Two characters, one godfather: The translation of Don Vito Corleone from the novel The Godfather, by Mario Puzo, to Cinema
Dos personajes, un padrino: la traducción de Don Vito Corleone de la novela El Padrino, de Mario Puzo, al Cine
REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7158993
Autoria de:
Rôner Rômulo Bezerra Porto1
RESUMO:
As interseções entre Literatura e Cinema rendem frutos não só para a indústria cultural, mas também conseguem angariar cada vez mais espaço nos estudos acadêmicos que se ocupam de analisar os processos responsáveis por aproximar essas linguagens artísticas. As adaptações fílmicas elaboradas a partir da expressão literária, ou mesmo aquelas em sentido contrário, revelam-se como traduções intersemióticas aptas a levarem em consideração as especificidades de cada linguagem, bem como as estratégias adotadas por seus autores, escritores ou cineastas, para a realização de suas respectivas obras. Sob essa ótica, este artigo se propõe a analisar as nuances da tradução e da reescritura do personagem Don Vito Corleone a partir do romance fonte, O poderoso chefão (2016), de Mario Puzo, para os textos fílmicos homônimos dirigidos por Francis Ford Coppola, O poderoso chefão – Parte I (1972) e O poderoso chefão – Parte II (1974). As investigações aqui apresentadas foram norteadas pelos conceitos de Estudos Descritivos da Tradução desenvolvidos por Gideon Toury (1995), no conceito de Reescritura elaborado por Andre Lefevere (1997) e na Teoria dos Polissistemas idealizada por Itamar Even-Zohar (1990, 2005). Fenômeno de grande sucesso comercial, a franquia fílmica de O poderoso chefão (1972, 1974, 1990) é referência amplamente citada por críticos, teóricos e público em geral quanto à sua qualidade, figurando em muitas listas de maiores filmes da história do Cinema, portanto considerado um marco da cultura ocidental contemporânea.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura comparada; Cinema; Estudos da Tradução; Reescritura; O poderoso chefão.
ABSTRACT:
The intersections between Literature and Cinema bear fruit not only for the cultural industry, but also manage to gain more and more space in academic studies that deal with analyzing the processes responsible for bringing these artistic languages closer together. The film adaptations elaborated from the literary expression, or even those in the opposite direction, reveal themselves as intersemiotic translations able to take into account the specificities of each language, as well as the strategies adopted by their authors, writers or filmmakers, for the realization of their respective works. From this point of view, this article aims to analyze the details of the translation and rewriting of the character Don Vito Corleone from the source novel, The godfather (2016), by Mario Puzo, to the homonymous film texts directed by Francis Ford Coppola, The godfather – Part I (1972) and The Godfather – Part II (1974). The investigations presented here were guided by the concepts of Descriptive Translation Studies developed by Gideon Toury (1995), by the concept of Rewriting developed by Andre Lefevere (1997) and by the Theory of Polysystems idealized by Itamar Even-Zohar (1990, 2005). A phenomenon of great commercial success, the film franchise of The Godfather (1972, 1974, 1990) is a reference widely cited by critics, theorists and the general public regarding its quality, appearing in many lists of the greatest films in the history of cinema, therefore considered a landmark of contemporary western culture.
KEYWORDS: Comparative literature; Cinema; Translation Studies; Rewriting; The godfather
RESUMEN:
Las intersecciones entre Literatura y Cine dan sus frutos no solo para la industria cultural, sino que logran ganar cada vez más espacio en los estudios académicos que se ocupan de analizar los procesos responsables de acercar estos lenguajes artísticos. Las adaptaciones cinematográficas elaboradas a partir de la expresión literaria, o incluso las de sentido contrario, se revelan como traducciones intersemióticas capaces de tener en cuenta las especificidades de cada lengua, así como las estrategias adoptadas por sus autores, escritores o cineastas, para la realización de sus respectivas obras. Desde este punto de vista, este artículo se propone analizar los matices de la traducción y reescritura del personaje Don Vito Corleone desde la novela fuente, El padrino (2016), de Mario Puzo, a los textos fílmicos homónimos dirigidos por Francis Ford Coppola, El Padrino – Parte I (1972) y El Padrino – Parte II (1974). Las investigaciones aquí presentadas fueron guiadas por los conceptos de Estudios Descriptivos de Traducción desarrollados por Gideon Toury (1995), por el concepto de Reescritura desarrollado por Andre Lefevere (1997) y por la Teoría de los Polisistemas idealizada por Itamar Even-Zohar (1990, 2005). Fenómeno de gran éxito comercial, la franquicia cinematográfica de El Padrino (1972, 1974, 1990) es un referente ampliamente citado por críticos, teóricos y público en general en cuanto a su calidad, apareciendo en muchas listas de las grandes películas de la historia del Cine, por lo tanto considerado un hito de la cultura occidental contemporánea.
PALAVRAS CLAVE: Literatura comparativa; Cine; Estudios de traducción; Reescritura; El Padrino.
1. LITERATURA NAS TELAS, CINEMA NAS ESTANTES
O poderoso chefão (1972) é um dos filmes de maior destaque e prestígio na história do Cinema, figurando na maioria das listas de melhores longas-metragens2. Uma das obras que ecoa na indústria cultural, a trilogia levada às telas pelo diretor Francis Ford Coppola é uma adaptação do romance homônimo (The godfather, em inglês) de autoria do escritor ítalo-americano Mario Puzo. Cinquenta anos depois da estreia do primeiro filme da trilogia, a franquia ainda exerce forte influência em diversas mídias3, com exitoso desempenho entre críticos e público. Até hoje a marca em torno da família Corleone e sua saga é um produto com presença marcante, logo uma das adaptações da Literatura para o Cinema de maior fama e rentabilidade na indústria cinematográfica, capaz inclusive de alçar o autor de sua contraparte escrita a um lugar de maior relevo, inclusive com outro romance seu, O siciliano (1984), sendo levado às telas com o mesmo título, em 1987.
Nesse sentido, tendo em vista a relevância da obra fílmica e, consequentemente, da literária mencionadas, este estudo se propõe a analisar alguns dos processos tradutórios envolvidos na transposição do personagem Don Vito das páginas do livro para o Cinema.Vito Corleone é um personagem icônico da obra – até mais do que o filho Michael Corleone, protagonista que divide espaço com Vito até assumir o papel central com exclusividade em O poderoso chefão – Parte III (1990) – com diversas representações e profundo apelo entre os fãs da trilogia e da arte cinematográfica em geral, portanto, dada sua relevância, eleito como objeto de investigação deste estudo. Elegeu-se como corpus deste artigo o romance de Mario Puzo (1964) e os dois primeiros filmes da trilogia dirigida por Coppola (1972, 1974), obras das quais o personagem faz parte.
1.1. Literatura e Cinema: diálogos férteis
As profícuas relações travadas entre Literatura e Cinema acontecem desde o advento da Sétima Arte, a exemplo de inúmeros filmes montados a partir de consagradas obras literárias e, mais recentemente, o percurso inverso de livros escritos baseados em películas de sucesso. A aproximação natural entre essas artes decorre, em especial, devido ao caráter narrativo compartilhado por ambos os meios de expressão, embora não faltem exceções nos gêneros poéticos ou no documentarismo. Nessa perspectiva, surge para os estudos literários, especificamente no que tange à Literatura Comparada, mais um objeto sobre o qual podem se debruçar: os processos intersemióticos surgidos do cruzamento das linguagens literária e cinematográfica.
Como uma expressão artística mais recente, não raras vezes o Cinema buscou textos dos quais pudesse se valer na Literatura, assim como também nas Histórias em Quadrinhos, nos jogos de videogame, na Música, dentre outras possibilidades. O dialogismo oriundo dessas artes é ainda bastante atual e intenso, capaz de movimentar público consumidor e estudiosos de diversas áreas em pesquisas concernentes às transposições para as telas. Nessa perspectiva, tomando por base os Estudos da Tradução, postulados por Gideon Toury (1995), hoje predomina a compreensão de que uma adaptação cinematográfica de um texto literário funciona como uma tradução intersemiótica de uma linguagem com suas particularidades para outra linguagem dotada de características próprias, ou seja, configura-se como uma obra em si mesma. Por isso, devem restar superadas quaisquer expectativas em torno de uma suposta fidelidade de um texto para outro.
Assistir a um filme esperando encontrar os elementos inerentes a um texto escrito é reduzir as amplas dimensões da linguagem cinematográfica apenas ao enredo, pois, haja vista se tratarem de expressões com recursos e elementos próprios, filme e livro não podem ser equiparados senão considerando-se também as diferenças que lhes são atinentes. Consoante a isso, na lição de Robert Stam (2006), quanto aos Estudos de Tradução realizados a partir da interação entre Literatura e Cinema, propõe-se a busca de respostas para perguntas como “o problema que importa para os estudos da adaptação é: que princípio guia o processo de seleção ou ‘triagem’ quando um romance está sendo adaptado? Qual é o ‘sentido’ dessas alterações?” (STAM, 2006, p. 41). Logo, ao bordão “O livro é melhor do que o filme” só pode haver uma resposta: o livro é sempre melhor como livro, assim como o filme sempre será melhor como filme, resguardadas as preferências pessoais de leitores e espectadores.
2. A LITERATURA VAI AO CINEMA
Assim como quaisquer linguagens artísticas, a Literatura não pode ser tomada como objeto isolado ou sacralizado, sobre o qual não se pode lançar mão senão como obra literária em si mesma. Nessa esteira, a experiência literária (BONDÍA, 2002) se esculpe como uma das inúmeras atividades artísticas que integram as vivências humanas, em contato direto e constante com outros meios de expressão. Exatamente em virtude dessas afinidades que não se pode falar em subordinação de uma linguagem a outra, mas sim na existência de textos primários, originais, autênticas obras de arte, uma vez que Literatura e Cinema possuem diferenças em suas “estruturas estéticas” (BAZIN, 1999) que extrapolam as simples necessidades capitalistas de faturamento sobre um mesmo produto em diferentes mídias. Sobre esse assunto, André Bazin (1999) observa que “por mais aproximativas que sejam as adaptações, elas não podem causar danos ao original” (BAZIN, 1999, p.93). Na pior das hipóteses, haverá uma ampliação da bagagem cultural do público consumidor, pois “quanto aos ignorantes, das duas uma: ou se contentarão com o filme, que certamente vale por outro, ou terão vontade de conhecer o modelo, o que é um ganho para a literatura” (BAZIN, 1999, p. 93).
Nessa toada, uma vez que representam obras distintas, com valores estéticos próprios e inseridos em diferentes Sistemas (Literário e Cinematográfico), a transposição do romance para as telas culmina num trabalho de tradução de um texto-fonte para um texto-alvo. A intertextualidade decorrente da proximidade de artes distintas, exige técnicas e métodos próprios para adequar uma obra a outra linguagem, portanto, é possível dizer que a tradução se realiza como uma recriação, uma reescrita para além da equivalência das linguagens. Joel Cardoso (2011) arremata isso ao afirmar que “as artes não se excluem, não se repelem, mas, estabelecendo um diálogo, se autorreferenciam, se complementam” (CARDOSO, 2011, p. 3), pois Literatura e Cinema “podem também aproximar-se no estudo, no ensino e na pesquisa.” (CARDOSO, 2011, p. 3). Nas palavras de Tânia Carvalhal (2006), porém, a relação estabelecida entre os textos de partida e de chegada “não é um processo tranquilo nem pacífico” (CARVALHAL, 2006, p. 53). Nesse processo de adaptação, há inserções dialéticas de estruturas narrativas textuais e extratextuais em um dado espaço, consequentemente surgem nessa aproximação de linguagens certos conflitos naturais à tradução intersemiótica, “que cabe aos estudos comparados investigar numa perspectiva sistemática de leitura intertextual” (CARVALHAL, 2006, p. 53). A noção de tradução como forma de reescritura (LEFEVERE, 2007) favorece o aprofundamento dos Estudos Descritivos da Tradução (TOURY, 1995) e amplia discussões de ordem estética concernentes à Literatura, ao Cinema e a ambos em diálogo. Assim, qualquer texto (verbal, não-verbal ou misto), considerado tradução em uma determinada cultura (ou meio de expressão artística) é objeto legítimo de investigação para os Estudos da Tradução. Vale ressaltar, em tempo, que as análises de transposições de um sistema de signos para outro não devem dar importância apenas à equivalência ou à autonomia das diferentes linguagens, mas, principalmente, às especificidades de cada uma destas.
2.1. Tradução Intersemiótica: horizontes possíveis
As aproximações ocorridas entres distintas linguagens, a exemplo do que pode acontecer com a Literatura, o Cinema, a Fotografia, a Música, o Teatro, dentre outras, podem ser encaradas pela crítica e pelo público como um processo positivo e catalisador para um novo fazer artístico. Roman Jakobson, além de se posicionar contra esse “dogma da impossibilidade da tradução” (JAKOBSON, 2007, p.66), classificou três tipos existentes de tradução, pois “toda experiência cognitiva pode ser traduzida” (JAKOBSON, 2007, p.67). Assim, o estudioso traz à lume as ideias em torno da Tradução Intralingual (na qual se substitui um termo por outro dentro do mesmo sistema linguístico), da Tradução Interlingual (utilizada na tradução entre dois idiomas) e da Tradução Intersemiótica (ou transmutação), que consiste na interpretação dos signos verbais por meio de signos não verbais (JAKOBSON, 2007). O trabalho de transposição de linguagem para outra, de acordo com os Estudos Descritivos da Tradução (TOURY, 2005), é uma atividade intercultural, pois há um movimento de partida de uma cultura para outra. Nesse sentido, é papel da tradução intersemiótica promover a aproximação de meios de expressão diferentes sem, todavia, destituir-lhes de suas singularidades.
Conceito que pode atuar conjuntamente aos Estudos Descritivos da Tradução, é o de Polissistema, que, conforme a Teoria dos Polissistemas (EVEN-ZOHAR, 1990), caracteriza-se como um conjunto (heterogêneo e hierarquizado) de sistemas em interação, catalisador de um progresso interno dinâmico e contínuo dos Sistemas. Assim, distintos Sistemas estão em constante interação, a exemplo do que pode acontecer com a língua, a Literatura, o Cinema, a Cultura (cada um desses é um Sistema em si), funcionando como uma espécie de rede dos fenômenos humanos inter-relacionados com influências exercidas mutuamente (EVEN-ZOHAR, 2005, p.1). Com base nisso, é possível compreender que o Sistema Cultura pode ser objeto de estudos e de pesquisas em sua integralidade, de modo a se levar em conta todos os seus componentes, para que seja melhor compreendida sua natureza e sua função (EVEN-ZOHAR, 2005, p.4). Literatura e Cinema fazem parte, por serem Sistemas com potencial de interação, de um todo do qual são partes conexas. A adaptação fílmica de textos literários excede a redução deste processo: não se trata de uma simples reprodução de outra expressão artística ou de uma desvantagem para o fazer literário ou de uma cópia obrigada a manter uma suposta fidelidade e originalidade ao texto-fonte, pois “a tradução não é mais um fenômeno cuja natureza e cujas fronteiras são dadas de uma vez por todas, mas uma atividade que depende das relações dentro de um determinado sistema cultural” (EVEN-ZOHAR, 1990, p.51). Robert Stam (2008) confirma essa linha de raciocínio ao compreender que a “adaptação se torna apenas um outro texto, fazendo parte de um amplo contínuo discursivo” (STAM, 2008, p. 24).
Desse modo, faz-se mister a assimilação do fato de que obras adaptadas, não importando a linguagem de origem ou a de chegada, são textos autônomos, obras em si mesmas, repletas de sentido e construídas sobre critérios e formas próprias, por isso são independentes, livres de amarras virtualmente sugeridas pela conexão com o texto-fonte.
2.2. A reescritura cinematográfica do texto literário
Com base nessa relação entre Literatura e Cinema como componentes de um mesmo Polissistema, de acordo com Andre Lefevere (2007), a tradução intersemiótica – realizada por “intermediários” (LEFEVERE, 2007, p.13) corresponsáveis pela reescrita da Literatura, por sua recepção geral e pela difusão e sobrevivência de certas obras literárias entre os “leitores não-profissionais”, a grande maioria em nossa cultura globalizada – desempenha relevante função na disseminação da cultura literária ocidental, através das adaptações multimidiáticas, como a fílmica. A utilização de termos como “infidelidade, traição, deformação, violação, abastardamento, vulgarização e profanação” não podem mais ser associados à atividade da tradução. Estudiosos como Johnson (2003, p. 42) afirmam que insistir na fidelidade é, na verdade, um falso problema, uma vez que acaba por ignorar a dinâmica do campo de produção em que os meios estão inseridos. A tradução pode se tratar, dentre outras possibilidades, da transformação de certos elementos inerentes à narrativa literária para as telas; é o resultado, dessa maneira, de um processo que envolve desde recursos linguísticos até aqueles pertencentes ao contexto histórico, social, econômico e cultural nos quais estão inseridos os textos de origem e de chegada. Logo, a transposição intersemiótica é trabalho que merece destaque acadêmico e que se revela muito mais natural do que parece ser. Julio Plaza (2008) corrobora com o entendimento do processo tradutório como algo comum, inclusive na transposição da Literatura para o Cinema, uma vez que “Por seu caráter de transmutação de signo em signo, qualquer pensamento é necessariamente tradução.” (PLAZA, 2008, p.18). A partir dessa perspectiva, é possível perceber que a Tradução Intersemiótica faz parte do cotidiano das pessoas sem que essas percebam, excedendo os exemplos mais óbvios de um produto artístico adaptado para outra linguagem, pois “Quando pensamos, traduzimos aquilo que temos presente à consciência, sejam imagens, sentimentos ou concepções (que, aliás, já são signos ou quase signos) em outras representações que também servem como signos.” (PLAZA, 2008, p.18). Assim sendo, estamos a todo instante dando vazão a traduções intersemióticas, ou seja, estamos transportando ideias de um meio expressivo (pensamento) para outro (linguagem), porque “Todo pensamento é tradução de outro pensamento, pois qualquer pensamento requer ter havido outro pensamento para o qual ele funciona como interpretante. Como se pode ver, o próprio pensamento já é intersemiótico” (PLAZA, 2008, p.18).
Portanto, a tradução intersemiótica vence as barreiras levantadas por ideais ultrapassados de que adaptação e tradução são falsificações de uma obra de arte; “adaptar, enfim, não é mais trair, mas respeitar” (BAZIN, 1999, p. 98). A transposição fílmica resulta, inquestionavelmente, em uma nova obra, completamente independente e mesmo desvinculada do texto-fonte. O texto de partida, embora modificado parcial ou inteiramente quando de sua adaptação para o cinema, permanece como a obra literária que era, ao passo que a nova obra se legitima na consistência de uma nova criação, de produção inédita naquela linguagem. Muitas vezes as adaptações, especialmente para o cinema, são responsáveis pela difusão do texto-fonte para um público maior; a popularidade do cinema permite alcance mais amplo quanto aos espectadores, que, em contato com a adaptação fílmica, podem despertar a curiosidade do público para conhecer o texto literário fonte. Linda Hutcheon (2006) asseverou a possibilidade do contato com “o chamado original após experienciar a adaptação” (HUTCHEON, 2006, p. 14), de modo que se desconstruam os ultrapassados conceitos de prioridade. Para a autora, as obras de arte (da Literatura, do Cinema ou de outras linguagens) “existem lateralmente, e não de modo vertical.” (HUCTHEON, 2006, p. 14).
As concepções idealizadas de genialidade e de originalidade devem ser deixadas no passado, pois “todo texto é absorção e transformação de outro texto. Em lugar da noção de intersubjetividade, instala-se a de intertextualidade” (KRISTEVA, 1971, p.68). Afirma Robert Stam (2008) que “a originalidade completa não é possível nem desejável: e se a ‘originalidade’ na literatura é desvalorizada, a ‘ofensa’ de ‘trair’ essa originalidade, através de, por exemplo, uma adaptação ‘infiel’, é muito menos grave.” (STAM, 2008, p. 23).
Assim, o filme – novo signo em construção – surge a partir do signo literário pré-existente, o objeto imediato. Roland Barthes (1972) assevera que “A desintegração do signo – que parece muito bem ser o caso da modernidade – está certamente presente na empresa realista, mas de uma forma regressiva de algum modo, uma vez que se faz em nome de uma plenitude referencial” (BARTHES, 1972, p. 44).
O texto traduzido com base em outro significa igualmente criação artística, que permite liberdade ao adaptador na escolha dos elementos que referenciem ao texto-fonte, construindo pontos de interseção entre ambas as obras, quer através da tradução dos personagens, quer pelas estratégias narrativas adotadas. Ismail Xavier (2003, p.62) entende que a adaptação deve manter uma relação dialógica não apenas com o texto-fonte, mas igualmente com o contexto em que se encontra, permitindo uma atualização do livro, mesmo quando o objetivo é a identificação com os valores nele expressos.
Na lição de Robert Stam (2008, p.48), cada recriação de um romance para as telas de cinema desmascara aspectos não apenas do texto propriamente dito e seu período de cultura de origem, mas também do momento e da cultura da adaptação. Isso acontece em decorrência, da intertextualidade inerente a qualquer criação artística, seja ela literária ou cinematográfica, porque não se sustenta como completamente original.
A professora Tânia Carvalhal (2006, p.54) afirma que “a imitação é um procedimento de criação literária”, portanto, por analogia, compreende-se como suporte útil também para a criação cinematográfica. A autora complementa ainda que as traduções intersemióticas são dotadas de uma “intencionalidade certa: quer dar continuidade ou quer modificar, quer subverter, enfim, quer atuar com relação ao texto antecessor. A verdade é que a repetição (…) sacode a poeira do texto anterior, atualiza-o, renova-o, (por que não dizê-lo?) reinventa-o” (CARVALHAL, 2006, p.53-54).
O contato da Literatura e com outras artes é interdisciplinar e intertextual, resultando na mutação de um texto (construído em um dado sistema semiótico) em outro pertencente a um Sistema diferente (EVEN-ZOHAR, 1990). O signo literário, pois, torna-se um signo fílmico; o signo verbal é interpretado através de outro sistema, com signos verbais e não-verbais. As manifestações artísticas não podem ser vistas como produtos isolados, estanques; pelo contrário “de há muito sabemos que as artes se correspondem. (…) Um texto, qualquer que seja ele, dialoga com outros muitos textos, com muitas outras linguagens, criando uma teia que, interpenetrando-se, interfere na compreensão e apreensão textual.” (CARDOSO, 2011, p.3). Nesse raciocínio, o movimento de intertextualidade não pode se restringir apenas a textos escritos, mas, além disso, pode explorar horizontes em outros meios, já que “Palavra e imagem se cotejam intermitentemente. Se a palavra gera, consciente ou inconscientemente, uma imagem imediata, a imagem, por sua vez, para ser apreendida, instaura discursos, se explicita através da palavra” (CARDOSO, 2011, p.3). De acordo com Andre Bazin (1999) “a questão é que praticamente todos os filmes, não apenas as adaptações, refilmagens e sequências, são mediados através da intertextualidade e escrita” (BAZIN, 1999, p. 49).
Vencida a ideia de uma suposta hierarquia entre distintas linguagens artísticas, a recodificação de um texto para um novo contexto resulta na ressignificação de seus elementos, pois “a reescritura manipula e é eficiente” (LEFEVERE, 2007, p.24). Com base nisso, ressalte-se que a tradução intersemiótica se sustenta através da reescritura de certos elementos da narrativa, uma vez que Literatura e Cinema se servem de recursos diferentes para seu fazer artístico. A narração em si não pode ser efetuada da mesma maneira em ambas as expressões, porque o escritor conta com a expressão textual capaz de relatar, descrever, criar fluxos de consciência e explorar demais técnicas concernentes ao fazer literário por meio das palavras, ao passo que o filme parte de uma perspectiva completamente diversa para narrar, como a própria visão que a câmera nos permite, para descrever, para construir imagens e metáforas, com sua manifestação de caráter verbo-audiovisual.
Na adaptação fílmica, o plano da expressão é alterado, enquanto o plano do conteúdo pode ser recortado ou mesmo modificado, dependendo dos critérios de seu realizador. Portanto, há muita diferença entre ler um livro e ver a um filme, ainda que este seja “fielmente” adaptado.
3. DON VITO CORLEONE: DO LITERÁRIO AO FÍLMICO
A partir do conceito de tradução (TOURY, 1995) aplicado às adaptações de textos literários para textos fílmicos, a transposição da personagem Don Vito Corleone é objeto de uma reescritura (LEFEVERE, 2007) que leva em conta as singularidades da linguagem para a qual é transportado. Assim, considerando o texto-fonte O poderoso chefão, de Mario Puzo, e os textos de origem, O poderoso chefão – Parte I e O poderoso chefão – Parte II (1972, 1974), aventa-se aqui o exame desse processo tradutório a partir de três camadas que compõem o personagem, a saber: Un uomo di famiglia, Un uomo d’Onore e Il paesano, sob as quais é possível notar diversos recursos utilizados para a reescritura de Don Vito Corleone para as telas.
Dentre os muitos elementos que compõem a narração, destaca-se a construção do personagem, igualmente realizada sob panoramas diversos em linguagens artísticas diferentes. Retomando a ideia de que Cinema e Literatura se constituem muitas vezes como expressões narrativas, os personagens são elementos imprescindíveis para o desenvolvimento de uma obra, desde sua contribuição para a construção da trama, já que (CANDIDO, 1970, p. 53) “o enredo existe através das personagens; as personagens vivem no enredo.”
Antonio Candido declarou (1970) existir uma tendência constante de todos os tempos em tratar os personagens, principalmente, de dois modos, a saber: “1) como seres íntegros e facilmente delimitáveis, marcados duma vez por todas com certos traços que o caracterizam; 2) como seres complicados, que não se esgotam nos traços característicos, mas têm certos poços profundos de onde pode jorrar a cada instante o desconhecido e o mistério.”(CANDIDO, 1970, p. 56). Com base nisso, o estudo da adaptação de personagens literários para meios cinematográficos parece se pautar na segunda categoria, a exemplo do que acontece com Don Vito Corleone, posto que os primeiros representam aqueles coadjuvantes que pouco acrescentam na narração literária ou cinematográfica. O mesmo teórico (1970) continua em suas declarações sobre o personagem de romance “Graças aos recursos de caracterização o romancista é capaz de dar a impressão de um ser ilimitado, contraditório, infinito na sua riqueza; mas nós apreendemos, sobrevoamos essa riqueza, temos a personagem como um todo coeso ante a nossa imaginação” (CANDIDO, 1970, p. 55).
Na Tradução Intersemiótica, outras propriedades devem igualmente ser levadas em conta para a constituição de personagens de riqueza infinita, contraditória, ilimitada, de onde jorram o desconhecido e o mistério. O Cinema se baseia nos recursos audiovisuais de que dispõe para compor os personagens que vemos nas telas: a descrição das características, físicas ou psicológicas, do personagem acontece através do que vemos na tela, na forma de agir, de se comportar, de falar, de caminhar e até no vestuário usado pelo personagem. A imaginação criativa, responsável pelo preenchimento das lacunas na constituição do personagem, resta limitada quando todos os ingredientes já se apresentam prontos na figura que se apresenta nas telas. Exatamente por isso que há uma multiplicidade de profissionais envolvidos diretamente nesse processo tradutório, já que “Entre o argumento, o realizador e o ator, mas também o sonoplasta, o operador ou o desenhador de guarda-roupa, instaura-se um verdadeiro trabalho de negociações que, lentamente, faz emergir a figura fílmica da personagem […]” (GARDIES, 2006, p. 81). Logo, a Reescritura (LEFEVERE, 2007) de um personagem literário para o Cinema faz agir diversificados componentes para o “’fabrico’ da figura actorial: o actante, o papel, o personagem e o ator-intérprete, cada qual participando de maneira específica na elaboração da figura, e isto numa interação constante” (GARDIES, 2006, p. 81).
A escolha de atores que emprestam voz, rosto e corpo a Vito Corleone foi crucial para sua construção, inclusive rendendo ao personagem o posto de primeiro a proporcionar a dois diferentes atores a premiação máxima da Academy Awards, mais conhecido como Oscar, nas categorias de Melhor Ator, para Marlon Brando, e de Melhor Ator Coadjuvante, para Robert De Niro. Ambos os intérpretes conferiram inesquecíveis atributos ao personagem apenas possíveis em sua versão cinematográfica, a exemplo da voz ao mesmo tempo calma e áspera, algo acolhedora, e suas protuberantes bochechas. Essas decisões para a composição dos aspectos físicos fazem parte do processo de Reescritura (LEFEVERE, 2007) em torno do personagem, uma vez que confere ao chefe da Família Corleone características típicas das mídias audiovisuais, nas quais é possível lançar mão dos recursos de som e de imagem que a Literatura não dispõe.
Exatamente por causa dessas diferenças naturais das linguagens empregadas no fazer literário e no fazer cinematográfico, toma-se a adaptação dos personagens literários para obras fílmicas como um processo de reescritura, (LEFEVERE, 2007) em que novos aspectos serão revelados, diferentes traços constitutivos serão demonstrados. Inúmeras variáveis entram em jogo na reescritura que resultará no personagem de cinema a partir de sua fonte literária, e uma das mais relevantes é a necessidade de uma pessoa real que encarne o personagem para que este ganhe “vida”. A criatividade e a imaginação dos leitores bastam para que se forme a imagem do personagem de romance, por exemplo. Entretanto, no tocante aos personagens de filmes, dependerá da ação de um ator para que ganhe expressão, já que “por mais fortes que sejam suas raízes na realidade ou em ficções pré-existentes, (o personagem cinematográfico) só vive quando encarnada numa pessoa, num ator.” (GOMES; CÂNDIDO et al., 1970, p. 114). Considerando todos os elementos constitutivos do personagem Don Vito Corleone, elege-se uma tripla dimensão sobre a qual se sustenta sua tradução para o Cinema.
3.1 Don Vito Corleone: un uomo di famiglia
O personagem Don Vito Corleone é, sobretudo, um homem de família, um patriarca do clã Corleone, pelo qual parece ser capaz de fazer qualquer coisa. O lado paternal do personagem, talvez uma de suas características mais marcantes, é reiterado em diversos aspectos do romance e dos dois filmes, faceta essa que se desdobra também nas outras duas dimensões sobre as quais este trabalho se debruçará mais adiante. Assim, como líder da família de sangue, como chefe da Família Corleone (a associação criminosa) e como um guia para a comunidade italiana e ítalo-americana de Nova Iórque, Vito Corleone exerce sua função de pai em muitas situações das tramas desenvolvidas.
Os métodos utilizados pelo diretor Francis Ford Coppola para a construção desse comportamento do personagem perpassa diferentes decisões de composição em torno de Don Vito, desde a memorável cena de apresentação – trajando o smoking com o qual o personagem é mais comumente lembrado, ao som da canção de Nino Rota e em um cenário escuro que vai ganhando cores e contornos aos poucos, como se fosse iluminado pela presença do protagonista – até a sua última cena em O poderoso chefão – Parte I (1972), na qual brinca com o neto, Anthony Corleone, como um simples avô cheio de amor e carinho a dar.
Virtudes, como o paternalismo típico do Padrinho, e mesmo defeitos, como sua violência e agressividade, recebem tons diferentes no filme e no romance. Ambas as obras se iniciam a partir das cenas que mostram o casamento da filha de Don Vito Corleone, Constanzia Corleone, embora revelem imagens opostas do protagonista. Como demonstração de seu lado carinhoso e familiar, a película incluiu a cena do retrato em família, a qual Don Vito Corleone adiou após perceber que seu filho mais novo, Michael, não apareceria na foto por ainda não ter chegado à festa. Esse lado emotivo do personagem é ressaltado mais uma vez no filme nos momentos nos quais dança uma valsa com sua esposa, Carmela Corleone, e, posteriormente, com sua filha, a noiva que acabara de se casar. Numa cena cheia de lirismo, novamente ao som da clássica trilha sonora de Nino Rota4, o protagonista evidencia seu afeto de marido, de pai e seu amor pela família.
Ainda em torno da sequência que retrata o casamento de Connie Corleone, duas situações exclusivas do filme são fundamentais para transmitir as primeiras impressões de Vito Corleone ao espectador: as cenas iniciais do diálogo do Don com Amerigo Bonasera, nas quais Marlon Brando acaricia com naturalidade um gato achado por acaso pelo diretor Coppola dentro dos estúdios; e a cena de diálogo entre Vito e seu afilhado Johnny Fontante, que reclama por não ter conseguido um papel em um filme de Hollywood, por isso recebe um tapa no rosto dado pelo padrinho impaciente pela fraqueza e pelo lamento de Johnny. Esses dois elementos (o gato e o tapa), curiosamente, não constavam no roteiro original, foram improvisos que, pela qualidade que conferiram às cenas no todo, não foram retirados do corte final.
Na segunda parte da trilogia, o amor e as profundas ligações de Vito Corleone com a família são confirmadas desde as sequências nas quais conhecemos a origem do personagem, nascido Vito Andolini. Por causa de questões familiares, ele foge de sua terra natal, na Itália, em direção aos Estados Unidos. O passado do Don sempre é demonstrado sob um enfoque familiar, seja quando uma criança Andolini, seja quando faz parte do círculo de seus amigos empregadores, os Abbandando, seja como chefe de seu próprio núcleo. O paternalismo destacado no primeiro filme se repete em sua continuação, reforçando a existência dessa qualidade como algo inerente ao homem, presente desde antes de Vito Corleone se tornar o Don visto na interpretação de Marlon Brando.
Essas decisões tomadas pelo cineasta e pelos intérpretes, além de conferirem um certo lirismo e personalidade à obra, evidenciam o processo de apropriação do texto literário de tal modo que esses sujeitos estavam aptos a reescrever personagens e cenas na adaptação fílmica. A partir de um trabalho conjunto de reescritura, nas telas emergiu a versão de Vito Corleone que conquistaria premiações e o gosto do público consumidor e que deixaria uma marca indelével na cultura pop.
3.2. Don Vito Corleone: un uomo d’Onore
Uma segunda camada narrativa construída na tradução para as telas apresenta o personagem como um líder de um vasto império do crime regido por um código de honra próprio, a Omertà, uma lei que conduz a atuação da Cosa Nostra, ramificação da máfia italiana e ítalo-americana a qual pertence Vito Corleone. É nesse contexto que surge outra dimensão do personagem: o Don, un uomo d’Onore, como são conhecidos os membros da máfia. Para além do paternalismo ou de uma presença algo tenra, a figura de Vito Corleone é permeada de um simbolismo de violência e de poder, muitas vezes trazidas à tona na obra fílmica através da frase que o fez se tornar famoso no mundo do crime no qual reinava (e também na cultura pop): “Vou fazer uma oferta que ele não pode recusar”.
Na perspectiva de un uomo d’Onore, sua lealdade e honestidade como chefe são enaltecidas. O Padrinho, como também é chamado, é conhecido por sua honra, por sua simplicidade e humildade, mas também pela violência que lhe é necessária para se manter no cargo que ocupa. É possível atestar essas características em algumas ações vistas, por exemplo, na cena em que o Don recebe Virgil Solozzo, outro chefe criminoso. Nessa sequência, enquanto dialogam, Vito mesmo serve uma taça de vinho a Solozzo e logo em seguida executa um rápido movimento com a mão para limpar a perna da calça do convidado de alguma coisa que não se pode ver com clareza. Essas atitudes, em gestos singelos e lentos, com a paciência que apenas um experiente capo poderia desenvolver ao longo de uma turbulenta vida, asseveram seu comportamento frugal.
Em uma perspectiva contrária daquela assumida em algumas cenas que divergem na adaptação cinematográfica, é no romance em que se constrói com maior nitidez a personalidade fria e violenta de Vito Corleone. Ainda na cena inicial do casamento, num diálogo entre Michael Corleone e sua namorada, Kay Adams, a respeito de um episódio que envolvia um afilhado do Don, fica claro o seu caráter também agressivo. Enquanto na obra fílmica quem empunha a arma para extorquir um líder de banda a liberar Johnny Fontane de um contrato é Luca Brasi, principal assassino sob o comando do Padrinho, no texto fonte o próprio poderoso chefão aponta o revólver em direção de sua vítima, em uma clara demonstração de sua agressividade. Assim também acontece na cena do romance em que o próprio chefe italiano ordena que arranquem a cabeça do cavalo de um adversário seu, ao passo que no filme a subjetividade da superposição das cenas parece nos indicar que a autoria do plano cabe a Tom Hagen, filho adotivo do Don.
Os atos de violência praticados por Vito Corleone em O poderoso chefão – Parte I (1972), portanto, não são explicitamente demonstrados em tela, mas apenas sugeridos por terceiros, pelo ponto de vista de outros personagens. Isso acontece de modo que, apesar do espectador ter plena certeza de que seu papel como chefe de uma organização criminosa exija dele o uso da força, não haja muito mais do que histórias sobre seu caráter violento. Em O poderoso chefão – Parte II (1974), no entanto, o público pode testemunhar a brutalidade de Vito duas vezes, pelo menos: nos assassinatos por ele cometidos contra Don Fanucci e Don Ciccio. Para un uomo d’Onore não havia alternativa senão eliminar alguns inimigos pelo caminho, seja para conquistar sua própria ascensão no mundo do crime matando Don Fanucci, seja para cumprir a vendetta contra Don Ciccio, responsável pela morte de seus pais e de seu irmão. Esse comportamento brutal de Vito Corleone representado em sua versão mais jovem é complemento de seu lado manso e paternal, como personagem não-linear que é. No que concerne ao processo tradutório dessa representação de Vito, vale ressaltar a escolha feita pelo cineasta para demonstrar a transformação de um aspirante a mafioso para um poderoso chefão: o surgimento, depois de eventos cruciais em sua vida, de seu fino bigode estampado no rosto, peça fundamental na composição física do personagem da película.
3.3. Don Vito Corleone: Il paesano
Por fim, compondo a perspectiva tridimensional acerca de Vito Corleone aqui sugerida, invoca-se a figura de Il paesano da qual o personagem se reveste. A presença da comunidade italiana e ítalo-americana é forte no enredo do livro e da trilogia, tendo em vista o fato de evocar muito da cultura e da história do país europeu, mais especificamente da região da Sicília, de onde vemos sequências inteiras nos três filmes. O protagonista é oriundo da Itália e lidera uma organização criminosa originária daquele país, mas que se alastrou para outros lugares, como fizera nos Estados Unidos. Assim, não é raro ver a junção da figura paternal e criminosa de Vito Corleone quando se trata de sua relação com seus paesani, ou seja, com seus conterrâneos. Seja como inimigos (Don Barzini, Don Fanucci, Don Ciccio, Virgil Solozzo), seja como aliados (Peter Clemenza, Salvatore Tessio, Luca Brasi), seja como protegidos (Amerigo Bonasera, Nazorine, Johnny Fontane), Vito Corleone está sempre rodeado por membros da comunidade italiana, na companhia de quem parece se sentir mais confortável e a quem demonstra lealdade. Isso é comprovado por algumas passagens das obras, a exemplo das cenas de O poderoso chefão – Parte II (1974) nas quais Vito Corleone esconde um pacote de armas de um vizinho até então desconhecido (Peter Clemenza, que somente depois passaria a ser um dos caporegime do Padrinho) apenas pelo fato de o sujeito ser italiano; ou pela pergunta feita por Vito a Clemenza de porque Fanucci – descrito no livro como um mafioso napolitano, mas no segundo filme passando a ser siciliano – assedia seus compatriotas: “Ele é italiano? Por que ele perturba outros italianos?” (O PODEROSO CHEFÃO – PARTE II, 1974, 48min).
Além dos caminhos percorridos pelo roteiro que levam o espectador a comprovar o comportamento algo acolhedor do Don com seus concidadãos, as escolhas feitas, primeiramente por Marlon Brando e depois por Robert De Niro, para a movimentação do personagem evidenciam sua origem. Sempre com gestos angulosos, Vito Corleone recebe a típica representação do italiano que fala mexendo as mãos, embora de forma mais contida. Nas telas, é possível notar dedos em riste, mãos emoldurando o rosto durante diálogos, braços cruzados nas costas e tantos outros recursos que reforçam a nacionalidade do personagem. Além disso, a própria fala do Padrinho (mesmo quando em inglês carregada de um sotaque italiano), as canções selecionadas para a trilha sonora do filme, o figurino (arrematado no uso do típico boné italiano por um Vito Corleone jovem), as expressões faciais (habilmente reproduzidas pelos dois intérpretes) e corporais reiteram esse processo identitário.
Depreende-se, desta feita, que a transposição intersemiótica de obras para outras linguagens depende da Reescritura (LEFEVERE, 2007) desses mesmos textos. Não seria diferente, em se tratando do gênero literário romance, com os componentes da narração, a exemplo dos personagens. Nessa toada, a partir dos elementos (figurino, maquiagem, caracterização física, atuação, dentre outros) com com os quais Francis Ford Coppola, Marlon Brando e Robert De Niro formatam Don Vito Corleone para o Cinema, é possível notar a multiplicidade de camadas (das quais se sugeriu a leitura sobre três neste estudo) responsáveis pelo processo tradutório intersemiótico do chefe da Família Corleone das páginas do romance para as telas do filme.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A respeito da Teoria dos Polissistemas, Even-Zohar (2005) declara que as unidades inseridas em um Polissistema podem ocupar lugares centrais, quando obras de maior prestígio comercial e/ou crítico, enquanto aquelas que ocupam posições mais periféricas constituem obras de menor reconhecimento. Ainda que o Cinema tenha ganho bastante notoriedade ao longo dos anos, a Literatura ainda atua como arte de maior influência social e acadêmica, até mesmo mais elitizada. A proposta, no entanto, deste artigo científico encontra situação curiosamente contrária: a popularidade e o sucesso dos filmes para o cinema baseados no romance O poderoso chefão (2016) são muito mais conhecidos do que a obra literária da qual foram adaptados, de maneira que as obras cinematográficas ocupam posições de influência em seu Polissistema próprio e arregimentam público muito mais significativo para o romance.
Dessa forma, a tradução, melhor conceito a tratar esse processo de transformação da linguagem literária para a cinematográfica, surge tendo como ponto de partida a diferença sígnica de cada sistema. O processo tradutório, nesse caso, assume o viés intersemiótico, uma vez que as ferramentas utilizadas para a composição da mensagem se constituem a partir de signos completamente diversos. Exemplo mais prático desse fenômeno está no próprio narrador, elemento fundamental para uma história e que, no texto literário, é intrínseco à própria transmissão da mensagem verbal escrita, ao passo que na linguagem cinematográfica passa a ser a própria câmera que mostra a história. Portanto, a construção narrativa, bem como todos os seus elementos necessários, obedece a parâmetros distintos no Cinema, na Literatura e nas demais linguagens.
A criação dos personagens, igualmente, toma caminhos diversos na intersemiose. No texto literário, as técnicas que aprofundam a caracterização psicológica do personagem ou mesmo o uso do fluxo de consciência são trabalhadas de modo distinto para a tradução fílmica. O protagonista do romance O poderoso chefão (2016) é mostrado através de metáforas sígnicas variadas em ambos os suportes, de modo que as características mais marcantes do personagem são mantidas nas películas, mas, no geral, transmitidas ao leitor ou ao espectador de modos diferentes. As diferenças necessárias à construção do personagem na obra romanesca e na obra cinematográfica, dada as já citadas singularidades de cada linguagem, parecem apenas aprofundar a consistência do personagem e engrandecer sua popularidade. É incontestável que Don Vito Corleone hoje é elemento presente na cultura pop mundial, como fonte de referência para muitas outras obras derivadas, em linguagens e Sistemas completamente diferentes. Destarte, segundo a Teoria dos Polissistemas, a obra traduzida para o cinema ocupa lugar de centralidade e consequente prestígio no Sistema cinematográfico. Isso acontece devido à sua grande receptividade pela crítica e pelo público, ratificada pelos inúmeros prêmios ganhos. A popularidade e a influência dos filmes O poderoso chefão (1972, 1974, 1990) são responsáveis por levar novos leitores ao conhecimento do texto fonte, além de arrastar a própria obra escrita para uma posição de maior importância e para mais longe das bordas do Sistema Literário, em decorrência da fama e do valor atribuídos à obra fílmica.
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2Destacam-se algumas listas: a revista The Hollywood Reporter elencou o filme como o melhor de todos os tempos (disponível em https://www.hollywoodreporter.com/lists/100-best-films-ever-hollywood-favorites-818512/e-t-the-extra-terrestrial/); o site Internet Movie Database repete concede a segunda posição (disponível em https://www.imdb.com/chart/top/); o American Filme Institute atribui a terceira colocação ao filme (https://www.afi.com/afis-100-years-100-movies/); a revista Time inclui o filme entre os 100 maiores desde 1923 (disponível em https://entertainment.time.com/2005/02/12/all-time-100-movies/slide/the-godfather-parts-i-and-ii-1972-1974/); a Revista Bula aloca a película em quarto lugar (disponível em https://www.revistabula.com/7073-lista-definitiva-dos-100-melhores-filmes-da-historia-do-cinema/), dentre outras.
3O filme é referenciado em muitas obras de variadas mídias: o famoso desenho Os Simpsons, do canal de televisão americano Fox, apresenta os personagens Tony Gordo e seu filho Michael, claramente inspirados em Vito e Michael Corleone; os diferentes jogos de videogame, como The Godfather: The game, The Godfather II e The Godfather: Mob Wars, todos desenvolvidos pelo estúdio Electronic Arts, ou mesmo o jogo de tabuleiro The Godfather: Império Corleone, da Editora Galápagos; as histórias em quadrinhos The Godfather Chronicles, da Editora Boom! Studios; a série de televisão The Offer sobre os bastidores do filme, produzida pelo estúdio Paramount, o mesmo responsável pela trilogia dos cinemas; os livros de sequela escritos por Mark Winegardner ou por Ed Falco, ambas com versões brasileiras pela Editora Record, para ficar em apenas alguns exemplos).
4ROTA, Nino. Brucia la terra. Paramount: 1972. (2min37s)
1Mestre em Letras pela Universidade Estadual do Ceará. Professor da rede pública