ANÁLISE CRÍTICA DA INAPLICABILIDADE DA SÚMULA 593 EM CASOS DE RELAÇÃO AMOROSA E CONSENSUAIS

CRITICAL ANALYSIS OF THE INAPPLICABILITY OF PRECEDENT 593 IN CASES OF LOVE AND CONSENSUAL RELATIONSHIPS

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cs10202507111006


 Maria Eduarda Santos Marrubio
Prof. Orientador Walter Martins Muller


RESUMO

Este artigo explora a aplicação da Súmula 593 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que estabelece a presunção de vulnerabilidade para menores de 14 anos em casos de estupro, e analisa como a natureza consensual e amorosa das relações entre menores e adultos pode desafiar a aplicação automática dessa súmula. Utilizando uma abordagem de pesquisa qualitativa, o estudo realiza uma revisão abrangente da jurisprudência, incluindo casos como o Agravo Regimental no Recurso Especial nº 2019664/CE e HC 445.327/PR, para identificar e analisar as tensões entre a proteção legal dos menores e a justiça proporcional. A metodologia empregada inclui a análise documental de decisões judiciais, revisão de literatura relevante e entrevistas com especialistas na área do direito e psicologia. A análise destaca a necessidade de reformas legislativas, diretrizes judiciais claras e capacitação profissional para abordar a complexidade desses casos de forma mais justa. O artigo também discute as implicações sociais e psicológicas das decisões judiciais, propondo soluções para equilibrar a proteção dos menores com a justiça equitativa. 

Palavras-chave: Súmula 593. Estupro de vulnerável. Proteção legal. Consensualidade. Implicações sociais.

ABSTRACT

This article explores the application of Summary 593 from the Superior Court of Justice (STJ), which establishes a presumption of vulnerability for minors under 14 years old in cases of rape, and analyzes how the consensual and affectionate nature of relationships between minors and adults can challenge the automatic application of this summary. Using a qualitative research approach, the study conducts a comprehensive review of jurisprudence, including cases such as the Agravo Regimental in Special Appeal No. 2019664/CE and HC 445.327/PR, to identify and analyze the tensions between the legal protection of minors and proportional justice. The methodology employed includes document analysis of judicial decisions, a review of relevant literature, and interviews with experts in law and psychology. The analysis highlights the need for legislative reforms, clear judicial guidelines, and professional training to address the complexity of these cases more fairly. The article also discusses the social and psychological implications of judicial decisions, proposing solutions to balance the protection of minors with equitable justice.

Keywords: Summary 593. Vulnerable rape. Legal protection. Consensuality. Social implications.

1. INTRODUÇÃO

No ordenamento jurídico, a proteção dos menores é uma prioridade fundamental, refletida em diversas normas e princípios legais que visam garantir seu bem-estar e desenvolvimento integral. A legislação reconhece a vulnerabilidade das crianças e adolescentes e estabelece um conjunto de medidas especiais para assegurar seus direitos, como o direito à educação, saúde, e proteção contra abusos e negligência. Este enfoque protetivo é fundamentado na ideia de que os menores, por sua condição de dependência e imaturidade, necessitam de cuidados e proteção adicionais para que possam crescer em um ambiente seguro e favorável ao seu pleno desenvolvimento. Assim, o ordenamento jurídico adota um papel ativo na criação de políticas públicas e mecanismos legais que promovem e resguardam os direitos dos menores, reconhecendo a responsabilidade coletiva da sociedade e do Estado na construção de um futuro seguro para as novas gerações.

Através da reflexão do compromisso com a defesa dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes, especificamente menores de 14 anos, o ordenamento jurídico brasileiro criou um artigo específico no Código Penal para prevenir qualquer forma de exploração ou abuso sexual desse grupo, assegurando que a vulnerabilidade inerente à idade seja reconhecida e protegida, o artigo 217-A.  No entanto, a partir de algumas divergências no entendimento desse artigo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) criou a Súmula 593, como forma de reforçar que a idade do menor é crucial para considerar o delito de estupro de vulnerável, sendo irrelevante o consentimento da vítima ou sua experiência sexual anterior.

A Súmula 593 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabelece que, em casos de estupro de vulnerável, a prescrição do crime começa a contar a partir da data em que a vítima completa 18 anos. Este entendimento visa assegurar a proteção dos menores de 14 anos, que, de acordo com o artigo 217-A do Código Penal Brasileiro, são considerados vulneráveis e, portanto, não têm a capacidade jurídica para consentir relações sexuais. A norma reflete o princípio da proteção integral garantido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu artigo 4º, que estabelece que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar os direitos das crianças e adolescentes, prevenindo a exploração e o abuso.

No entanto, a aplicação automática da Súmula 593 enfrenta desafios quando se depara com casos em que a relação entre o menor e o adulto é descrita como amorosa e consensual. O Código Penal Brasileiro, em seu artigo 217-A, não faz distinção entre relações consensuais e não consensuais quando se trata de menores de 14 anos, tratando todas como violação da vulnerabilidade. Essa interpretação rígida pode levar a resultados que parecem ignorar as especificidades de cada situação, especialmente em casos em que a dinâmica da relação é complexa e envolve fatores emocionais e sociais significativos. 

Diante dessa complexidade, o objetivo deste estudo é analisar criticamente os casos em que a Súmula 593 foi questionada devido à natureza consensual e amorosa da relação. A análise busca explorar os fundamentos jurídicos que sustentam essas decisões, como a interpretação do artigo 217-A do Código Penal e as decisões judiciais correlatas, e examinar as implicações para o sistema de justiça. Ao abordar essas questões, a pesquisa visa contribuir para um entendimento mais equilibrado, que harmonize a proteção dos menores com uma avaliação justa das particularidades dos casos individuais, alinhando-se às diretrizes constitucionais e à jurisprudência existente.

2. CONTEXTO LEGAL E HISTÓRICO

O Estatuto da Criança e do adolescente foi criado em 13 de julho de 1990 com o objetivo de ampliar os direitos das crianças e adolescentes no país. A lei n.º 8. 069 de 1990 estabelece a proteção integral às crianças e adolescentes, além de firmar que é dever da família, da sociedade e do poder público, assegurar os direitos referentes à vida, que englobam: saúde, educação, alimentação, esporte e lazer, profissionalização, cultura, dignidade, respeito, liberdade, e convivência familiar e comunitária. 

A legislação brasileira começou a abordar o estupro de vulnerável com a introdução do Código Penal de 1940, que, apesar de abordar crimes contra a dignidade sexual, não diferenciava explicitamente as vítimas por faixa etária. A Lei nº 11.106/2005 foi um marco importante ao criar o artigo 217-A do Código Penal, que tipifica o estupro de vulnerável como um crime específico, reforçou a proteção legal para indivíduos que, devido à sua idade, são considerados incapazes de consentir legalmente.

O estupro de vulnerável, como conceito específico, nem sempre esteve no Código Penal brasileiro, pois eram abordados crimes sexuais de maneira geral, sem distinção entre adultos e menores. Até a introdução da Lei nº 12.015/2009, que foi um marco legal, trazendo alterações para o Código Penal, especialmente no que diz respeito aos crimes sexuais, definindo claramente o estupro de vulnerável como crime autônomo, a partir do artigo 217-A: 

“Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: pena- reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos”

Sendo essencial para especificar que a prática de conjunção carnal ou qualquer ato libidinoso com menor de 14 anos constitui o delito de estupro de vulnerável e estabelecendo uma pena mais severa para os agressores que exploram a vulnerabilidade de crianças e adolescentes. Esse artigo visou fortalecer a proteção destes contra abusos sexuais, independente das circunstâncias, indicando claramente que a idade da vítima é o critério determinante para a caracterização do crime, eliminando a necessidade de se comprovar consentimento ou resistência, não exigindo, ainda, a intenção de causar danos ou a consciência da ilegalidade da conduta.

No entanto, apenas o artigo 217-A não estava sendo suficiente para garantir a proteção contra abusos das crianças e dos adolescentes, visto que algumas decisões estavam considerando o consentimento da vítima ou a ausência de violência física como fatores atenuantes, criando divergentes interpretações nos tribunais ao julgar os crimes de estupro de vulnerável.

Diante de várias polêmicas causadas frente à presunção absoluta de vulnerabilidade da vítima menor de quatorze anos, o Superior Tribunal de Justiça, na sessão do dia 26 de agosto de 2015 no Recurso Especial nº. 1.480.881-PI (2014/0207538-0) fixou a tese contida na atual súmula n.º 593 do Superior Tribunal de Justiça, sendo esta, julgada e aprovada em 25 de outubro de 2017 determinando a irrelevância do consentimento da vítima menor de 14 anos, in verbis: 

O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou a existência de relacionamento amoroso com o agente. 

Sendo criada com o objetivo de uniformizar a interpretação do artigo 217-A do Código Penal, deixando claro que a prática de ato libidinoso com menor de 14 anos configura estupro de vulnerável, independentemente de consentimento ou experiência anterior. Eliminando qualquer dúvida quanto à aplicação da lei, garantindo que a vulnerabilidade de crianças e adolescentes seja sempre reconhecida, e ainda gerando um impacto significativo ao fornecer um parâmetro claro para os julgamentos, contribuindo para uma aplicação mais uniforme da lei e sensibilizando a sociedade sobre a gravidade dos crimes sexuais contra menores. Além disso, fortaleceu a atuação dos órgãos de proteção, oferecendo um respaldo jurídico consistente para as ações de combate ao abuso sexual infantil.

3. RELAÇÕES AMOROSAS E CONSENSUAIS: CONCEITO E DESAFIOS JURÍDICOS

O conceito de relações amorosas e consensuais é, em teoria, caracterizado por um vínculo afetivo mútuo e a manifestação do desejo de ambas as partes envolvidas. No entanto, a legislação brasileira, ao abordar a questão do estupro de vulnerável, adota uma perspectiva rigorosa que não distingue entre o caráter consensual ou amoroso da relação e a exploração ou abuso.

No Brasil, a proteção legal dos menores é regida pelo artigo 217-A do Código Penal, que define como crime qualquer relação sexual com um menor de 14 anos, sem considerar o consentimento ou a natureza da relação. Essa abordagem reflete uma tentativa de garantir que menores não sejam vítimas de abuso, mas pode resultar em situações onde a natureza da relação não é devidamente considerada.

Um exemplo prático pode ser encontrado em casos onde um menor e um adulto se envolvem em uma relação amorosa, na qual ambos expressam afeto e há uma manifestação de desejo mútuo. Em teoria, esses casos poderiam ser descritos como “consensuais” e “amorosos”. No entanto, mesmo nessas circunstâncias, a legislação não permite uma distinção, tratando todas as relações sexuais com menores de 14 anos como crimes de estupro de vulnerável.

Nesse sentido, seguindo os pensamentos de Guilherme de Souza Nucci, sobre a vulnerabilidade absoluta dos menores de 14 anos: 

“A inclusão desse parágrafo possui o nítido objetivo de tornar claro o caminho escolhido pelo Parlamento, buscando colocar um fim à divergência doutrinária e jurisprudencial, no tocante à vulnerabilidade da pessoa menor de 14 anos. Elege-se a vulnerabilidade absoluta, ao deixar nítido que é punível a conjunção carnal ou o ato libidinoso com menor de 14 anos independentemente de seu consentimento ou do fato de ela já ter tido relações sexuais anteriormente ao crime. Em primeiro lugar, há de se concluir que qualquer pessoa com menos de 14 anos, podendo consentir ou não, de modo válido, leia-se, mesmo compreendendo o significado e os efeitos de uma relação sexual, está proibida, por lei, de se relacionar sexualmente.” 

A tensão entre proteção e punitivismo se torna evidente quando consideramos a aplicação estrita das leis em casos onde a natureza da relação é consensual e amorosa. A legislação brasileira, ao garantir uma proteção ampla para menores, busca prevenir qualquer forma de exploração, refletindo uma preocupação legítima com a vulnerabilidade dos jovens. No entanto, essa proteção irrestrita pode levar a uma aplicação punitiva excessiva em casos onde a exploração não está claramente presente.

A jurisprudência brasileira tem enfrentado desafios ao lidar com essas questões. Em alguns casos, tribunais foram chamados a avaliar se a aplicação estrita da lei poderia resultar em injustiças. Isso sugere uma preocupação com a necessidade de uma análise mais detalhada das circunstâncias do caso, para garantir que a justiça seja feita de forma equitativa. 

O debate sobre o limite entre proteção e punitivismo também é evidenciado na aplicação da Súmula 593, que estabelece a prescrição dos crimes de estupro de vulnerável a partir dos 18 anos da vítima. Embora essa norma tenha sido criada para garantir que as vítimas tenham tempo suficiente para denunciar os crimes, sua aplicação automática pode não considerar as especificidades de casos onde a relação é consensual e não exploratória.

Portanto, a discussão sobre o equilíbrio entre proteção e punitivismo é fundamental para entender os desafios jurídicos associados às relações amorosas e consensuais envolvendo menores de 14 anos. A necessidade de uma abordagem que respeite tanto a proteção dos menores quanto a justiça contextualizada é crucial para garantir que o sistema legal funcione de forma justa e eficaz.

4. CASOS EXCEPCIONAIS UTILIZADOS COMO FUNDAMENTOS PARA RELATIVIZAR A PRESUNÇÃO DE VULNERABILIDADE DO MENOR

A “exceção Romeu e Julieta” surgiu para abordar situações onde um menor de 14 anos está em uma relação com um adulto que é descrita como consensual e amorosa, mas ainda é tecnicamente classificada como estupro de vulnerável devido à idade do menor. Embora essa exceção não tenha base legal formal, ela é frequentemente discutida em jurisprudência e doutrina como uma tentativa de balancear a proteção legal com a justiça prática em casos onde a relação é caracterizada por um afeto mútuo e não há indícios claros de exploração.

Mais adiante consta, inclusive, o consentimento figurando na condição de excludente da tipicidade, nestes casos: 

Se não somos capazes de admitir a nós mesmos nossas limitações, que tenhamos apenas alguma sensibilidade com a alma humana, e tomemos como paradigma o exemplo hoje adotado nos Estados Unidos – país notoriamente reconhecido pela repreensão a crimes sexuais cometidos por jovens (notadamente os homossexuais), mas que tem admitido a atipicidade da conduta quando a relação sexual ocorre entre adolescentes. É o que se convencionou chamar Romeo and Juliet Law. O dispositivo, de inspiração shakespereana, tem se firmado como forma de impedir o apenamento de jovens que mantenham relações sexuais, cuja diferença de idade não ultrapasse cinco anos. (Apelação / Estatuto da Criança e do Adolescente n.º 2011.098397-3)

A legislação brasileira, conforme o artigo 217-A do Código Penal, define estupro de vulnerável como qualquer relação sexual com um menor de 14 anos, independentemente do consentimento ou da natureza da relação. Isso reflete uma política de proteção absoluta destinada a prevenir a exploração sexual de menores, mas também levanta questões sobre a aplicação rígida da lei em casos onde o contexto sugere uma relação consensual.

O relacionamento amoroso entre a vítima e o acusado, a constituição de família e até mesmo filho em comum, também têm sido motivos para os julgadores utilizarem-se de 24 entendimentos contrários à Súmula 593 do STJ, admitindo-se a presunção relativa de vulnerabilidade.

Mesmo contrariando a Súmula 593 do STJ, o que se busca com esse tipo de decisão é a continuidade da entidade familiar, que também deve ser assegurada pelo Estado, cuja proteção advém da CRFB/1988. Quando constituída a entidade familiar, se mostra inviável desagregar o acusado desse convívio analisando apenas a aplicação rígida da precitada súmula.

Após a constituição familiar, não é mais cabível ao julgador voltar seus olhos apenas para um único bem juridicamente tutela do qual seja, a dignidade sexual da vítima, devendo também estar atento à proteção da entidade familiar e o direito ao convívio da criança com os seus genitores.

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em julgamento de apelação, sob o nº 0148999-77.2009.8.13.0312, na data de 25/06/2019, no Agravo Regimental no Recurso Especial nº 2019664/CE ,ao se deparar com as peculiaridades do caso que envolve o relacionamento amoroso em entre o réu e a vítima, entenderam estar ausente a tipicidade material e que a proteção buscada pela Legislação Penal não poderia ser aplicada ao caso concreto, o STJ enfrentou a questão de se a aplicação estrita da Súmula 593 poderia resultar em injustiças. O caso envolvia uma relação descrita como consensual e amorosa entre um menor e um adulto. O Ministro Rogério Schietti Cruz destacou que “a aplicação estrita da Súmula 593, sem considerar o contexto específico da relação, pode resultar em injustiças” (STJ, 2021). O relator argumentou que, apesar da necessidade de proteger os menores, é essencial analisar o contexto da relação para assegurar que a justiça seja aplicada de forma proporcional. A decisão refletiu a complexidade de equilibrar a proteção legal com a consideração das circunstâncias individuais do caso.

Nesse mesmo sentido, decidiu o Tribunal do Estado do Maranhão que, diante das peculiaridades do caso concreto, seria necessária a aplicação da presunção relativa da vulnerabilidade:

EMENTA PENAL. PROCESSO PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. ABSOLVIÇÃO POR ATIPICIDADE DA CONDUTA. RELAÇÃO CONJUGAL ENTRE VÍTIMA E RÉU. RELATIVIZAÇÃO DO CONCEITO DE VULNERABILIDADE. PROVIMENTO DO APELO. 1. Os elementos de prova angariados aos autos demonstram que o apelante constituiu família com a vítima, passando a coabitarem, razão pela qual, ainda que a vítima fosse, de fato, menor de 14 (quatorze) anos à época do crime, mostra-se recomendável a relativização do art. 217-A do Código Penal. 2. In casu, a sentença a quo deve ser reformada e o recorrente absolvido por ausência de tipicidade material, na medida em que o bem jurídico não foi afetado, ou seja, a liberdade e a dignidade sexual da vítima, ainda que esta efetivamente tivesse menos de 14 (quatorze) anos de idade à época dos fatos. 3. Recurso conhecido e provido. Unanimemente. (BRASIL, 2020b, n.p).

Trata-se de outro caso onde se considerou que não houve tipicidade material, uma vez que estava presente a relação marital entre o réu e a vítima. Os julgadores, de forma unânime, entenderam ser necessária a relativização do artigo 217-A, pois não houve lesão ao bem juridicamente tutelado.

O HC 445.327/PR abordou um caso onde um adulto foi acusado de estupro de vulnerável em uma relação com um menor que era descrita como consensual e afetiva. Ministro Nefi Cordeiro enfatizou que “a presunção de vulnerabilidade é um princípio fundamental, mas é crucial avaliar as circunstâncias do caso para evitar punições desproporcionais” (STJ, 2018). O tribunal reconheceu a necessidade de uma abordagem contextualizada para garantir que a aplicação da lei não resultasse em injustiças. Essa decisão ilustra como os tribunais podem tentar balancear a proteção dos menores com a necessidade de considerar as especificidades da relação.

O STF, ao julgar o HC 349.383/PR, abordou um caso onde a relação entre o menor e o adulto era consensual e caracterizada por um vínculo amoroso. Ministro Luís Roberto Barroso afirmou que “a proteção dos menores deve ser equilibrada com uma análise cuidadosa do contexto das relações, para assegurar que a justiça seja aplicada de forma justa e equitativa” (STF, 2017). O STF discutiu como a presunção de vulnerabilidade deve ser interpretada à luz das circunstâncias específicas, sublinhando a importância de uma análise detalhada para evitar punições desproporcionais.

Esses casos demonstram a complexidade e as dificuldades enfrentadas pelos tribunais ao aplicar a Súmula 593 em contextos onde a relação entre o menor e o adulto é consensual e amorosa. As decisões judiciais refletem um esforço para equilibrar a proteção dos menores com a justiça específica dos casos, mostrando uma abordagem que busca harmonizar a presunção de vulnerabilidade com a consideração das circunstâncias individuais.

Diante dos casos apresentados, nota-se que a Lei nº 12.015 e a Súmula 593 não foram suficientes para colocar fim à discussão sobre a relativização da presunção de violência no crime de estupro de vulnerável. Embora a norma da legislação penal (artigo 217-A) não deixe margem para interpretação diversa, não seria recomendável a sua aplicação, sob a análise apenas do critério etário, em diversos casos julgados.

5. IMPLICAÇÕES SOCIAIS E PSICOLÓGICAS

As decisões judiciais envolvendo a Súmula 593 e a aplicação da lei em casos de relações consensuais e amorosas entre menores e adultos têm profundas implicações sociais e psicológicas para todas as partes envolvidas. Em primeiro lugar, o impacto sobre os menores pode ser significativo. Embora a legislação vise proteger os menores de exploração e abuso, a aplicação rígida da lei, sem considerar o contexto da relação, pode causar efeitos colaterais prejudiciais. Menores que se encontram em relações consensuais e amorosas podem enfrentar estigmatização e trauma adicional se o processo judicial não levar em conta as nuances da situação. O impacto emocional pode ser agravado pela exposição pública e pelo processo de judicialização, resultando em problemas de autoestima e saúde mental.

Para os adultos envolvidos, a condenação por estupro de vulnerável pode ter consequências severas, incluindo a estigmatização social e a imposição de penalidades severas. Essas penalidades não apenas afetam a vida profissional e social do condenado, mas também podem impactar a relação com o menor, especialmente em casos onde a relação era consensual e afetuosa. A criminalização excessiva pode levar a uma sensação de injustiça e de penalidades desproporcionais, que não consideram as particularidades da relação entre o menor e o adulto. 

Do ponto de vista social, a rigidez da legislação penal pode contribuir para uma percepção pública de que a justiça não está sendo administrada de maneira equitativa. Quando a lei é aplicada sem considerar o contexto das relações interpessoais, isso pode gerar uma percepção de que o sistema de justiça não está em sintonia com as realidades sociais e emocionais dos indivíduos. Essa desconexão pode resultar em uma sensação de injustiça social, prejudicando a confiança pública no sistema jurídico.

A psicóloga Glicia Brazil, vice-presidente da Comissão da Infância e Juventude do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, argumenta que a decisão que relativiza a aplicação da presunção de vulnerabilidade em casos de relações consensuais pode ter efeitos extremamente perigosos para o desenvolvimento da vítima. Segundo ela, a jovem menor de 14 anos que convive com um adulto em uma relação afetiva não está em posição de consentir de maneira madura e consciente, como uma pessoa adulta. A psicóloga alerta que, embora a vítima possa estar apaixonada, isso não significa que ela tenha a maturidade emocional necessária para entender as implicações de seus próprios sentimentos ou de suas ações. A fragilidade emocional de um menor, especialmente quando envolvido em um relacionamento com um adulto, não deve ser subestimada. Glicia ressalta que, no contexto de uma relação amorosa com um adulto, a menina não tem discernimento suficiente para compreender a totalidade da situação, o que pode gerar confusão emocional e dificultar sua percepção sobre o que está acontecendo.

A psicóloga também alerta que a relativização da proteção integral da criança e do adolescente, ao admitir que nem todo estupro de vulnerável envolva violência, enfraquece a proteção jurídica que a legislação oferece aos menores. A partir do momento em que se relativiza o conceito de vulnerabilidade, a proteção do menor se torna menos efetiva, deixando-o exposto a situações de risco e desproteção. Ela considera que essa postura não apenas compromete a segurança das vítimas, mas também vulnerabiliza as crianças e adolescentes, que estão em condição peculiar de desenvolvimento, conforme preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Para Glicia, essa mudança na interpretação da lei acaba prejudicando a vítima, pois gera a impressão de que a sociedade não está cumprindo sua função de proteger os direitos fundamentais das crianças e adolescentes, especialmente no que tange à sua proteção sexual e emocional.

Além disso, a inadequação das leis penais às realidades sociais modernas pode gerar um ciclo de injustiça. A falha em adaptar as leis às nuances das relações interpessoais pode resultar em danos adicionais para os envolvidos, exacerbando os efeitos negativos do processo judicial e do sistema penal.

As implicações psicológicas também não devem ser subestimadas. A experiência de enfrentar acusações de estupro de vulnerável, mesmo em contextos onde a relação é consensual, pode levar a problemas significativos de saúde mental, incluindo ansiedade, depressão e transtorno de estresse pós-traumático. A necessidade de uma abordagem mais sensível e contextualizada é essencial para garantir que as decisões judiciais não apenas protejam os menores, mas também considerem as realidades emocionais e sociais dos envolvidos.

Portanto, a discussão sobre a adequação das leis penais frente às realidades sociais e emocionais é vital para garantir que a justiça seja aplicada de forma justa e equilibrada. É fundamental que o sistema jurídico seja capaz de adaptar-se às complexidades das relações humanas e às realidades sociais para evitar punições desproporcionais e garantir que a proteção dos menores não se sobreponha ao direito à justiça equitativa e à consideração das circunstâncias individuais.

6. CONCLUSÃO

O estudo sobre a aplicação do artigo 217-A do Código Penal, especialmente à luz da Súmula 593 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), expõe um complexo dilema jurídico e social no Brasil, refletindo uma tentativa de balancear a proteção integral dos menores com as questões de justiça contextualizada. Ao tratar do estupro de vulnerável, a legislação brasileira tem como princípio fundamental a proteção de crianças e adolescentes, especialmente os menores de 14 anos, cuja vulnerabilidade é reconhecida pelo ordenamento jurídico como um fator que os torna incapazes de consentir legalmente em qualquer ato sexual. A promulgação do artigo 217-A, em 2005, ao tipificar o estupro de vulnerável, visou garantir uma resposta contundente contra qualquer tipo de exploração sexual, independente da manifestação de consentimento ou da ausência de violência física.

A Súmula 593, ao reforçar que, no caso de menores de 14 anos, o consentimento da vítima, sua experiência sexual anterior ou qualquer vínculo amoroso com o agressor são irrelevantes, desempenha um papel importante ao uniformizar a interpretação da lei, oferecendo uma diretriz clara e fortalecendo a proteção legal contra abusos. No entanto, essa abordagem rígida levanta questões sobre a aplicabilidade justa da norma, especialmente em contextos onde as relações entre o menor e o adulto são descritas como consensuais e afetivas, mas ainda assim são tratadas como crimes de estupro de vulnerável.

Esse cenário gera uma dualidade de interpretações, na qual, por um lado, há uma necessidade inegável de proteger a infância e a adolescência de possíveis abusos, mas, por outro, uma necessidade de ponderar as especificidades de casos em que o envolvimento emocional e a intenção não estão ligados a uma exploração evidente ou coercitiva. A rigidez da lei, ao desconsiderar essas nuances, pode levar a um “punitivismo excessivo”, como observado em diversas decisões judiciais, em que a aplicação automática do conceito de vulnerabilidade pode resultar em punições desproporcionais, desconsiderando o contexto do relacionamento entre os envolvidos.

O fenômeno jurídico conhecido como “exceção Romeu e Julieta”, que busca relativizar a presunção absoluta de vulnerabilidade nos casos de relações afetivas consensuais entre menores e adultos, ainda que sem amparo formal na legislação, tem sido discutido na doutrina e jurisprudência como uma tentativa de equilibrar a proteção à criança e ao adolescente com uma abordagem mais sensível aos fatores emocionais e sociais envolvidos. Em algumas decisões, os tribunais têm adotado uma interpretação que leva em consideração as circunstâncias específicas do caso, como o vínculo afetivo entre o menor e o acusado, e a ausência de exploração ou coerção, como justificação para a atipicidade da conduta. Essa perspectiva busca não apenas proteger os menores, mas também garantir que a aplicação da justiça seja feita de forma proporcional e consciente das complexidades dos relacionamentos humanos.

Contudo, essa postura também tem gerado críticas, especialmente de especialistas em direitos humanos e psicologia, que alertam para o risco de enfraquecer a proteção integral dos menores. Como destacado por profissionais da psicologia, a relativização da vulnerabilidade pode prejudicar o desenvolvimento emocional da criança ou do adolescente, tornando-o mais vulnerável a abusos, já que o conceito de vulnerabilidade não diz respeito apenas à coerção física, mas à imaturidade emocional e psicológica dos menores, que não estão preparados para compreender as implicações de seus sentimentos e ações, especialmente em relações com adultos. Dessa forma, a flexibilidade na interpretação da lei pode abrir brechas para que se ignorem fatores fundamentais, como o grau de maturidade e a capacidade de discernimento do menor, o que comprometeria sua proteção.

Além disso, a aplicabilidade estrita da lei sem considerar o contexto específico de cada caso também tem implicações sociais profundas. A criminalização de relações consensuais, em que a dinâmica emocional entre o menor e o adulto é afetiva e não exploratória, pode gerar estigmatização e efeitos psicológicos negativos tanto para o menor quanto para o adulto envolvido, especialmente quando a sentença penal imposta é severa e não leva em consideração as particularidades da relação. A condenação de indivíduos, muitas vezes, resulta em uma marginalização social e familiar, o que pode causar danos duradouros, prejudicando tanto a reintegração social do acusado quanto o bem-estar do menor, que se vê envolvido em um processo judicial sem entender as razões que levaram à intervenção do sistema de justiça.

Esse dilema jurídico também tem implicações profundas para o sistema de justiça como um todo. A aplicação uniforme da lei sem uma análise contextualizada das relações interpessoais pode criar um ciclo de injustiças, em que a busca pela proteção integral se sobrepõe a uma aplicação mais humanizada e equilibrada da lei. A desconsideração das realidades emocionais e sociais dos envolvidos contribui para a percepção de que o sistema jurídico não está em sintonia com as complexidades das relações humanas e das dinâmicas familiares, o que pode afetar a confiança da sociedade nas instituições jurídicas.

Por fim, a necessidade de uma abordagem mais sensível e contextualizada para a aplicação da legislação penal, especialmente no que tange aos crimes de estupro de vulnerável, é evidente. Embora a proteção dos menores seja um objetivo primordial, essa proteção deve ser equilibrada com a busca por justiça. A interpretação da lei deve levar em conta não apenas o critério etário, mas também as circunstâncias específicas de cada caso, respeitando a diversidade das relações afetivas e evitando punições desproporcionais. Isso não significa enfraquecer a proteção dos menores, mas sim tornar o sistema de justiça mais justo e proporcional às circunstâncias de cada situação, preservando a integridade do bem jurídico protegido, que é o direito dos menores a uma infância segura, livre de exploração e abuso, ao mesmo tempo em que se garante uma resposta legal que considere as nuances dos casos.

Assim, o sistema jurídico brasileiro enfrenta o desafio de encontrar o equilíbrio entre a proteção absoluta da vulnerabilidade e a necessidade de aplicar a lei de forma contextualizada, justa e sensível às realidades dos casos individuais. Essa discussão não é apenas uma questão técnica de interpretação jurídica, mas também uma reflexão sobre os valores da sociedade, os direitos humanos e as responsabilidades do Estado, da família e da sociedade no cuidado e proteção das crianças e adolescentes, visando, sempre, garantir um ambiente seguro para seu desenvolvimento emocional, social e psicológico.

REFERÊNCIAS:

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