A AUTORIA SOB A VISÃO DISCURSIVA

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7302040


Markson Pascoal Barreto


RESUMO

­­­ Neste artigo discutimos a relação entre a autoria e subjetividade. O referencial teórico utilizado para tal exame se baseia na Análise do Discurso filiada ao filósofo francês Michel Pêcheux (AD). Consideramos também as contribuições de Eni Orlandi que consolidam a AD como uma disciplina franco-brasileira. O objetivo é explorar de que modo a noção de subjetividade no âmbito dessa disciplina enxerga noção de autoria e qual o papel do autor enquanto produtor de linguagem.

Palavras-chave: Discurso. Função-autor. Formação discursiva

  1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

É lugar-comum associar a palavra autor à imagem de um indivíduo que está na origem dos sentidos. Por essa razão, a prática da leitura nos remete a ideia de que o sentido de um texto deriva da intencionalidade daquele que o produziu. Essa relação imaginária que projetamos sobre tal figura está, de certo modo, relacionada com a função do autor de dar a sua produção escrita a aparência de unidade (ORLANDI, 1990). Ela deve, portanto, ser compreendida como resultado de nossa relação histórico-cultural com a escrita, onde se destaca o efeito de unidade quanto à questão da organização textual.

Halbwachs (1990) nos diz que não é incomum atribuirmos a nós mesmos a origem das nossas ideias e reflexões, desconsiderando que elas são inspiradas pelo grupo com o qual convivemos e estabelecemos uma sintonia. Isto quer dizer que nossas reflexões pessoais, feitas a partir de leituras e conversas, nos dão a impressão de terem sido originadas em nós mesmos. Com isso, “nós não percebemos que não somos se não eco” (idem, p. 47). Para a AD, entretanto, o indivíduo não deve ser visto como árbitro da discursivização, mas sim as classes sociais (FIORIN, 1998). Dessa forma, o sujeito do enunciado não se confunde com o autor da formulação, visto que o sujeito é uma função que pode ser ocupada por, “indivíduos até certo ponto indiferentes ao enunciado” (COURTINE, p. 87). Assim, enquanto a formulação está relacionada ao indivíduo, o enunciado está ligado ao sujeito do discurso.

O papel do autor enquanto produtor de linguagem tem sido objeto de discussão, tanto no campo linguístico quanto no literário, notadamente a datar da década de 1960, quando escritores como Barthes e Foucault introduzem novas perspectivas para abordar a relação entre o autor e sua produção escrita. Naquela conjuntura, então marcada pelo estruturalismo linguístico, a AD interveio promovendo críticas a um modelo de interpretação textual pautado na subjetividade. Ainda relativamente comum no espaço escolar, essa abordagem preconiza, grosso modo, a ideia que a competência linguística do leitor, ou seja, o domínio que ele possui em relação à estrutura de uma língua (aspectos sintáticos, morfológicos, semânticos) é suficiente para desenvolver-lhe a habilidade de interpretação textual.

Ao propor um novo olhar sobre a prática da leitura e da interpretação, a AD reconfigura o papel do autor enquanto produtor de linguagem, fazendo com que a intencionalidade do sujeito falante não seja vista como um elemento constitutivo do sentido. Isso porque ela não se ocupa da questão da intencionalidade do enunciador, e sim o modo como um enunciado significa no texto. Nesse sentido, é a posição social do sujeito que ganha relevância. No livro Os limites da interpretação, Eco (2015) exemplifica de que modo o lugar social ocupado pelo enunciador pode interferir na forma como um enunciado é interpretado. No trecho ele cita que “Diante da mensagem ‘Senhor, protegei-me’, é espontânea e honestamente que nos perguntemos se ela foi pronunciada por uma freira em oração ou por um camponês que presta homenagem a um feudatário.”. Esta passagem demonstra que a posição social do enunciador é um aspecto que deve ser considerado ao analisarmos os efeitos de sentidos produzidos por um enunciado, visto que pode haver mudanças significativas no modo como o enunciado é interpretado.

1.2 A função-autor

Lembramos que, do ponto de vista discursivo, o autor não é considerado indivíduo, ou seja, um ser humano inserido no ambiente social, mas como uma das funções enunciativas do sujeito no discurso. Isto porque a AD “não se interessa pelos indivíduos enquanto tais, mas, sobretudo, pelo(s) estatuto(s) que eles ocupam no domínio de atividade” (MAINGUENEAU, 2015, p. 75). Assim sendo, é a posição ocupada pelo sujeito enquanto parte de uma estrutura social, que importa para a AD. Por conseguinte, falar no autor como categoria discursiva implica que, ao produzir seu discurso, ele estabelece uma relação com a exterioridade. Paralelamente, ele constrói a sua própria identidade como autor (ORLANDI, 2008). Logo, o autor, ao formular seus dizeres e se subjetivar em um determinado discurso, o faz por meio da função-autor.

Podemos dizer então que a autoria é uma função do sujeito. A função-autor, que é uma função discursiva do sujeito, estabelece-se ao lado de outras funções, estas enunciativas, que são o locutor e enunciador, tal como as define O. Ducrot (1984): o locutor é aquele que se representa como “eu” no discurso e o enunciador é a perspectiva que esse “eu” constrói. […] a discursiva do autor é a função que esse assume enquanto produtor de linguagem, produtor de texto. Ele é das dimensões do sujeito a que está mais determinada pela exterioridade (contexto sócio histórico) e mais afetada pelas exigências de coerência, não contradição, responsabilidade, etc. (ORLANDI, 2015, p. 74-75)

Ao criar um texto, o autor é diretamente afetado pela existência de sentidos que já circulam no interior de uma dada sociedade e que são, em última instância, determinados pelas condições de produção onde um enunciado se inscreve. Isto quer dizer que o autor não é livre para criar como queira as relações de coesão e coerência em seu texto. Os aspectos semânticos que envolvem sua produção escrita não escapam do fato de que seu texto, enquanto unidade do discurso, é o local onde estão materializados efeitos ideológicos. Isso faz com devamos considerar que em todo discurso existe a presença de significados que são historicamente construídos e fazem parte do imaginário do autor. Nesta direção, podemos dizer que nenhum discurso é produto de uma autoria individual, mas é o resultado do compartilhamento de uma memória coletiva (SILVA e SILVA, 2009). A AD preconiza que certas formas consideradas estáveis podem sofrer mudanças devido a condições de ordem discursiva, de lugar, e, desse modo, produzir diferentes efeitos de sentido (FIORIN, 1996).

Assim, a prática discursiva da leitura, enquanto caminho material para a interpretação, não deve rejeitar os efeitos de sentidos que se distancie dos daqueles pretendidos pelo autor, e sim considerá-los como parte constitutiva do sentido. Em outras palavras, tal falha não deve ser vista, necessariamente, como um mau funcionamento da língua ou falta de competência linguística do falante para interpretar corretamente o código linguístico.

O sentido de que se trata aqui não é um sentido diretamente acessível, estável, imanente a uma iniciada ou a um grupo de enunciados que estaria esperando para ser decifrado: ele é continuamente construído e reconstruído no interior de práticas sociais determinadas. Essa construção do sentido é, certamente, obra de indivíduos, mas de indivíduos inseridos em configurações sociais de diversos níveis. (MAINGUENEAU, 2015, p. 28- 29)

Para a AD não há uma relação de transparência entre linguagem e pensamento, já que os diferentes efeitos de sentidos produzidos por um mesmo enunciado revelam a opacidade da língua e suas relações com a historicidade, a memória e a posição social ocupada pelo sujeito no discurso. Esse posicionamento indica o seu distanciamento teórico com o esquema comunicacional baseado na existência de um emissor que transmite ao receptor uma mensagem formulada em um código para representar um elemento da realidade.

Portanto, não se trata aqui de simples transmissão de informação, mas de como a linguagem funciona do ponto de vista da relação entre sujeito, sentido e a história, ocasionando, assim, múltiplos efeitos de sentido no texto (ORLANDI, 2015). Ainda sobre este aspecto, Charaudeau (2013) considera que um modelo comunicacional que enxerga a relação entre emissor e receptor como simétrica, no sentido de que a função do receptor seria a de um mero decodificador da mensagem do emissor, “elimina todo efeito […] da intersubjetividade constitutiva das trocas humanas […]” (idem, p. 35). Nessa direção, a AD rompe com a análise de conteúdo e com a filologia ao se constituir como uma teoria da leitura, simultaneamente, com a linguística no momento em que essa reivindica para se semântica como um de seus componentes (POSSENTI, 2007).

O postulado linguístico que coloca o sujeito na origem dos sentidos é contestado por Pêcheux (1995) em muitos pontos. Um deles é que uma interpretação formalista-logicista dos mecanismos linguísticos discursivos, organizada em torno das teorias gerativistas de Chomsky, “encobre o efeito ideológico ‘sujeito’, pelo qual a subjetividade aparece como fonte, origem.” (idem, p. 131). Assim, enquanto para Chomsky a gramática engloba todos os componentes da língua, passando a sintaxe a servir de base para os componentes fonológicos e semânticos. A função da gramática, sendo apenas normativa, é permitir que uma frase seja julgada incorreta em relação a uma determinada língua, porém, os sentidos e as significações não são de natureza gramatica (HENRY, 1992) .

Embora no campo da linguagem tenha prevalecido um sistema baseado na competência linguística, não podemos deixar de salientar que outras perspectivas teóricas propuseram fazer intervir no campo da textualidade elementos externos a língua, a exemplo da sociolinguística. Contudo, tais abordagens foram ainda consideradas insatisfatórias por Pêcheux (1995) no tocante a questão da produção dos sentidos. Segundo o filósofo francês, elas continuaram mantendo vínculos contraditórios com a tendência formalista-logicista da linguagem, preservando, nesse sentido, a visão de “uma linguística do estilo como desvio, transgressão, ruptura, etc.,” (PÊCHEUX, 1995, p. 21).

É a partir de Benveniste1 que a noção de subjetividade adquiriu um estatuto verdadeiramente linguístico, ou seja, quando ele visou demonstrar que essa noção estaria relacionada a capacidade de o locutor de se propor como sujeito. Assim, na concepção de Benveniste, é especificamente na linguagem, por um ato individual, que se instaura a posição de sujeito. Ou seja, quando o locutor se apropria de certas marcas na língua, a exemplo do pronome ‘eu’, o qual sempre se dirige a um ‘tu’, instaurando, desse modo, a intersubjetividade.

Para a AD, as práticas linguísticas devem ser analisadas como um fenômeno perpassado pela história e inscrito nos aparelhos ideológicos de uma formação econômica. Dessa perspectiva, a língua é considerada opaca e atravessada por elementos não diretamente relacionados à sua estrutura, (fonológica, morfológica, sintática), mas ligados a história e seus efeitos ideológicos. Possenti (2009) cita três razões para as múltiplas interpretações de um texto. Inicialmente, o leitor pode relacioná-lo a um discurso específico, diferente daquele que o autor está inscrito. Ele pode, por exemplo, fazer uma leitura literal da Bíblia, interpretando-a “como se se tratasse literalmente da história da criação do homem na terra” (idem, p. 14). Uma forma de leitura que pode conduzir o leitor a diferentes datações no que diz respeito ao tempo de existência do ser humano na Terra. Em segundo lugar, o leitor, por já deter um conhecimento sobre determinado tema, poderá ler um texto como algo já sabido, ainda que o autor esteja tentando dizer algo diferente. Ou seja, ainda que o autor esteja aderindo a outro discurso. A terceira razão diz respeito à liberdade que o leitor possui de relacionar os enunciados presentes em um texto a outros, sem considerar “gêneros, FD, campos diversos, doutrinas eventualmente expostas, etc.” (ibidem, p. 15).

Historicamente, o ato de aprender a ler e escrever estiveram, quase sempre, condicionados às regras escolares que ditam normas que funcionam como uma espécie de “assepsia do pensamento (as famosas ‘leis’ semântico-pragmáticas da comunicação.)” (PÊCHEUX, 1995, p. 62). Tais regras remetem a uma questão ainda muito presente nos livros escolares: ‘o que o autor quer dizer no texto?’. Entendemos que, para um entendimento dos aspectos discursivos do texto, ou seja, da materialização de uma dada ideologia, a mesma questão pode ser reformulada para: ‘o que o texto significa?’ Desse jeito, deslocamos foco de análise dos aspectos semânticos do texto não apenas para o funcionamento da língua por si mesma, mas com base em sua articulação com a história e com os lugares sociais ocupados pelos interlocutores.

1.3 O papel social do autor

Ao propor que a análise do discurso (AD) estivesse inscrita no campo das pesquisas linguísticas, Pêcheux (2019) a coloca em confronto com o espaço da leitura e da interpretação, fazendo dela uma prática que põe a figura do historiador, do filósofo, do escritor, do leitor, etc. diante da discursividade. Desse modo, podemos dizer que o papel do autorse assemelha ao do historiador no sentido de que caberia a ambos o papel social de reconstruir as formas discursivase materiais de um texto, bem como as circunstâncias em que elas são produzidas. Nessa direção, tanto historiadores quanto filósofos, romancistas, cronistas, etc. estão vinculados à função-autor (CHARTIER, 2012).

Pensar no papel social do autor implica em analisar como, enquanto sujeito discursivo, ele é culturalmente construído em um contexto sócio-histórico (ORLANDI, 2008) Esse entendimento exige que possamos compreender o seu funcionamento não só no espaço institucionalizado da escola, mas também fora de seus domínios, “é atuar no que define a passagem da função do sujeito enunciador para a de sujeito-autor” (idem,p. 79). Ainda sobre a questão, a autora (2008, p.80) afirma quea responsabilidade do autor é cobrada em várias dimensões: quanto a unidade do texto, quanto à clareza, quanto a não-contradição, quanto à correção, etc. Exige-se uma relação institucional com a linguagem. Uma ilustração disso que estamos falando é a situação comum em que o professor considera certos textos de alunos, até compreensíveis, mas inaceitáveis. O que o professor está cobrando, e está faltando, é que o aluno assuma a posição de autor.

Tal papel implica que não é atribuição do autor ‘criar discursos’, visto que esses possuem existência anterior ao texto por ele produzido. Seu papel seria, portanto, reconstruí-los, ressignificá-los, reconfigurando, sob esse aspecto, as formas do dizer. Apesar disso, Foucault (1996) entende que determinados autores, dada a singularidade de sua obra, podem ultrapassar a condição de meros organizadores de discursos, ocupando, nesse sentido, o patamar de ‘fundadores de discursividade’, a exemplo de Freud e Marx. Segundo o filósofo francês, esses escritores teriam ido além do papel de organizadores de discurso, produzindo as regras e possibilidades de formação de outros textos.

A noção de autoria em Foucault é usada para questionar os mecanismos por meio dos quais um nome próprio é atribuído a alguns textos e não a outros. Dessa forma, aquilo que designa uma autoria exerce um papel classificatório em relação ao conjunto da obra de um autor, fato que possibilita juntá-las em torno de seu nome. Assim, quando ele fala de ‘autor’ como fonte de uma obra, o destaque é dado àquele que exprime uma visão ‘singular’ do mundo.

No campo da AD materialista, a noção de autoria possui um caráter mais amplo. Na verdade, qualquer produção escrita, independentemente de possuir ou não um aspecto singular, ou raro, permite que possamos nos referir a ela como tendo um autor. Assim sendo, para que a função-autor se estabeleça basta que “o produtor de linguagem se representa na origem”, (ORLANDI, 1996, p. 69), ou seja, que ele mostre a presença do ‘eu’ na enunciação, responda pelo que diz e produza um texto com unidade, coerência e responsabilidade social. Dessa maneira, todo enunciado pressupões a existência de um autor.

[…] à diferença de Foucault, que guarda a função de autor para situações enunciativas especiais […] procuramos estender a noção de autoria para o uso corrente, enquanto função enunciativa do sujeito, distinta da de enunciador e de locutor. […] Em outras palavras, ela se aplica ao corriqueiro da fabricação da unidade do dizer comum, afetada pela responsabilidade social. (ORLANDI, 1996, p. 69)

No que diz respeito à questão do estilo, Possenti (2009) considera que a sua combinação com a noção de autoria não representa nenhuma ‘violência teórica’, podendo, assim, atuar de modo harmônico no campo da AD, desde que se consiga desvincular a noção de autor do domínio do romantismo. Melhor dizendo, desde que não a considere o estilo tomando por base a relação autor-obra, vinculando-o, nesse sentido, a noção de estilo à personalidade do autor. Dessa perspectiva, o estilo não deve ser tido como expressão da subjetividade por meio da qual “um autor onisciente escolheria a melhor das alternativas para cada caso e calcularia detalhadamente os desvãos e os detalhes de sentido, suporia leitores que se dariam conta exatamente da sua manobra” (POSSENTI, 2009, p. 92).

A propósito, Charaudeau e Maingueneau (2004) apontam grande dificuldade em definir uma linha de separação entre a AD e a estilística, já que esta pode assumir formatos muito variados. Logo, a delimitação da fornteira entre a AD e a estilística se apresenta de maneira diferente quando analisamos uma obra do ponto de vista linguístico ou de sua produção, circulação e consumo. Seria, portanto, os elementos ligados a esses três últimos aspectos que parece chamar a atenção da AD quando se trata da questão do estilo.

O destaque dado à figura do autor está ligado ao fim da idade média, período em que a noção de indivíduo ganha relevância social (BARTHES, 2004). Nesse período, a posição social do autor adquire maior visibilidade e prestígio social. Essa é uma conjuntura amparada por teorias do conhecimento como o empirismo inglês, o racionalismo francês e a chegada do capitalismo. Essas tendências possuem em comum o fato de valorizar a autonomia individual. Tem-se, desse modo, um quadro social caracterizado pelo conflito de interesses entre o direito individual do autor e o do reprodutor de suas obras pelo editor livreiro. Nesse contexto, Chartier (2012) considera que a definição de propriedade literária foi essencial para sustentar aconstrução da função-autor, isto porque a questão do copyright (direito sobre a obra), na Inglaterra, a partir do início do século XVIII, alterou substancialmente as práticas de publicação dos textos.

Antes desse período, depois da metade do século XVI, a Stationer’s Company, comunidade de livreiros e Impressores de Londres, reivindica a perpetuidade do monopólio sobre o copyright, o qual havia adquirido junto aos seus autores, pleiteando inclusive a direito de poder transmiti-los como herança. Entretanto, a decisão da Rainha quebrava esse monopólio, permitindo que os próprios autores registrassem o seu copyright, tornando-se por direito seus detentores. Este cenário mostra que a função do autor está identificada com aspectos sócio-jurídicos e econômicos, evidenciado sua ligação com um dado quadro institucional.

Foucault (1969) observa que a figura do autor é construída socialmente a partir de diferentes contextos históricos. Ele cita como exemplo o período em que a igreja, com seu caráter punitivo, controlava a publicação de textos que fossem considerados transgressores. O discurso era, nesse sentido, um ato que colocava de um lado o profano e o sagrado, o lícito e o ilícito, o religioso e o blasfemo. Logo, a presença do campo religioso funcionava como uma espécie de censor das produções escritas.

[…] a função-autor está ligada ao sistema jurídico e institucional que contém, determina, articula o universo dos discursos; ela nasce se exerce uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos, em todas as épocas e em todas as formas de civilização; ela não é definida pela atribuição espontânea de um discurso ao seu produtor, mas por uma série de operações específicas e complexas; ela não remete pura e simplesmente a um indivíduo real, ela pode dar lugar simultaneamente a vários egos, a várias posições-sujeito que classes diferentes de indivíduos podem vir a ocupar (FOUCAULT, 1969, p. 20).

Retomando a discussão sobre a origem do sentido, Barthes (2004), ao anunciar provocativamente a ‘morte do autor’, fez, de fato, uma crítica em relação à forma como as obras literárias são analisadas, pois, para ele, havia pouca produtividade em discutir sobre elas baseado nas supostas intenções do autor. Em A morte do autor, Barthes (1988) nos conduz, ilustrativamente, a repensar o papel do autor ao comentar sobre um trecho da novela Sarrasine, do escritor Honoré de Balzac. No trecho, o narrador descreve, em primeira pessoa, os sentimentos de um castrado ao se disfarçar de mulher: “Era uma mulher, com seus medos repentinos, seus caprichos…” (ibid., p. 190). A partir desse fragmento, Barthes afirma que não seria possível determinar a origem dessa fala, pois a produção de um texto representa o apagamento da origem de uma voz, portanto, não se poderia afirmar que uma determinada fala pertença ao escritor, autor, personagem, ou mesmo a uma sabedoria universal.

Essa ideia, de certo modo, aponta para uma perspectiva linguística de análise da obra que reconhece um sujeito e não uma pessoa. Isso significa que o autor ocupa um lugar, antes vazio, no momento da enunciação. Nesta direção Chartier (2012, p. 27) considera que se deve pensar no autor como uma função discursiva, ao invés da evidência individual e social. Em outras palavras, a função-autor está relacionada à circulação e ao funcionamento discursivo a partir de determinadas condições de produção.

Esse ponto de vista nos permite identificar as diferentes posições assumidas pelo sujeito no discurso sem ser necessário recorrer aos aspectos individuais ou psicológicos da vida de um escritor. Assim, no campo da AD, a noção de subjetividade sofre um deslocamento teórico considerável, fazendo com que a questão da produção dos sentidos tenha como referência não a intencionalidade do sujeito, mas o enunciado e as condições de produção em que ele se insere.

1.4 Os esquecimentos

A descoberta do inconsciente por Freud acarreta uma profunda alteração no conceito de sujeito, o qual passa a ser compreendido com base na divisão entre o consciente e o inconsciente. Apoiado nessa concepção freudiana, a AD constrói modo de constituição do sujeito no discurso. Ele se dá por meio de duas espécies de esquecimento: o primeiro (esquecimento n.º 1) faz com que o sujeito se coloque como fonte do sentido, sendo de natureza inconsciente e ideológica. Ele faz com que o sujeito apague, inconscientemente, elementos que remetem a um exterior de sua formação discursiva (FD)9, da qual ele extrai os sentidos daquilo que diz. Desse modo, ele recusa uma e não outra sequência para construir as relações de sentido em seu texto (BRANDÃO, 2012).

[…] para a AD, o sujeito, por não ter acesso às reais condições de produção de seu discurso devido à inconsciência de que é atravessado e ao próprio conceito de discurso com o qual trabalha a AD — uma teoria materialista da discursividade — representa essas condições de maneira imaginária. É o que Pêcheux (1969) chama jogo de imagens de um discurso. (MUSSALIM, 2004, p. 136)

O esquecimento n.º 2 funciona de forma pré-consciente ou consciente. Ele ocorre quando o sujeito retoma ao seu discurso para explicar a si próprio o que diz, de modo a formular os seus dizeres de maneira mais adequada e aprofundar o que pensa. Para isso ele se utiliza de estratégias discursivas tais como, interrogação retórica e reformulação tendenciosa (BRANDÃO, 2012). Nesse movimento, o sujeito seleciona linguisticamente o que deve dizer por meio da relação de paráfrases que se estabelece entre as sequências discursivas que odomina e estão presentes em uma determinada formação discursiva (FD).

Ao fazer uma releitura de Freud, Lacan reexamina o inconsciente como uma estrutura da linguagem. Isso quer dizer que o discurso do sujeito é sempre atravessado pelo discurso do Outro10, ou seja, pelo inconsciente. Nesse lugar desconhecido é de onde surgem as outras vozes, (o discurso da família, da igreja, da escola, etc.). Assim, a compreensão do sujeito como um efeito de linguagem através da psicanálise visa compreender o caráter heterogêneo presente no discurso do sujeito, o qual está dividido entre o consciente e o inconsciente. Brandão (2012) sustenta que a relevância do projeto lacaniano para a AD diz diretamente respeito às questões referentes ao sujeito e a ideologia, a qual pode ser descrita como um sistema de representações estruturado por meio do inconsciente.

Isto supõe que o sujeito deixe de ser considerado como o eu-consciência mestre do sentido e seja reconhecido como assujeitado do discurso: da noção de subjetividade ou intersubjetividade passamos a de assujeitamento. O efeito-sujeito aparece então como o resultado do processo de assujeitamento e, em particular, do assujeitamento discursivo (PÊCHEUX, 2011, p. 156).

A compreensão do sujeito como efeito de linguagem psicanalítico permite entendê-lo como uma divisão entre o consciente e o inconsciente, revelando, deste modo, o seu caráter heterogêneo. Para Brandão (2012), a relevância do projeto lacaniano para a AD interfere diretamente nas questões referentes à ideologia e ao sujeito. Nesse sentido, o texto é considerado o resultado de um trabalho ideológico não consciente. Assim sendo, o sujeito do discurso não pode ser tomado como aquele que está na origem dos sentidos já ques esetes estão previamente determinados pelas condições de produção nas quais o enunciado ocorre.

1.4 O lugar da constituição dos sentidos

As diferentes possibilidades de leitura de um mesmo texto não significa que ele possa tomar qualquer direção interpretativa, isto porque a relação entre ele e a exterioridade (aspectos sócio-históricos) cria limites para a interpretação (ORLANDI, 1996). Isto significa que o gesto de interpretação do autor sobre aquilo formulado em seu texto está vinculado à FD na qual ele está inscrito ao produzir seu discurso. Sob tal perspectiva, uma FD determina aquilo que pode ou não ser dito pelo sujeito no discurso (PÊCHEUX, 1995). Ela é, portanto, o lugar da constituição do sentido, estando ligada ao todo complexo dominante das formações ideológicas.  Desse jeito, a noção de discurso permite compreender que a produção de sentidos é adquirida no interior do interdiscurso (MAINGUENEAU, 2015), o que faz com que a interpretação de um enunciado esteja relacionada, ainda que inconscientemente, a outros enunciados.

A ideologia, pontanto, interpela o sujeito sobre um dado aspecto da realidade; dito de outro modo, sempre que o sujeito se posiciona sobre um dado objeto simbólico, ele o faz baseado em um conjunto de crenças que se ligam às relações imaginárias que ele constrói da realidade. Elas são determinadas pela posição de classe que ele ocupa enquanto parte de uma formação social (PÊCHEUX, 1995). Desse modo, uma formação ideológica (FI) é aquilo que determina nossas atitudes e representações, estando correlacionada às posições de classe em conflito. Os efeitos ideológicos têm como origem as contradições sócio-históricas determinadas pelas de conflito entre os sujeitos a partir da posição por eles ocupada em um dado quadro social.

[…] as ideologias são, em seu nível, forças sociais em luta. Sistemas e subsistemas mais ou menos coerentes, mais ou menos contraditórios, mas também comportamentos, ‘fantasmas’ e imaginários sociais […] são práticas inscritas em realidades materiais, em instituições em aparelhos, alguns servindo mais que outros aos mecanismos da reprodução do assujeitamento ideológico. .

A noção de FD está presente, inicialmente, nos trabalhos de Foucault. O autor compreende os discursos como uma dispersão que não está ligada por nenhum princípio de unidade. Nesse caso, a função do analista do discurso seria descrever essa dispersão e estabelecer regras capazes de reger a formação dos discursos. Para Maingueneau (2015) essa formulação apresenta a dificuldade de construir uma espécie de unidade invisível capaz de explicar certo número de fenômenos. Dessa perspectiva, haveria dúvidas quanto ao fato de que tais unidades não passariam de projeções do pressuposto do pesquisador.

Embora Pêcheux utilize a noção de FD, ele critica o modo como Foucault negligencia os processos de identificação por meio dos quais o sujeito falante se constitui em sujeito ideológico (COURTINE, 2009). Em outras palavras, ele critica que essa noção em Foucault afasta a ideologia como princípio organizador do discurso. O sujeito falante é, de fato, parte da FD, pois ao construir o seu discurso ele se utiliza de estruturas sintáticas abstratas, temas e figuras que “materializam valores, carências, desejos, explicações, justificativas e racionalizações existentes em sua formação social” (FIORIN, 1998, p. 43). Consequentemente, ele não pode ser analisado enquanto individualidade que não sofre as imposições da sociedade em que vive.

A AD, por seu lado, apoia sua noção de FD e FI em três dimensões: o conceito de materialismo histórico, enquanto teoria das formações sociais e suas transformações, a linguística e o discurso como “teoria da determinação histórica dos processos semânticos”. (BRANDÃO, 2012, p. 38).

No quadro teórico da AD, uma FD é constituída por um sistema de paráfrases, dentro do qual ocorre a retomada de enunciados que representam a tentativa de manter as suas ‘fronteiras’ e preservar sua identidade (INDURSKY, 2011). Assim, “enquanto a paráfrase é um mecanismo de fechamento, de delimitação das fronteiras de uma formação discursiva, a polissemia rompe essas fronteiras” (idem, p. 82). Esse aspecto indica que nem sempre é possível fazer com que as fronteiras de FD permaneçam estáveis. Há sempre a possibilidade de que um enunciado adquira novos significados.

2 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, apresentamos uma breve reflexão teórica sobre a questão da autoria e da subjetividade do ponto de vista discursivo. A AD apresenta um vasto campo de possibilidades no que se refere à prática de leitura, muitas vezes não observadas nos tradicionais espaços escolares. A compreensão dos aspectos discursivos de um texto implica que saber interpretá-lo significa ir além dos mecanismos dispostos pela língua. Ela se constitui em uma atividade indissociável da história e da sociedade em que vivemos. Nessa direção, toda construção de sentidos se configura como parte da memória coletiva. Nesse contexto, o autor não está isento das coerções que lhe são impostas pela exterioridade da língua.

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Markson Pascoal Barreto é graduado em Letras com Língua Inglesa pela Universidade do Estado da Bahia-UNEB e Mestrando do programa de Pós-granduação em Estudos de Linguagens da Universidade do Estado da Bahia – Uneb.

1 Cf. Problemas de Linguística Geral.


Universidade do Estado da Bahia – UNEB