O INSTITUTO JURÍDICO DA REFORMA NO REGIMENTO DOS MILITARES TEMPORÁRIOS DAS FORÇAS ARMADAS: UMA ANÁLISE SOB A ÓTICA DOS PRINCÍPIOS DA DIGNIDADE HUMANA E MÍNIMO EXISTENCIAL

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7315583


Samuel David da Silva1
Andreia Alves de Almeida2


RESUMO

Propondo discorrer sobre as nuances do regime estatutário militar e o direito administrativo militar no tocante ao militar temporário prestador ou não do serviço militar inicial, além das prerrogativas e deveres de que são destinatários, a pesquisa tem por escopo analisar o antes e o depois, as condições que outrora imperavam e as que passaram a viger, com a edição da Lei nº 13.954/2019, a qual reestruturou, significativamente, a carreira militar e o sistema de proteção social dos militares das Forças Armadas. Nos permitiremos analisar, sob a ótica dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e do mínimo existencial, os impactos trazidos pela legislação nova ao amparo estatal consubstanciado na dispensação dos recursos clínicos e tratamento médico-hospitalar ao militar temporário, sobretudo, no que tange a aplicação e deferimento da reforma administrativa por incapacidade física, parcial e temporária ou total e permanentemente, para as atividades laborativas civis e militares. Com a publicação da recente Lei nº 13.954, de 16 de dezembro de 2019, uma brutal modificação que aos poucos restou introduzida dentro de cada Força Armada, acabou por se sacramentar na legislação federal. A problemática se consubstancia em definir se à luz do princípio da isonomia e impessoalidade, há dispensação de tratamento diferenciado ao militar efetivo, em detrimento ao temporário, no que tange ao gozo de privilégios/prerrogativas. Nesse espectro, a pesquisa está calcada no método dedutivo, além da implementação do objetivo exploratório de estudo; a fonte de pesquisa é definida como bibliográfica, legal e jurisprudencial.

Palavras-chave: Forças Armadas; Militar Temporário; Serviço Militar; Reforma; Dignidade Humana.


ABSTRACT

Proposing to discuss the nuances of the military statutory regime and military administrative law regarding the temporary military service provider or not of the initial military service, in addition to the prerogatives and duties of which they are addressed, the research aims to analyze the before and after, the 13,954/2019, which significantly restructured the military career and the social protection system of the Armed Forces soldiers. We will allow us to analyze, from the perspective of the constitutional principles of human dignity and the existential minimum, the impacts brought by the new legislation to the state support embodied in the dispensation of clinical resources and medical-hospital treatment to the temporary military, above all, about the application and approval of the administrative reform due to physical incapacity, partially and temporarily or totally and permanently, for civil and military work activities. With the publication of the recent Law nº 13.954, of December 16, 2019, a brutal modification that was gradually introduced within each Armed Force, ended up being enshrined in federal legislation. The problem is embodied in defining whether, in the light of the principle of isonomy and impersonality, there is a dispensation of differentiated treatment to the effective military, to the detriment of the temporary one, with regard to the enjoyment of privileges/prerogatives. In this spectrum, the research is based on the deductive method, in addition to the implementation of the exploratory objective of the study; the research source is defined as bibliographic, legal and jurisprudential.

Keywords: Armed Forces; Temporary Military; Military Service; Retirement; Human Dignity.

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por escopo analisar as mudanças promovidas pela Lei nº 13.954/2019 no Estatuto dos Militares, mormente no que tange ao instituto jurídico da reforma em se tratando do militar temporário não estável, e verificar se direitos sociais e princípios fundamentais inerentes a pessoa humana estão sendo observados com a implementação da reestruturação da previdência social dos militares. Portanto, o estudo baseia-se em verificar se as aludidas modificações culminaram na adoção de entendimento mais restritivo e/ou arbitrário, sob o ponto de vista dos princípios da dignidade humana e mínimo existencial.

A relevância desta temática encontra alicerce no fato de que muitas Organizações Militares no âmbito das Forças Armadas, ao se depararem com a apuração de determinado acidente ou moléstia acometida pelo militar temporário, tanto em razão dos procedimentos administrativos apuratórios como nos processos de reforma, aplicavam as atuais disposições do Art. 31 da Lei do Serviço Militar e Arts. 108 e 109 da Lei nº 6.680/1980, com redação determinada pela Lei nº 13.954/2019, nas causas em que a incapacidade fosse preexistente a vigência do novo diploma legal.

Assim, aquele acometido de doença insculpida no Art. 108, V, do Estatuto, ainda que considerado incapaz definitivamente para o Serviço Militar mediante realização de inspeção de saúde prévia, a qual atestasse que o surgimento porventura havia se dado antes de 17 de dezembro de 2019, este teria o seu pedido de reforma indeferido e consequentemente, a medida a ser aplicada era a exclusão do serviço ativo, em flagrante afronta à Constituição Federal de 1988. Em decorrência disso, não poucas as ações judiciais que emergiram durante esse lapso temporal, onde os licenciados e desincorporados se socorriam ao Poder Judiciário buscando aquilo que se costumou denominar reintegração, consubstanciada na anulação do ato administrativo praticado e a reinserção do reservista nos quadros da respectiva Força.

A jurisprudência dominante no âmbito do Superior Tribunal de Justiça se apresentava de maneira pacífica no sentido de que a adição desse licenciado era medida mais consentânea com a legislação de regência, independentemente da existência de relação de causa e efeito entre a moléstia e as atividades militares, bastando que a doença tenha eclodido no decorrer da prestação do serviço castrense.

Por derradeiro, e na ânsia de desvendar com minucias os contornos da análise objeto desta pesquisa, o trabalho será segmentado nos seguintes objetivos específicos, a saber, a) analisar as etapas de recrutamento inerentes ao serviço militar voluntário ou obrigatório e as hipóteses de interrupção constantes da legislação castrense; b) pontuar os impactos trazidos pela Lei nº 13.954/2019 ao Estatuto dos Militares, sobretudo quanto ao instituto jurídico da reforma administrativa ao militar temporário e o de carreira, observando a existência ou não de disparidade de tratamento ou diminuição de direitos e prerrogativas promovida pela lei nova; e c) verificar a razoabilidade e proporcionalidade de se conceder ao licenciado em recuperação tão somente o tratamento médico-hospitalar, de modo a comparar mediante o arcabouço doutrinário se esse mínimo existencial concedido pelo Estado amesquinha direitos sociais ou fere o princípio da dignidade humana.

A hipótese central que norteia, a priori, este estudo, se consubstancia no entendimento de que as Forças Armadas, sobretudo o Exército Brasileiro, a tempos considerava como desvantajosa e retrograda o instituto da adição à praça temporária ou oficial temporário, ao considerarmos que a incapacidade temporária ou definitiva, advinda de diagnóstico incapacitante, poderia implicar àqueles, a manutenção no serviço ativo após o término de prorrogação de tempo de serviço ou do serviço militar inicial.

Assim ocorrendo, a percepção de proventos e vantagens remuneratórias por período não determinado, mesmo que decorrido o prazo máximo de 96 (noventa e seis) meses de efetivo serviço prestado, não poderia ser cessado até que sobreviesse parecer de aptidão plena em inspeção de saúde. Essa incerteza, que culminava muitas vezes com o indeferimento de proposta de reforma administrativa ao final do trâmite procedimental ou até à existência de um vínculo ad aeternum com a Administração Castrense, implicaria em despesas onerosas aos cofres públicos, o que se pretendeu evitar.

Noutra perspectiva, não se pode olvidar que este estudo igualmente está calcado em investigar a procedência ou não de hipótese distinta do acima exposto, de modo que a presente pesquisa também traz à tona a seguinte indagação: Se à luz do princípio da isonomia e impessoalidade, há dispensação de tratamento diferenciado ao militar efetivo, em detrimento ao temporário, no que tange ao gozo de privilégios/prerrogativas, face a nova redação/desmembramento promovido pelo art. 3º, § 1º, II, do Estatuto dos Militares.

A pesquisa está calcada no método dedutivo e técnica de abordagem monográfica, além da implementação do objetivo exploratório de estudos de doutrinas atinentes ao regime jurídico dos militares, o que qualifica o método de pesquisa como bibliográfico. Analisar-se-á as atribuições legais e constitucionais e as nuances das normas técnicas relativas a perícias e tratamento médicos ofertados aos militares, tudo à luz do que vem sendo materializado pelas Forças Armadas no âmbito da Marinha, Exército e Aeronáutica, no seio de suas portarias, regulamentos e instruções gerais.

1 O MILITAR TEMPORÁRIO E A DEVOÇÃO AO SACERDÓCIO CASTRENSE

A Carta da República de 1988, preconiza em seu Art. 142, caput, que as Forças Armadas são instituições regulares e permanentes, tendo como princípios basilares a Hierarquia e Disciplina, e se destinam, sobretudo em se tratando de conflitos, à defesa da pátria e, intramuros, à garantia dos Poderes da República, da lei e da ordem, por iniciativa de qualquer destes.

Seus integrantes, à luz do § 3º do Art. 5º da CRFB/88, são denominados militares, de modo que em seu inciso X, pugna a Carta Política que a legislação disporá sobre as formas de ingresso, estabilidade, direitos e deveres, remuneração, prerrogativas, transferências para a inatividades dentre outras particularidades; aliás, de maneira categórica se evidenciou do Art. 143, caput, do códex, que o serviço militar inicial é de caráter obrigatório, nos termos da legislação pátria.

Nessa conjuntura e consoante expressa delegação de regulamentação dirigida aos então Ministros Militares, atuais Comandantes da Marinha, Exército e Aeronáutica, se evidenciou que a Lei nº 6.880/1980 – Estatuto dos Militares e de igual maneira a Lei nº 4.375/1964 – Lei do Serviço Militar, detinham papel fundamental e figuraram como verdadeiro vetor de materialização destes regramentos e prerrogativas, tendo sido reconhecidamente recepcionadas pela Constituição Federal.

Assim, os integrantes das Forças Armadas, nos termos do que dispõem o Art. 3º, § 1º, “a”, do Estatuto dos Militares, poderão figurar, na ativa, na condição de militares de carreira e militares temporários, estes últimos, incorporados às fileiras da caserna para a prestação do serviço militar, obrigatório ou voluntário, durante os prazos a que se referem a legislação de regência do serviço militar inicial ou no decurso da concessão de prorrogação desses prazos. Dessa forma comunga a legislação:

Art. 3° Os membros das Forças Armadas, em razão de sua destinação constitucional, formam uma categoria especial de servidores da Pátria e são denominados militares.

§ 1° Os militares encontram-se em uma das seguintes situações:

a) na ativa:

I – os de carreira;

II – os temporários, incorporados às Forças Armadas para prestação de serviço militar, obrigatório ou voluntário, durante os prazos previstos na legislação que trata do serviço militar ou durante as prorrogações desses prazos; (Redação dada pela Lei nº 13.954, de 2019) (BRASIL, 2019)

Atualmente, restou evidente a distinção perpetrada entre estas duas espécies castrenses e seus respectivo vínculos com a União Federal; com efeito, por prazo determinado, os temporários ingressam, seja mediante convocação voluntária decorrente de processo simplificado, seja em decorrência da obrigatoriedade do serviço militar.

Em vista disso, ocorre que a Lei nº 4.375/1964 – Lei do Serviço Militar, assentou em seu Art. 27, § 3º, disposto esse incluído pela novel Lei nº 13.954/2019, que o serviço temporário terá o prazo determinado de 12 (doze) meses, podendo ser prorrogado, por critérios de conveniência e oportunidade da Administração Militar, conquanto, não devendo ultrapassar 96 (noventa e seis meses), contínuos ou não, como militar. Dessa forma, deverá estar vinculado por um prazo máximo de 08 (oito) anos, longe da denominada estabilidade, a qual foi confiada exclusivamente ao militar de carreira.

Aliás, no âmbito do Exército Brasileiro, a Portaria nº 046-DGP do Chefe do Departamento-Geral do Pessoal, em seu Art. 149 aclarou que as prorrogações de tempo de serviço de militares temporários se darão pelo período acima delineado, com exceção da última, e que visam, sobretudo, o interesse da Força Terrestre, além de precederem da manifestação de vontade do interessado, que munido do requisito essencial para a concessão da benesse, qual seja, a voluntariedade, poderá ou não obter o denominado engajamento ou reengajamento (BRASIL, 1964).

Ademais, não se pode olvidar que anualmente muitos cidadãos, no estrito cumprimento do dever capitulado no Art. 143 da Carta Maior, procedem ao Alistamento Militar, no corpo do qual são submetidos a diversas etapas e testes peculiares, tudo objetivando o ingresso às fileiras das Forças Armadas; todos os anos se vislumbra a ocorrência do mesmo ritual, indivíduos que deixam o asseio de seus lares e se apegam a vida militar, a qual exigirá, diuturnamente destes, verdadeiro espírito de sacerdócio e devoção à hierarquia e disciplina militares; aliás, o compromisso é solene, posto que a pretexto de defenderem a honra, integridade e instituições brasileiras com total desassombro e destemor, assim juram com o sacrifício da própria vida, perante símbolo nacional, qual seja, a Bandeira Nacional. Vejamos:

DAS FORÇAS ARMADAS

 Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
[…]

Art. 143. O serviço militar é obrigatório nos termos da lei. (BRASIL, 1988)

Esta cerimônia de juramento a Bandeira Nacional é por demais significativo para o jovem militar recém incorporado, haja vista que o evento sela de maneira permanente um eterno compromisso com a nação brasileira; ademais, ainda que este venha a ser licenciado ao final de seu tempo de serviço obrigatório, jamais deixará que as salutares memórias e os registros funcionais desapareçam por ocasião do retorno à vida civil. Nesse contexto, Brasil (2002) com precisão sacramenta:

A carreira militar não é uma atividade inespecífica e descartável, um simples emprego, uma ocupação, mas um ofício absorvente e exclusivista, que nos condiciona e autolimita até o fim. Ela não nos exige as horas de trabalho da lei, mas todas as horas da vida, nos impondo também nossos destinos. A farda não é uma veste, que se despe com facilidade e até com indiferença, mas uma outra pele, que adere à própria alma, irreversivelmente para sempre.

Assim sendo, ABREU (2010), por intermédio da obra Direito Administrativo Militar, disserta sobre o dever de todo cidadão brasileiro no que pertine à defesa da Pátria, consignando que o caráter compulsório do serviço tem por base a cooperação consciente dos brasileiros, sob os aspectos espiritual, moral, físico, intelectual e profissional, na segurança nacional. Os cidadãos recrutados para o serviço militar obrigatório exercem um verdadeiro munus público.

Finalmente, em sendo definido o quantitativo de cidadãos que incorporarão, estes, cumprindo com o dever cívico do serviço militar obrigatório, são submetidos a treinamento castrense peculiar e uma vez concluída esta etapa inaugural de adestramento, passam a desempenhar atribuições tipicamente e afetas à natureza militar, sem prejuízo da realização daquelas atividades funcionais e rotineiras, meramente laborativas, a saber, a participação nas atividades de engenharia de construção de estradas e revitalização de vias públicas, dentre outros ofícios e profissões que a rotina administrativa das Organizações Militares lhes exigem.

2 O ACOMETIMENTO DE MOLÉSTIAS INCAPACITANTES E A REPERCUSSÃO NO SERVIÇO MILITAR TEMPORÁRIO

Nada obstante, ocorre que preliminarmente a incorporação ou matrícula destes jovens conscritos às fileiras da caserna, ou seja, aqueles prestadores do serviço militar inicial e obrigatório, a Administração procede à denominada mobilização, que consiste em seleção específica no corpo da qual são avaliados os aspectos físico e mental apresentados por cada um dos indivíduos. Assim, se realiza uma inspeção médico-odontológica pelo Médico presente na seleção dos conscritos e posteriormente, se procede a avaliação dos aspectos cultural, psicológico e moral do cidadão candidato, mediante entrevista particular realizada por intermédio de militares com elevado grau de experiência e vivencia dentro de cada uma das Organizações Militares. Com relação a essas etapas de alistamentos e seleção, o autor ABREU (2010, p. 189) traz à tona o procedimento até a obtenção do parecer de aptidão para o serviço, a saber:

Efetiva-se a seleção com base nos seguintes aspectos: a) físico, por meio de inspeção de saúde e de provas de aptidão física; b) cultural, por meio de testes de seleção; c) psicológico, mediante entrevistas, etc.; d) moral. Os submetidos à inspeção de saúde, para fins de prestação do serviço militar, serão classificados em quatro grupos, a saber: a) grupo “A” , quando satisfizerem os requisitos regulamentares, possuindo boas condições de robustez física (Apto “A”).

Na derradeira etapa, que consiste efetivamente na realização da entrevista pela Comissão de Seleção, são colhidas informações dos depoimentos de cada um desses jovens, a respeito da vida pregressa, escolaridade e cursos de formação porventura realizados, a problemática social e familiar de cada um e, in fine, a existência ou não de fatores que possam impedir a prestação do serviço militar inicial, como a preexistência de moléstia/patologia incompatível com o serviço ativo.

2.1 PROCEDIMENTOS PARA A CARACTERIZAÇÃO OU NÃO DO ACIDENTE EM SERVIÇO

É inegável a existência de risco à integridade física e psíquica em razão da exposição destes militares aos diversos ambientes, biomas, terrenos e treinamentos que, deflagram, em quantidade significativa, a ocorrência de acidentes ou a aquisição de doenças/moléstias incapacitantes; dessa forma, sobrevindo algumas dessa intempéries, a Administração Militar, atenta ao interesses, direitos, ônus decorrentes, decide pela instauração de procedimento administrativo denominado sindicância, com vistas a apurar a cinemática do trauma ou do acometimento da patologia, as eventuais sequelas ou patologias que possam advir em desfavor do integrante de cada Força e se o acidente possui nexo ou não com condições inerentes ao serviço militar.

No âmbito do Exército Brasileiro, Força Terrestre, o procedimento de sindicância apto a apurar assuntos de interesse da administração militar e dos fatos que geram direitos aos administrados é regido por intermédio da Portaria nº 107, do Comandante do Exército, de 13 de fevereiro de 2012 – Instruções Gerais para a Elaboração de Sindicância no Âmbito do Exército Brasileiro (EB10-IG-09.001), a qual estabelece diretrizes básicas quanto a formalidade, os prazos e pareceres conclusivos dos encarregados destes procedimentos. As instruções surgiram com o fito de assegurar aos envolvidos os direitos inerentes ao contraditório e a ampla defesa constitucionais. Nessa senda, vejamos o que salienta o art. 2º da portaria regulamentar:

Art. 2º – A sindicância é o procedimento formal, apresentado por escrito, que tem por objetivo a apuração de fatos de interesse da administração militar, quando julgado necessário pela autoridade competente, ou de situações que envolvam direitos. (BRASIL, 2012)

Diante disso, os encarregados na condução do processo, recebendo delegação de competência do Comandante, Chefe ou Diretor da Unidade, passam a estar dotados de poderes para investigar e determinar as diligências necessárias a elucidação, sobretudo, destes casos que implicam na restrição da higidez física dos militares de carreira e temporários.

2.2 A PROBLEMÁTICA NA IMPLEMENTAÇÃO DE INTERPRETAÇÃO TAXATIVA DO DECRETO Nº 57.272/1965

Nessa perspectiva, importante aclarar que, no que concerne a apuração de acidentes em serviço, o Decreto nº 57.272, de 16 de novembro de 1965, do então Presidente da República, objetivou conceituar tais sinistros em serviço e de maneira categórica estabeleceu um rol taxativo de hipóteses autorizadoras de sua caracterização, dispostos no Art. 1º, “a”-“f”, de modo que aplicando os aludidos dispositivos ao caso concreto, se poderá concluir pela existência ou não de nexo causal entre o ocorrido e o serviço militar, a saber:

Art. 1º Considera-se acidente em serviço, para os efeitos previstos na legislação em vigor relativa às Forças Armadas, aquele que ocorra com militar da ativa, quando:

a) no exercício dos deveres previstos no Art. 25 do Decreto-Lei nº 9.698, de 2 de setembro de 1946 (Estatuto dos Militares);

b) no exercício de suas atribuições funcionais, durante o expediente normal, ou, quando determinado por autoridade competente, em sua prorrogação ou antecipação;

c) no cumprimento de ordem emanada de autoridade militar competente;

d) no decurso de viagens em objeto de serviço, previstas em regulamentos ou autorizados por autoridade militar competente;

e) no decurso de viagens impostas por motivo de movimentação efetuada no interesse do serviço ou a pedido;

f) no deslocamento entre a sua residência e a organização em que serve ou o local de trabalho, ou naquele em que sua missão deva ter início ou prosseguimento, e vice-versa. (BRASIL, 1965)

Por outro lado, de interpretação lógico-sistemática do inteiro teor do aludido decreto, sobretudo em virtude de sua arcaica edição, se verifica que pressupõe a existência de evento certo, determinado e imprevisível deflagrador para a ocorrência do episódio ensejador de apuração, posto que quaisquer conduta eivada de vícios de imprudência, negligência, imperícia ou mesmo transgressão disciplinar poderá implicar em mácula, atraindo a não caracterização do acidente como em serviço;

Nesse sentido, a celeuma se encontra em se constatar se a eclosão de patologias psiquiátricas, distúrbios psíquicos ou doenças ortopédicas, ensejadoras de estudo aprofundado e minucioso, com pesquisa por vezes necessária no âmbito do seio familiar, podem se amoldar as hipóteses ali elencadas; isso porque o adestramento, o rigor das atividades e treinamentos por vezes acabam ou por deflagrar ou por invocar no íntimo desses jovens militares prestadores do serviço militar, os sentimentos mais secretos, a saber, ansiedade, menos valia, transtornos depressivos de mais fenômenos da psiquiatria e psicologia;

Ao revés, os procedimentos administrativos, na ânsia de resguardar o interesse público e o da Força Armada respectiva, por vezes tem rechaçado tal possibilidade, a exemplo, a Diretoria de Saúde do Exército, em 11 de junho de 2018, emitiu orientação no sentido de que em análise a muitos processos de reforma e autos de sindicâncias instauradas, havia verificado diversos vícios na caracterização do acidente em serviço. As situações previsíveis, como denominara o informativo, não ensejariam a configuração do nexo de causalidade entre o acidente e as atribuições militares, a exemplo de moléstias degenerativas.

2.3 O INSTITUTO JURÍDICO DO ENCOSTAMENTO E A EXEGESE DA PORTARIA Nº 749 – 17 DE SETEMBRO DE 2012 – COMANDANTE DO EXÉRCITO

As denominadas incapacidades temporárias ou definitivas e os respectivo pareceres de médicos peritos militares, para o serviço militar ou civil, poderão sobrevir de diversas maneiras e variadas circunstâncias; não raramente, os diagnósticos incapacitantes emergem no decorrer da prestação do serviço militar inicial e, por força de expressa disposição contida no art. 50, IV, “e” na Lei 6.880/1980 – Estatuto dos Militares, este incapacitado é destinatário dos recursos e assistência médico-hospitalar à sua plena recuperação ou estabilização do quadro clínico.

Neste ponto, a Lei do Serviço Militar em seu Art. 32, § 2º, “a” dispõe que uma das hipóteses de interrupção da prestação do serviço militar advém pela desincorporação do militar temporário, este instituto jurídico, que consiste no ato de exclusão da praça, aplicar-se-á em decorrência, inclusive, da aquisição de moléstia que implique a falta ao serviço por parte do incorporado durante 90 (noventa) dias, consecutivos ou não, de acordo com regulamentação especifica de cada Força. Vejamos:

§ 2º A desincorporação ocorrerá:

a) por moléstia em consequência da qual o incorporado venha a faltar ao serviço durante 90 (noventa) dias, consecutivos ou não, hipótese em que será excluído e terá sua situação militar fixada na regulamentação da presente Lei;
[…]

§ 6º Os militares temporários licenciados por término de tempo de serviço ou desincorporados que estejam na condição de incapazes temporariamente para o serviço militar em decorrência de moléstia ou acidente deverão ser postos na situação de encostamento, nos termos da legislação aplicável e dos seus regulamentos. (BRASIL, 1964)

Assim, em se evidenciando o decurso do prazo no qual o inspecionado tenha permanecido afastado totalmente do serviço e instrução para a realização de seu tratamento, é aplicado os institutos do licenciamento, desincorporação ou a reforma, a depender de cada caso concreto, não obstante, nos termos do que apregoa o Art. 149, do Decreto nº 57.654/1964 – Regulamento da Lei do Serviço Militar, ao incapaz temporariamente, ainda que excluído das fileiras da corporação, lhe é concedido o encostamento, ato no qual o licenciado é mantido vinculado a Organização Militar para fins específicos, a saber, percepção unicamente de tratamento médico-hospitalar necessário a concessão da alta. Como visto, essa condição não admite a percepção de qualquer remuneração ou vantagem pecuniária, consoante previsão trazida pela Lei nº 13.954/19, a qual alterou e incluiu dispositivos tanto da Lei do Serviço Militar como no Regulamento da Lei de Serviço Militar.

Noutra perspectiva, segundo Barroso (2022), o Estado tem o poder-dever de concretizar os direitos fundamentais constantes da Constituição, o que importaria em certas necessidades de abstenção, a saber, a de interferir negativamente no seu âmbito de proteção. Entretanto há deveres para a proteção e promoção desses direitos fundamentais, de modo que o dever de legislar, ou seja, produzir normas que visem salvaguardar bens jurídicos ou integrar regramentos constitucionais incompletos, deve ter como afã entregar prestações positivas relacionadas ao mínimo existencial.

Nessa seara, não há como extrair da produção legislativa outro sentimento que não seja o de que houve verdadeiro retrocesso quanto a direitos sociais e garantias que outrora acompanhavam os militares temporários, que, a nosso sentir, não calha em um Estado Democrático e de Direito. O conceito de mínimo existencial de Direito Previdenciário se consubstanciaria neste caso na concessão do instituto do encostamento, porém a celeuma está em averiguar se essa concessão, por si só, é suficiente para que o militar tenha condições de retornar a vida civil no interregno que em experimenta a amarga sensação de ostentar um diagnóstico de incapacidade.

2.3.1 Os pareceres de incapacidade e os caminhos orquestrados até a implementação do licenciamento do militar temporário

Se considerarmos que a natureza jurídica do instituto do encostamento compreende uma vinculação precária entre o licenciado ou desincorporado e a organização militar para fins específicos, a saber, por exemplo, objetivo exclusivamente assistencial – tratamento médico-hospitalar, sem percepção de soldo e qualquer direito atinente ao regime jurídico dos militares, estar-se-ia diante de uma válvula de escape à defesa da União Federal, sob a ótica de que o essencial estaria sendo dispensado.

Nesse entendimento, a enaltecida Portaria Regulamentar nº 749-Comandante do Exército, de 17 de setembro de 2012, já assentava que o aludido instituto deveria ser aplicado em se constando o decurso do lapso temporal de 90 (noventa) dias, consecutivos ou não, de afastamento total do serviço e instrução em razão de incapacidade temporária para o serviço do Exército, sobretudo em face da inocorrência de acidente em serviço; nesses casos, o diploma já acentuava a determinação da interrupção do vínculo maior, ou seja, a exclusão do serviço ativo do integrante.

Nesse contexto, as alterações promovidas pela portaria nos arts. 429 e 430 do Regulamento Internos e dos Serviços Gerais, passaram a regular a situação tanto das praças prestadoras do serviço militar inicial e obrigatório como daquelas não prestadoras do serviço inicial, as quais estejam no transcurso do engajamento ou reengajamento.

Com efeito, a depender do parecer de incapacidade, a saber, incapacidade B1, incapacidade B2 ou incapacidade C, somado ao acúmulo do quantum de afastamentos do serviço acima delineado, ou a incorporação do militar é anulada, sem nenhum amparo estatal, ou é implementado o licenciamento, com ou sem a aplicação do encostamento. A aplicação dos dispositivos da portaria do Exército é restrita ao militar temporário. Sobre os pareceres acima, vejamos a inteligência do art. 52 do Regulamento da Lei do Serviço Militar:

Art. 52. Os inspecionados de saúde, para fins do Serviço Militar, serão classificados em quatro grupos:

1) Grupo “A”, quando satisfizerem os requisitos regulamentares, possuindo boas condições de robustez física. Podem apresentar pequenas lesões, defeitos físicos ou doenças, desde que compatíveis com o Serviço Militar.

2) Grupo “B-1”, quando, incapazes temporariamente, puderem ser recuperados em curto prazo.

3) Grupo “B-2”, quando, incapazes temporariamente, puderem ser recuperados, porém sua recuperação exija um prazo longo e as lesões, defeitos ou doenças, de que foram ou sejam portadores, desaconselhem sua incorporação ou matrícula.

4) Grupo “C”, quando forem incapazes definitivamente (irrecuperáveis), por apresentarem lesão, doença ou defeito físico considerados incuráveis e incompatíveis com o Serviço Militar. (BRASIL, 1964)

O art. 428 do RISG, com redação determinada pela Portaria nº 749-Comandante do Exército, de 17 de setembro de 2012, apregoa especificamente sobre as consequência do advento de parecer de incapacidade C, diagnostico essencial à concessão de reforma, narrando que o temporário só gozara do tratamento médico cumulativamente com a percepção de proventos se a sua reforma for juridicamente admitida pela legislação, ou seja, ficara na condição de adido se a inspeção de saúde realizada pela Administração Militar consignar além da incapacidade definitiva a invalidez, ou, em se tratando de parecer de incapacidade tão somente para as atividades militares, o enquadramento do enfermo nas hipóteses do art. 108, I ou II, do Estatuto dos Militares.

A esse respeito e com relação especificamente ao disposto no art. 429 e seguintes da aludida portaria regulamentar castrense, o fluxograma infra apresenta os caminhos a serem percorridos pela Administração Militar quanto ao militar prestador do serviço militar inicial, o que ainda é aplicado, somadas as alterações promovidas no Estatuto dos Militares. Vejamos:

Figura 1 – Fluxograma de Representação do Art. 429-Portaria nº 749, de 17 SET 12

Figura 1 – Fluxograma de Representação do Art. 429-Portaria nº 749, de 17 SET 12
Fonte: Próprio Autor

Pelo exposto, todo esse caminho deve ser percorrido pelos gestores das Unidades Militares a que pertencem os incapazes, aliás, tais agentes detém o poder de proceder a reforma ou não do militar temporário, posto que restou extirpada do ordenamento jurídico a deflagração desse procedimento a pedido, tão somente ex officio. Com vistas a pavimentar o entendimento acerca de cada instituto jurídico constante da Portaria nº 749, de 17 de setembro de 2012, imperioso tecer esclarecimentos sobre os mais importantes, a saber:

Instituto JurídicoDefinição
EXCLUSÃOAto pelo qual a praça deixa de integrar uma Organização Militar
DESINCORPORAÇÃOAto de exclusão da praça do serviço ativo de uma Força Armada antes de completar o tempo do Serviço Militar inicial.
ADIÇÃOAto de manutenção da praça, antes de incluída ou depois de excluída, na Organização Militar, para fins específicos, declarados no próprio ato.
ENGAJAMENTOProrrogação voluntária do tempo de serviço do incorporado.
ENCOSTAMENTOAto de manutenção do convocado, voluntário, reservista, desincorporado, insubmisso ou desertor na Organização Militar, para fins específicos, declarados no ato (alimentação, pousada, justiça etc.)
LICENCIAMENTOAto de exclusão da praça do serviço ativo de uma Força Armada, após o término do tempo de Serviço Militar inicial, com a sua inclusão na reserva.
Fonte: Regulamento da Lei do Serviço Militar

Nessa toada, MORAES (2022), ao tecer esclarecimentos sobre o direito positivo brasileiro, aduz que a Constituição de 1988 estabeleceu que o ordenamento normativo da nação deve ser perpassado pelo valor fundamental da dignidade da pessoa humana, o que aliás é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Esse anseio, portanto, impediria o retrocesso social, posto que garantiria a promoção da garantia do mínimo existencial, observada a reserva do possível pelo Estado. Nesse sentido, os direitos sociais assegurados pela Carta Maior seriam inerentes ao homem-social, porque estão relacionadas a um complexo de relações sociais, econômicas e culturais que desenvolve, sem as quais o titular não poderia alcançar e tampouco usufruir desses direitos. Com maestria singular, MORAES (2022, p. 125) define que as normas constitucionais, partir do momento que que se exteriorizam em prestações materiais de eficácia positiva, permitem que:

seus beneficiários ou destinatários exijam as prestações que constituem o objeto do direito subjetivo perante o Poder Judiciário, de maneira a assegurar o mínimo existencial – traduzido pelas condições elementares necessárias à existência humana –, e atender à reserva do possível – simbolizada pela limitação dos recursos disponíveis para a consecução das necessidades a serem por eles supridas.

Tomando por parâmetro o arcabouço doutrinário, a colocação do militar temporário ao descambo de uma espécie de subcategoria, privá-lo de vantagens remuneratórias quando da recuperação até a estabilização de um quadro clínico de patologia e garantir tão somente um instituto que o vinculará às Forças Armadas para que proceda a ingerência do controle de sua recuperação, com certeza fere preceitos fundamentais da Constituição Federal.

3 A REFORMA E A ALTERAÇÕES IMPOSTAS PELA LEI 13.9254/19 QUANTO AO MILITAR TEMPORÁRIO

A inteligência da redação original dos Ars. 109 e 110, § 1º da Lei nº 6.880/1980 dispunha que o militar da ativa que fosse julgado incapaz definitivamente para o Serviço Militar por qualquer um dos motivos constantes dos incisos I, II, III,IV e V do Art. 108, do aludido diploma legal, seria reformado com qualquer tempo de serviço, e aqueles enquadrados em qualquer dos incisos I ou II, a saber, ferimento recebido em campanha ou na garantia da ordem pública e enfermidade contraída em campanha ou na manutenção a ordem pública, fariam jus a reforma com remuneração calculada com base no soldo correspondente ao grau hierárquico imediato ao que possuir na ativa; nos demais casos, incisos III, IV e V, esta última benesse somente os alcançaria se sobreviesse o diagnóstico de invalidez, ou seja, a impossibilidade total e permanente para o exercício de qualquer labor.

Comungando com essa linha de raciocínio, em se tratando do parecer, em inspeção de saúde realizada pelo médico perito militar, que evidenciasse a percepção de incapacidade definitiva por qualquer dos motivos constantes do inciso VI, do Art. 108, qual seja, acidente ou moléstia sem relação de causa e efeito com o serviço, o militar da ativa igualmente não ficaria desamparado ou desassistido, posto que o Art. 111, I e II, do aludido diploma legal, assegurava a valiosa reforma ao oficial ou praça com estabilidade assegurada, com remuneração proporcional ao tempo de serviço, e com remuneração integral calculada com respaldo no soldo do posto ou graduação, se fosse o militar de carreira ou temporário considerado inválido.

3.1 DA INCAPACIDADE DEFINITIVA PARA O LABOR CASTRENSE

Portanto, igualitário tratamento era dispensando a militares de carreira e temporários, mormente quanto a passagem desses integrantes a situação de inatividade mediante reforma, a qual, aliás, se efetuava tanto a pedido quanto ex officio pela Administração Militar. Porém, tal sorte somente não acompanhava o militar temporário, sem estabilidade assegurada, que em decorrência de acidente sem nexum com o serviço, fosse considerado incapaz definitivamente para o labor da caserna, mas não para o labor civil. Ao revés, se a incapacidade definitiva para o Serviço Militar decorresse de acidente com relação de causa e efeito com a vida na caserna, era reformado. Esse, em apertada síntese, era o pano de fundo da Seção III – REFORMA, Capítulo II – Da Exclusão do Serviço Ativo, do Estatuto dos Militares.

Alinhado a esse entendimento, a atual legislação demonstra que somente ao militar de carreira restou confiada a reforma em razão do parecer de incapacidade definitiva para o labor castrense, enquanto que o militar temporário, nesta hipótese, somente em se tratando dos incisos I e II do Art. 108 da Lei nº 6.880/1980. Dessa forma dispõe os dispositivos:

Art. 106. A reforma será aplicada ao militar que:
[…]
II – se de carreira, for julgado incapaz, definitivamente, para o serviço ativo das Forças Armadas; (Redação dada pela Lei nº 13.954, de 2019)
II-A. se temporário: (Incluído pela Lei nº 13.954, de 2019)

a) for julgado inválido; (Incluído pela Lei nº 13.954, de 2019)
b) for julgado incapaz, definitivamente, para o serviço ativo das Forças Armadas, quando enquadrado no disposto nos incisos I e II do caput do art. 108 desta Lei;
(BRASIL, 1980)

SANTANA (2020) através da dissertação Amparo Estatal aos Militares Temporários das Forças Armadas acometidas de Doença Com ou Sem Relação de Causa e Efeito com o Serviço, trouxe, mediante análise introdutória da estrutura organizacional e operacional das Forças Armadas, que há um escalonamento e uma hierarquização orquestrada no intuito de, na contramão na ordem constitucional, ministrar tratamento desigual entre militares de carreira e temporários. Pontua que o amparo Estatal em situações de invalidez definitiva é deficitário e que as manobras legislativas poderiam implicar em ofensa à dignidade humana, posto em que se evidenciando o acometimento de moléstias ou acidentes, o status quo ante não poderia ser estabelecido, em outras palavras, o militar não gozaria de aptidão plena e higidez física e psíquica para retornar à vida civil nas mesmas condições em que ingressou na ativa.

3.1.1 A via crucis após a exclusão do serviço ativo

Dessa forma, de interpretação lógico-sistemática da novel conjugação de ideias, ainda que a praça e oficial temporários padeçam de acidente em serviço que os impossibilite de maneira permanente ao pleno exercícios das atividades de natureza militar; ainda que estes sejam acometidos de moléstia grave insculpida no rol do inciso V do Art. 108 em razão do labor castrense ou no decorrer da prestação do serviço temporário, que implique na emissão de parecer total e definitivo de incapacidade para o serviço, estes não mais faram jus a reforma e deverão, em obediência aos dispositivos alhures, ser licenciados ou desincorporados de maneira compulsória do serviço ativo, caso a invalidez não seja identificada em inspeção médica do corpo de profissionais da Instituição a que pertencem os inspecionados.

Noutro prisma, a nova redação do Art. 31 da Lei 4.375/1964 – Lei do Serviço Militar, com redação determinada pela Lei nº 13.954/2019, alude ao entendimento de que o militar temporário somente permanecerá na condição de adido, ato de manter a praça vinculada à Organização Militar com vistas a percepção de todas as vantagens remuneratórias, se for juridicamente admitida a sua reforma, oportunidade em que aguardará até o deferimento ou não do procedimento, mediante comprovação do preenchimento do inciso I ou II do Art. 108. Nos demais casos, será excluída do serviço ativo, ainda que incapaz temporariamente para o serviço, sendo do lhe garantido tão somente o encostamento, nos termos dos §§ 6º e 8º do Art. 31 da Lei do Serviço Militar.

De mais a mais, a remuneração que recebia é extirpada e se procede ao licenciamento ou desincorporação, devolvendo o incapaz à vida civil, com a aplicação do instituto jurídico do encostamento, a manutenção precária de vínculo tênue com a Administração Militar para fins específicos, em sua maioria, a percepção de tratamento médico, com mera probabilidade de recuperação daquele acidente ou patologia.

Com efeito, é lançado à própria sorte no meio civil pois, se não há condições plenas e ilimitadas para o labor, indaga-se como o reservista custeará os meios necessários à sua subsistência. Paralelo a isso, emerge contradição no sentido de que, se a junta médica militar emite parecer de incapacidade c – incapacidade definitiva para o serviço – em razão do acometimento de doença incurável e, somado a isso, se verifique o absoluto esgotamento dos recursos da medicina especializada em seu tratamento, como considerar, de maneira concomitante, que este integrante não se encontra inválido para o labor.

O Agente Médico-Pericial – AMP, Médico Militar encarregado desse mister, emitirá parecer em Inspeção de Saúde o qual poderá ou não concluir pela incapacidade definitiva do militar inspecionado, a depender de sua situação médica. Entretanto, não há como extirpar desses experts um certo juízo de valor ou mesmo discricionariedade na definição da invalidez ou não, ainda que o médico esteja adstrito aos laudos e pareceres especializados.

A jurisprudência dominante no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, mormente em se tratando de militar temporário acometido de moléstia incapacitante, ainda que temporária, se apresentava de maneira pacífica, remansosa e hodiernamente ratificada no sentido de que a adição desse licenciado era medida mais consentânea com a legislação de regência, independentemente do nexocom as atividades militares, bastando que a doença tenha eclodido no decorrer da prestação do serviço castrense. Com a alteração legislativa recente, imperioso nos debruçarmos às decisões do Poder Judiciário sobre a matéria, sobretudo no sentido de identificar como os Tribunais Superiores recepcionarão o entendimento restritivo do legislador.

Nesse diapasão, o Colendo Superior Tribunal de Justiça por intermédio de sua Corte Especial, analisando Embargos de Divergência em Recurso Especial, exterminou controvérsia através de decisão exarada em 19 de setembro de 2018, no qual discutia-se a necessidade ou não do militar temporário acometido de moléstia incapacitante apenas para as atividades militares de comprovar o nexo de causalidade entre a doença e o serviço castrense com o fito de fazer jus a reforma ex officio. Ocorre que a decisãose alinhou a letra da legislação vigente à época, e entendeu ser cabível a desincorporação desse militar, na medida em que não comprovou que o acidente se deu em serviço. Nestes termos:

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA NO RECURSO ESPECIAL. MILITAR TEMPORÁRIO E SEM ESTABILIDADE ASSEGURADA. INCAPACIDADE APENAS PARA AS ATIVIDADES MILITARES E SEM RELAÇÃO DE CAUSA E EFEITO COM O SERVIÇO MILITAR. AUSÊNCIA DE INVALIDEZ. INEXISTÊNCIA DE DIREITO À REFORMA EX OFFICIO. CABIMENTO DA DESINCORPORAÇÃO. PRECEDENTES. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA PROVIDOS.
[…]

11. Portanto, nos casos em que não há nexo de causalidade entre a moléstia sofrida e a prestação do serviço militar e o militar temporário não estável é considerado incapaz somente para as atividades próprias do Exército, é cabível a desincorporação, nos termos do art. 94 da Lei 6.880/1980 c/c o art. 31 da Lei de Serviço Militar e o art. 140 do seu Regulamento – Decreto n.º 57.654/1966.
12. Embargos de Divergência providos. (BRASIL, 2019)

Diante disso, o prognóstico que se tinha, sobretudo quanto ao posicionamento do Poder Judiciário sobre a matéria, não nos parecia favorável ao militar temporário, o qual se alinhava a interpretação em sentido estrito dos dispositivos legais e regulamentares. Tal posicionamento reforça, portanto, a proposição de que evita-se a manutenção de um vínculo ad aeternumcom a Administração Militar, garantindo ao desincorporado ou licenciado um mínimo existencial, qual seja, o instituto do encostamento. Importante ressaltar que representa espécie de vinculação precária e suscetível de revogação, em sendo evidenciada a recusa imotivada ou mesmo desídia quanto ao gozo do suporte médico-hospitalar fornecido.

3.2 DA APLICAÇÃO DA LEI VIGENTE AO TEMPO DA OCORRÊNCIA DO FATO GERADOR DA INCAPACIDADE

A grande celeuma que assola militares temporários acometidos de moléstia incapacitante e igualmente aqueles responsáveis pelos despachos decisórios sobre concessão de reforma por incapacidade física é averiguar quais disposições aplicar em cada caso concreto. Vem emergindo dúvida razoável quanto a aplicação das leis no tempo sobretudo nas situações de militares que detinham parecer de invalidez ou incapacidade definitiva ou temporária anteriormente ao advento da Lei nº 13.954/2019.

A esse respeito, é sabido que em 16 de dezembro de 2019 houve a entrada em vigor do citado diploma legal, porém em inúmeros casos o evento deflagrador ou fato gerador da incapacidade se deu anteriormente a essa data de publicação, dessa forma, se aplicaria a lei vigente ao tempo da união dos requisitos autorizadores da concessão do direito, em homenagem a máxima tempus regit actum. Conquanto, reiteradas Organizações Militares , em total descompasso com o ordenamento jurídico e com o princípio da segurança jurídica, aplicavam aos procedimentos de reforma em tramitação o regramento mais recente, que passou a restringir e mitigar a concessão desses institutos.

Assim, com vistas a uniformizar o entendimento, Advocacia-Geral da União, por intermédio da Coordenação-Geral de Direito Administrativo e Militar, buscou nivelar as Forças Armadas e evitar que a caserna cometesse ilegalidades, posto que inúmeros processos de reforma eram indeferidos pelos órgãos competentes, em virtude de aplicação irregular da legislação castrense em determinados casos concretos.

Os administradores, na ânsia de quererem implementar com celeridade o licenciamento de militares cuja invalidez ainda não teria sido constatada em inspeção de saúde, não manejavam o Estatuto dos Militares em sua redação original, o que culminou para a prática de inúmeras ilegalidades contrarias a dignidade humana e mínimo existencial, posto que a alguns, as vantagens remuneratórias eram cassadas. O Parecer nº 00200/2021/CONJUR-MD/CGU/AGU uniformizou a temática da seguinte maneira:

DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. UNIFORMIZAÇÃO DE TESE. DIREITO INTERTEMPORAL. APLICAÇÃO NO TEMPO DA LEGISLAÇÃO CASTRENSE EM RELAÇÃO AO MILITARES TEMPORÁRIOS QUE JÁ POSSUÍAM ALGUMA INCAPACIDADE QUANDO DA PUBLICAÇÃO DA LEI Nº 13.954/2019.
I – Como regra geral, e com amparo na jurisprudência pátria, é aplicável a lei vigente ao tempo em que ocorrido o fato gerador da incapacidade.
II – Opina-se pela incidência da redação originária da Lei nº 6.880, de 1980, e da Lei nº 4.375, de 1964, para os militares temporários que já possuíam alguma causa de incapacidade, temporária ou definitiva, antes da vigência da Lei nº 13.054/2019. (BRASIL, 2021)

Dessa forma, a AGU pacificou entendimento no sentido de que é aplicável aos militares temporários a lei vigente ao tempo em que ocorrido o fato gerador da incapacidade. Se anterior à Lei nº 13.954/2019, deve-se aplicar a redação originária do art. 108 e art. 109 do Estatuto dos Militares, bem como do art. 31 da Lei do Serviço Militar, conquanto, se posterior, aplicam-se as novas disposições.

4 A TRAMITAÇÃO DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 7.092 / DF – SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

O Partido dos Democrático Trabalhista protocolou em 9 de março de 2022, junto ao Pretório Excelso, Ação Direita de Inconstitucionalidade – ADI nº 7.092, objetivando que o Supremo Tribunal Federal decrete a inconstitucionalidade da Lei nº 13.954/2019, de 16 de dezembro de 2019, ou, alternativamente, o art. 106, II-A, “b” e §§ 1º, 2º e 3º do art. 109 da Lei nº 6.880/1980, com redação dada pela Lei nº 13.954/2019, os quais dizem respeito, respectivamente, ao parecer de incapacidade para o serviço militar e concessão de reforma ao militar temporário das Forças Armadas.

Naquela oportunidade os autos foram distribuídos ao Senhor Ministro Edson Fachin, que em 11 de março de 2022, por meio de decisão monocrática, pontuou que a inicial estaria firmada na convicção de que a norma impugnada atribui tratamento diferenciado ao militar temporário, sobretudo quanto a previdência e assistência social. Os vícios materiais estariam consubstanciados na ofensa ao princípio da vedação ao retrocesso, de modo que o vício formal se encontraria na inobservância do rito estabelecido no art. 142, § 1º, da Constituição Federal. O Partido requereu, liminarmente, a suspensão integral dos dispositivos citados e, no mérito, a declaração de inconstitucionalidade total do diploma legal.

O Ministro reconheceu a total relevância da matéria levada a apreciação e a importância para a ordem jurídica, posto que a lei não só altera o Estatuto dos Militares como a Lei do Serviço Militar e outros diplomas . Por estas razões assentou pela subsunção das razões ao conhecimento do Plenário do Supremo Tribunal Federal. A última movimentação processual da ADI 7092 / DF, consistiu na abertura de vistas ao Procurador Geral da República em 6 de abril de 2022.

Importante trazer à tona, compulsando os autos da ADI nº 0115649-55.2022.1.00.0000 por intermédio do sistema de processo judicial eletrônico da Suprema Corte, trecho capital constante da petição inicial do Partido Democrático Trabalhista. O caderno petitório ao discorrer sobre o princípio da vedação ao retrocesso social, bem sacramenta que a noção de mínimo existencial e a busca pela efetividade do princípio da proteção da confiança está inteiramente abarcada pelas normas definidoras dos direitos fundamentais. Nessa seara, o caderno petitório esclarece que a Lei Federal nº 13.954/19 viola os direitos a previdência, a assistência social e responsabilidade objetiva do Estado, preceitos alicerçados nos arts. 5º, 6º e 37, § 6º da Constituição Federal de 1988, pois:

Cerca de 55% do efetivo das Forças Armadas corresponde a militares temporários, que passam, com o advento da Lei nº 13.954/2019, a consistir verdadeira “subcategoria”, hipossuficiente de proteção e responsabilidade estatal diante de danos sofridos no exercício da atividade. Iniludível, pois, o rebaixamento do padrão protetivo da categoria dos militares temporários, de modo que diversas contingências sociais passaram a ser descortinadas do sistema de responsabilidades das Forças Armadas, em afronta, assim, ao postulado da vedação ao retrocesso social. (BRASIL, 2022)

Noutro aspecto, o Partido Democrático Trabalhista revela que a norma em comento teria sido editada em desrespeito à reserva de lei complementar para dispor sobre o estatuto dos militares, nos termos do art. 22, XXI, e art. 142, §§ 1º e 3º da CRFB/88. Cumpre destacar que a dicção do § 1º do supracitado art. 142 aponta que legislação complementar disporá sobre as normas gerais a serem adotadas na organização, preparo e emprego das Forças Armadas, enquanto que o § 3º, X, do aludido artigo, esclarece que lei ordinária versará, sobretudo, sobre matéria pertinente a estabilidade, direitos, deveres, transferência para a inatividade, remuneração e prerrogativas dos militares das Forças Armadas.

4.1 A INSUBSISTÊNCIA DA ALEGAÇÃO DE INCOSTITUCIONALIDADE FORMAL DA NORMA OBJETO DA AÇÃO E A PERSPECTIVA DA ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO

Se considerarmos que a Lei nº 6.880/1980 – Estatuto dos Militares foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988 com status de lei ordinária, entendimento consolidado pela inteligência do próprio art. 142, §3º, X, da Constituição Federal, e que o preceito a que se refere o § 1º do aludido artigo se encontra devidamente regulado por meio da Lei Complementar nº 97/1999, cuja epígrafe do diploma normativo inaugura a apresentação das normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas, não haveria que se falar em qualquer vício de iniciativa ou ofensa à matéria reservada à lei complementar com as prescrições trazidas pela Lei Federal nº 13.954/2019, de iniciativa do Chefe do Poder Executivo, a teor do que autoriza o art. 61, § 1º, II, “f” da Carta Política de 1988.

Neste ponto, há de se descordar da robusta fundamentação trazida pela exordial do Partido Político, o que aliás, foi amplamente abordado pelas manifestações do Senado Federal, da Câmara dos Deputados e da Presidência da República. Os representantes do Poder Executivo e Legislativo pugnaram pela total ausência de inconstitucionalidades formais da Lei Federal nº 13.954/2019, e aduziram que ambas as Casas do Congresso Nacional travaram amplo debate acerca da matéria, editada no exercício da competência legislativa assegurada pela Constituição Federal.

No entanto, convém fazer menção à robusta e fundamentada manifestação da Advocacia-Geral da União – AGU, exarada com fundamento no art. 103, § 3º da CRFB/88 e na Lei nº 9.868/1999, no contexto da comentada Ação Direta de Inconstitucionalidade. No que tange a inconstitucionalidade material da norma, o Parecer da AGU reconhece que houve distinção operada pela lei questionada, de modo que esta decorre do próprio vínculo do militar temporário, que tão somente destina-se a complementar os quadros de oficiais e praças, enquanto dor da conveniência da administração.

Essa categoria, ao sentir do Advogado-Geral da União, tem ciência de que sua função será exercida por tempo limitado e que não terá direito a proventos na inatividade, o que justificaria a razoabilidade do discrímen e as prescrições reconhecidamente mais restritivas da reforma militar. Em breve síntese, o instituto do encostamento seria amparo condizente com o princípio da dignidade humana. Outro argumento capital a se justificar a constitucionalidade material da norma e, portanto, a garantia do mínimo existencial ao militar temporário, seria a inclusão do art. 27-A à Lei nº 13.954/2019, nos seguintes dizeres:

Art. 27-A. Por ocasião do licenciamento do militar temporário das Forças Armadas, o tempo de atividade e as contribuições recolhidas para a pensão militar serão transferidos ao Regime Geral de Previdência Social, para fins de contagem de tempo de contribuição, na forma estabelecida em regulamento a ser editado pelo Poder Executivo federal. (BRASIL, 1980)

Nesse diapasão, o Advogado-Geral da União Bruno Bianco Leal sustenta o entendimento de que o militar temporário, quando licenciado, não fica ao desabrigo da proteção estatal, posto que poderá se socorrer do Regime Geral de Previdência Social. Somado a isso, no que diz respeito a vedação ao retrocesso social, argumenta que o princípio não se dispõe a engessar e perenizar hipóteses de concessão de um benefício previdenciário, de modo que a alteração de determinada prestação de direito social, sem a alteração de seu núcleo fundamental, se circunscreve a autonomia e discricionariedade do Poder Público. Assim, a calibração dos parâmetros que conferem acesso a esses direitos teria por supedâneo a própria sustentabilidade de proteção social do sistema previdenciário.

De fato, não se trata da imposição de restrição a atividade legislativa ou uma abertura em demasia do leque de princípios da Constituição, pois não há como retirar a pertinência do objeto da ação direita de inconstitucionalidade em trâmite. Se evidenciou um crescimento do quantitativo de militares temporário nas Forças Armadas, o que nasceu a necessidade de restringir a concessão de direitos quando da inatividade, os quais, tempos atrás, foram editados para atender a grande massa de manobra, que eram os militares de carreira, vindo a dificultar a proteção em caráter absoluto dessa classe especial.

4.2 PARECER DA PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA PELA PROCEDÊNCIA PARCIAL DO PEDIDO

Instado a manifestar-se, o Procurador-Geral da República, Antônio Augusto Brandão de Aras, mediante parecer datado de 31 de maio de 2022, comungou pela legitimidade das alterações promovidas aos arts. 106, II-A, “b” e § 1º, e art. 109, §§ 1º, 2º e 3º, da Lei 6.880/1980, entendendo que a matéria relativa a reforma militar não se encontra no âmbito da disciplina da organização, preparo e emprego das Forças Armadas, matérias constitucionalmente reservadas à lei complementar. Por outro lado, divergindo do parecer da Advocacia-Geral da União, a minuta estabeleceu que a precariedade do vínculo do castrense temporário não justifica, por si só, o tratamento diferenciado conferido aos militares para fins de reforma. Nesse diapasão, vejamos trecho capital do entendimento ementado, a saber:

2. Os arts. 106, II-A, “b” e § 1º, e 109, §§ 1º, 2º e 3º, da Lei 6.880/1980, na redação dada pela Lei 13.954/2019, afrontam os princípios constitucionais da isonomia e da vedação de proteção deficiente, porquanto conferem, para fins de reforma por incapacidade definitiva, tratamento desigual aos militares da ativa (efetivos e temporários) no desempenho do serviço militar.

— Parecer pelo conhecimento da ação direta e pela procedência parcial do pedido, para que sejam declarados inconstitucionais os arts. 106, II-A, “b” e § 1º, e 109, §§ 1º, 2º e 3º, da Lei 6.880/1980, na redação dada pela Lei 13.954/2019, de modo que as hipóteses de reforma por incapacidade definitiva sejam aplicadas igualmente aos militares efetivos e temporários. (BRASIL, 2022)

A Procuradoria-Geral da República, se utilizando de situações hipotéticas trazidas pelo elaborado parecer, sustenta o entendimento de que seria irrazoável e desproporcional que militares da ativa, submetidos às mesmas condições no desempenho de suas funções e serviços militares e, portanto, ostentando similitude de deveres e obrigações na caserna, tenham tratamento diverso, para fins de reforma, nas hipóteses a que se refere os incisos III, IV e V do art. 108 da Lei nº 6.880/1980.

Desse modo, seria necessário a dispensação de tratamento jurídico-legal idêntico, não apenas em deveres e obrigações, mas em direitos, sobretudo nas hipóteses de reforma militar por incapacidade definitiva. Assim, a precariedade do vínculo jurídico do militar temporário tão somente justificaria a abstenção do gozo das garantias da vitaliciedade e estabilidade, constitucionalmente atribuídas exclusivamente ao militar efetivo.

CONCLUSÃO

Se evidenciou do presente artigo que a prestação do serviço militar, na condição de militar temporário, decorre de duas situações capitais distintas, a primeira por expressa imposição constitucional consubstanciada na convocação do cidadão para a prestação do serviço militar obrigatório durante período previamente ajustado, enquanto que na segunda, ou prorrogam de forma voluntária o tempo de serviço militar ou prestam na condição de praça ou oficial temporário. Ocorre que o regime jurídico dos militares temporários e seus respectivos institutos são precários e estão sujeitos ao crivo do princípio da discricionariedade administrativa, o que inevitavelmente poderá conduzir a prática de atos administrativos que culminem em um licenciamento deficiente e ilegal, contrário as garantias e preceitos fundamentais.

A manutenção ininterrupta do contingente das Forças Armadas com vistas a obter um melhor preparo e emprego desse universo de militares, inclusive com o objetivo de formação de contingente da reserva não remunerada, aptos e preparados para uma possível mobilização, não pode servir de subterfúgio para criação de subcategoria de militares, diminuição de prerrogativas e garantias contrarias a isonomia; e principalmente, um trato diferenciado por parte do Alto Escalão das Forças Armadas e Chefe do Poder Executivo com aqueles que com o sacrifício da própria vida, com o sacrifício de sua higidez em sua plenitude, com o sacrifício de um estreitamento de laços com o seio familiar, vestem uma farda e se submetem a verdadeiro espírito de sacerdócio e devoção a labuta castrense, em detrimento dos militares efetivos.

O Comandante, Chefe ou Diretor de Organização Militar e seus pares, responsáveis pela aplicação do ordenamento ao caso concreto, devem primar pela legitimidade e legalidade dos atos administrativos praticados, promovendo condutas que visem enaltecer os princípios da legalidade, impessoalidade e moralidade mormente no trato com o direito dos administrados, consoante preconizam os Arts. 1º e 2º da Lei nº 9.784/99 – Lei do Processo Administrativo Federal. Em tempo, não se mostra irrazoável o entendimento de que o dever legal de promover o controle de gastos e a economia para com os cofre públicos não se coadunam com o desrespeito a direitos e garantias fundamentais, tampouco a igualdade e isonomia podem resvalar na prática de arbitrariedades e amesquinhamento de direitos sociais.

Nessa seara, os princípios tempus regit actum e segurança jurídica estariam sendo colocados absolutamente em escanteio ou em total desabrigo, posto que não se trataria da súplica de concessão de regime jurídico adquirido, mas de direito materializado no exato instante do surgimento pretérito do evento certo, determinado e imprevisível que configurou o acidente em serviço ou o surgimento da doença incapacitante; é a simples e elementar aplicação da legislação no tempo da ocorrência desse fato gerador específico, e não aquela vigente à época o ingresso do cidadão no serviço público.

Ao revés, ficou comprovado que a atual redação dos arts. 106, II-A, “b” e § 1º, e 109, §§ 1º, 2º e 3º, da Lei 6.880/1980 não ampara a proteção assistencial nas hipóteses fáticas a que se referem os arts. 108, III a V, e 109, § 3º, do Estatuto dos Militares; a realidade fática é que o militar temporário vítima de moléstia que o incapacite temporária ou definitivamente, ainda que preenchidos os critérios para caracterização do sinistro como acidente e serviço, será licenciado sem qualquer direito, ficando totalmente ao desabrigo estatal.

A aplicação do instituto jurídico da reforma, o qual, a nosso sentir, sobretudo com o advento do diploma legal de que ora se trata, se tornou quase que inalcançável para os militares temporários, deve ser interpretado a luz da dignidade humana, deve ser priorizado a plena recuperação da moléstia ou defeito que os acometeu e, não o sendo possível, que o amparo estatal seja sólido, efetivo e célere, sem os entraves burocráticos impostos pela Administração Militar.

REFERÊNCIAS

ABREU, José Luiz Nogueira de. Direito Administrativo Militar / Jorge Luiz Nogueira de Abreu. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2010.

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo / Luís Roberto Barroso. – 10. ed. – São Paulo : SaraivaJur, 2022.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 3 set. 2021.

BRASIL. Lei do Serviço Militar: Lei nº 4.375, de 17 de agosto de 1964. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4375.htm. Acesso em: 1 set. 2021.

BRASIL. Estatuto dos Militares: Lei nº 6.880, de 9 de dezembro de 1980. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6880.htm. Acesso em: 7 set. 2021.

BRASIL. Lei nº 13.954, de 17 de dezembro de 2019: Reestrutura a carreira militar e dispõe sobre o Sistema de Proteção Social dos Militares. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/l13954.htm. Acesso em: 7 set. 2021.

BRASIL. Decreto nº 57.272, de 16 de novembro de 1965: Define a conceituação de Acidente em Serviço e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/antigos/d57272.htm. Acesso em: 2 de março de 2022.

BRASIL. Regulamento da Lei do Serviço Militar: Decreto nº 57.654, de 20 de janeiro de 1966. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d57654.htm. Acesso em: 6 set. 2021.

BRASIL. Decreto nº 10.750, de 19 de julho de 2021: Regulamenta o procedimento de revisão de reforma por incapacidade definitiva para o serviço ativo ou por invalidez de militares inativos, de carreira ou temporários, das Forças Armadas. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/decreto-n-10.750-de-19-de-julho-de-2021-332933369. Acesso em: 8 set. 2021.

BRASIL. Ministério da Defesa: Exército Brasileiro. Portaria nº 749-Comandante do Exército, de 17 de setembro de 2012. Altera dispositivos do Regulamento Interno dos Serviços Gerais – (RISG), aprovado pela Portaria do Comandante do Exército nº 816, de 19 de dezembro de 2003, e dá outras providências. Disponível em: http://www.dsau.eb.mil.br/index.php/2020-07-15-09-54-41/category/551-regulamento-interno-dos-servicos-gerais-risg. Acesso em 17 abr. de 2022.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Embargos em Recurso Especial – EREsp 1123371/RS. Rel. Ministro OG FERNANDES, Rel. p/ Acórdão Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, CORTE ESPECIAL, julgado em 19/09/2018, DJe 12/03/2019. Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/684618019/embargos-de-divergencia-em-recurso-especial-eresp-1123371-rs-2009-0027380-0/relatorio-e-voto-684618046. Acesso em: 27 abr. 2022.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal .Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7.092 / DF – Processo Eletrônico nº 0115649-55.2022.1.00.0000. Rel. Ministro Edson Fachin. Decisão Monocrática, DJE nº 48, divulgado em 11 de março de 2022. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6360443. Acesso em 2 maio 2022.

BRASIL. Advocacia-Geral da União. Parecer n. 00200/2021/CONJUR-MD/CGU/AGU. BRUNO CORREIA CARDOSO – Advogado da União. Brasília, 31 de março de 2021.

BRASIL. Ministério da Defesa: Exército Brasileiro. Vade-Mécum de Cerimonial Militar do Exército: Valores, Deveres e Ética Militares, aprovado pela Portaria nº 156, de 23 de abril de 2002, do Comandante do Exército. Disponível em: http://www.sgex.eb.mil.br/index.php/cerimonial/vade-mecum/106-valores-deveres-e-etica-militares. Acesso em 27 abr. 2022.

BRASIL. Ministério da Defesa: Exército Brasileiro. DIEx nº 6-Sec_Leg/Sdir_LPM/D Sau. Sindicância para comprovação de acidente em serviço. Vice-Chefe do Departamento-Geral do Pessoal – Brasília, DF, 11 de junho de 2018. Disponível em: https://pt.scribd.com/document/421751994/Diex-6-Dsau-Cmt-Chem. Acesso em 18 abr. 2022.

MORAES, Guilherme Peña de. Curso de direito constitucional / Guilherme Peña de Moraes. – 13. ed. – Barueri [SP]: Atlas, 2022.

SANTANA, Jamil Pereira de. Amparo Estatal aos militares temporários das Forças Armadas acometidos por doença ou acidente com e sem relação de causa e efeito com o serviço. 2020. Dissertação (Mestrado em Direito, Governança e Políticas Públicas – UNIFACS) – Faculdade de Tecnologia e Ciências da Bahia – FATEC/BA. REVISTA FATEC DE TECNOLOGIA E CIÊNCIAS –ISSN: 2448-4695–V. 5. N. 1 –2020. Disponível em: https://fatecba.edu.br/revista-eletronica/index.php/RFTC/article/view/27. Acesso em: 16 set. 2021.

TEIXEIRA, Elder de Oliveira. O Artifício utilizado pelas Forças Armadas para negar a militares não estabilizados e temporários o direito previdenciário à reforma ex officio prevista pelo Estatuto dos Militares, Lei nº 6.880 de 09/12/1980. 2013. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito) – Universidade Presidente Antônio Carlos – Faculdade de Ciências Sociais e Jurídicas de Barbacena – FADI, Barbacena, 2013. Disponível em: https://ri.unipac.br/repositorio/trabalhos-academicos/o-artificio-utilizado-pelas-forcas-armadas-para-negar-a-militares-nao-estabilizados-e-temporarios-o-direito-previdenciario-a-reforma-ex-officio-prevista-pelo-estatuto-dos-militares-lei-no-6-880-de-09/. Acesso em: 15 set. 2021.


1Graduando do curso de Direito da Faculdade de Rondônia – FARO (2022.1) e-mail: samueldavid0698@gmail.com;
2Orientadora: Doutora em Ciências Jurídicas pela UNIVALI/Faculdade Católica de Rondônia, Mestre em Direito Ambiental pela Fundação de Ensino Eurípedes Soares da Rocha, Especialista em Direito Militar pela Faculdade Verbo Educacional – e-mail:andreiatemis@gmail.com