O PAI MORTO E O SILÊNCIO DA ORIGEM: UM ESTUDO PSICANALÍTICO SOBRE MOISÉS E O MONOTEÍSMO DE FREUD

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202509241405


Volusi Rocha Uga Camara


Resumo 

Este artigo propõe uma leitura psicanalítica da obra Moisés e o Monoteísmo, de Sigmund Freud, à luz da teoria do inconsciente, da constituição do supereu e da repetição do traumático na história coletiva. A hipótese de que Moisés seria de origem egípcia — e não hebraica — serve a Freud como ponto de partida para investigar os mecanismos inconscientes que operam na fundação da religião monoteísta. Damos destaque ao silêncio em torno da morte de Moisés, entendido como sintoma, e à articulação dessa figura com o pai primevo de Totem e Tabu. A partir da Segunda Tópica, exploramos a hipótese de um supereu constituído sobre a base da culpa e da repressão, num processo psíquico que ecoa até os dias atuais. O texto propõe ainda uma reflexão subjetiva sobre o impacto da obra, que, mesmo escrita por um autor ateu, se revelou como uma experiência de contato profundo com o sagrado. 

Palavras-chave: Freud; Moisés; Supereu; Totem e Tabu; Religião; Pai morto; Sintoma. 

Introdução 

Ler Moisés e o Monoteísmo foi uma experiência transformadora. Apesar de Freud se declarar ateu, foi justamente por meio de sua leitura que me vi confrontada com o mistério da religião de forma mais profunda, paradoxal e viva. A obra não apenas propõe uma tese polêmica — a de que Moisés não era hebreu, mas egípcio — como articula essa hipótese a um exame minucioso da constituição do psiquismo humano, da origem da moral e da permanência de traços mnêmicos transgeracionais. Freud, ao investigar a gênese do monoteísmo, faz da história uma narrativa de retorno do recalcado. Moisés reaparece, em silêncio, como sintoma. 

I. O silêncio sobre a morte de Moisés como sintoma 

Freud nota que, na tradição hebraica, a morte de Moisés ocorre num tom estranho, quase apagado. Não há luto, não há relato de como o povo reagiu. Esse silêncio é sintomático. Na psicanálise, o sintoma é a marca do que foi recalcado — aquilo que não pode ser simbolizado, mas que insiste em retornar. 

“O homem que havia guiado os judeus com mão tão firme durante quarenta anos e os havia tornado um povo, desaparece silenciosamente do relato. Não há menção de luto ou veneração, tampouco de um túmulo” (FREUD, 1939/1976, p. 30). 

Freud propõe que Moisés foi assassinado pelo próprio povo, repetindo, em chave histórica, o assassinato do pai primevo, tema já desenvolvido em Totem e Tabu. “A memória do assassinato de Moisés foi reprimida […] mas não destruída. Persistiu no inconsciente do povo, como persistem as recordações recalcadas na vida anímica do indivíduo” (FREUD, 1939/1976, p. 67). 

II. A morte do pai primevo: de Totem e Tabu a Moisés 

Em Totem e Tabu, Freud narra a mítica cena da horda primitiva: os filhos matam o pai tirânico, desejando ocupar seu lugar. 

“Um dia os irmãos, todos reunidos, mataram e devoraram o pai, que era ao mesmo tempo temido e invejado. […] Após o feito, o arrependimento tomou conta dos assassinos. O pai morto tornou-se mais forte do que havia sido em vida” (FREUD, 1913/1974, p. 184). 

Em Moisés e o Monoteísmo, essa lógica retorna. 

“Com Moisés, voltou o tempo do pai tirânico e distante, da proibição dos desejos sensuais e da imposição da renúncia pulsional. A religião que ele instituiu era, como se poderia dizer, uma ‘religião do supereu’” (FREUD, 1939/1976, p. 119). 

III. A Segunda Tópica e a constituição do Supereu 

Na Segunda Tópica, o Supereu é herdeiro do complexo de Édipo e da introjeção do pai. A incorporação de Moisés opera essa dinâmica coletiva. 

“A figura do pai assassinado ressurgiu como um poderoso Deus interiorizado. O supereu é o herdeiro psíquico desta identificação com o pai morto” (FREUD, 1939/1976, p. 93). 

IV. Moisés egípcio: identidade, ruptura e repressão Freud constrói sua hipótese histórica e psicanalítica: 

“Moisés não era hebreu, mas egípcio. […] Ele pertencia à casta superior do Egito e, como tal, absorveu os ideais religiosos da reforma de Akhenaton” (FREUD, 1939/1976, p. 21). 

A tese não visa apenas desmentir, mas mostrar como a repressão da origem — e do trauma — estrutura a identidade. 

“O caráter sagrado da tradição reside justamente na sua função repressora e na resistência à rememoração do crime original” (FREUD, 1939/1976, p. 78). 

Considerações finais: quando Freud fala de Deus 

A leitura de Moisés e o Monoteísmo provocou em mim uma ressonância inesperada. Freud, ateu convicto, escreveu uma das mais comoventes reflexões sobre a religião, ao abordá-la não como dogma, mas como sintoma, como criação do inconsciente, como forma de sobrevivência do pai morto. 

Ninguém antes me havia aproximado tanto da experiência do sagrado. Talvez porque Freud não o aborda como objeto de fé, mas como enigma da transmissão psíquica, como herança de um trauma ancestral. O Deus único não é apenas o Pai celeste — é o traço do pai assassinado, tornado Lei, tornado voz interior. A religião monoteísta, ao emergir como culpa e reparação, revela sua face mais profunda: não a promessa de salvação, mas a elaboração inconsciente de uma perda inaugural. 

Referências bibliográficas 

FREUD, Sigmund. Totem e Tabu (1913). In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XIII. Rio de Janeiro: Imago, 1974. 

FREUD, Sigmund. Moisés e o Monoteísmo (1939). In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XXIII. Rio de Janeiro: Imago, 1976.