PODER E IMORTALIDADE: A CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE POLÍTICA BRASILEIRA EM O VAMPIRO QUE DESCOBRIU O BRASIL, DE IVAN JAF

\"\"

O Registro DOI deste artigo é: 10/hq39
https://doi.org/10/hq39


Autor
1Elciane de Lima Paulino
Universidade Estadual da Paraíba
limaelciane@hotmail.com
Co-autor
1Rosângela Neres Araújo da Silva
Universidade Estadual da Paraíba
rosangelaneresuepb@gmail.com
Co-autor
2Evanice Guedes Aquino
Universidade Estadual da Paraíba
professoraevanice@hotmail.com
Co-autor
3José Hilton Silva Dantas
Universidade Estadual da Paraíba
josehsdantas@gmail.com


RESUMO

O presente artigo tem por objetivo analisar a refração ideológica dos signos “poder” e “imortalidade”, nas vozes do protagonista e do antagonista, na obra literária O vampiro que descobriu o Brasil, de Ivan Jaf. O texto tem papel importante na compreensão do homem e da sociedade, uma vez que trata de uma abordagem estética da história política brasileira e desvenda a relação entre o povo e seus governantes, ao longo de cinco séculos, envolvendo personagens sobrenaturais como possibilidade de resistir aos acontecimentos históricos e ultrapassar os limites biológicos dos seres humanos, de forma humorada. Em busca de recuperar a mortalidade, o protagonista conduz o leitor, da situação inicial ao desfecho da narrativa, a refletir sobre as antíteses e paradoxos presentes no meio cultural:, a virtude e o pecado, o sagrado e o profano, a vida e a morte, o bem e o mal, o prazer e a contenção do desejo, a ficção e a realidade, a morte do imortal. A materialização das ideias contidas na obra literária é analisada sob os limites do gênero textual/discursivo novela, refletindo o enfoque sociológico presente na narrativa. A metodologia deste estudo dá-se através da análise da obra literária supracitada, mapeando os signos “poder” e “imortalidade” presentes no texto, de pesquisas bibliográficas sobre os elementos composicionais do gênero novela e sobre a crítica sociológica da literatura. O resultado aponta diferentes refrações ideológicas dos signos analisados, já que protagonista e antagonista apresentam, de forma subjetiva, suas maneiras de ver e compreender o poder e a imortalidade. Portanto, a obra reflete possibilidades de representação do homem e suas relações sociais, através da identidade assumida pelas personagens, em diferentes contextos históricos, corroborando a construção da identidade política brasileira.

Palavras-chave: Literatura, Gênero novela, Crítica sociológica.

INTRODUÇÃO

O vampiro que descobriu o Brasil, escrita pelo carioca Ivan Jaf, foi a obra selecionada para compor o Volume 3 (Novela), da Coleção Literatura em Minha Casa, distribuída para as escolas públicas brasileiras em 2003.

A obra oportuniza ao leitor dialogar, de um modo especial, sobre aspectos relacionados aos movimentos políticos do Brasil – Colônia, Império e República -, especialmente, no que concerne às atitudes humanas diante dos problemas sociais, aos mecanismos de enfrentamento e transformação da realidade, bem como à falência dos valores políticos desde a era colonial à moderna república brasileira.

Embora o texto literário possibilite a plurissignificação de dizeres sobre diferentes aspectos, o objetivo deste estudo é analisar, nas vozes dos protagonista e antagonista, a refração ideológica de “poder” e “imortalidade”, desde o colonialismo à contemporaneidade pelo viés da literatura.

O fato de atravessar cinco séculos de História é muito interessante porque incita os seguintes questionamentos: que personagens sobreviveriam tanto tempo para participar de importantes acontecimentos e relatar pontos de vista antagônicos sobre aspectos decisivos na formação da identidade política do povo brasileiro? Que gênero textual/ discursivo daria suporte a tantas informações? A atividade estética seria comprometida na tentativa de, cronologicamente, envolver todo esse percurso político?

Para responder a esses questionamentos, num primeiro momento, posterior à metodologia, discutir-se-á sobre os limites do discurso no gênero novela, apresentando os elementos da narrativa em sua complementariedade; num segundo momento, tecer-se-á a análise sobre a refração ideológica de “poder” e “imortalidade”, nas vozes das personagens de destaque da obra – nesse momento, observar-se-á a composição estética que valoriza o todo da obra; posteriormente, apresentar-se-ão as considerações finais.

METODOLOGIA

Apresenta-se neste trabalho a análise da obra literária O vampiro que descobriu o Brasil, de Ivan Jaf, com base em pesquisa bibliográfica, para a análise e interpretação da refração dos signos “poder” e “imortalidade”. Os signos refletem condições históricas do momento em que são produzidos e materializados nas vozes dos personagens da narrativa, o que incita a discussão por se tratar de temática de relevante estudo.

Segundo Prestes (2012), para efetuar uma pesquisa bibliográfica, deve-se fazer um levantamento dos temas e tipos de abordagens já trabalhadas por outros estudiosos, assimilando-se os conceitos e explorando aspectos já publicados.

Por isso, no levantamento bibliográfico, atentou-se, na leitura, para conhecimentos extraídos dos estudos de Gancho (1991) e Massaud Moisés (2006), sobre os elementos composicionais do gênero novela; Bakhtin (2000), Candido (2006) e Silva (2009), sobre a crítica sociológica da literatura.

A identidade política brasileira nos limites do gênero novela

Nas distintas formas de comunicação humana, um enunciado pode sofrer diferentes variações de sentido, conforme os propósitos enunciativos, os recursos estilísticos utilizados e os elementos composicionais de cada gênero do discurso. Entende-se por gêneros do discurso, tipos relativamente estáveis de enunciados de uma dada esfera da comunicação humana (Bakhtin, 2000). Tal compreensão é indispensável para a análise de um gênero, neste caso mais específico, o gênero novela em que se enquadra O vampiro que descobriu o Brasil, de Ivan Jaf.

Recorrendo-se ao conceito da palavra novela em Massaud Moisés (2006), é possível encontrar vários significados, do sentido original ao atual, dos quais vale citar “relato”, “comunicação”, “novidade”, “chiste”, “gracejo”, “enredo”, “narrativa enovelada”; “engano”, “embuste”, “mentira”… Além desses significados, o autor traz um dado curioso acerca do gênero: na França era contada por trovadores, confundia o fantástico com o verídico, centrado nos episódios bélicos, assim conjugando espírito cívico e atividade estética.

Podem-se relacionar esses dados às características da obra em análise, uma vez que se trata de uma narrativa de ficção, parcialmente curta, que enreda o leitor, de uma maneira bem humorada, e conjuga o fantástico e o verídico, no que se refere aos movimentos sócio-políticos do Brasil, com uma composição estética bem elaborada.

Somente um ser maravilhoso, de um universo fantástico para atender aos propósitos comunicativos de Ivan Jaf. No exemplar selecionado da Coleção Literatura em Minha Casa, consta que o autor se inspirou em um personagem real – o cruel, Vlad, o Empalador, herói romeno na guerra contra os turcos – para criar livremente essa história. Além disso, ele leu livros de História como se fossem romances para compreender os acontecimentos como um todo sem se ater apenas aos detalhes.

Segundo Massaud Moisés (2006), desde o Romantismo, em qualquer das modulações do gênero novela, eram preferíveis temas de natureza histórica, ou relacionados com acontecimentos históricos.

É perceptível, assim, essa preferência de Ivan Jaf pela temática histórica, uma vez que grande parte de sua obra tem como tema a História do Brasil, sempre tratada com humor e boas doses de aventura, sem deixar de lado a seriedade das informações.

O vampiro que descobriu o Brasil trata do tema “os movimentos políticos do Brasil”, por isso, o autor desenvolve a trama, partindo do Descobrimento, Colonização, Invasão dos Holandeses, A Inconfidência Mineira, Chegada da Família Real no Brasil, Abolição da Escravatura, entre outros fatos históricos responsáveis pela identidade política do País hoje.

Segundo Hayek (1990), olhando para trás, pode-se avaliar a significação dos fatos passados e acompanhar as consequências que tiveram. A novela, em análise, permite essa constatação acerca dessa identidade política, que reflete a falência de valores político-ideológicos.

Além disso, o protagonista acompanha espantado o surgimento da luz elétrica, dos automóveis e dos eletrodomésticos, isto é, o progresso da humanidade, todavia, percebe que algumas “invenções” humanas nunca mudam: a corrupção, o hábito de querer levar vantagem, a riqueza de poucos, a pobreza de muitos.

A narrativa é dividida em vinte e quatro capítulos. O narrador é onisciente, isto é, “em 3ª pessoa, que está fora dos fatos narrados, portanto seu ponto de vista tende a ser mais imparcial” (GANCHO, 1991, s/p). Conta a história de Antônio Brás, um português que é mordido no pescoço e se transforma em vampiro em plena Lisboa de 1500. Para desfazer a maldição e voltar a ser normal, ele terá de reencontrar o seu agressor e fincar uma estaca no coração dele. Para isso, terá de enfrentar os “perigos” do mar, embarcar na conhecida caravela de Pedro Álvares Cabral numa viagem rumo às Índias, que resultou no Descobrimento do Brasil.

Com esse objetivo, de reencontrar o vilão, remetido como “o Velho” até o clímax da narrativa, o texto é construído, agregando elementos, valores tipicamente brasileiros, e aqueles trazidos de Portugal, cujas características vão-se esvaindo, exceto o desejo do protagonista voltar à mortalidade, comer o prato típico do seu lugar de origem (lascas de bacalhau com vinho tinto rascante) por um lado, e por outro, a corrupção e o hábito de querer levar vantagem.

No que concerne ao “cronotopo”, termo utilizado por Bakhtin (2000), qualquer intervenção na esfera dos significados só se realiza através da porta dos cronotopos, ou seja, para estudar a natureza das categorias de tempo e espaço representados nos textos, devem-se considerar as relações intrínsecas de tempo e espaço.

Cada gênero está assentado em um diferente cronotopos, pois inclui um horizonte espacial e temporal (qual esfera social, em que momento histórico, qual situação de interação), um horizonte temático e axiológico (qual o tema do gênero, qual a sua finalidade ideológico-discursiva) e uma concepção de autor e destinatário. (RODRIGUES, 2005, p. 165)

Na descrição de cronotopos da obra, cujo estilo é imediatamente associado ao sombrio, como nos filmes Nosferatu, uma sinfonia de horror (1922), Drácula, de Bram Stoker e Entrevista com o vampiro, expressões do tipo “aos primeiros raios de sol do terceiro dia, encontraram um grumete entre os cordames, com um talhe no pescoço e sem uma gota de sangue no corpo”, “a toda hora chamava atenção para uma nova constelação em forma de cruz, como se tivesse medo dela”, “O céu já se enchia de manchas vermelhas, com os primeiros raios de sol” reiteram a criatividade do escritor. Ou seja, recursos típicos do mundo dos vampiros vão assumindo, por meio de metáforas, sentidos que se relacionam ao que há de negativo no meio político e na degradação dos valores humanos.

Tal como o personagem de Cervantes, o D. Quixote, que tinha o Sancho Pança como um estímulo em suas andanças, aquele montado num cavalo e este num burro, Antônio Brás percorre parte do território brasileiro numa mula, animal bem característico do Nordeste, e dela também se serve para alimentar-se do sangue duas vezes por semana, em troca de “dias e dias solta nos melhores pastos” (JAF, 2003, p.23), em busca de seu sonho – sonho este que também vai sofrendo variações ao longo do tempo, conforme as nuances do lugar e período histórico em que o Brasil se encontra num ou noutro capítulo.

No capítulo 6, por exemplo, montado na mula, Antônio Brás percorreu disfarçado a trilha oficial que levaria a Pernambuco, a capitania mais próspera e importante. Relatam-se nesta parte da novela, os ataques holandeses à costa brasileira, em meados de 1624. Nesse capítulo, a preocupação de Antônio era “encontrar o Velho, reaver sua alma mortal e passar o resto dos seus dias numa daquelas praias desertas, com uma bela índia, bebendo vinho e comendo salame” (JAF, 2003,p. 24). Já no capítulo 10, Tiradentes estava se tornando famoso por conspirar contra a Coroa Portuguesa, falando mal do governador e do vice-rei, pregando abertamente a revolta armada e a independência do Brasil. Neste capítulo, a preocupação do protagonista era “recuperar sua alma mortal, já sonhando com feijão-tropeiro, cachaça com maracujá e a mulata do armazém” (JAF, 2003, p. 39).

Ou seja, do capítulo um ao dez, são relatados acontecimentos de aproximadamente três séculos de história do Brasil. Isto ocorre porque, segundo Gancho (1991), o tempo na novela ocorre de forma rápida. São exemplos de recursos estilísticos utilizados na obra que marcam essa característica do tempo no gênero: “depois de esperar o dedo desinchar por 15 anos”, “viveu isolado numa caverna, na base de uma montanha de barro duro e vermelho, por cinquenta anos”, “com quatrocentos anos de Brasil, estava ficando esperto”.

Assim sendo, no todo da obra são relatados os seguintes acontecimentos históricos, cuja cronologia obedece ao ritmo do calendário:

  • 1500: 08/03 – Partida da esquadra de Pedro Álvares Cabral; 22/03 – Desaparecimento da nau de Vasco de Ataíde; 22/04 – Descobrimento do Brasil; 01/05 – Primeira missa no Brasil; Março de 1549 – Criação do Governo Geral; 1/11/1549: Fundação da primeira capital do Brasil.
  • 1600: 02/05/1624 – Matança dos índios; 09/05/1624 – Invasão Holandesa em Salvador; 1625 – Expulsão dos holandeses; 14/02/1630 – Invasão Holandesa em Recife; 23/01/1637 – Nomeação do Príncipe Maurício de Nassau; 1654 – Expulsão dos holandeses.
  • 1700: 1756 – Terremoto em Lisboa; 1789 – Derrama; 20/05/1789 – Prisão de Tiradentes.
  • 1800: 11/1807: Saída da família real de Lisboa para o Brasil; 08/03/1808 – Chegada da família real ao Brasil; 1816 – Morte da Rainha Maria I; 1821- Despedida de D. João VI; 07/09/1822 – Independência do Brasil; 1826 – Morte de D. João VI; 07/04/1831 – D. Pedro I volta a Portugal e D. Pedro II assume o trono com apenas 5 anos de idade; 1888 – Abolição da Escravatura; 15/11/1889: Proclamação da República.
  • 1900: 1905 – Desvalorização do café; 1929 – Queda da Bolsa de Nova York; 1930: A crise econômica; 26/09/1930; Assassinato de João Pessoa; 29/10/1945 – Destituição de Getúlio Vargas; 1950 – Getúlio retorna ao poder; 23/08/1954 – Manifesto exigindo a renúncia do presidente Vargas; 24/08/1954 – Morte de Getúlio Vargas; 08/1961 – Renúncia de Jânio Quadros; 31/03/1964 – Golpe de Estado no Brasil; 1984 – Diretas Já; 14/03/1984 – Notícias sobre a doença de Tancredo; 21/04 – Morte de Tancredo; 1999 – Posse de Fernando Henrique (reeleição).

Embora a novela contemple todos esses movimentos históricos, vale salientar que, segundo Candido (2006), quando se faz uma análise sociológica, leva-se em conta o elemento social, não exteriormente, como referência que permite identificar, na matéria do livro, a expressão de certa época ou de uma sociedade determinada; nem como enquadramento, que permite situá-lo historicamente; mas como fator da própria construção artística, estudado no nível explicativo e não ilustrativo.

Para chegar a uma interpretação estética que assimilou a dimensão social como fator de arte, além do tempo devem-se analisar os espaços percorridos tanto pelo protagonista como pelo antagonista da história, os quais transcorrem em vários núcleos, desde a praça principal de Restelo a pouco mais de uma légua de Lisboa, até chegarem ao Brasil e transitarem Salvador, Recife (Igaraçu, Rio Formosa, Afogados, Itamaracá, Paraíba, Rio Grande do Norte, Sertão dos Cataguás, Minas Gerais (Vila Rica), Rio de Janeiro (Paço de São Cristóvão, Ilha Fiscal, Pátio do Ministério da Guerra, Catete, R. Presidente Vargas), São Paulo (Av. Paulista), Rio Grande do Sul, Brasília.

Lembrando as palavras de Candido (2006) em relação ao tempo como fator estético, os espaços também devem ser considerados como fictícios, pois estão a serviço da construção composicional da obra.

O mesmo ocorre com os personagens históricos (secundários) da novela em análise, dos quais se citam os de maior relevo, pelo fato de serem suspeitos de atrair a alma do Velho (o antagonista): Pedro Álvares Cabral, Mestre João, Domingos Fernandes Calabar (o Velho, revelação feita no clímax da narrativa), Maurício de Nassau, Joaquim Silvério dos Reis, Visconde de Barbacena, José Bonifácio de Andrada e Silva, D João VI, Visconde de Ouro Preto, João Pessoa, Carlos Lacerda, Getúlio Vargas, João Goulart (vice de Jânio Quadros), Tancredo Neves, José Sarney, Marco Maciel.

[…] todas as personagens e seus discursos não são mais que objetos que demonstram a atitude do autor (e do discurso do autor). Contudo, os planos do discurso das personagens e do discurso do autor, podem entrecruzar-se, em outras palavras, podem estabelecer-se uma relação dialógica. (BAKHTIN, 2000, p. 344)

Portanto, as personagens secundárias, ou seja, aquelas que são menos importantes na história, têm sua participação menos frequente no enredo, e são assujeitadas pelo universo fictício, agindo às vezes com humor, criticamente, ironicamente, ou reflexivamente, demonstrando a posição crítica do autor diante dos fatos políticos narrados em cada núcleo dramático.

Massaud Moisés (2006) afirma que, paradoxalmente, o romance é mais limitado que a novela em matéria de volume de núcleos narrativos, pelos seguintes pormenores: a. é impensável uma novela com dois núcleos dramáticos; b. toda novela pode, em hipótese, continuar depois da última aventura, visto haver sempre uma possibilidade franqueada à imaginação do autor.

Com base nessas palavras, observa-se que O Vampiro que descobriu o Brasil, além de apresentar vários núcleos dramáticos, permite a continuidade de aventuras, seja pelo leitor seja pelo autor da história.

Após muitas investidas para encontrar o Velho, reaver a sua alma mortal, Antônio, finalmente, percebe que o Velho se divertiu bastante com tudo isso, passando-se inclusive por amigo próximo, mas que o tédio da eternidade levou-o a deixar-se encontrar. O encontro é marcado no escritório de Antônio em Brasília. Estando um diante do outro numa conversa acerca dos acontecimentos, Antônio, por acompanhar o desenvolvimento tecnológico, apertando um simples botão, lança a estaca no coração do Velho e recupera sua mortalidade. Liga para um restaurante de Brasília confirmando seu pedido: lascas de bacalhau e vinho tinto rascante.

Portanto, sem abdicar de sua liberdade ficcional, Ivan Jaf, além de utilizar suas personagens históricas remotas ou recentes, com as quais o leitor se identifica, cria outras muito condizentes com a carga semântica da política brasileira, e, sobretudo, com sua intenção comunicativa, materializa suas ideias, cujos limites são determinados pelo gênero textual/discursivo escolhido: novela. A novela termina deixando um largo caminho descerrado à imaginação do leitor.

Refração Ideológica entre Poder e Imortalidade

Parafraseando Bakhtin (2014, p.33), “todo fenômeno que funciona como signo ideológico tem uma encarnação material”. O autor afirma que a realidade do signo é totalmente objetiva e, portanto, passível de um estudo metodologicamente unitário e objetivo. Desse modo, torna-se possível analisar a refração ideológica das palavras “poder” e “imortalidade”, como signos sociais, e todos os seus efeitos, todas as ações, reações e novos signos que eles geram no fenômeno social representado na obra O vampiro que descobriu o Brasil.

Mas, o que significa “poder”? O termo seria intercambiável com o termo “imortalidade” ou ambos são signos cujos significados são completamente distintos? O filósofo Foucault, em seu texto “O sujeito e o poder”, disse se envolver bastante com a questão do poder, e ainda, “enquanto o sujeito humano é colocado em relações de produção e de significação, é igualmente colocado em relações de poder muito complexas” (p. 232).

Ora, ao que parece, a história e a política econômica em O vampiro que descobriu o Brasil fornecem um instrumento de análise, especialmente, nos discursos das personagens protagonista e antagonista da obra, uma vez que a literatura e a semiótica oferecem instrumentos para estudar as relações de significação.

Porém, de qualquer forma, é importante considerar que, para Foucault, na referência supracitada, não se tem instrumentos de trabalho para as relações de poder. O único recurso são os modos de pensar o poder com base nos modelos legais. “…Isto é: o que legitima o poder? Ou então, modos de pensar o poder de acordo com um modelo institucional, isto é: o que é o Estado?” (p. 232).

Um dos elementos fulcrais em O vampiro que descobriu o Brasil é essa dual perspectiva acerca do “poder” e “imortalidade”: para Antônio, o “poder” consiste em voltar à sua rotina de antes, tendo de investir no sobrenatural da imortalidade para desfazer-se de sua condição de vampiro; para o vilão – Domingos, o poder está onde está o dinheiro, portanto ele prefere participar dos movimentos políticos importantes do Brasil, mantendo-se imortal até o desfecho da história. Com habilidade estética, usando em vários momentos o jogo de antíteses e paradoxos: o bem e o mal, a virtude e o pecado, o sagrado e o profano, a vida e a morte, o prazer e a contenção do desejo, a ficção e a realidade, a morte do imortal, etc, Ivan Jaf constrói e permite ao leitor construir diferentes sentidos na narrativa.

É o que Foucault (p.231) chama de “práticas divisoras”, ao defender que o sujeito é dividido no seu interior e em relação aos outros. Exemplos: o doente e o sadio, o louco e o são, os criminosos e os bons meninos. Segundo ele, existem três fatores que definem a potência do poder – a necessidade, a escassez e a insubstituibilidade. Analisando tais fatores na obra, é possível observar que Antônio tinha necessidade e urgência de desfazer-se da condição de vampiro para viver ao lado de sua família.

À medida que o tempo passa, ele se vê impossibilitado de realizar esse desejo, e a necessidade de urgência vai sendo substituída por uma sensação de escassez nas possibilidades de realização. Quando ele é seduzido a substituir essa ideia pela permanência de sua imortalidade, ele se nega, pois para ele, ser mortal é insubstituível:

– …mesmo agora, depois de conviver com a humanidade durante quinhentos anos, conhecendo todos os seus defeitos… sabendo que esses defeitos são tão eternos quanto nós… ainda quer voltar a ser um homem? […] Testemunhou por meio milênio os horrores de que é capaz a natureza humana e mesmo assim quer voltar a…

– Sua má compreensão dos homens é compreensível. Sempre conviveu com os piores. (JAF, 200, p. 88)

Analisando esses fatores na concepção de poder do antagonista, observa-se que a necessidade dele era completamente diferente, queria estar em evidência. Até a sensação de tédio da eternidade surge como condição da escassez de motivos de uma autorrealização, e o que é insubstituível para ele na condição de imortal deixa de ter sentido com o seu próprio fim. É um paradoxo, mas não se pode esquecer que este recurso na literatura tem efeitos de sentido e, portanto é um recurso estilístico dos mais instigantes: “Esqueceu qual é o maior problema dos vampiros? O tédio da eternidade…” (JAF, 2003, p. 88)

Nessa dupla perspectiva de poder, pode-se formular a seguinte questão: Qual personagem representaria um super-herói na história – aquele que abusa de seus superpoderes em benefício próprio ou o que age sem a intenção de macular a coletividade? Refletir sobre essa situação é realmente um tanto complexo, e a novela O vampiro que descobriu o Brasil permite tal percepção.

Já o conceito de imortalidade na narrativa, como se pode perceber, tem seu prazo de validade. Mesmo que haja uma estratégia que parece infalível como, fincar uma estaca no coração do Velho, mas que pode ser reversível desde que a vítima sugue o sangue de outro vampiro, há uma outra que os vampiros não conseguem dominar: o tédio da eternidade. Não possuir domínio sobre essa questão é o maior paradoxo da narrativa, como já revelado.

Conforme a Revista Superinteressante, a imortalidade existe na natureza, mas o homem ainda não conseguiu desfrutá-la. A relação entre a velhice e a proximidade da morte são elementos que coadunam com a escolha do apelido do antagonista “O Velho”.

No corpo humano, os melanócitos dão cor aos cabelos, o colágeno dá jovialidade à pele, a cartilagem aos ossos – os cabelos ficam grisalhos, a pele enrugada, e o corpo sofre as dores nas juntas. Velhos.

Numa sucessão, células e órgãos vão deixando de cumprir funções cruciais para o corpo. Até que tudo isso culmina numa pane geral. E a morte ocorre. A imortalidade está presente no meio social tanto no sentido denotativo quanto conotativo. No sentido denotativo, enquanto cientistas tentam de tudo: da mumificação no Egito antigo, a injeções feitas a partir de testículos de animais, na França do século 19, no sentido conotativo da palavra, a imortalidade está presente no registro histórico que permite o interesse de resgatar na memória aqueles que deixaram “grandes contribuições em vida”. Relaciona-se com esses “nomes que enchem décadas e, às vezes mesmo, já mortos, parece que continuam a viver”. (BARRETO, 2014, p.179). É esta última acepção que está presente no todo significativo da novela de Ivan Jaf.

Pelo que se sabe por meio da obra, se o vampiro sofre um corte, ou algo pior, o sangue estanca em minutos, numa eficácia extraordinária, apesar da sensação de fraqueza e vulnerabilidade. Porém, nada como alguns dias de repouso e tudo volta ao normal.

O signo “imortalidade” também refrata outros sentidos dentro da plurissignificação da literatura. Segundo Domingos, o Velho sugava o sangue de sua vítima até a beira da morte, até que a alma dela desistisse de lutar pelo corpo e saísse. Então ele entrava no lugar dela e o corpo revivia, possuído. Ficava a cicatriz da mordida. Quando ele saía, a alma antiga voltava, sem se lembrar de nada, como se tivesse sido um sonho. Saber o momento certo de parar de chupar o sangue, depois do risco de criar um novo vampiro e antes de matar a vítima, era o segredo do Velho.

O processo de semiose na construção dos signos na novela O vampiro que descobriu o Brasil toma uma configuração artística e visual tal que dialoga, metaforicamente, pelo recurso da verossimilhança, com as atitudes humanas no contexto “político” – a corrupção e o hábito de querer levar vantagem, isto é, a falência dos valores políticos desde a era colonial à moderna república brasileira – esta sim que mais parece ser imortal e possuir a potência da insubstituibilidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A literatura tem o poder de se metamorfosear em todas as formas discursivas, sendo assim, na novela analisada, infere-se que a identidade política brasileira seja pelos viés literário seja na realidade, precisará “eternamente” da filosofia para compreender o homem. Se desde o desenvolvimento do Estado moderno e da gestão política da sociedade, o papel da filosofia é também vigiar os excessivos poderes da racionalidade política (FOUCAULT, p. 233), a literatura permite esse diálogo e reflexão de uma forma estética e produtiva.

Atualmente, a tendência das individualidades sobressai-se em relação ao coletivo no campo político, especificamente, pelas aparentes desigualdades de classes, apatia dos marginalizados para com o tema político, desejo de poder pelas classes dominantes. Esses elementos são muito bem representados no meio artístico literário. Por isso, o reconhecimento da imagem extraída das representações contribui na formação de identidades.

Assim sendo, a leitura da novela de Ivan Jaf abre espaço para a reflexão de lutas contra as formas de dominação, de exploração que separam os indivíduos daquilo que eles produzem; ou contra aquilo que liga o indivíduo a si mesmo e o submete, deste modo, aos outros (lutas contra a sujeição, contra as formas de subjetivação e submissão), lutas que ocorrem desde a colonização até o presente momento.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

_____. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 16 ed. São Paulo: Hucitec, 2014.

BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014.

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9 ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.

CINQUEPALMI, João Vito. Você pode ser imortal. Superinteressante. < http://super.abril.com.br/ciencia/voce-pode-ser-imortal/> Acesso em: 12/06/2017.

FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. < http://www.uesb.br/eventos/pensarcomfoucault/leituras/o-sujeito-e-o-poder.pdf> Acesso em: 12/06/2017.

GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. Série Princípios. São Paulo: Ática, 1991.

HAYEK, F. A. O caminho da servidão. 5 ed. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1990.

JAF, Ivan. O vampiro que descobriu o Brasil. Col. Literatura em minha casa. Novela Brasileira. Vol 3. Ática: São Paulo, 2003.

MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa 1. 20 ed. São Paulo: Cultrix, 2006.

PRESTES, Maria Luci de Mesquita. A pesquisa e a construção do conhecimento científico: do planejamento aos textos, da escola à academia. 4 ed. São Paulo: Rêspel, 2012.

RODRIGUES, Rosângela Hammes. Os gêneros do discurso na perspectiva dialógica da linguagem: a abordagem de Bakhtin. In: MEURER, J. L; BONINI, Adair & MOTTA-ROTH, Désirée. Gêneros, teorias, métodos, debates. São Paulo: Parábola Editorial, 2005.

SILVA, Marisa Corrêa. Crítica Sociológica. In: Teoria Literária: Abordagens Históricas e Tendências Contemporâneas. 3 ed. Maringá: UEM, 2009.