Efficiency of the custody hearing, by videoconference, to the detriment of the fundamental rights and guarantees of the arrested person
REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7182802
Autoria de:
Vanessa de Castro Santos de Almeida1
Álvaro Rodrigo Costa2
RESUMO
O presente trabalho possui como objetivo verificar se há eficiência nas audiências de custódias realizadas por videoconferência, em detrimento aos direitos e garantias fundamentais da pessoa privada de liberdade. Busca-se identificar as vantagens e desvantagens da realização da audiência virtual, bem como os desafios enfrentados pelo poder judiciário para realização de tal ato. Ressalta-se que as audiências de custódias foram regulamentadas pela Resolução nº 213/2015 do CNJ, bem como pelo Código de Processo Penal em seu artigo 310. Um dos seus principais objetivos é garantir a integridade física da pessoa privada de sua liberdade e, ainda identificar se houve agressão por parte da segurança pública, desde a prisão até a apresentação perante o juiz de custódia. Conclui-se que o ato virtual não atinge sua finalidade precípua, vez que não garante que os direitos fundamentais serão preservados.
Palavras-chave: Audiência de custódia. Videoconferência. Direitos e garantias fundamentais.
1. INTRODUÇÃO
A audiência de custódia é o ato pelo qual a pessoa privada de sua liberdade é apresentada perante uma autoridade judiciária no prazo de 24h. No referido ato, são analisados a legalidade da prisão [flagrante ou decorrente de ordem judicial], análise dos pressupostos favoráveis à concessão de liberdade ou manutenção da prisão e, principalmente, verificar se os direitos fundamentais do custodiado foram garantidos, no tocante a sua integridade física e moral, eis que é sabido que, culturalmente, as polícias são vistas como torturadoras. Busca-se minimizar as práticas, outrora, praticadas.
A audiência de custódia está prevista no ordenamento jurídico brasileiro desde o ano de 1992 através do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e da Convenção Americana de Direitos Humanos. No entanto, somente em 2015 a audiência de custódia foi instituída no Brasil, através da resolução n. 213 do Conselho Nacional de Justiça. Posteriormente, em 2019, foi incluída no Código de Processo Penal em seu artigo 310 – inclusão do pacote anticrime. Através da audiência de custódia é possível reduzir a população carcerária e tornar a prisão mais humanitária, possibilitando que o juiz tenha contato direto com o custodiado, que deve ser visto como sujeito de direitos.
O principal objetivo da realização da audiência de custódia é garantir que os direitos fundamentais da pessoa presa sejam preservados, desde o ato da prisão, os locais por onde a pessoa foi mantida em cárcere, até a apresentação perante a autoridade judiciária. Vale dizer, que a presença do membro do Ministério Público e de advogado ou membro da Defensoria Pública é obrigatória, bem como a presença do custodiado.
As audiências de custódia desde sua implementação eram realizadas de forma presencial. No entanto, em 2020, com o decreto do estado de pandemia [Covid-19], o CNJ emitiu a Recomendação n. 62/2020 orientando que os tribunais suspendessem a referida audiência, enquanto durasse o estado pandêmico. Considerando que o estado de pandemia não havia previsão para término e visando a realização da audiência, o CNJ autorizou que os tribunais a realizassem por meio virtual, quando não fosse possível a apresentação presencial do preso, no prazo de 24h [ato normativo 9.672].
Desde então, o Poder Judiciário Brasileiro realiza audiências de custódia por meio virtual, até mesmo, com o fim do estado de pandemia.
Assim sendo, o presente trabalho busca averiguar/constatar se as audiências virtuais atingem o fim que se destinam, qual seja a preservação dos direitos fundamentais da pessoa presa. Com isso, é necessário conceituar audiência de custódia(i); elencar as vantagens e desvantagens da realização por meio virtual(ii); verificar a eficiência do ato virtual em detrimento aos direitos e garantias fundamentais(iii) e elencar os desafios do poder judiciário para a realização da audiência pelos meios tecnológicos(iv).
Demais isso, é preciso um estudo pormenorizado das doutrinas e jurisprudências, visando uma abrangência maior do tema.
Pontua-se que as opiniões dos estudiosos e praticantes do direito divergem em relação ao tema. Verificou-se que a magistratura do Brasil apoia, veementemente, o ato por meio virtual, esclarecendo que a presença virtual não inibe a declaração de maus tratos ou tortura, bem como não retira a formalidade do ato. Por sua vez, os advogados e defensores públicos defendem que a audiência de custódia presencial foi uma conquista aos direitos humanos e, uma eventual disposição em contrário seria um retrocesso.
Conclui-se que a discussão sobre o tema está apenas no início e, é preciso sopesar as vantagens e desvantagens da utilização dos meios tecnológicos, para que não haja mitigação dos direitos fundamentais.
A metodologia será realizada por meio de pesquisas qualitativas e descritivas, com base em leis, resoluções, atos normativos, jurisprudência, tratados, convenções, artigos científicos, bem como buscas em sites acadêmicos, tais como “google acadêmico”, revistas dos tribunais e outros inerentes ao assunto que será abordado. Os dados serão coletados como data base no ano de 2018 e com prioridade as informações das datas de 2020, ano em que se iniciou as audiências virtuais.
2. AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA
Conceitualmente, a audiência de custódia é definida como a apresentação de toda pessoa presa a autoridade judiciária, no prazo de 24 horas, para fins de análise da legalidade da prisão, bem como para verificar se houve maus tratos ou tortura no ato da prisão ou pelos locais por onde a pessoa passou, por algum agente estatal.
Massi (2017), define audiência de custódia da seguinte forma:
A audiência de custódia é vista como humanização do processo, ao passo que é possível o contato direto da pessoa em flagrante delito com o juiz. Nesse contexto, a finalidade da audiência é entendida em dois aspectos: visão pretérita e visão futura. A visão pretérita é no contexto de análise da legalidade da prisão e a verificação se houve tortura ou maus tratos no ato da prisão ou pelos locais por onde a pessoa passou, por algum agente público. De outro norte, a visão é futura é análise das qualidades subjetivas de cada custodiado, para se decidir, após ouvir a defesa e o Ministério Público, se a pessoa poderá responder ao processo em liberdade ou se continuará presa.
Massi (2017), infere que a audiência de custódia é um ato pré-processual que garante que todo cidadão seja apresentado a uma autoridade judiciária competente, para fins de aferição da legalidade da prisão. Destaca que nessa audiência é oportunizado ao Ministério Público e à Defesa formularem pedidos/manifestações, sempre restritas à prisão.
A audiência de custódia é realizada em casos de prisão em flagrante e prisão decorrente de cumprimento de mandado de prisão, seja ela cível – pensão alimentícia – ou criminal – cautelar ou definitiva.
A autoridade judiciária analisará se a pessoa responderá ao processo em liberdade ou continuará com sua liberdade restrita, nesse último caso, haverá a conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva. Destaca-se que nos casos de prisão decorrente de mandado prisão, a autoridade judiciária analisará, apenas, se houve ofensa à integridade física e psíquica do preso, não podendo decidir sobre eventual concessão de liberdade.
Historicamente, a audiência de custódia foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro em 1992, através do Pacto de San José da Costa Rica [art. 9º, item 3 – Decreto n. 592/1992], eis que o Brasil é signatário.
No entanto, a implementação da audiência de custódia somente ocorreu após 23 anos, através da assinatura de termo de cooperação técnica entre o CNJ [Conselho Nacional de Justiça] e os Tribunais Brasileiros.
Em 2015, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução n. 213, instituindo, assim, a obrigatoriedade na realização da audiência de custódia no prazo máximo de 24 horas. A edição da resolução foi um marco para a justiça brasileira, eis que foi possível cumprir, em parte, o disposto no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas, bem como o art. 7º, item 5, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica).
Em consonância com a Resolução n. 213/2015 do CNJ, em 2019, o Código de Processo Penal foi alterado, instituindo, também, a obrigatoriedade da audiência, conforme disposto no art. 310.
Art. 310. Após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, o juiz deverá promover audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público, e, nessa audiência, o juiz deverá, fundamentadamente:
I – relaxar a prisão ilegal; ou
II – converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou III – conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.
§ 1º Se o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, que o agente praticou o fato em qualquer das condições constantes dos incisos I, II ou III do caput do art. 23 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), poderá, fundamentadamente, conceder ao acusado liberdade provisória, mediante termo de comparecimento obrigatório a todos os atos processuais, sob pena de revogação
§ 3º A autoridade que deu causa, sem motivação idônea, à não realização da audiência de custódia no prazo estabelecido no caput deste artigo responderá administrativa, civil e penalmente pela omissão
§ 4º Transcorridas 24 (vinte e quatro) horas após o decurso do prazo estabelecido no caput deste artigo, a não realização de audiência de custódia sem motivação idônea ensejará também a ilegalidade da prisão, a ser relaxada pela autoridade competente, sem prejuízo da possibilidade de imediata decretação de prisão preventiva.
O estado de São Paulo foi o primeiro estado a realizar audiências de custódia e, posteriormente, outros estados brasileiros. Conforme dados extraídos do CNJ – SITAC – foram realizadas 652 mil audiências de custódia desde fevereiro de 2015 até 11.09.2022, vide figura 1.
Figura 1 – Estatística sobre Audiência de Custódia Nacional
Instituída a audiência de custódia foi preciso estabelecer sua forma procedimental, razão pela qual, foram criados manuais, pelo CNJ, para padronização em todo o país, tais como: Manual sobre Tomada de Decisão na Audiência de Custódia: Parâmetros Gerais (sumários executivos – português / inglês / espanhol);Manual sobre Tomada de Decisão na Audiência de Custódia: Parâmetros para Crimes e Perfis Específicos; Manual de Proteção Social na Audiência de Custódia: Parâmetros para o Serviço de Atendimento à Pessoa Custodiada (sumários executivos – português / inglês / espanhol); Manual de Prevenção e Combate à Tortura e Maus-tratos para Audiência de Custódia (sumários executivos – português / inglês / espanhol) e Manual sobre Algemas e Outros Instrumentos de Contenção em Audiências Judiciais: Orientações Práticas para Implementação da Súmula Vinculante n.11 do STF pela Magistratura e Tribunais (Handbook on Handcuffs and Other Instruments of Restraint in Court Hearings) Sumários executivos – português / inglês / espanhol.
A audiência de custódia, como já dito, é a primeira audiência, o primeiro contato do juiz com a pessoa presa. Acrescenta-se que não será apreciado o fato imputado, logo, não será proferida sentença condenatória ou absolutória.
A finalidade da audiência de custódia é analisar se a prisão ocorreu dentro do disposto em lei, seja ela decorrente de situação de flagrância ou ordem judicial. O juiz decidirá se é caso de relaxamento da prisão, concessão de liberdade provisória com ou sem aplicação de medidas cautelares – conversão da prisão em flagrante em preventiva e, ainda, verificar se houve ofensa à integridade física da pessoa presa desde o momento da prisão até a apresentação na audiência de custódia
A audiência não poderá ocorrer sem a presença de advogado/defensor público, garantindo-se o contraditório. É preciso pontuar que a presença física do custodiado também é indispensável para realização do ato. Com isso, a solenidade torna-se mais humanitária, vez que é possível o juiz ter contato direto com a pessoa que sofrerá as consequências de sua decisão.
A coleta de relatos de maus tratos/tortura também é uma das principais finalidades da audiência de custódia. A Constituição Federal de 1988 estabelece no seu art. 5º, incisos III e XLVII, que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante” e que “não haverá penas cruéis”, logo, a audiência de custódia tornou-se um dos principais instrumentos para coibir essas práticas. Havendo relatos de maus tratos o juiz, obrigatoriamente, deverá determinar a instauração de procedimento para apuração, encaminhando-se cópia dos relatos para o Ministério Público e para a Corregedoria competente. Ressalta-se que o custodiado deverá ser submetido a exame de corpo de delito antes da audiência.
As audiências de custódia até março/2020 eram realizadas, via de regra, de forma presencial, pelos juízes estaduais e federais. Porém, em 2020, devido ao decreto de pandemia [Covid-19], as audiências foram suspensas, por meio da Recomendação 62/2020 do CNJ, enquanto durasse o momento pandêmico, visando garantir a saúde e a integridade física do custodiado e dos servidores do judiciário.
Com isso, foi preciso criar mecanismos que pudessem garantir as finalidades da audiência, conforme previsto na Resolução n. 213/2105 do CNJ, tais como: evitar a superlotação carcerária, garantia dos direitos fundamentais e coibir práticas de maus tratos/tortura durante a prisão. Como meio alternativo, adotou-se a análise do auto de prisão em flagrante, sem a presença do custodiado, por meio virtual, com a presença do Juiz, do Ministério e da defesa [pública ou particular].
2.1. Audiência de Custódia por meio virtual
A audiência de custódia desde sua instalação era realizada, via de regra, por de forma presencial. No entanto, excepcionalmente, alguns juízes realizavam o ato por videoconferência, como é o caso do Juiz da 3ª Vara Criminal da Comarca de Dourados/MS, na ocasião, justificou que o custodiado estava recolhido em um Presídio Federal, sendo seu deslocamento temário – periculosidade – e oneroso, vez que o Fórum ficava distante cerca de 20km.
A possibilidade de audiência de custódia por videoconferência, por analogia, está prevista no artigo 185, §2º, da Lei 11.900/2009, desde que, devidamente fundamentada.
Em 2020, o Brasil e o mundo estavam sofrendo com o estado de pandemia decorrente do Covid-19. Nesse cenário, inesperado e excepcional, buscou-se meios alternativos para que os processos judiciais não ficassem paralisados.
Inicialmente, o Conselho Nacional de Justiça recomendou a suspensão da realização de todas as audiências de custódia nos Tribunais Brasileiros. Todavia, o estado de pandemia não possuía previsão para término e os direitos fundamentais do preso estavam em constante violação.
Em novembro de 2020, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução Nº 357, autorizando a realização de audiência de custódia por videoconferência.
Art. 19. Admite-se a realização por videoconferência das audiências de custódia previstas nos artigos 287 e 310, ambos do Código de Processo Penal, e na Resolução CNJ nº 213/2015, quando não for possível a realização, em 24 horas, de forma presencial.”
Nesse contexto, as audiências de custódia passaram a realizar-se por meio virtual, gerando inúmeros incidentes de Habeas Corpus nos Tribunais Superiores.
É sabido que as inovações tecnológicas possibilitaram o longo alcance da justiça, fazendo com que, mesmo em estado de pandemia, o judiciário não ficasse estagnado. No entanto, é necessário ter cautela ao tornar o excepcional em regra.
Segundo Noronha (2021), o meio virtual não viola os direitos e garantias fundamentais da pessoa presa, vez que lhe será oportunizada a entrevista prévia com o seu defensor, bem como o exame de corpo de delito antes da audiência, garantirá o reconhecimento de eventuais lesões.
A magistratura defende que a audiência virtual é um avanço tecnológico que se tornou um aliado da justiça brasileira, trazendo inúmeros benefícios. Dentre eles, destaca-se a economia financeira de transporte de presos.
Para Dumont, a presença física do preso perante a autoridade judiciária é garantia que não deve ser mitigada, sob pena de perder sua finalidade precípua, qual seja, presença física do preso perante uma autoridade judiciária competente.
A defesa, por sua vez, afirma que há descaracterização do ato, vez que uma imagem virtual não é capaz de suprir a formalidade necessária para que a finalidade seja atingida, tendo em vista que o custodiado participa da audiência na unidade prisional ou até mesmo em delegacias.
Pereira (2022), defende que o meio virtual desnaturaria o sentido do ato, vez que eventuais alegações de tortura ou maus tratos deixam de serem relatados. Aliado a isso, defende que a audiência presencial é uma conquista na matéria de direitos humanos, não podendo haver retrocesso.
No Brasil, segundo dados do CNJ, houve uma redução de 83% nas denúncias de maus tratos/tortura, nos três primeiros meses em que se iniciou a realização da audiência de custódia por meio virtual.
A Associação para Prevenção da Tortura (APT) publicou pesquisa realizada em 16 países no decurso de 30 anos, que atestou que o maior indicie de relatos de maus tratos/tortura ocorrem na apresentação física do preso perante o juiz, nas primeiras horas em que ocorreu a prisão.
Aliado a isso, temos a denúncia realizada pelas organizações Conectas Direitos Humanos, Association for the Prevention of Torture, Rede Justiça Criminal and Agenda Nacional pelo Desencarceramento na 46ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos, ocorrida em Genebra, no mês de março/2021 e o apelo enviado a Comissão Interamericana de Direitos Humanos [CIDH] por mais de 60 organizações brasileiras, que enfatizam o cerceamento do combate à tortura, nas audiências de custódia virtuais, vez que não é possível aferir eventuais maus tratos/tortura.
Contudo, em uma análise nos dados constante no site do CNJ, é possível verificar que não houve redução nas denúncias de maus tratos/tortura no estado de Rondônia – mês referência – agosto 2019/202. Pontua-se que no Estado de Rondônia as audiências de custódias ainda são realizadas por meio virtual, mesmo com o fim do decreto de pandemia, vide figura 2.
Figura 2: Estatística sobre Audiência de Custódia – RO – Agosto/2019
Analisando-se os dados constantes na figura 2, observa-se que na audiência de custódia presencial os relatos de maus tratos/tortura, perfazem um total de 5. Na figura 3, constata-se que houve aumento nos relatos de maus tratos quando da realização da audiência por meio virtual.
Figura 03 – Estatística sobre Audiência de Custódia – RO – Agosto/2021
A Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB – defende a virtualização do ato, para tanto, afirma que as decisões não sofrem alteração com a apresentação remota da pessoa presa. Para muitos, a insistência dos juízes na audiência virtual deve-se ao fato que o ato é visto como prejuízo, vez que, move todo um aparato estatal, quando a análise poderia ser feita de forma mais simples, sem a necessidade da presença física.
2.1.1. Dos direitos e garantias fundamentais da pessoa presa
O Brasil, culturalmente, é visto como o país do encarceramento, justificando-se, muitas vezes, pela garantia da ordem pública. A prisão é decretada/mantida como forma de coibir a prática criminosa, mas o que ocorre é o julgamento do preso, precipitadamente, antes mesmo do devido processo legal.
É notório que as prisões são medidas que privam o cidadão de sua liberdade e refletem diretamente na sua vida em sociedade, familiar, bem como sua moral.
A Constituição Federal assegura a toda pessoa presa o respeito à integridade física e moral e a garantia de que não serão submetidos a tortura e nem a tratamento desumano ou degradante.
O Artigo 5º, incisos III e XLIX da CF, dispõe que: “III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; […] XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;”
Ao realizar-se uma prisão é imprescindível que o preso seja cientificado de seus direitos previstos constitucionalmente, dentre eles, o de permanecer em silêncio e receber assistência técnica para sua defesa.
A audiência de custódia não é vista como um simples ato que define a prisão ou concessão de liberdade do preso, mas sim, o momento de verificar se houve garantia dos direitos. Assim sendo, o Conselho Nacional de Justiça elaborou um manual para audiência de custódia com orientações para o magistrado, visando o acolhimento do preso. O referido manual indica as perguntas que devem ser feitas ao preso, limita o armamento utilizado por agentes públicos e, principalmente, proíbe o uso de algemas. As medidas são vistas como formas de estabelecer um vínculo de confiança com o preso, aprimorando a condução das perguntas para dar eficiência ao ato.
Aliado a isso, temos a Resolução 414/2021 do CNJ que estabelece diretrizes e quesitos periciais para a realização dos exames de corpo de delito nos casos em que haja indícios de prática de tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, conforme os parâmetros do Protocolo de Istambul, e dá outras providências.
A Resolução n. 213 do CNJ, em seu artigo 6º, garante a entrevista prévia e reservada do custodiado com o seu defensor.
Art. 6º Antes da apresentação da pessoa presa ao juiz, será assegurado seu atendimento prévio e reservado por advogado por ela constituído ou defensor público, sem a presença de agentes policiais, sendo esclarecidos por funcionário credenciado os motivos, fundamentos e ritos que versam a audiência de custódia.
O Conselho Nacional de Justiça – CNJ – ao autorizar a realização de audiência de custódia por videoconferência garantiu a entrevista prévia e reservada, facultando ao defensor acompanhar o custodiado na unidade prisional, conforme disposto no art. 19, §1º, da Resolução n. 329/2020. “§1º Será garantido o direito de entrevista prévia e reservada entre o preso e advogado ou defensor, tanto presencialmente quanto por videoconferência, telefone ou qualquer outro meio de comunicação.”
Com efeito, as resoluções e atos normativos editados pelo CNJ é em busca do alcance da finalidade precípua da audiência de custódia, preservação dos direitos e garantias fundamentais.
A instituição da audiência de custódia foi considerada um marco para a justiça brasileira, pois além de cumprir os pactos em que o Brasil é signatário, garantiu ainda, o combate à tortura na entrada do preso no sistema de justiça.
Para Michele Bachelte – Alta Comissária da ONU para Direitos Humanos pontua que:
A audiência de custódia é um instrumento fundamental para as pessoas detidas denunciarem abusos e, especialmente, tortura e maus tratos, informando imediatamente as autoridades judiciais. Baseia-se em normas internacionais de direitos humanos como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o artigo 9 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.
Partindo dessa premissa, para a defesa, através de uma tela, com a presença de agentes de segurança no local da audiência, há a mitigação dos direitos já conquistados, acarretando a diminuição dos relatos de maus tratos/tortura.
A audiência de custódia, atualmente, é o principal meio de combate à tortura. Desde sua implementação já foram relatados 70.700 casos de maus tratos e tortura no ato da prisão e nos locais por onde o preso ficou recolhido. Porém, esse mecanismo enfrenta problemas estruturais, conforme apontado pelo relatório “Tortura Blindada” da organização Conecta Direitos Humanos. No referido relatório, apontou-se que em 363 relatos de tortura, não houve o encaminhamento para apuração, perfazendo 26% dos casos.
O SISTAC – Sistema de Audiência de Custódia – confirma os dados constantes no relatório em comento, apontando um déficit nos encaminhamentos, vez que de um total de 6,2%, apenas 2,9% são encaminhados para apuração, ficando evidente que os relatos não são vistos como prioridade e com a seriedade necessária para o combate.
Segundo o relatório do CNJ – em comemoração aos 6 anos da implantação da audiência de custódia – houve uma diminuição da população carcerária em 30%, assim sendo, a audiência de custódia não é apenas para colheita de eventuais torturas, mas sim o meio, eficiente, para políticas que permitam a liberdade do preso e o encaminhamento para apoio social e psicológico, evitando, assim a reiteração.
2.1.2. Da Humanização nas audiências presenciais
As audiências de custódia presenciais são vistas como uma individualização processual, possibilitando a análise do caso concreto pela autoridade judiciária.
Em uma audiência presencial, é possível que o juiz perceba a realidade de cada preso, através dos relatos, comportamentos e, até mesmo através do tom da fala.
Em atos presenciais, em tese, a sensibilidade é perceptível aos sujeitos atuantes, possibilitando que a definição de eventual concessão de liberdade ou prisão seja avaliada em um contexto humanizado e, não, em papéis administrativos encaminhados pela autoridade policial. Assim sendo, é possível concluir que o magistrado através de um vídeo não poderá aferir as falais não verbais do custodiado, tais como gestos e eventuais marcas decorrentes de eventuais agressões físicas. Aliado a isso, temos o apelo das organizações de direitos humanos enviado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Da mesma forma, é o comparecimento físico e o contato direto com a pessoa custodiada que permite que o magistrado ou magistrada que preside a audiência de custódia realize uma inspeção visual de eventuais sinais que indiquem ocorrência de práticas de tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, conforme previsto no Protocolo II da Resolução 213 de 2015 do Conselho Nacional de Justiça. Além da inspeção visual para a detecção de possíveis marcas ou lesões visíveis, o momento da audiência de custódia permite a visualização da postura, do caminhar e da linguagem corporal, os quais podem sinalizar ou indicar alguma dor, sintoma ou sequela decorrente de suposta violência sofrida.
Portanto, as audiências de custódia virtuais são incapazes de estabelecer comunicação eficaz com os custodiados, prejudicando a análise humanitária necessária para realização da solenidade.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao argumento de possibilitar a realização de audiência de custódia em meio a pandemia do COVID-19, o CNJ possibilitou que os Tribunais realizassem audiência de custódia por meio virtual, ao mesmo tempo, contrariou os pactos que o Brasil é signatário, gerando conflito com as organizações de defesa dos direitos humanos.
Analisando a realização da audiência de custódia virtual, percebe-se, claramente, a violação dos direitos e garantias constitucionais, vez que não há presença física do preso na solenidade. Percebe-se a mitigação dos direitos já conquistados e o descumprimento dos requisitos mínimos para sua realização, tais como câmera 360º e não presença de agentes públicos de segurança no local.
A audiência de custódia é vista como ato prescindível para a magistratura, sob o argumento de que há um dispêndio institucional desnecessário. De outro Norte, temos a defesa técnica dos presos que contrapõe o argumento dos magistrados, expondo que através de uma tela não há humanização na solenidade. Vale salientar que, as unidades prisionais e delegacias não dispõe de condições mínimas que possibilitem que os presos fiquem em local reservado para entrevista prévia e participação na audiência, logo, como é possível garantir que o preso rodeado de agentes públicos de segurança denunciará que seus direitos foram violados.
Insta frisar que a audiência de custódia foi instituída para que o preso fosse apresentado no prazo de 24h de forma presencial. A autorização para a conversão do ato em virtual ocorreu por força maior, qual seja, pandemia. No entanto, finda o estado pandêmico Tribunais continuam a se valer da exceção, agora, sob o argumento de economia financeira aos cofres públicos, com o não translado de presos, garantem, os magistrados, que não há alteração fática nas decisões que seriam proferidas com a presença física do preso. Contudo, percebe-se que a política do encarceramento é reafirmada quando o preso é visto por uma tela. Conclui-se que não é possível aferir tortura, maus tratos, coerção, sem que o preso esteja diante do juiz, bem como, não há como humanizar o ato.
Por fim, a audiência de custódia é a porta de entrada do preso perante o estado, através dela é possível estabelecer uma relação de confiança com aquele que está privado de sua liberdade. O juiz exerce papel fundamental na audiência, que deve ser vista como o meio de combate à tortura e, principalmente, o meio de aplicar a política do desencarceramento. Não se olvida, os avanços tecnológicos que em muito contribuem para a celeridade processual, mas em alguns casos deve ser seguido o modo tradicional, qual seja, forma presencial.
Ante o exposto, em que pese os argumentos da Associação dos Magistrados Brasileiros, não lhe assiste razão para manutenção da audiência de custódia virtual. Embora haja autorização através de Resolução do CNJ, a exceção foi criada sob a vigência de uma pandemia, o que demonstra que sua extinção também deveria acompanhar o seu fim.
Ressalvados os benefícios dos meios tecnológicos, estes não podem sobrepor os direitos e garantias fundamentais do cidadão, principalmente, quando ele está privado de sua liberdade, em uma situação de vulnerabilidade, muitas vezes, após ter sua integridade física violada.
Demais isso, é dever do estado combater os atos de tortura praticados por agentes de segurança pública, não podendo se eximir ou mitigar o que já está pacificado. É notório que a redução de relatos de maus tratos, em alguns estados, é a clara demonstração que não há eficiência na virtualização de referida audiência.
Com efeito, por não atender sua finalidade precípua de combate à tortura e garantida dos direitos fundamentais, a audiência de custódia deverá ser realizada de forma presencial, considerando que o meio virtual não propicia ambiente seguro para realização da solenidade.
REFERÊNCIAS
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1Acadêmica de Direito pela Faculdade Interamericana de Porto Velho (UNIRON)
2Prof. Orientador (titulação). Professor de Direito