REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ma10202509221613
Misa Oliveira de Andrade Machado1
Orientador(a) Joíza Maria de Oliveira Santana2
RESUMO
A medicalização das dificuldades escolares tornou-se um fenômeno recorrente nas escolas públicas brasileiras, frequentemente atribuindo às crianças incapacidades individuais e reforçando processos de rotulagem. Deste modo, o objetivo do presente estudo consistiu em relatar a experiência vivida em estágio clínico e refletir sobre a medicalização/queixa escolar. Trata-se de um relato de experiência de natureza qualitativa e descritiva, das vivências durante estágio supervisionado, com ênfase na Psicologia Escolar, no contexto de queixa relacionada à dificuldade de aprendizagem. A experiência envolveu atendimentos, com uma criança do ensino fundamental, onde foram realizadas observações e diálogos com a família e a equipe pedagógica, possibilitando reflexões sobre os limites e possibilidades da atuação psicológica diante da queixa escolar. Constatou-se que, mais do que um diagnóstico de transtorno de aprendizagem, havia a necessidade de uma intervenção pedagógica voltada à alfabetização, bem como a participação ativa da família. Conclui-se que a análise poderá contribuir para o debate acerca da medicalização e da rotulagem no processo de escolarização, destacando o papel crítico-reflexivo do psicólogo no campo educacional.
Palavras-chave: Escola. Patologização. Psicologia Escolar.
ABSTRACT
The medicalization of school difficulties has become a recurring phenomenon in Brazilian public schools, often attributing individual disabilities to children and reinforcing labeling processes. Therefore, the objective of this study was to report on the experience of a clinical internship and to reflect on the medicalization of school complaints. This is a qualitative and descriptive experience report of experiences during a supervised internship, with an emphasis on School Psychology, in the context of a complaint related to learning difficulties. The experience involved consultations with an elementary school child, during which observations and dialogues with the family and the teaching staff were conducted, enabling reflections on the limits and possibilities of psychological intervention in the face of school complaints. It was found that, more than a diagnosis of a learning disorder, there was a need for a pedagogical intervention focused on literacy, as well as the active participation of the family. It is concluded that the analysis may contribute to the debate about medicalization and labeling in the schooling process, highlighting the critical-reflective role of the psychologist in the educational field.
Keywords: School. Pathologization. School Psychology.
1 INTRODUÇÃO
A aprendizagem agrupa um conjunto multifatorial responsável pelo processo do aprender, como por exemplo, fatores culturais, sociais, emocionais, psicológicos, econômicos, entre outros. O processo do aprender é complexo e acompanha o indivíduo desde seu nascimento se estendendo por toda a sua vida, este é o principal componente para o desenvolvimento humano (Rodrigues, 2015).
Deste modo, o presente relato de experiência versa sobre a vivência no estágio supervisionado em uma clínica escola no contexto da queixa escolar. E ao problematizar sobre o tema, contribuir para debates sobre a medicalização de crianças em processo de alfabetização, observando a amplitude do papel da Psicologia no processo de compreensão da criança como um todo, ao invés de reforçar condutas que se apoiam meramente em diagnosticar patologias infantis. Sendo assim, o contexto multifatorial de cada criança merece atenção e não somente a rotulagem cruel da falta de capacidade individual.
É perceptível que há na atualidade um crescente aumento nos diagnósticos das dificuldades escolares no contexto educacional e com isso a consequente medicalização de crianças. A psicologia por sua vez deve se comprometer com o processo de humanização, onde, ignorar o viés dos contextos sociais, culturais e o entorno no processo de aprendizagem de uma criança é responsabilizá-la por toda a problematização que produziu a queixa escolar (Terra-Candido, 2015).
Neste entendimento, este relato de experiência se justifica academicamente por contribuir para a produção de conhecimento sobre este tema tão complexo, onde as situações concretas vivenciadas durante estágio supervisionado em queixa escolar vêm oferecendo dados qualitativos que podem complementar pesquisas e fomentar novos estudos.
Igualmente, a relevância social se demonstra ainda por ser uma discussão urgente, tendo em vista o aumento alarmante de diagnósticos e uso de medicamentos em contextos escolares. Além de que, tem grande potencial de sensibilizar e mobilizar a sociedade no sentido de refletir sobre todo o contexto que evidencia ter uma relação íntima com questões didático-pedagógicas, familiares e socioeconômicas.
Percebendo que fatores psicossociais podem ser interpretados como dificuldades de aprendizagem, acredita-se que este relato de experiência venha contribuir para o debate sobre queixa escolar, medicalização em crianças em idade escolar e a formação de psicólogos e demais profissionais com um olhar mais abrangente e sensível às complexidades da vida de cada criança.
2 METODOLOGIA
Este relato de experiência, de natureza qualitativa e descritiva, buscou a compreensão aprofundada das vivências e manejo psicológico durante estágio supervisionado com ênfase na Psicologia Escolar, no contexto de queixa relacionada à dificuldade de aprendizagem.
Conforme Gil (2008), a pesquisa descritiva tem como objetivo principal descrever as características de determinada população ou fenômeno, enquanto Minayo (2007) ressalta a capacidade da abordagem qualitativa em desvendar processos sociais, relações e significados, que são inerentes à prática em saúde.
A experiência foi desenvolvida de forma mista, onde houveram atendimentos clínicos e observação in loco, compreendendo um período entre 21/09/2024 a 19/10/2024. A experiência ocorreu no atendimento de uma criança do ensino fundamental com queixa escolar relacionada a dificuldades de aprendizagem.
O encaminhamento para atendimento partiu da escola, e posteriormente, solicitação médica. A queixa principal era de que a criança apresentava limitações na aquisição de conhecimento em atividades escolares: não reconhecia letras nem números, não sabia escrever o próprio nome, demonstrava falta de atenção e desinteresse pelo conteúdo proposto em sala de aula. A expectativa da escola e, de certa forma, da família, era a de que, um achado diagnóstico de deficiência intelectual ou transtorno de aprendizagem, justificasse a dificuldade de aprendizagem.
Deste modo, a experiência envolveu entrevistas com familiares e equipe pedagógica, observações no contexto escolar e atendimentos lúdicos, utilizando recursos técnicos adequados ao público infantil.
3 RELATO DE CASO
A demanda de queixa escolar no estágio supervisionado VI apresentou o desafio e, ao mesmo tempo, a rica experiência de ter aprendizados decorrentes da prática, e refletir sobre a medicalização desse problema.
Durante a experiência, foram realizadas entrevistas iniciais com familiares e equipe pedagógica, atendimentos lúdicos individuais com a criança, bem como observações em sala de aula e no espaço de ludoterapia.
Durante a entrevista, a criança demonstrou fluidez e responsividade em sua comunicação, apesar disso, observei comportamentos e voz ainda infantilizada. Entretanto, a disponibilidade e entrega da criança no processo me contagiou com entusiasmo, ajudando a mitigar a tensão natural do meu primeiro atendimento clínico.
Ao longo das sessões, a criança se mostrou sempre disposta e participativa, sem apresentar dificuldades verbais ou cognitivas para compreender os comandos. Utilizei recursos lúdicos para avaliar os funcionamentos cognitivo, comportamental e emocional. No jogo da memória, a criança apresentou bom desempenho na memória visual. No quebra-cabeça, demonstrou fascínio, compreensão das instruções, empenho e concentração. Já no dominó, mesmo com explicações repetidas, a mesma não demonstrava a compreensão necessária para as jogadas, revelando um pensamento lógico-matemático mais lento, o que parece ter dificultado o entendimento da dinâmica do jogo.
Ao longo dos atendimentos, entrevistas e da condução do caso, percebi aspectos importantes sobre a interação familiar, que revelaram carência de afeto e atenção positiva, culminando em manifestações comportamentais relacionadas a dificuldades da criança em seguir regras. E somado a isso, a existência de vulnerabilidades socioeconômicas da família e infante, como o acesso a uma moradia adequada. Essa percepção, me trouxe um olhar crítico sobre a complexidade e a influência mútua de fatores para além de aspectos cognitivos, mas que influenciam diretamente no desempenho acadêmico de crianças em idade escolar.
Durante o estágio e acompanhamento do caso em tela, tive o privilégio de fazer uma visita a escola da criança para conhecer a dinâmica no ambiente estudantil, o que foi significativo e revelador. Foi perceptível como o discurso da escola ia de encontro às queixas trazidas pela família, em um movimento de projeção de culpa de ambas, para justificar a dificuldade de aprendizagem. Contudo, uma à outra, se conectavam na busca por um diagnóstico que eventualmente atestasse a falta de capacidade da criança, desta feita, em decorrência de algo de ordem patológica.
Em minha análise, observei que os professores se limitavam a relatar o comportamento da criança, sem evidenciar qualquer esforço pedagógico para auxiliá-la. Além disso, a escola mencionou que a criança não frequentava as aulas de reforço oferecidas no contraturno, atribuindo a ausência da aluna à falta de compromisso da família em levá-la. Nesse contexto, a equipe pedagógica já levantava hipóteses como deficiência intelectual, dislexia e TDAH para justificar o seu baixo desempenho. Essa busca por diagnósticos patológicos não abriu espaço para a simples e urgente necessidade da criança: a alfabetização.
No decorrer do processo, e por fim, ao final dos atendimentos, foi possível identificar que a criança apresentava de fato, dificuldades em reconhecer vogais, consoantes, alguns números e as formas geométricas básicas, o que consequentemente resultava no atraso na leitura e escrita. Entretanto, foi evidenciado que esta possuía capacidades cognitivas e aptidão necessária para a alfabetização, e, portanto, plenas condições para a aquisição da leitura.
Em suma, ao identificar que a questão central do caso, era a não alfabetização, agravada por um contexto de vulnerabilidade, o processo culminou em um encaminhamento adequado. Esse desfecho demonstrou a efetividade de uma abordagem que rastreia as origens dos problemas para um melhor resultado. O trabalho pedagógico, assim como o psicológico, deve ser holístico, buscando compreender a criança em sua totalidade, suas vulnerabilidades e suas incríveis capacidades de superação.
4 RESULTADO E DISCUSSÃO
A experiência vivida demonstrou um desafio crucial no cenário educacional atual: a tendência alarmante de patologizar e medicalizar crianças diante de dificuldades escolares, buscando diagnósticos que, com frequência, ignoram a complexidade multifatorial. O caso analisado evidenciou que o baixo desempenho e a falta de evolução escolar eram de múltiplas causas e intensificado pelo constrangimento da criança em não conseguir acompanhar seus pares, já alfabetizados. Assim, a suposta falta de capacidade ou interesse estava, na verdade, ligada à ausência de suporte e de condições mínimas para seu desenvolvimento.
É imperativo reconhecer que as dificuldades de aprendizagem raramente são um problema isolado da criança. Elas se entrelaçam com a dinâmica familiar, o contexto socioeconômico, a sobrecarga de pais e professores, e a falta de recursos pedagógicos adequados. As escolas, muitas vezes, sobrecarregadas com salas de aula lotadas e sem a estrutura para oferecer reforço individualizado necessário, acabam encaminhando crianças para diagnósticos que desresponsabilizam o Estado no contexto socioeconômico e educacional como um todo.
Destarte, Patto (2022) nos aponta que pouco a pouco, o desinteresse vai tomando conta das crianças que passam a incorporar também, à visão negativa e preconceituosa dos professores, da escola sobre suas próprias capacidades intelectuais, como também, de suas famílias. Ademais, de acordo com a autora, é possível esperar apenas um resultado: a escola pública de primeiro grau falha na sua tarefa básica de alfabetizar crianças das camadas populares. Estas são excluídas de forma precoce do ambiente escolar, através de um mecanismo de rejeição, não levando em consideração a complexidade de fatores envolvidos no processo de alfabetização.
Diante dos resultados observa-se que toda criança ou adolescente que apresente modos de agir e de aprender que escapem de padrões previamente impostos, dentro de determinados espaços e olhares, estará correndo o risco de ser rotulado com algum dos transtornos neuropsiquiátricos e mesmo de aprendizagem, passando a fazerem parte do rol de visitas à profissionais e ao uso de medicamentos (Vasques; Moschen, 2017).
A discussão sobre a patologização é urgente e necessária. Crianças como a do presente relato, que são enviadas a salas de leitura sem sequer conhecer as letras, acabam entrando em um ciclo de desmotivação e constrangimento. Desta maneira, depreendo, mediante minha experiência nesse estágio, que é imprescindível que haja um processo de alfabetização baseada nas necessidades de cada sujeito, em um ambiente que promova o aprendizado genuíno. Nessa perspectiva, é fundamental que haja uma reflexão sobre a popularização da Psicologia na formação inicial de professores, tema abordado por Antunes (2008) em seu texto “Psicologia e Educação no Brasil: um olhar histórico-crítico”.
5 CONCLUSÃO
A conclusão deste estudo demonstra que a “não alfabetização” de crianças em contextos de vulnerabilidade não é uma falha pedagógica individual, mas sim um reflexo do fracasso escolar sistêmico. Essa perspectiva, alinhada com as contribuições de Patto (2022) ressaltam a importância de analisar as dificuldades no processo e omissões que permeiam a educação.
É fundamental que as complexidades das queixas escolares sejam analisadas sob uma ótica humanizada. Nesse contexto, o papel do psicólogo é essencial para desmistificar rótulos e combater a medicalização desnecessária, compreendendo o sujeito em sua totalidade, considerando seus múltiplos contextos e oferecendo intervenções eficazes que promovam a não-rotulagem.
A beleza deste relato reside na confirmação de que a “limitação” na aprendizagem não era uma falha intrínseca, mas um reflexo das circunstâncias. Isso nos leva a perceber que o papel da equipe pedagógica é vital. Mais do que buscar a patologização da criança, a escola deve seguir com os encaminhamentos didático-pedagógicos necessários de acolhimento e inclusão, adaptando atividades e currículo para atender às demandas da criança.
É imperativo combater a naturalização dos processos de exclusão e a aplicação de rótulos a crianças de classes populares, não permitindo que o sofrimento silencioso delas seja normalizado nos espaços escolares. Acredita-se que este relato pode contribuir significativamente para o debate sobre a queixa escolar, a medicalização e a formação de profissionais com um olhar mais abrangente e sensível às complexidades da vida de cada criança.
REFERÊNCIAS
ANTUNES, M. A. M. Psicologia e educação no Brasil: um olhar histórico-crítico. In: MEIRA, M. E. M.; ANTUNES, M. A. M. (Ed.). Psicologia Escolar: práticas críticas. 2. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008. p. 139–168. Disponível em: https://topicospsicologiasociall.wordpress.com/wp-content/uploads/2015/03/machadopsicologosnaescola.pdf. Acesso em: 29/06/2025
GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008 MINAYO, Maria Cecilia de Souza.
MINAYO, Maria Cecilia de Souza. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14. ed. São Paulo: Hucitec, 2014
VASQUES, Carla K.; MOSCHEN, Simone Zanon (org.). Psicanálise, educação especial e formação de professores: construções em rasuras. 2. ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2017. 168 p. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/173125/001061567.pdf?sequence=1. Acesso em: 29/06/2025
PATTO, Maria Helena Souza. A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, 2022. Disponível em: https://www.livrosabertos.abcd.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/view/932/844/3069. Acesso em: 30/07/2025
RODRIGUES, Marizete Creuza da Paciência. Dificuldades de aprendizagem em alunos do 3º ano numa escola pública do Estado de Alagoas, Brasil: uma visão da psicoeducação. 2015. 64 p. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Pedagogia) – Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2015. Disponível em: https://core.ac.uk/download/pdf/70646981.pdf. Acesso em: 30/07/2025
TERRA-CANDIDO, Bruna Mares. Não-aprender-na-escola: a busca pelo diagnóstico nos (des) encontros entre saúde e educação. 2015. 182 f. Tese (Doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-10082015-104003/en.php. Acesso em: 30/07/2025
1Acadêmica do Curso de Psicologia, Centro Universitário São Lucas/Afya, Porto Velho, Rondônia, Brasil.
E-mail: misamachado74@gmail.com
2Docente do Curso de Psicologia, Centro Universitário São Lucas/Afya, Porto Velho, Rondônia, Brasil.