4Texto original em espanhol: “En dos ensayos anteriores (Pogge 1994, 1998), he esbozado y defendido la propuesta de um dividendo sobre recursos globales o DRG. Esta propuesta contempla que los Estados, junto con sus ciudadanos y gobiernos, no tendrán un derecho de propiedad absoluto, em términos libertários/neoliberales, com respecto a los recursos naturales presentes en su território, sino que se les puede requerir que compartan una
pequena parte del valor de cualquier recurso que decidan usar o vender. Denominamos “dividendo” a este pago que deben realizar porque se basa en la idea de que los pobres del globo poseen un interés inalienable sobre todos
los recursos naturales limitados”. (POGGE, pág.3841)
5Do original: “States participate in complex international economic, political, and cultural relationships that suggest the existence of a global scheme of social cooperation. As Kant notes, international economic cooperation
creates a new basis for international morality. If social cooperation is the foundation of distributive justice, then one might think that international economic interdependence lends support to a principle of global distributive
justice similar to that which applies within domestic society.”(Beitz, 1999, pág.144).
6Do original: “Perhaps the most damaging burdens of interdependence have to do with its domestic consequences. These fall into two main classes. First, domestic governments are likely to experience difficulty in controlling their
own economies, since domestic economic behavior is influenced by economic developments elsewhere. For example, the global monetary system allows disturbances (like price inflation) in some countries to be transmitted to others, complicating economic planning and possibly undercutting employment and incomes policies. The other
class of burdens involves the domestic distributive and structural effects of participation in the world economy. (Beitz, 1999, pág. 147).
7Tradução nossa: “Aqueles que desejam negar que as variações no desenho da ordem institucional global tenham um impacto significativo na evolução da pobreza severa, explicam esta última referindo-se apenas a fatores nacionais ou locais. John Rawls é um exemplo proeminente. Ele argumenta que quando as sociedades falham em suas tentativas de prosperar, o problema geralmente é a natureza da cultura política pública e as tradições religiosas e filosóficas subjacentes a essas instituições. Os grandes males sociais nas sociedades mais pobres provavelmente
são governos opressores e elites corruptas. [..] Da mesma forma, Rawls argumenta que nossa responsabilidade moral em relação à pobreza extrema no exterior pode ser totalmente descrita como um “dever de assistência”.
8 Tradução nossa: “No mundo moderno, o tráfego de transações econômicas internacionais e até mesmo intranacionais é profundamente moldado por um complexo sistema de tratados e convenções sobre comércio, investimentos, empréstimos, patentes, direitos autorais, marcas registradas, dupla tributação, regulamentações trabalhistas, proteção ambiental e uso de recursos do fundo do mar, entre muitas outras coisas. Esses diferentes aspectos da atual ordem institucional global implementam decisões de acordo com um desenho muito específico dentro de um vasto espaço de possibilidades alternativas de desenho. À primeira vista, parece incrível que todas essas formas alternativas de estruturar a economia mundial tenham produzido a mesma evolução na incidência global e distribuição geográfica da pobreza severa globalmente.
1Doutorando em Direito pela Universidade do Oeste de Santa Catarina – UNOESC.