REVIEW OF THE LEGAL PROTECTION OF ANIMALS
REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.6665622
Autor:
Marco Antônio Chaves Da Silva Filho
(Artigo de autoria exclusiva)
SUMÁRIO
1. Introdução. 2. Breves noções sobre o paradigma antropocêntrico. 3. Enquadramento legal dos animais e direito comparado. 4. Animais como seres sencientes. 5. Precedentes dos Tribunais Superiores. 6. Conclusão.
RESUMO
O presente artigo versa sobre a possível reconfiguração da tutela jurídica dos animais no direito brasileiro, considerando o tradicional tratamento destes como meros objetos (semoventes). A partir de pesquisa cujo principal procedimento foi a análise de conteúdo, parte-se para uma investigação dos fundamentos filosóficos do direito ambiental, considerando o prisma antropocêntrico, ainda dominante no cenário ocidental. Apresenta-se, assim, o enquadramento legal dos animais na legislação brasileira e no direito comparado, trazendo as correntes doutrinárias e o entendimento jurisprudencial dos Tribunais Superiores sobre a temática. Conclui-se pela necessidade de releitura da categorização prevalente no direito brasileiro, considerando que os animais são seres sencientes.
Palavras-chave: animais; seres sencientes; tutela jurídica.
ABSTRACT
This article deals with the possible reconfiguration of the legal protection of animals in brazilian law, considering the traditional treatment of animals as objects (semovables). Based on a research whose main procedure was the content analysis, it starts with an investigation of the philosophical foundations of environmental law, considering the anthropocentric prism, still dominant in the western countries. Thus, the legal framework of animals in brazilian legislation and in comparative law is presented, bringing the doctrinal currents and the jurisprudential understanding of the Superior Courts. It is concluded that there is a need to reread the categorization prevalent in brazilian law, considering that animals are sentient beings.
Keywords: animals; sentient beings; legal protection.
INTRODUÇÃO
O presente artigo busca analisar a possível reconfiguração da tutela jurídica dos animais no direito brasileiro, considerando o tradicional tratamento destes como coisas ou objetos.
Parte-se, inicialmente, da investigação das bases filosóficas do direito privado brasileiro, haja vista a matriz notadamente antropocêntrica, ainda dominante, perlustrando-se as raízes históricas do pensamento ocidental a respeito da relação entre o ser humano e a natureza.
Em seguida, coloca-se em pauta a discussão sobre a adequada tutela jurídica dos animais, com referência, de início, ao enquadramento legal no Código Civil brasileiro e no direito comparado.
Será exposta, ainda, a controvérsia doutrinária sobre o tema, abordando a temática dos animais como seres sencientes.
Passa-se, então, ao estudo dos principais precedentes dos Tribunais Superiores a respeito do assunto, os quais, ainda que de forma incipiente, denotam certa tendência de releitura do prisma antropocêntrico puro.
À guisa de conclusão, com base nos dados apresentados, sustenta-se a necessária releitura da tutela jurídica dos animais no direito brasileiro.
2 Breves noções sobre o paradigma antropocêntrico
Cumpre identificar e analisar, inicialmente, o desenvolvimento da relação entre o ser humano e a natureza, sob o prisma antropocêntrico, ainda dominante.
Em que pese o esforço contemporâneo para justificativas mais biocêntricas, no que tange aos fundamentos filosóficos do direito ambiental, a tradição ocidental sempre colocou o homem no centro do universo, excluindo os animais de qualquer consideração moral1. As origens do direito ambiental têm, portanto, base notadamente antropocentrista.
Etimologicamente, o vocábulo antropocentrismo possui raízes greco-latinas, sendo o significado proveniente do grego anthropos (o homem, ser humano como espécie) e do latim centrum ou centricum (o centro, o centrado). Ou seja, a visão de que o homem está no centro do universo e as demais espécies ocupariam um papel secundário, sendo o homem um ser superior e os animais meros instrumentos para promover o seu bem estar2. Para Levai, o antropocentrismo constitui-se como “uma corrente de pensamento que reconhece o homem como centro do universo e, consequentemente, o gestor e usufrutário do nosso planeta”3.
Ao longo dos séculos, este pensamento foi difundido por influentes filósofos ocidentais. Entendia-se, segundo o sistema piramidal aristotélico, que o ser humano ocuparia o topo, os vegetais formariam a base e serviriam aos animais, enquanto estes, por seu turno, serviriam ao homem4.
Sabe-se que a origem do especifismo, como também é chamada a ideologia antropocêntrica, remonta a tempos imemoriais. Cogita-se que, antes mesmo do desenvolvimento da filosofia, havia uma relação antagônica entre seres humanos e os demais animais, afinal, a sobrevivência do homem primitivo – notadamente caçador e coletor – estava condicionada à busca por qualquer tipo de alimento. Contudo, com o desenvolvimento da agricultura e domesticação, que juntos conduziriam à pecuária, o antagonismo começa a dar lugar a uma relação de domínio do homem sobre os animais. Com isso, o homem começa a se considerar o verdadeiro dono do planeta, subjugando as demais espécies a seu bel-prazer, podendo se considerar este o embrião do especifismo tal qual conhecemos hoje5.
Recorrendo à filosofia clássica grega, gênese do pensamento ocidental, a célebre frase do filósofo Protágoras, da escola sofística, que afirmou ser o homem “a medida de todas as coisas” marca o início da era antropocêntrica6. No pensamento socrático, afirma-se que “as leis morais se originam unicamente do homem, desempenhando a razão o papel de condutor da verdade e da unidade”7. Em seguida, Platão, no Timeu, defende a ideia de que o homem pertenceria a uma raça superior em relação às demais espécies de seres vivos8. Após, Aristóteles, discípulo de Platão, foi quem primeiro escreveu – ao que se sabe – acerca dos animais sob uma perspectiva evolucionista. Considerado por muitos como o fundador da ciência enquanto disciplina, Aristóteles estudou os animais, abordando a morfologia e a classificação das espécies, bem como sua marcha evolutiva. Com base nessa perspectiva, o universo estava à disposição do homem e os animais não fugiam a esta regra. Com efeito, todos os seres vivos deveriam estar a serviço do ser humano9.
A ideia de que a finalidade da natureza e do animal é servir ao homem, pode ser ilustrada no seguinte trecho, que consubstancia o pensamento aristotélico:
A natureza, conforme frequentemente dizemos, não faz nada em vão; ela deu somente ao homem o dom do discurso (lógos). O mero som da voz é apenas a expressão de dor ou prazer, e disso são capazes tanto os homens como os outros animais. Mas enquanto estes últimos receberam da natureza apenas essa faculdade, nós, os homens, temos a capacidade de distinguir o bem do mal, o útil do prejudicial, o justo do injusto. Com efeito, é isso o que distingue essencialmente o homem dos outros animais: discernir o bem e o mal, o justo e o injusto, e outros sentimentos dessa ordem10 […].
Os estóicos também desempenharam papel importante na afirmação do antropocentrismo, exercendo grande influência na história do pensamento ocidental. Foi a partir da noção estoicista de logos (fala, faculdade de raciocinar) que foram “cunhadas as definições do homem como ‘animal racional’ (zoon logikon) e dos animais como seres vivos desprovidos de fala (alagoa zoa)”11.
Os romanos também contribuíram para a consolidação do paradigma. É cediço que o direito romano influenciou a maior parte dos ordenamentos jurídicos ocidentais, e, nesse contexto, trouxe a ideia de que o direito alcançava apenas os homens em sociedade, negando a capacidade de ser sujeito de direito aos animais, que – marginalizados dentro da perspectiva privatista – foram considerados res (coisas), possuindo o mesmo regime jurídico que os objetos inanimados e a propriedade de modo geral, alimentando a crença na superioridade do homem sob as demais espécies de seres vivos12.
Durante a Idade Média, apogeu do cristianismo, grandes pensadores a exemplo de São Tomás de Aquino e de Santo Agostinho, defenderam a tese de que existia uma hierarquia entre os seres vivos, na qual o homem estaria acima de todos os outros animais. Esta ideia, inclusive, integra a própria visão bíblica, segundo a qual os animais – enquanto criaturas brutas e desprovidas de intelecto – não fariam parte da espera de preocupações morais humanas13. Defende-se nessa ótica que o homem não cometia pecado algum ao matar animais, pois estes foram criados para servir o homem ao passo que o ser humano fora criado à imagem e semelhança de Deus. Nesse sentido assevera Heron Santana Gordilho:
Com o cristianismo, herdeiro das ideias aristotélicas e estóicas, os animais não-humanos vão continuar excluídos de qualquer consideração moral, razão pela qual continuaram a ser mortos em rituais religiosos ou desportivos, ao ponto de várias espécies terem sido simplesmente extintas na Europa14.
Posteriormente, com o redescobrimento das obras gregas15, o pensamento antropocêntrico alcançou seu auge no período cartesiano através do mecanicismo de Descartes (1596 – 1650) e, mais à frente, de Claude Bernard (1813 – 1978). Nessa época, o animal foi privado de qualquer valor intrínseco, tornando-se mero instrumento a serviço do homem. Descartes inicialmente impulsionou a teoria mecanicista ao defender, em sua obra “Discurso do Método”, a teoria do animal máquina, pela qual os animais seriam somente autômatos ou máquinas destituídas de sentimentos16, incapazes, portanto, de experimentar sensações de dor e de prazer. O fisiologista Claude Bernard prosseguiu defendendo as ideias de Descartes, mormente no que tange ao direito de fazer experimentos com animais e a vivissecção. Assim, os animais já tão inferiorizados, transformaram-se em meros instrumentos e objetos de experiências científicas17.
As revoluções industriais e a revolução francesa inauguraram um período da história fortemente marcado pelo antropocentrismo e pelos ideais liberais, que impactaram fortemente a intelecção humana e fizeram-se repercutir na construção científica do período, que foi alcunhado por Eric Hobsbawm18 como a “era das revoluções”. Preponderava, então, a incessante busca pelo lucro, que não estava sujeito a nenhuma barreira jurídica, pois se acreditava cegamente na autorregulação da economia, enquanto se impunha ao Estado sua total abstenção. O direito ambiental surge, nesse contexto, em contraposição ao ideal liberal da inesgotabilidade dos recursos naturais. Porém, ante a concepção antropocêntrica, o meio ambiente era protegido somente dentro dos limites de proteção do homem e do seu bem estar, havendo uma visão utilitarista do direito ambiental, que nasce com o objetivo de tutelar o homem e apenas de forma indireta o meio ambiente. Em outras palavras, na proteção contra a degradação ambiental e das espécies, a vítima seria sempre o homem19.
Sendo assim, constrói-se a crença de que os bens naturais, incluindo os animais, foram criados para livre disposição do homem e que são renováveis, não havendo que se preocupar com a extinção de espécies ou escassez de recursos naturais. Todavia, olvida-se, nesse ponto, que a cultura do consumo exacerbado altera de sobremaneira o equilíbrio da natureza, uma vez que o homem deixa de consumir apenas para sua subsistência e passa a consumir de forma desenfreada20.
Após a revolução industrial21, com a ação despreocupada do homem sobre a natureza, a degradação ambiental alcançou níveis alarmantes, passando a sociedade a conviver com problemas de poluição, efeito estufa, extinção de diversas espécies, desequilíbrio ambiental, alterações climáticas, etc. Esse quadro crítico acabou por despertar certa preocupação ambiental, abrangendo não só o homem, mas a vida de todos os seres: nota-se, então, o despertar de uma consciência ambiental. Tal mobilização e preocupação com a natureza pode ser observada através de diversas conferências e reuniões que passaram a ser realizadas, a exemplo da Conferência de Estocolmo (1972) e a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente (1992). Desde então, trabalha-se a ideia de que os recursos naturais não são inesgotáveis e que a exploração animal, independente da sua importância para o equilíbrio do ecossistema, atinge níveis alarmantes, ultrapassando qualquer critério de moralidade22.
O consumo exacerbado e a utilização do animal nas mais variadas formas, desconsiderando qualquer postura ética, deu azo ao surgimento de grupos cada vez mais engajados na defesa dos direitos dos animais e despertou uma consciência crítica quanto à questão ambiental23.
Com efeito, o antropocentrismo alargado surge enquanto um posicionamento mitigado em relação à visão de que o homem é o centro do universo. Abandona-se o utilitarismo puro, segundo o qual o ser humano pode utilizar o meio ambiente ao seu bel prazer, pois não mais é possível ignorar a importância dos demais seres vivos24. Nessa nova perspectiva, impõe-se uma reflexão acerca do relacionamento do homem com a natureza, trabalhando-se, assim, a ideia de que os elementos da realidade não partem puramente do intelecto humano, mas do relacionamento com o meio natural e social, como afirma François Ost que:
[…] cada um destes elementos contém, pelo menos virtualmente, uma parte do outro (o homem é também um pedaço da natureza e em contrapartida, a natureza produz a hominização). Daqui resulta um jogo permanente de interações, que contribuem para redefinir os termos existentes, surgindo em última análise como determinante da sua própria identidade, a relação transformativa que se estabelece entre eles. A esta relação, propriedade emergente da ligação homem-natureza, chamamos ‘meio’. Eis o nosso híbrido, quase objeto ou quase sujeito25.
Portanto, torna-se imperiosa a superação do antropocentrismo utilitarista do passado, incluindo-se valores mais afetos à bioética e à proteção do meio ambiente26. Segundo este novo pensamento, mesmo que o homem seja a preocupação principal, não se permite que a natureza e os animais sejam utilizados despidos de qualquer preocupação moral, de maneira desnecessária e por motivos fúteis27. Nesse sentido, o domínio do homem sob o meio ambiente e da submissão e exploração ilimitada desta a fim de saciar os anseios do homem28 passa a ser repensado. Nesse cenário, então, se propõe um alargamento da visão antropocêntrica, que abrange a tutela do meio ambiente, independentemente da sua utilidade direta para o homem.
Entretanto, mesmo nessa visão mais alargada, o ser humano ainda permanece como figura principal a ser protegida, malgrado se abandone a ultrapassada visão estritamente utilitarista do meio ambiente. Desse modo, pode-se dizer que a natureza é protegida de forma indireta com o intuito de salvaguardar um meio ambiente saudável para as gerações futuras. Nesse esteio, a proteção da fauna e da flora será buscada “não propriamente em razão deles mesmos, individualmente considerados, mas, sobretudo como elementos indispensáveis à preservação do meio ambiente como um todo, em função da qualidade de vida humana”29.
Sendo assim, há de se reconhecer que o antropocentrismo alargado não propõe, de fato, uma relação de equilíbrio entre o ser humano e a natureza, tendo em vista que a preocupação principal ainda continua a ser o homem. O meio ambiente é, então, preservado na medida em que se evidencia a sua indispensabilidade para sobrevivência da espécie humana. Vale frisar que equilíbrio não significa sobrepor a natureza ao homem, mas sim em situação de igualdade, isto é, no mesmo patamar30. Nesse sentido, a principal crítica que se faz a esta corrente se refere ao fato de ainda se colocar o homem como única e principal preocupação. Ou seja, o homem continua a ser o centro do universo, pois o cerne deste pensamento ainda é – indubitavelmente – antropocêntrico.
3 Enquadramento legal dos animais e direito comparado
O Código Civil não conferiu aos animais a qualidade de pessoas, pois os considera despidos de personalidade jurídica. Logo, sob a perspectiva legal, os animais não podem ser considerados sujeitos de direitos.
Ao revés, com base no art. 82 do diploma civilista, os animais possuem natureza jurídica de “coisas”, enquadrando-se, em regra, na categoria de semoventes. Confira-se:
Art. 82. São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social.
Sem embargo, cumpre destacar o quanto disposto no art. 225, §1º, VII, da Constituição Federal (CF), que consagra a vedação constitucional de práticas com animais que coloquem em risco a sua função ecológica, que provoquem a extinção de espécies ou que os submetam à crueldade. Nesse desiderato, o legislador infraconstitucional editou a Lei nº 9.605/98, tipificando a prática de atos cruéis contra os animais, cominando pena de detenção de 03 (três) meses a 01 (um) ano, além de multa, a todo aquele que praticar ato de abuso, maus tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos.
Oportuno destacar, de mais a mais que no direito comparado31 já se encontram legislações que avançaram na proteção jurídica dos animais de companhia, retirando-lhes a natureza jurídica de coisas. Nesse sentido, Áustria, Alemanha e Suíça consagram, de forma expressa, que os animais não são coisas, ao passo que França, Nova Zelândia e Portugal preveem, inclusive, que os animais são seres sencientes, vale dizer, seres dotados de sensibilidade.
4 Animais como seres sencientes
Considerando a necessidade de se rediscutir essa categorização, é possível encontrar na doutrina brasileira, ao menos, 03 entendimentos sobre o tema.
Para uma primeira corrente, os animais possuem status de pessoa. Isso porque, em termos biológicos, o homem é, inegavelmente, um animal, ser vivo com capacidade de locomoção e de resposta a estímulos, havendo, inclusive, certa proximidade, do ponto de vista genético, em relação aos grandes símios. Por consectário, deveriam ser estendidos aos animais direitos da personalidade, a serem por eles mesmos titularizados, sob pena de discriminação.
Um segunda posição sustenta que os animais não são pessoas, mas também não são meros objetos. Faz-se necessário viabilizar a proteção dos animais enquanto um terceira categoria sui generis. Nesse sentido, oportuna a transcrição do seguinte escólio doutrinário:
Os animais são seres sui generis, ou seja, de gênero próprio, atípicos, não encontrando semelhança com qualquer outra figura reconhecida pelo ordenamento jurídico. Por estas razões, pode mostrar-se mais adequada a criação de uma classe que lhes é própria. Tem-se, assim, o entendimento acerca de uma nova classificação dos animais no Direito, que não os teria como bens e nem como sujeitos, mas que impusesse a criação de uma classe intermediária entre coisa (bem) e ser humano (pessoa), que seja própria dos animais32.
O derradeiro entendimento, ainda majoritário, situa os animais como semoventes, de modo que são considerados meros objetos de direito das relações jurídicas titularizadas pelas pessoas, tal como consta no preceito legal acima referenciado do Código Civil brasileiro. A propósito, leciona César Fiuza, enfatizando o caráter problemático de se atribuir personalidade jurídica aos animais:
Conferir personalidade aos animais pode parecer muito simpático, a um primeiro olhar. Mas a que animais vamos conferir personalidade? A todos? Entram nesse rol as baratas, os pernilongos, os ratos, os mosquitos da dengue, os vírus, as bactérias nocivas e outros tantos dos quais queremos distância? Se a resposta for não, a pergunta se mantém: a que animais conferir personalidade? Apenas aos que nos forem úteis? Como, então, legitimar um churrasco de picanha? Ou um bife de vitela? Ou seremos todos vegetarianos? Como proteger um animal selvagem que não faz mal nem bem? Se a resposta ainda aqui for negativa, a pergunta permanece: a que animais conferir personalidade? Àqueles que não nos forem nocivos? Assim estaríamos protegendo não só os animais que nos sejam úteis, mas também os que não nos façam mal. De todo modo, continua o problema incontornável, para nós carnívoros, de comermos outras pessoas, o que culturalmente seria inaceitável. Em outras palavras, como legitimar um churrasco de picanha? Bem, se a reposta não é conferir personalidade aos animais, seria, então, a de conferir-lhes o status de sujeitos de direitos? Vimos, ainda há pouco que essa também não é a melhor solução. Um animal não pode ser sujeito de direito por um lado e objeto de propriedade por outro. Um sujeito de direito não pode estar no cardápio de um restaurante. […] Se os animais não são pessoas, tampouco sujeitos de direitos, qual seria o fundamento de sua proteção? A resposta é muito simples: o ser humano. Os animais são objeto de direito, podem ser objeto de propriedade, podem ser caçados e devorados; podem ser, inclusive, extintos, como desejamos o seja o mosquito da dengue. Isso não significa que não devam ser protegidos. Em que situações ocorre a tutela protetiva? Quando protegemos nossa propriedade, quando protegemos o meio ambiente e quando protegemos os animais contra atos de crueldade, ou seja, quando os protegemos aparentemente, por eles mesmos. Na realidade, em todas essas hipóteses, o sujeito do direito é o ser humano, seja o proprietário, seja aquele que deseja um meio ambiente saudável, seja o que se projeta no animal em sofrimento33.
Sem embargo, inobstante as posições em sentido contrário e mesmo que não se transponha as barreiras antropocentristas, é possível buscar novos valores que consagrem uma relação mais harmônica entre o homem e o meio ambiente, conferindo proteção aos animais, independentemente do seu valor para o homem, considerando que são seres sencientes.
5 Precedentes dos Tribunais Superiores
Conflitos envolvendo as normas constitucionais insculpidas nos arts. 215 e 225 da Constituição Federal, que consagram, respectivamente, o direito à cultura e o direito ao meio ambiente, já foram submetidos à análise do Supremo Tribunal Federal, a exemplo da “vaquejada” (ADI nº 4.983/CE), da “farra do boi” (RE nº 153.531/SC) e da “briga de galo” (ADI nº 1.856/RJ e ADI nº 2.514/SC).
Em tais oportunidades, restou firmado entendimento favorável ao meio ambiente, conferindo primazia à proteção da fauna frente às manifestações culturais em que se empregue crueldade e violência contra animais.
Todavia, em nítido retrocesso ambiental, por meio de reação legislativa consubstanciada na Emenda Constitucional nº 96/2017, foi inserido o art. 225, § 7º, da Constituição Federal, segundo o qual:
Art. 225 […] § 7º Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º deste artigo, não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o § 1º do art. 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 96, de 2017)
Lado outro, na ADPF nº 640 MC-Ref/DF, o Supremo Tribunal Federal deu interpretação conforme a Constituição ao art. 25, § 1º, da Lei nº 9.605/98, decidindo que é inconstitucional a interpretação da legislação federal que possibilita o abate imediato de animais apreendidos em situação de maus-tratos.
O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, no REsp nº 1.713.167/SP, decidiu que:
Os animais de companhia possuem valor subjetivo único e peculiar, aflorando sentimentos bastante íntimos em seus donos, totalmente diversos de qualquer outro tipo de propriedade privada. Por conta disso, o regramento jurídico dos bens não se vem mostrando suficiente para resolver, de forma satisfatória, a disputa familiar envolvendo os pets, visto que não se trata de simples discussão atinente à posse e à propriedade. STJ. 4ª Turma. REsp 1.713.167-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 19/06/2018 (Info 634).
Em outras palavras, a resolução de conflitos envolvendo animais de estimação com base nas regras tradicionais de posse e propriedade não proporciona a solução mais adequada. Segundo a Corte Superior, os animais de estimação são seres que possuem natureza especial e, como seres sencientes, também devem ter o seu bem-estar considerado. Assim, por ocasião da dissolução de entidade familiar, independentemente da qualificação jurídica a ser adotada, é possível o reconhecimento do direito de visita a animal de companhia.
Existe, inclusive, projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional que tem como escopo justamente dispor sobre a guarda dos animais de estimação nos casos de dissolução litigiosa da sociedade e do vínculo conjugal.
6 Conclusão
A partir da investigação dos fundamentos filosóficos do direito ambiental, de prisma notadamente antropocêntrico, foi apresentado o enquadramento legal dos animais na legislação brasileira e no direito comparado, bem como exposta a controvérsia doutrinária e a tendência jurisprudencial de se atribuir natureza especial aos seres sencientes, porquanto dotados de sensibilidade, sentindo as mesmas dores e necessidades biopsicológicas dos animais racionais.
Com efeito, conclui-se que a tradicional categorização dos animais como meros objetos não mais atende aos fins sociais, afrontando a própria evolução da sociedade, sobretudo a proteção do ser humano e do afetivo com o animal.
Ademais, a despeito do paradigma antropocêntrico, não é imprescindível atribuir personalidade jurídica ao animal para que ele possa ser considerado como titular de relações jurídicas, haja vista que o ordenamento reconhece outros sujeitos de direito que não possuem personalidade, os denominados entes despersonalizados, a exemplo do condomínio edilício e da massa falida.
Dessarte, sob uma perspectiva antropocêntrica alargada, reputa-se mais adequada a tutela jurídica dos animais enquanto categoria autônoma, inconfundível com o conceito de pessoa, mas, ainda assim, considerada como passível de titularizar direitos.
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9 CHALFUN, Mery. Op. Cit.
10 ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martin Claret, 2008, p. 56-57.
11 GORDILHO, Heron José de Santana. Direito Ambiental Pós-Moderno. São Paulo: Juruá, 2010, p. 128.
12 LEVAI. Laerte Fernando. Crueldade Consentida – Crítica à razão Antropocêntrica. Revista Brasileira de Direito Animal. Salvador, v. 1, nº 1, 2006, p. 174.
13 CHALFUN, Mery. Op. Cit.
14 GORDILHO, Heron José de Santana. Direito Ambiental Pós-Moderno. São Paulo: Juruá, 2010, p. 128.
15 SANTOS, Samory Pereira. Op. Cit., Epub.
16 LEVAI. Laerte Fernando. DARÓ. Vânia Rall, Experimentação animal: histórico, implicações éticas e caracterização como crime ambiental. In Revista de Direito Ambiental. São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 36, p. 138-150, out./dez., 2004.
17 LEVAI. Laerte Fernando. Crueldade Consentida…Op. Cit.
18 Cf. HOBSBAWN, Eric. A era das revoluções. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
19 FURTADO, Fernanda Andrade Mattar. Concepções éticas da proteção ambiental. In: Revista de Direito Público, Porto Alegre: Síntese, ano I, n. 3, p. 151, jan-fev-mar de 2004.
20 CHALFUN, Mery. Op. Cit.
21 BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da Proporcionalidade: nas manifestações culturais e na proteção da fauna. Curitiba: Juruá, 2006, p. 86.
22 CHALFUN, Mery. Op. Cit.
23 Ibid.
24 Ibid.
25 OST, François. A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito. Lisboa: Instituto Piaget, 1997, p. 17-18.
26 LEITE, José Rubens Morato. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. São Paulo: Editora RT, 2000, p. 76.
27 CHALFUN, Mery. Op. Cit.
28 KALINOSKI, Markian. Genoma humano: Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 292, 25 abr. 2004. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/5057>. Acesso em: 2 out. 2015.
29 MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Fundamentos do Direito Ambiental no Brasil. Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 706, p. 7-29, ago/1994, p. 11.
30 CHALFUN, Mery. Op. Cit.
31 TOLEDO, Maria Izabel Vasco. A tutela jurídica dos animais no brasil e no direito comparado, Revista Brasileira de Direito Animal, Salvador, a.7, v 11, p 216-217, jul/dez. 2012.
32 JUNG, Jessica. Possibilidades de Classificação dos Animais no Ordenamento Jurídico. Res Severa Verum Gaudium, v. 5, n. 1, Porto Alegre, p. 240-257, out. 2020.
33 FIUZA, César; GONTIJO, Bruno Resende Azevedo. Dos fundamentos da proteção dos animais: uma análise acerca das teorias de personificação dos animais e dos sujeitos de direito sem personalidade. Revista de Direito Civil Contemporâneo, São Paulo: Ed. RT, n. 1, v. 1, out.-dez. 2014, p. 200-201.