REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7111991
Autor:
Jorge Bernardo Oliveira da Silva1
1Pós-Graduado em Direito Público pela PUC/MG, Bacharel em Direito pela UnB.
1. INTRODUÇÃO
Em 2016, o Brasil vivenciava uma crise política, econômica e fiscal. O orçamento público era deficitário, uma presidente de República era afastada e despontava o crescimento da inflação.
Diante desse cenário, o equilíbrio das contas públicas tornou-se prioridade para o governo brasileiro e constituiu a tónica que fundamentou a reforma constitucional para a implantação do Novo Regime Fiscal (NRF). Aprovada na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, a Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016, ainda provoca polêmica entre especialistas, acadêmicos e cidadãos.
O texto aprovado proíbe o aumento dos gastos públicos durante vinte exercícios financeiros (vinte anos), até o ano de 2037, apenas garantindo o reajuste monetário com base no Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) aplicado sobre a despesa efetuada1 no exercício financeiro anterior. Essa limitação é aplicada desde 20182 e abrange as mais diversas espécies de gastos públicos, incluindo saúde e educação.
O destaque para essas duas classes de gastos públicos sobressai tendo em vista que a Constituição Federal determinou gastos mínimos de 15% com saúde e 18% com educação, respectivamente, nos artigos 198, §2º, II, e 212 da Constituição. Considerando que esse piso se refere a um percentual da receita corrente líquida da União, pode-se deduzir que esse piso poderá ser desrespeitado nos anos em que o aumento da receita corrente líquida for superior ao IPCA. Além da possível redução percentual, deve-se considerar que a população brasileira está envelhecendo3 e que é natural a necessidade de incremento de gasto com saúde pública.
Adicionalmente, durante o período de calamidade pública, decorrente da pandemia do COVID-19, foram realizados diversos ajustes fiscais e orçamentários para se atender o estado de emergência, o que fez surgir a discussão sobre a flexibilidade do teto de gastos públicos para casos específicos5.
Em face desse cenário e sopesando a constitucionalidade da limitação de cláusula pétrea, nos termos do art. 60, § 4º, IV, da Constituição Federal, analisaremos se a NRF restringe a cidadania no Brasil, ao limitar gastos com direitos sociais, bem como se a medida é legítima, tendo em vista a longa duração do NRF, a restrição da autonomia orçamentária, a alta reprovação social, conforme pesquisa4 disponível no sítio eletrônico do Senado Federal, e as necessidades excepcionais, como a pandemia do coronavírus.
Para enfrentar a questão colocada, o texto será dividido em duas partes. Na primeira parte serão referendadas as discussões acerca do conceito de cidadania e seus elementos, bem como, serão observados aspectos da realidade social brasileira no tocante à distribuição de renda e financiamento do Estado. Na segunda parte serão abordados estudos que anotam as possíveis mudanças sociais e econômicas advindas da implementação do NRF, bem como sua constitucionalidade.
- CONCEITO DE CIDADANIA E REALIDADE BRASILEIRA
Segundo Paulo Bonavides, cidadania é a relação de identidade entre o indivíduo e o Estado, que o faz constituir parte do povo. Cidadania é o instituto jurídico do qual derivam direitos e deveres, perfazendo a esfera de capacidade conferida pelo Estado aos cidadãos. “O status civitatis ou estado de cidadania define basicamente a capacidade pública do indivíduo, a soma dos direitos políticos e deveres que ele tem perante o Estado” (BONAVIDES, 2011, p. 82).
A definição de Bonavides se alinha à descrita por Marshall, para quem “cidadania é um status concedido àqueles que são membros integrais de uma comunidade. Todos aqueles que possuem o status são iguais com respeito aos direitos e obrigações pertinentes ao status” (MARSHALL, 1967, p. 76).
Os estudos de Thomas H. Marshall em “Cidadania, Classe Social e Status” esclarecem que cidadania é composta por três elementos essenciais: direitos civis, direitos políticos e direitos sociais. O elemento civil se relaciona às liberdades individuais, como o direito de propriedade e a liberdade de pensamento. O elemento político se refere à possibilidade de participação no exercício do poder político, seja como eleitor, seja como candidato à eleição. Já o elemento social é “tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar, por completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade” (MARSHALL, 1967, p.63-64).
O autor traz uma perspectiva sobre cidadania e capitalismo bastante atual e presente nos debates contemporâneos acerca das democracias liberais. Para Marshall é perfeitamente possível um sistema capitalista, que pressupõe a desigualdade, comportar a cidadania, fundada no princípio da igualdade. “(…) a desigualdade do sistema de classes sociais pode ser aceitável desde que a igualdade de cidadania seja reconhecida” (MARSHALL, 1967, p.62).
Primordial é a igualdade formal, relacionada à igualdade de participação social, que confere o status de cidadão. “A igualdade de status é mais importante do que a igualdade de renda” (MARSHALL, 1967, p.95). Mas para que haja essa igualdade é necessária a ampliação dos serviços sociais. Em especial a educação foi relevada como “pré-requisito necessário da liberdade civil” (MARSHALL, 1967, p.73).
“O direito a educação é um direito social de cidadania genuíno porque o objetivo da educação durante a infância é moldar o adulto em perspectiva. Basicamente, deveria ser considerado não como o direito da criança de frequentar a escola, mas como o direito do cidadão adulto ter sido educado”. (MARSHALL, 1967, p.73)
Em sua análise do impacto da cidadania sobre as classes sociais na Inglaterra, Marshall reconhece que a maneira de se assegurar direitos sociais é por meio do poder político, apesar de, eventualmente, as lutas sociais, por meio dos sindicatos, constituírem manifestação de direitos civis coletivos. Esse é um ponto relevante da teoria de Marshall, pois estabelece que o “dissídio coletivo genuíno” é aquele debatido por representantes de toda a coletividade (representantes eleitos ou partidos políticos). Coletividades específicas, como os sindicatos teriam um papel secundário. (MARSHALL, 1967, p. 86-87).
Evelina Dagnino, por outro lado, propõe uma nova concepção de cidadania, distinta da visão liberal, compreendida como “estratégia política”. Enfatiza o caráter histórico de construção da cidadania a partir de interesses e práticas concretas de luta e reinvindicações da sociedade. Dessa forma, para a autora, o conteúdo e o significado de cidadania estão em constante transformação (DAGNINO, 1994, p. 107).
As principais diferenças entre o modelo de cidadania liberal e a cidadania enquanto estratégia política incluem: a concepção de um direito a ter direitos, que emergem de lutas específicas e da sua prática concreta; a constituição de sujeitos sociais ativos; o alargamento da proposta de cidadania enquanto proposta de sociabilidade, permitindo a simultaneidade da conquista dos direitos civis, políticos e sociais referidos por Marshall; a relação com a sociedade civil, em um processo de “aprendizado social”; o direito de participação efetiva na própria definição do sistema; a incorporação das noções tanto de igualdade como de diferença (DAGNINO, 1994, p. 107-110).
Essa concepção de cidadania enquanto estratégia política, brevemente mencionada, é a que entendemos ser mais adequada para compreender a democracia no contexto plural, complexo e dinâmico das sociedades contemporâneas. Contudo, analisaremos a questão posta nesta pesquisa sob a concepção liberal, para refletir sobre o Novo Regime Fiscal a partir de uma visão mais conservadora, que exige menos requisitos para a efetivação da cidadania quando em comparação com o novo modelo de cidadania. O objetivo é verificar se ao menos as condições mínimas liberais de cidadania são atendidas pelo NRF.
Prosseguimos a análise, observando que, do ponto de vista liberal, desenvolvido por Marshall, é dever do Estado garantir o mínimo em relação a direitos sociais para que exista a igualdade formal necessária à cidadania. Nesse sentido, e partindo desse paradigma, passamos a sopesar a realidade brasileira para compreender a necessidade da promoção de direitos sociais como requisito para a cidadania.
De acordo com o Fundo Monetário Internacional – FMI, o Brasil ocupa a 9º posição entre as maiores economias do mundo, tendo em vista o Produto Interno Bruto nominal em 2015. Já o Banco Mundial aponta que o Brasil é o 14º país mais desigual do mundo, considerando como parâmetro o índice Gini aferido em 2013 (WORLD BANK, 2015). Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, em 2015, o país apresentou um aumento da população em extrema pobreza, com renda per capita familiar inferior a um quarto do salário mínimo, atingindo 9,2% da população. Verifica-se, portanto, que ao mesmo tempo que o Brasil figura entre as maiores economias do mundo apresenta uma das maiores desigualdades do mundo. Essa situação constitui entrave ao bem-estar social e ao desenvolvimento do país (IBGE, 2015).
Em que pese o cenário brasileiro ser de concentração de renda, com grande parcela da população em extrema pobreza, são justamente os mais pobres que mais contribuem com impostos, de forma proporcional a renda. O sistema tributário brasileiro garante que famílias com renda de até dois salários mínimos contribuam com aproximadamente metade de seus rendimentos para a composição da renda do Estado (COBHAM, 2012). Em outro extremo estão os super-ricos, com renda média anual de R$ 4,1 milhões e representantes de 0,05% da população, que contribuem com a alíquota média de 7% (GOBETTI, 2015).
Assim, pode-se notar que é a população de baixa renda que mais sente o peso do Estado no orçamento familiar. Indo mais além, é possível observar que são os próprios beneficiários que financiam os programas sociais a partir do pagamento dos impostos indiretos5, uma vez que 53,79%6 da arrecadação no país, em 2014, foi paga pela população que recebe até 3 salários mínimos.
A situação brasileira de extrema desigualdade e de regressividade tributária, com foco na tributação indireta7, encontra em Marshall indícios de que os direitos sociais e a cidadania não foram devidamente aprofundados no Brasil. Acerca da desigualdade, Marshall assevera que esta deve existir como incentivo econômico para que as pessoas almejem o crescimento e sua diferenciação na sociedade, mas ao mesmo tempo, essa desigualdade não pode consistir em desigualdade de oportunidade (MARSHAL, 1967, p. 101).
Adicionalmente, Marshall percebeu que, apesar de os serviços sociais não consistirem em meio para igualar a renda, acabam reduzindo as desigualdades, na medida em que promovem o “enriquecimento geral da substância concreta da vida civilizada” (MARSHALL, 1967, 94). Nesse sentido, é possível notar que a ampliação dos direitos sociais no Brasil nos últimos 20 anos coincidiu com a melhoria em relação ao índice Gini, no qual o país seguiu da 2ª à 14ª posição mundial em desigualdade.
A regressividade tributária não possui qualquer justificativa em uma democracia. Marshall faz referência exatamente ao oposto, a progressividade. E avança no assunto para além dos impostos ao debater sobre sistemas de preços e o princípio da igualdade social. Concluí que o incentivo econômico das rendas desiguais deve ser preservado, mas que compete ao Estado garantir o mínimo dos serviços essenciais, como saúde, moradia, educação e renda mínima (MARSHAL, 1967, p. 92-93).
Na observação de Marshall sobre a cidadania como dever, ressalta que “o dever cujo cumprimento é óbvio e necessariamente mais imediato para a realização do direito é o dever de pagar impostos e contribuições de seguro”
(MARSHAL, 1967, p. 109). Dessa forma, pode se verificar que no sistema tributário brasileiro é a população de baixa renda que exerce o dever cívico mais próximo de sua plenitude, pois não tem a opção de sonegar o imposto indireto que já está embutido no preço das mercadorias e serviços. Ao contrário da população de média e alta renda, que sonegaram em 2013, por exemplo, 30%8 do imposto de renda. Destaca-se, ainda, que do total arrecadado com o principal imposto indireto, o ICMS, foi sonegado 27,1%9. Ou seja, o consumidor, na maioria de baixa renda, pagou pelo ICMS ao comerciante/empresário e este não repassou quase um terço do valor aos cofres públicos.
Assim, pode-se notar que o Estado brasileiro exige com vigor o dever de cidadania da população de baixa renda, mas não proporciona o direito de cidadania na mesma medida à essa parcela da população, como no caso da educação.
Em relação à educação, destaca-se que 54% da população brasileira com idade entre 25 e 64 anos não tinha o ensino médio completo em 2014 (OCDE, 2015). E ainda mais alarmante foi o resultado do desempenho dos estudantes entre 15 e 16 anos no Programme for International Student Assessment (Pisa) realizado em 2015, demonstrando o baixo índice de aprendizagem e participação na vida social, econômica e cívica do país. O Ministro da Educação, Mendonça Filho, em dezembro de 2016 ponderou sobre o resultado: “O que pudemos constatar diante desses números é que a grande maioria desses jovens não tem o conhecimento mínimo necessário para exercer a cidadania de acordo com padrões do mundo globalizado no qual vivemos”10.
Ressalta-se que após o período de isolamento decorrente da pandemia do COVID-19, houve um sério agravamento na precariedade da educação no Brasil e no mundo. Conforme verificações da Unicef, no Brasil, “três em cada quatro crianças do 2º ano estão fora dos padrões de leitura”. 11
Diante desse cenário surgem os questionamentos: há igualdade de oportunidade? Foi uma opção de grande parte da população brasileira não possuir o nível médio ou nem mesmo estar alfabetizada?
Associado a isso está a intrínseca relação entre educação e ocupação (MARSHAL, 1967, p. 100). Pois quais empregos estão disponíveis para pessoas com nível fundamental de educação? Nesse sentido, por meio da educação, “a cidadania opera como instrumento de estratificação social” (MARSHAL, 1967, p.102).
De maneira a confirmar essa afirmação, a estratificação social brasileira tem a base larga (mais da metade da população tem renda familiar per capita inferior ao salário mínimo) e um estreito cume, em que apenas 1% da população tem rendimento familiar per capita superior a R$ 5.500,0012. Os dados apontados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) também confirmam que a renda está relacionada à escolaridade. Enquanto a classe alta em média estudou 12 anos, a classe média estudou 8 anos e a classe baixa 5 anos.
- O NOVO REGIME FISCAL: LIMITES E CONTRADIÇÕES
A Emenda Constitucional nº 95 alterou o Ato de Disposições Constitucionais Transitórias para instituir o Novo Regime Fiscal (NRF), incluindo os art. 101 a 109. Suas principais características serão a seguir apresentadas e debatidas.
1 – O primeiro artigo estabelece o prazo de vigência de 20 anos para o NRF. Esse prazo abrange cinco mandatos presidenciais e cinco legislaturas. Dessa forma, no período de 2017 a 2036 os representantes eleitos pelo povo “exercerão um mandato fracionado, amputado, em que lhes é interditado debater o teto de gastos linear e tecnocraticamente fixado pela PEC nº 55, de 2016” (VIEIRA JÚNIOR, 2016, p. 32). O que implica na mitigação do direito político referente ao voto e definido como cláusula pétrea no art. 60, § 4º, II, da Constituição Federal.
2 – Os limites são aplicados aos três poderes da União (Executivo, Judiciário e Legislativo), à Defensoria Pública da União (DPU) e ao Ministério Público da União (MPU), entretanto somente se aplicam às despesas primárias pagas, restos a pagar pagos e outras operações que afetam o resultado primário do exercício financeiro. Aqui, importa observar que o NRF é omisso na limitação da dívida pública da União, principal fonte de despesa do país. Atualmente, os Estados e Municípios possuem limites de endividamento, mas a União não possui esse limite, podendo, assim, contrair empréstimos ilimitadamente. Na União Europeia, por exemplo, cada país possui limites de déficit e de endividamento.
O que se espera é que a solução para o deficit público seja pensada de acordo com as suas reais e diversas causas. A proposta de um ajuste fiscal focado exclusivamente nas despesas primárias, por vinte anos, afeta particularmente as políticas sociais e desconsidera o efeito de tal medida para o desenvolvimento econômico e social do país no médio e longo prazos. (VIEIRA; BENEVIDES, 2016, p.21)
3 – O método de correção dos limites somente poderá ser revisto a partir do 10º ano do NRF, uma única vez por mandato presidencial, mediante lei complementar. Essa restrição também abrange um longo período e impõe uma dificuldade processual, que exige maioria absoluta do Congresso Nacional para aprovação, corroborando com o entendimento de que o NRF limita os direitos políticos, exposto no item 1 acima.
4 – No art. 104, § 3º, fica prevista a proibição da correção monetária sobre a remuneração dos servidores públicos no caso do descumprimento do teto pelo respectivo Poder, MPU ou DPU. Tal previsão, carente de razoabilidade, além de impedir a recomposição do poder de compra dos servidores públicos, de status constitucional (art. 37, X), rompe com a própria lógica do NRF, que consiste em congelar as despesas com base no executado em 2016 e manter o seu valor real por 20 anos, aplicando-se o IPCA (VIEIRA JÚNIOR, 2016, p. 29).
5 – O congelamento do piso dos gastos com saúde e educação fixa o ano de 2017 como última aplicação dos percentuais de, respectivamente, 15% e 18% da receita corrente líquida. Dessa maneira, os legisladores estão considerando que os valores de 2017 serão o ideal de recursos mínimos para os próximos 19 anos. Entretanto, é sabido que os recursos alocados atualmente em saúde e educação já são insuficientes à universalização e qualidades mínimas requeridas. Ademais, o congelamento dos valores significará a redução desses direitos sociais, devido ao aumento da população, seu envelhecimento, dentre outros fatores. Assim, diminuir os gastos mínimos com saúde e educação constitui afronta ao princípio do não retrocesso social. Além disso, o NRF contradiz o Plano Nacional de Educação (PNE), aprovado pela Lei 13.005/2014, que regulamenta o art. 214 da Constituição e, em consideração à realidade brasileira, estabeleceu metas para ampliação dos investimentos em educação pública para os próximos 10 anos13.
6 – No art. 107, I, a Emenda Constitucional institui a irresponsabilidade absoluta do Estado em face das disposições introduzidas pelo NRF, excluindo da responsabilidade do Estado a obrigação de assegurar direitos por ele criados, em especial sobre as vedações estabelecidas no art. 104 do NRF. O referido dispositivo constitui outro paradoxo constitucional do NRF, pois conflita com o sistema de responsabilidade objetiva do Estado fixado no art. 37, § 6º, da Constituição Federal (VIEIRA JÚNIOR, 2016, p. 30).
Outros aspectos devem ser relevados, em especial no que concerne aos direitos sociais. Em que pese o congelamento dos gastos se referirem a limites globais da União individualizados apenas em relação a cada Poder, DPU e MPU, sem estabelecer um teto para um grupo de despesas específico, observa-se que há a tendência de redução dos valores reais para os direitos sociais. Para ilustrar essa situação, trazemos a análise de consultores do Senado Federal que advogam a favor do NRF:
Se o gasto com cada programa crescer de acordo com a inflação, o mais provável é que o valor individual do benefício cresça abaixo da inflação, pois o número de beneficiários tende a aumentar, especialmente em períodos de crise econômica. Por exemplo, o número de famílias elegíveis para o Bolsa Família tende a crescer com a crise, pois mais pessoas tornamse pobres. Se o total gasto com o programa continuar constante em termos reais, o valor (também em termos reais) a ser recebido por cada família cairá. (FREITAS; MENDES, 2016, p.19)
Para Freitas e Mendes, a redução de benefícios sociais não é prejudicial à população, pois, segundo os autores, a situação econômica do país seria pior sem o NRF, de forma que uma restrição ainda maior seria inevitável (FREITAS; MENDES, 2016, p. 20).
Com a devida licença, discordamos da opinião dos autores. Pois evidenciamos a necessidade de ampliação dos direitos sociais no Brasil, especialmente neste momento de crise, tendo em vista a realidade social brasileira mencionada anteriormente e a essencialidade do investimento em direitos sociais associada à representatividade desse gasto no orçamento público. Como já abordado, o principal gasto do país não foi nem levado em consideração ao se limitar os gastos públicos.
Destaca-se, ainda, que segundo parecer14 da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, não haveria inconstitucionalidade na PEC 55, pois o Supremo Tribunal Federal fora consultado preliminarmente no Mandado de Segurança 34.448, impetrado por deputados federais do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e do Partido dos Trabalhadores (PT), sendo decidido liminarmente em 10/10/2016 pelo Ministro Relator Luís Roberto Barroso.
Entrementes, a decisão do STF foi a de não suspender a tramitação da PEC em sede de liminar, pois, para o Ministro Roberto Barroso, não haviam elementos concretos para fazê-lo. O que não elimina o debate sobre violação de cláusula pétrea perante o STF, tampouco exclui o questionamento referente a direitos individuais.
Atualmente, estão pendentes de julgamento no Supremo Tribunal Federal 3 ações diretas de inconstitucionalidade questionando o NRF: ADI 5658, ADI 5680 e ADI 5715.
Para além da constitucionalidade em abstrato da Emenda Constitucional nº 95, observa-se que a questão da judicialização da saúde e das demais políticas públicas já se apresenta como realidade nacional, o que traz uma série de consequências, desde o inchaço de demandas judiciais ao tratamento não isonômico, que garante o direito em disputa apenas aos cidadãos com condições e disposição para o processo judicial.
Considerando a provável restrição dos gastos com direitos sociais advindos do NRF, a judicialização de políticas públicas para a efetivação de direitos sociais no campo individual pode alcançar novos patamares, provocando distorções distributivas e alocativas, além de implicar indiretamente na morosidade da satisfação da necessidade social.
Insta observar que, conforme anotado por Marshall (1967, p. 96-97), a obrigação do Estado-Parlamento se relaciona à coletividade como um todo (direitos sociais), enquanto a obrigação do Estado-Juiz se relaciona aos cidadãos individuais (direitos individuais). Nesse sentido, destaca-se que a previsão pelo Estado-Parlamento de direitos sociais sem a respectiva disponibilização de meios para que sua efetivação, inevitavelmente, transfere a luta social para o âmbito individual sob a tutela do Estado-Juiz.
A transferência da luta social para o âmbito individual reforça a desigualdade, mitigando a cidadania sobre um duplo aspecto. O primeiro, pela negativa de efetivação de um direito social garantido pelo ordenamento jurídico vigente. O segundo, por conferir a satisfação do direito apenas a sujeitos específicos, em demandas individuais.
Do ponto de vista estrutural do Estado, a transferência da luta social para âmbito individual, além de assoberbar o Poder Judiciário, gera um conflito para o gestor, em geral do Poder Executivo, que devido ao limite de recursos deve desguarnecer alguma ação previamente planejada para atender as decisões judiciais. Por exemplo, ao atender decisão judicial de fornecer medicamentos de alto custo não previstos, outras despesas da saúde serão contingenciadas, deixando de atender outros cidadãos.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O congelamento dos gastos públicos até o ano de 2037, corrigidos apenas pela inflação, não será capaz de manter o atual nível de atendimento por meio dos serviços públicos, tendo em vista fatores como o aumento e envelhecimento da população, o acirramento da crise econômica, pressionando a redução do bem-estar da população de baixa renda, e o compartilhamento do mesmo teto de gastos com outras despesas, como a previdência social, o que pode significar até redução nominal de gastos com programas sociais específicos.
Considerando a realidade brasileira de extrema desigualdade e baixos índices sociais referentes a educação, moradia e saúde, por exemplo, verificamos que, a partir da concepção liberal de cidadania, incumbe ao Estado ampliar os direitos sociais no país para promover o mínimo necessário à cidadania, conferindo status cívico à grande parcela da população que carece da igualdade de oportunidade.
Destarte, o Novo Regime Fiscal tem grande potencial para retroceder em relação aos elementos da cidadania de Marshall, principalmente sobre os direitos sociais, que nos últimos 20 anos foram ampliados no país, mas ainda têm um longo caminho para atingir o mínimo necessário à igualdade formal. Desta feita, não se pode olvidar que a EC 95 não atende nem à concepção liberal de cidadania, estudada a partir de Marshall. Outrossim, que dizer sobre concepções diversas de cidadania, como a que mencionamos anteriormente, em que a cidadania é entendida como estratégia política.
Sob essa perspectiva seria necessária não a inclusão dos excluídos, mas a participação ativa destes no processo de definição da superestrutura e demais regramentos estratégicos, como este que trata a EC 95. Contudo, o que se observa é a redução da participação popular na definição de estratégias e políticas públicas a um patamar máximo de consulta. A exclusão de parcela da população da participação política leva à “pobreza política”, à falha na comunicação dos sistemas funcionais e à não integração ou à marginalidade. (MÜLLER, 2003, p. 93-95).
Dessa forma, nota-se que a ideologia da classe dominante se manifesta politicamente por meio da construção simbólica das normas. Assim, preserva-se o interesse econômico das classes mais ricas e dos empresários, que patrocinam a classe política, em detrimento do interesse público de ampliação do bem-estar social. Consequentemente, são conferidos efeitos latentes ao exercício da cidadania.
A população heterogênea é “uni”ficada em benefício dos privilegiados e dos ocupantes do establishment, é ungida como “povo” e fingida – por meio do monopólio da linguagem e da definição nas mãos do(s) grupo(s) dominante(s) – como constituinte e mantenedora da constituição. Isso impede, conforme se deseja, de dar nome às cisões sociais reais, de vivê-las [austragen] e consequentemente trabalhá-las. A simples fórmula do “poder constituinte do povo” já espelha ilusoriamente o uno (MÜLLER, 2003, p. 72).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BONAVIDES, Paulo. Ciência política. São Paulo: Malheiros Editores, 2012.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5/10/1988. Brasília: Subsecretaria de Edições Técnicas do Senado Federal, 2016.
BRASIL. Receita Federal. Centro de Estudos Tributários e Aduaneiros. Carga Tributária no Brasil 2014: análise por tributos e bases de incidência. Brasília-DF, 2015.
BRASIL. IBGE. Síntese de indicadores sociais : uma análise das condições de vida da população brasileira : 2015 / IBGE, Coordenação de População e Indicadores Sociais. – Rio de Janeiro : IBGE, 2015
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 16ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.
COBHAM, Alex. et al. Born equal: how reducing inequality could give our children a better future. London-UK: Save the Children, 2012. Disponível em: <http://www.savethechildren.org.uk/sites/default/files/images/Born_Equal.pdf>. Acessado em 19/09/2022.
DAGNINO, Evelina. Os movimentos sociais e a emergência de uma nova noção de cidadania. in: Anos 90 – Política e sociedade no Brasil,org. Evelina Dagnino. Brasília: Editora Brasiliense, 1994, p. 103-115.
DAHL, Robert A. Sobre a democracia. Brasília: Universidade de Brasília, 2001.
FREITAS, P. S; MENDES, F. S. Comentários sobre a PEC do Teto dos Gastos Públicos aprovada na Câmara dos Deputados: necessidade e constitucionalidade da medida. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, novembro/ 2016 (Boletim Legislativo nº 55, de 2016). Disponível em: www.senado.leg.br/estudos. Acessado em 19/09/2022. GOBETTI, Sérgio Wulff; ORAIR, Rodrigo Octávio. Tributação e distribuição da renda no Brasil: novas evidências a partir das declarações tributárias das pessoas físicas. IPC-IG Working Paper. Brasília, International Policy Centre for Inclusive Growth. Disponível em: <http://www.ipc-undp.org/pub/port/OP312PT_Tributacao_e_distribuicao_da_renda_no_Brasil_novas_evidencias_a_partir_das_declaracoes_tributarias_das_pessoas_fisicas.p df>. Acessado em 19/09/2022.
MARSHALL, T. H. Cidadania, Classe Social e “Status”. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967
MENDES, Denise Cristina Vitale Ramos. Representação política e participação: reflexões sobre o déficit democrático. Rev. Katál. Florianópolis vol. 10, nº 2, p. 143-153 jul./dez. 2007.
MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. 3ª. ed. São Paulo: Editora Max Limonad, 2003.
NASCIMENTO, Emerson Oliveira do. Os modelos da organização legislativa: distributivo, informacional e paritário. Revista Política Hoje. Vol. 19. nº 2. p. 365397. Recife: UFPE, 2010.
NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Editora Acadêmica, 1994.
OECD (2015), Education at a Glance 2015: OECD Indicators, OECD Publishing, Paris. Disponível em: <https://www.oecd.org/brazil/Education-at-a-glance-2015Brazil-in-Portuguese.pdf>. Acessado em 19/09/2022.
SINPROFAZ. Sonegação no Brasil: uma estimativa do desvio da arrecadação do exercício de 2013. Quanto custa o Brasil [online]. 2014. Disponível em: <http://www.quantocustaobrasil.com.br/artigos-pdf/sonegacao-no-brasil-umaestimativa-do-desvio-da-arrecadacao-do-exercicio-de-2013.pdf>. Acessado em 19/09/2022.
VIEIRA, F. S.; BENEVIDES, R. P. S. Os impactos do novo regime fiscal para o financiamento do sistema único de saúde e para a efetivação do direito à saúde no Brasil. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA (Nota Técnica nº 28, de setembro de 2016). Disponível em: < http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/7270/1/NT_n28_Disoc.pdf>. Acessado em 19/09/2022.
VIEIRA JÚNIOR, R. J. A. As Inconstitucionalidades do “Novo Regime Fiscal” Instituído pela PEC nº 55, de 2016 (PEC nº 241, de 2016, na Câmara dos Deputados). Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, novembro/2016 (Boletim Legislativo nº 53, de 2016). Disponível em: < www.senado.leg.br/estudos>. Acessado em 19/09/2022.
WORLD BANK, Development Research Group. World Development Indicators: Distribution of income or consumption. Gini index (World Bank estimate). The World Bank, 2015. Disponível em: <http://wdi.worldbank.org/table/2.9>. Acessado em 19/09/2022.
1 Inclui-se a despesa primária, os restos a pagar pagos e outras despesas que influenciem o resultado primário.
2 Para 2017 foi aplicado o reajuste de 7,2% sobre a despesa referente ao exercício de 2016 e, também em 2017, foram aplicados os mínimos de 15% e 18% nas áreas de saúde e educação respectivamente.
3 Conforme pesquisa do IBGE. Disponível em < https://www.ibge.gov.br/apps/populacao/projecao/index.html >, acessado em 19/09/2022. 5 Presidente do Senado defende flexibilização do teto de gastos públicos. Disponível em < https://valor.globo.com/politica/noticia/2022/08/04/presidente-do-senado-defende-flexibilizacaodo-teto-de-gastos-em-casos-especificos.ghtml>, acessado em 19/09/2022.
4 A votação aponta 93,59% de rejeição da PEC nº 55. Disponível em< http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/127337>, acessado em 19/09/2022.
5 Impostos indiretos incidem sobre o consumo. A denominação do imposto de indireto se refere ao fato de que o cidadão paga o imposto (contribuinte de direito), mas não o recolhe para o Estado, quem faz o recolhimento é o comerciante (contribuinte de fato).
6 Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT). Disponível em: < https://ibpt.com.br/populacao-que-recebe-ate-tres-salarios-minimos-e-a-quemais-gera-arrecadacao-de-tributos-no-pais/ >. Acessado em 19/09/2022.
7 Das três bases de incidência tributária (renda, patrimônio e consumo) a de maior expressividade é o consumo (tributos indiretos), que representou 51,02% da arrecadação em 2014 (BRASIL, Receita Federal, 2015).
8 Indicador de sonegação estimado pelo Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional (SINPROFAZ, 2014).
9 Indicador de sonegação estimado pelo Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional (SINPROFAZ, 2014).
10 Disponível em < http://portal.mec.gov.br/component/content/article?id=42741>, acessado em 19/09/2022.
11 Disponível em < https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/covid-19-extensaoda-perda-na-educacao-no-mundo-e-grave>, acessado em 19/09/2022.
12 Disponível em <http://www.bcb.gov.br/secre/apres/Alessandra_Ninis_SAE_PR.pdf>, acessado em 19/09/2022.
13 Meta 20: ampliar o investimento público em educação pública de forma a atingir, no mínimo, o patamar de 7% (sete por cento) do Produto Interno Bruto – PIB do País no 5º (quinto) ano de vigência desta Lei e, no mínimo, o equivalente a 10% (dez por cento) do PIB ao final do decênio. (Anexo da Lei 13.005/2014)
14 Disponível em: <http://legis.senado.leg.br/mateweb/arquivos/mate-pdf/202602.pdf>. Acessado em 19/09/2022.