REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/fa10202506301548
Emilly Caroline Moraes Pereira1
Maria da Luz Lima Sales2
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo examinar três narrativas que compõem o livro Mulheres De Coragem de Ruth Rocha, sob a ótica que a literatura infantojuvenil manifesta na formação crítica, cultural e psicológica do leitor, explorando a temática e o impacto social. Ao retratar figuras femininas em diferentes contextos históricos, a autora tece críticas sutis à sociedade patriarcal em sua obra, pois tais contos dialogam com questões contemporâneas de gênero, fomentando reflexões sobre a importância do segundo sexo e suas implicações no contexto sociocultural daquelas sociedades abordados pela autora. Nesse viés, este documento abordará gênero, cultura e sociedade. Baseando-se nos estudos de Friedan, suscitou-se uma reflexão acerca da mulher e de seu papel na sociedade; e em Lajolo e Zilberman, na abordagem acerca dos pressupostos da literatura infantojuvenil. Como resultado desta pesquisa, que reuniu material expondo a luta feminina além da literatura para crianças, observou-se como essa temática se manifesta no contexto literário e, ao ser abordada em sala de aula, pode impactar positivamente na percepção do público-alvo, sendo este instigado a refletir dentro de sua vivência sobre como a figura da mulher é expressa no tecido social. Nisso, evidencia-se no leitor a necessidade de compreender o porquê dos percalços encontrados na marcha feminina, a imposição de padrões e a segregação do conhecimento no decorrer dos séculos, mas que podem estes ser sanados.
Palavras-chave: Literatura Infantojuvenil. Ruth Rocha. Feminismo. Sociedade.
ABSTRACT
The aim of this paper is to examine three narratives that make up Ruth Rocha’s book Women of Courage, from the perspective that children’s literature manifests in the critical, cultural and psychological formation of the reader, exploring the theme and social impact. By portraying female figures in different historical contexts, the author subtly criticizes patriarchal society in her work, as these tales dialogue with contemporary gender issues, fostering reflections on the importance of the second sex and its implications in the socio-cultural context of those societies addressed by the author. In this vein, this document will address gender, culture and society. Based on Friedan’s studies, it will reflect on women and their role in society, and on Lajolo and Zilberman’s approach to the presuppositions of children’s literature. As a result of this research, which gathered material exposing the female struggle beyond children’s literature, it was observed how this theme manifests itself in the literary context and, when approached in the classroom, can have a positive impact on the perception of the target audience, which is instigated to reflect within their experience on how the figure of women is expressed in the social fabric. In this way, the reader is shown the need to understand the reasons for the mishaps encountered in the female march, the imposition of standards and the segregation of knowledge over the centuries, but which can be remedied.
Keywords: Children’s Literature. Ruth Rocha. Feminism. Society.
1 INTRODUÇÃO
A Literatura Infantojuvenil desempenha, dentre suas diversas contribuições no cenário educacional, um importante papel na formação social e na constituição do ser criança, no processo de autoconhecimento e conhecimento até mesmo do gênero ao qual ela pertence bem como a seu lugar no tecido social. Nessa ótica, a literatura torna-se indispensável para retratar, informar e conceder ao público designado uma formação cognitiva e social pautada na construção do indivíduo com pensamento crítico.
A arte literária, ao longo dos séculos, desempenhou um papel fundamental na formação de crianças e adolescentes, moldando suas percepções sociais de maneira profunda e duradoura. Ela não é apenas uma ferramenta de entretenimento, mas sim uma transmissora de valores, criticidades a complexas questões ao contribuir para a formação e imaginário do ser humano. Portanto, a fim de basilar este trabalho, exploraremos a literatura infantojuvenil e sua função no comportamento cognitivo e social dos indivíduos, além de discutir como os autores que exploram esse campo literário podem moldar e perpassar essas ideias às futuras gerações.
A obra que será utilizada para este estudo permite explorar o mundo da literatura infantojuvenil e considerar como as histórias contadas em seus versos criam no imaginário uma percepção nova acerca das mulheres, de como elas podem ser admiradas e o que pode colaborar para minimizar a violência contra elas. Mulheres de Coragem (1991) apresenta três narrativa simples, porém diversas em seus fundamentos, pois, ao tratar de uma temática que sempre foi vista como um tabu social, desperta no consciente do leitor indagações sobre o papel da mulher na sociedade, fazendo com que ela seja vista mais positivamente. Eis um dos questionamentos que o livro evoca e nos intriga: o motivo pelo qual as imposições sociais projetam no sexo feminino a fragilidade e a incapacidade intelectual.
A autora Ruth Rocha possui, em seu acervo literário, diversas leituras que caminham para percepções sociais urgentes postas até hoje, apesar de serem tão antigas. A tática da autora, ao representar em seus livros personagens femininas fortes e sábias, permite, por meio destas, apontar horizontes a fim de que a questão feminina venha à tona e provoque reações positivas no leitor. Quando trata do protagonismo da mulher no contexto da literatura, diversas possibilidades em estudos sociais são formuladas para se compreender como ela se formou na sociedade e como essas imposições de gênero reprimiram o público feminino.
2 A LITERATURA INFANTOJUVENIL NA FORMAÇÃO SOCIAL
A literatura infantojuvenil possui papel crucial na formação das práticas sociais. Embora entendida por alguns leitores como somente entretenimento, ela vem apresentar-se como ferramenta de conhecimento, no desenvolvimento do indivíduo como ser pensante, ao oferecer aos leitores a oportunidade de explorarem mundos além de sua realidade. Através de leituras que abordam as temáticas sociais, inclusão, gênero, política, entre outras, desperta em quem lê a curiosidade, imaginação, a criticidade, estimulando-o a relacionar as estórias descritas ao contexto em que estão inseridas, permitindo, assim, serem exploradas, por meio da literatura, questões sensíveis a discussões cotidianas em nossa sociedade.
Nessa perspectiva, a literatura visa aprimorar não apenas as habilidades de leitura ampliando o vocabulário, mas também alargando os horizontes do leitor. Essa capacidade de criar e visualizar universos fictícios, que é desenvolvida durante o ato de abrir o livro e se deixar levar por ele, essencial para o desenvolvimento da criatividade, permite que a criticidade e consciência de si e do mundo aflorem. A escrita não se limita à faixa etária, mas alcança leitores que desejam conhecer esse vasto universo literário.
Ao serem apresentadas em um livro variedades de temas, com o acompanhamento da jornada das personagens, o público infantojuvenil é levado a refletir sobre suas ações e comportamentos diante da sociedade. Com isso, forma-se a própria construção da identidade do indivíduo nesse processo de leitura literária. Muitos livros para crianças apresentam enredos que desafiam os leitores a pensar sobre questões sociais, culturais e morais. Um exemplo de reflexão e crítica social é observado na obra de Rocha “A Lenda da Moça Guerreira” (1991), que apresenta uma mulher forte, guerreira, porém, limitada pelo contexto social em que vivia. Ao saber da angústia de seu pai – que não tinha um filho varão –, decide aventurar-se e alegrar-lhe o coração, por meio das conquistas em batalha.
A literatura é vista por muitas crianças e adolescentes como refúgio emocional, uma fuga das situações difíceis enfrentadas. De maneira psicológica, o indivíduo é levado a pôr-se como o personagem do livro que está lendo enquanto reflete sobre suas ações e possíveis alternativas que lhe concederão um desfecho satisfatório. Desse modo, a arte literária é um veículo de conhecimento essencial no desenvolvimento das crianças e adolescentes, contribuindo para sua formação intelectual, emocional e ética, comumente sinalizadas por autores e teóricos literários a exemplo de Lajolo e Zilberman:
Valendo-nos do contraponto entre a literatura infantil e a não-infantil, nossa hipótese é que, no diálogo que se estabelece entre as duas, a especificidade de cada uma pode ajudar a destacar o que a tradição crítica, teórica e histórica não tem levado em conta na outra. E como se a literatura infantil e a não-infantil fossem pólos dialéticos do mesmo processo cultural que se explicam um pelo outro, delineando, na sua polaridade, a complexidade do fenômeno literário num país com as características do nosso. (2007, p. 10)
A literatura infantojuvenil não é somente uma maneira de inserir determinados temas a um público dentro de um contexto literário, ela ultrapassa, por meio de palavras, a complexidade da condição humana e pode funcionar como uma ponte entre o físico (real) e o imaginário, conforme sugerem as autoras acima citadas. Nesse entendimento, sua importância ultrapassa as fronteiras do tempo, possibilitando ao leitor transportar-se para mundos em que tudo pode existir, estratégia muito utilizada em textos infantis. Através do contato com livros literários, desafia-se o leitor a questionar sobre as variações do contexto que ela permite penetrar.
Foi por meio da literatura e da cultura literária infantojuvenil que o público mirim foi reconhecido, permitindo-lhe alcançar as diversas faixas etárias e gêneros. Ao ampliar a visão de mundo do leitor e conceder-lhe explorar a imaginação, suscita-lhe sonhar, pensar, tecer opiniões próprias, críticas e liberdades. Para isso, as histórias devem ser cativantes, despertar-lhe a curiosidade e reconhecer que cada gênero literário tem suas particularidades, fábulas, contos, em prosa ou verso, as quais destinam um norte para aquele que as lê. Ademais, neste breve estudo, evidencia-se como esse tipo de literatura propicia a formação do ser, suas bases, instruindo-o e fundamentando suas reflexões.
3. O PROTAGONISMO E A VALORIZAÇÃO DA CULTURA FEMININA NA LITERATURA DE RUTH ROCHA
Em Mulheres de Coragem, a autora nos apresenta uma coletânea de contos, sendo que o primeiro tem o mesmo título do livro; o segundo se chama “Lenda da moça guerreira”; e o último, “Romancinho romanceiro”. Todos eles evidenciam a força da mulher em sociedades patriarcais, ou seja, nas quais ainda perdura o pensamento hegemônico do homem superior à mulher. Porém a determinação das personagens femininas desafia as imposições sociais, destacando-as como figuras notáveis que podem servir de modelo de coragem para as gerações atuais e futuras.
Ao mergulhar nas narrativas de Rocha, o leitor criança é levado a refletir sobre a importância do papel feminino na sociedade atual, mesmo as histórias sendo ambientadas na Idade Média e em regiões bem diferentes e distantes do Brasil. Numa época em que a violência contra a mulher é tão marcante, urge que se pense no tema do gênero e se reveja a ação, a importância e o desempenho femininos hoje. Esta leitura pode colaborar para que a mulher seja vista de outra forma, mais emancipada e em posição de igualdade em relação ao homem, pois merece esse destaque. Através de narrativas envolventes, que cativam o público infantil, este é convidado a envolver-se numa jornada emocionante, com personagens notáveis, de diferentes épocas e culturas que se destacaram no contexto social.
As histórias apresentam personagens femininas potentes, desde líderes até guerreiras. Cada narrativa releva a dedicação e a coragem de mulheres que decidem enfrentar as adversidades e lutar por seus ideais. Na obra destaca-se a importância de valorizar, no cenário atual, o papel de seres hoje tão desvalorizados, reconhecendo suas contribuições para a sociedade que, dentro da história, são negligenciadas ou minimizadas pela sociedade patriarcal. A leitura de Rocha busca ampliar a visão de mundo do leitor mirim e também reconhecer o papel fundamental que o público feminino desempenha na construção social e humana, afinal, elas trazem os homens ao mundo.
Ao explorar de forma simples as temáticas que perduram nas sociedades, o livro visa conscientizar o leitor sobre como a resistência feminina permite conquistar espaços dominantes. Quando o narrador exemplifica os percalços que as personagens enfrentam para conquistar o reconhecimento, ocorre junto uma espécie de homenagem à bravura de seres não frágeis que desafiam as expectativas e deixam seu legado na história, como é evidenciado no primeiro conto “Mulheres de Coragem”. A história se passa na Alemanha, narrando-se a guerra de Conrado III, cujas tropas haviam cercado o castelo de outro soberano, Welfo. Os habitantes já haviam sido retirados, ficando somente os soldados e as esposas que se recusaram a deixá-los. O cerco durou dois anos, não havendo mais mantimentos e o imperador envia, então, um mensageiro ao inimigo, que se impressionou com a bravura das mulheres, oferecendo-lhes a escolha de saírem e não serem atacadas, se saíssem com o que tinham de mais precioso. Sob essa ordem, elas resolvem partir com os maridos e nenhum mal lhes foi feito. Após esse ato de ousadia, os dois reis selaram a paz, permitindo que ambos os reinos vivessem em harmonia.
Nesse conto, a atitude das mulheres em acompanhar os esposos e interceder por suas vidas demonstrou como a postura feminina pôde mudar o destino do reino e o desfecho da narrativa. É o que se pode observar no fragmento a seguir:
Ante o olhar atônito dos homens de Conrado as mulheres passavam, com seus maridos nos ombros. Os soldados se voltaram para o chefe, aguardando suas ordens. Mas Conrado, impassível, mantinha sua palavra, deixando que toda a tropa inimiga passasse por entre suas próprias tropas, protegida pela coragem de suas mulheres. (Rocha, 1991, p. 10)
Ressalta-se como esse conto transmuta a imagem de mulheres frágeis para a de sábias e ousadas. Essa literatura, inserida no público infantojuvenil, cria a ideia de que a figura feminina não deve ser subestimada e que seus direitos devem ser respeitados. Com isso, o leitor – de preferência mediado por um ou uma docente – é levado a refletir sobre o cenário histórico, mas também atual de violência contra a mulher, e de luta por igualdade.
O segundo conto constitui a lenda de uma Moça Guerreira, com o cenário ambientado na Europa, narra a história da filha de um velho varão das terras de Aragão, que desejava que “os estandartes de sua casa pudessem tremular ainda nos campos de luta” (Rocha, 1991, p.16,), trazendo-lhe bens e glórias. Ao ver o desejo do pai, a filha mais velha, Dona Isabel, resolve se travestir de guerreiro, mistura-se aos homens e vai a campo. Suas conquistas trouxeram glória ao genitor, tendo ainda ela ganhado lá a afeição de um príncipe que, no decorrer da história, não sabia que se tratava na verdade de uma donzela, o que evoca outras histórias, a seguir referidas.
O trecho seguinte mostra uma parte inicial da narrativa, na qual se vê que a sociedade patriarcal veda às mulheres participação ativa, papel esse que, entretanto, é subvertido na trama:
– Minha filha – disse o pai – mulheres não vão à luta.
– Eu me disfarço, meu pai. Não me reconhecerão!
– Suas formas de mulher.
– Me aperto numa armadura. Não me reconhecerão!
– Seus cabelos, minha filha…
– Esconderei minhas tranças. Não me reconhecerão!
(Rocha, 1991, p.18)
Nesse excerto, a personagem principal desafia as expectativas tradicionais da sociedade ao se tornar uma guerreira. Esse gestor representa uma quebra nas normas que, historicamente, colocam as mulheres em posições subalternas, impedindo-as de mostrar sua capacidade de ocupar espaços de liderança e protagonismo. A narrativa apresenta certo simbolismo sobre a luta por igualdade e o rompimento com os estereótipos de gênero. Celebra o empoderamento feminino e a capacidade de lutar pelo que se acredita, independentemente de gênero, ecoando a ideia de que todos podem mudar suas histórias, desde que tenham determinação e coragem. Rocha, com sensibilidade, aborda temáticas sociais em suas obras, tecendo críticas sutis às barreiras impostas às mulheres ao longo da história, enquanto oferece uma narrativa de esperança e compreensível ao público infantil.
A terceira das histórias, “Romancinho Romanceiro”, apresenta a cultura dos povos antigos, reis, nobres, que tinham o costume de se casarem entre si para manter suas riquezas. Moça, alegre e forte, a princesa Beatriz tem um noivo escolhido pelo pai, mas desafia seu destino ao vencer, em uma luta de espadas, o príncipe escolhido. Assim como nos demais, o último conto expressa a ousadia de mulheres que desafiaram as leis do tempo e romperam as limitações de suas épocas. O fragmento a seguir mostra uma jovem audaciosa com fama em todo o ducado:
Então ela levantou-se e declarou:
– Sou eu quem vai lutar com este pretensioso! Os pais e irmãos de Beatriz quiseram se opor ao plano, mas eles sabiam que, apesar de mulher, era ela quem melhor manejava a lança naquele ducado. (Rocha, 1991, p. 34)
Na ótica da obra como um todo da autora, que apresenta a história de três mulheres, é evidente como as personagens rompem com os critérios de gênero impostos para exercer seus ideais, e observa-se como a personagem Dona Isabel, do primeiro conto, veste-se de soldado para trazer glória à casa de seu pai, característica peculiar em textos literários que abordam a temática feminina. Um outro livro que apresenta similaridades com o conto de Rocha é Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa (1956).
No romance modernista, são abordados temas diversos, entretanto, o ponto-chave que dialoga com a “Lenda da Moça Guerreira” está na história de Diadorim. Filha do jagunço Joca Ramiro, e, num cenário sertanejo, assume a persona de homem para combater ao lado dele, já que este não tinha filho homem que o acompanhasse na batalha. Observa-se como a personagem feminina assume essa postura para quebrar as imposições do meio e não se submeter ao excluso contexto de mulher do sertão junto a suas limitações.
Outra narrativa que se assemelha aos contos “Romancinho Romanceiro”e “Lenda Da Moça Guerreira” encontra-se no filme de animação Mulan, da Disney (1998). A película apresenta a vida de uma jovem chinesa que é preparada para o casamento, porém, ao ser invalidada pelas casamenteiras, decide buscar sua afeição pessoal. Nesse contexto, numa divisão social entre homens e mulheres, a heroína decide transformar-se em soldado para guerrear no lugar do velho pai. E no decorrer da história, ela enfrenta diversos entraves para encontrar seu propósito.
Em síntese, observa-se como a personagem que retrata a personagem Mulan assemelha-se à princesa Beatriz do conto de Rocha (1991), que é anunciada em casamento por seu rei. Porém, de personalidade forte, opõe-se à ordem real e decide lutar pela liberdade e escolha própria. Desse modo, é notável como a literatura e a mídia vêm abordando tais temáticas acerca da emancipação feminina. E nesse viés, retomam-se discussões sobre como as imposições sociais criam uma atmosfera de exclusão para a mulher. Sabe-se que diversas personalidades femininas – Simone de Beauvoir, Berta Lutz, Malala – contribuíram para a compreensão do ser feminino, seja na literatura, na política, entre outras áreas, como forma de elas conhecerem sua força interior.
4 A REPRESENTATIVIDADE FEMININA NO PANORAMA HISTÓRICO
Desde a Antiguidade, as mulheres desempenham funções essenciais na sociedade como governantes, líderes religiosas, guerreiras. Exemplos desse protagonismo feminino são encontrados no campo histórico-científico com Marie Curie (1867) junto ao marido Pierre (1859), na descoberta dos elementos radioativos polônio e rádio, a qual lhe rendeu o Prêmio Nobel de Física em 1903. Entretanto, Curie só recebeu o devido reconhecimento por sua persistência no meio científico por causa da presença de seu parceiro na indicação de tal prêmio, visto que, no início do século XX, a exclusão dos direitos da mulher era incisiva e raramente estes eram reconhecidos (Ferreira; Genovese, 2022).
Constata-se que a exclusão feminina se estendia aos diversos meios sociais. No contexto ocidental, a presença de mulheres no sistema público era limitada e as funções atribuídas a elas eram apenas de esposa e mãe, na educação dos filhos e na administração do lar. Essa visão de subordinação ainda é observada em nações cuja cultura possui fortes bases religiosas, contribuindo para a repressão da figura feminina. A presença delas na sociedade foi alcançada por diversos percalços e com muita perseverança. Mulheres de diversas épocas se manifestaram contra as imposições sociais, dando progresso para a busca pela igualdade de direitos e oportunidades (Beauvoir, 2009).
Inúmeros movimentos e revoluções sociais obtiveram a parcela da mulher em suas conquistas e, com a Revolução Industrial, no final do século XVII, marcou-se uma virada significativa para a emancipação delas. Com a mudança de produção e a sua entrada no mercado de trabalho em fábricas fez-se emergir, entretanto, novas contradições sociais: horas exorbitantes de trabalho, baixos salários e condições degradantes suscitaram movimentos operários e feministas, exigindo melhores situações trabalhistas, igualdade de direitos básicos como salarial e licença maternidade. A luta pela igualdade de direitos – como vislumbrada nos contos estudados – não é somente por independência feminina, mas sim, pela emancipação humana. A autonomia feminina não é um ato de caridade, não resulta de uma posição humanitária ou de composição, ela constitui justiça social.
A partir das mudanças no século XIX, a luta pela educação também se tornou aspecto crucial pela igualdade de gênero, pois a educação permitiu às mulheres questionar os papéis impostos pelo patriarcado sobre a figura feminina. No contexto brasileiro, grandes personalidades se destacaram por suas discussões acerca da emancipação da mulher, de direitos e política. Umas das figuras que lutaram pela educação foi Nísia Floresta (1810), sendo das primeiras no Brasil a defender o direito à educação equiparada à dos homens.
Nota-se que nesse século, a educação era uma conveniência aos homens. Como resultado, poucas mulheres conseguiam concluir os estudos, obter destaque e exercer atividades profissionais. Floresta se inseriu no magistério, exercendo o cargo de diretora em um colégio no Rio Grande do Sul, onde desenvolveu diversos trabalhos, escrevendo artigos em jornais, partilhando ideais revolucionários na educação brasileira. Suas contribuições são essenciais no campo da pesquisa e da educação. É o que Duarte comenta a seguir:
No livro Nos tempos da velha escola, de Kraemer Neto, entre dezenas de nomes masculinos estão registrados também os das primeiras professoras e diretoras de escolas no Rio Grande do Sul, como Nísia Floresta Brasileira Augusta e Luciana de Abreu, esta, considerada a primeira mulher gaúcha a expor publicamente suas ideias sobre emancipação. (Duarte, 2019, p.42)
Nísia Floresta e Luciana Abreu, como citado acima, destacaram-se em sua época no tocante aos ideais feministas, um marco nesse período, haja vista que o movimento na luta por igualdade ocorreu no meio literário, político e científico. Entretanto, é evidente que, no cenário em que a educação se limitava somente aos abastados e ao público masculino no contexto do século XIX, a exclusão dos direitos da mulher em exercer profissão, e suas lideranças sempre foram contestadas.
5 A LITERATURA COMO FERRAMENTA DE INCLUSÃO
A Literatura sempre desempenhou um papel essencial ao abordar temáticas sensíveis no contexto social. Diversos autores, através de seus escritos, explorando cenários reais ou fictícios, utilizaram essa ferramenta para abordar ou denunciar as mazelas civis que perduravam durante séculos. Nesse viés, ampliaram-se as discussões acerca da figura feminina na sociedade, dando voz àquelas silenciadas.
Antonio Candido em “O Direito à Literatura” (1995) ressalta, de maneira geral, que o acesso à leitura ainda é negligenciado, utilizando-se do seguinte questionamento: “Uma pessoa humilde pode ler Dostoiévski ou ouvir os quartetos de Beethoven?” (Candido, 2004, p. 172). A resposta é afirmativa, porém, em termos de igualdade, essa discussão não ocupa a mente do indivíduo. A exclusão de grupos sociais de acesso à literatura gera uma lacuna na sociedade. Nessa lógica, o autor denota que a arte literária ainda é vedada às classes mais baixas, o que, consequentemente, reflete-se na formação crítica do ser. Em um contexto de inclusão, a narrativa feita ou protagonizada por mulheres – como a de Ruth Rocha – propicia tanto a identificação feminina (de meninas, mulheres que se veem nas personagens e são estimuladas a não aceitarem limitações e pressões) quanto a reflexão de meninos que leem a obra infantil e têm a oportunidade de admirar as damas em suas ações heroicas. Quando as histórias são contadas e protagonizadas por elas, há uma expressão de identidade ou de percepção empática a mais, abrindo espaço para se questionarem estereótipos impostos e uma possível mudança de olhar. As narrativas literárias representam um progresso social na busca por direitos civis, e o ou a docente tem um papel importante na condução de tal leitura durante as aulas, no sentido de fazer valer essas reflexões.
Outra importante figura para a literatura, conhecida por sua representatividade na luta pelo direito à educação é Malala Yousafzai. Ativista dos Direitos Humanos, inspirou livros que retratam sua jornada de perseguições e conquistas pelo direito das mulheres a uma educação digna. O livro Malala, a menina que queria ir para a escola (2015) aborda sua biografia, com a vivência, medos e lutas da jovem paquistanesa por autonomia. Escrita e baseada na imagem feminina, a obra permite ao leitor questionar-se sobre como a luta pelos direitos da mulher passa por caminhos árduos, mas que se destaca no progresso feminino, iluminando questões que envolvem o contexto local e atingem uma dimensão global, sensibilizando diversas culturas sobre a necessidade da inclusão feminina.
Dentro dos tópicos e narrativas apresentados aqui, pode-se afirmar que a literatura serve como um catalisador sobre a inclusão e a igualdade de gênero. Ao inserir as temáticas femininas que abordam ou não perspectivas feministas, a sociedade gera um processo de formação crítico-social, permitindo, assim, a compreensão das políticas de gênero. Quanto mais a mulher se destaca positivamente, quanto mais ela escreve e é lida, mais colabora para que outras e outros desenvolvam potencial crítico e igualitário que cabe a elas.
6 A CRISE DA IDENTIDADE FEMININA
Numa ótica analítica sobre as percepções existentes do papel feminino enquanto ser social, de direitos e deveres, observam-se fartos questionamentos sobre como sua figura é representada ou entendida. Compreende-se que muitos dos absurdos impostos pelo estereótipo de mulher ainda persistem não somente por uma sociedade que a exclui de seu espaço social, mas também, como consequência histórica por não haver uma representação clara desse papel feminil no tecido social.
Dentre as análises que buscam investigar os impactos da cultura de exclusão de gêneros, destacam-se importantes obras que questionam esse meio. Mística Feminina (1963), da escritora Betty Friedan (1921), surge como um marco no século XX na luta de mulheres americanas contra o sistema patriarcal e uma reflexão profunda sobre como a mulher se vê nos moldes sociais, que transcendeu a América do Norte para colaborar no constante progresso social. Numa introdução histórica, a autora evidencia como as mudanças políticas influenciaram no estereótipo feminino.
Ela observa, dentre muitos fatores que subjugam a figura feminina, que os entraves enfrentados pelo público-alvo estão relacionados a uma crise de identidade: “uma atrofia ou evasão do crescimento, perpetuada pela mística” (Friedan, 1963, p. 57). Ou seja, a percepção social foi construída para a mulher desde sua infância, no cotidiano familiar com a distinção de tarefas, responsabilidades e expectativas profissionais futuras.
A relação que o sistema patriarcal impõe sobre as mulheres define-as como educadoras (em papel na criação dos filhos) e mães, que, nesse molde, são vistas como mero produtor de vida ou satisfação sexual. Friedan questiona o porquê de a mulher não poder exercer outras funções que são consideradamente exercidas por homens. Nessa ótica, pode-se observar, como a literatura infantil também questiona esse sistema. Na “Lenda da Moça Guerreira”, a personagem Dona Isabel é questionada pelo pai sobre seu anseio de guerrear, sob a justificativa de que os traços femininos – cabelo, corpo, olhos… – a impedem de exercer o desejo desta: mas se ela era competente, mais do que todos naquele ducado, por que não lutar?
A crise de identidade a qual a mulher enfrenta está relacionada às imposições sociais que se enraízam nos níveis de consciência dela própria. A passividade do sexo, a imposição massiva do molde comportamental a impossibilitam de mensurar novos objetivos, de exercer o que sua sede pela libertação anseia alcançar e isso se reflete diretamente na maneira de como a mulher se vê. Um controle mental exercido pelo homem sobre a anatomia feminina, sua identidade de ser (Friedan, 1963, p. 60).
Diante disso, as indagações posteriores que surgem visam, como propósito, a não se limitar a rotular uma única função, gênero, orientação sexual e afins, e de demonstrar como a mulher pode conquistar qualquer espaço social se o desejar. Porém, é óbvio afirmar que, num contexto de entraves sociais, essas mudanças aqui apontadas são gradativas, e cada reconhecimento evidenciado torna-se estímulo para romper com as barreiras do sistema patriarcal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A literatura desempenha essencial função de expressividade. As narrativas escritas por mulheres trazem reflexões sociais de maneira ampla e plural e buscam instigar os leitores a repensar suas limitações. Os escritos femininos voltados para o público infantojuvenil não se limitam na compreensão feminina, mas buscam criar em outros gêneros o pensamento crítico sobre a luta da mulher em sociedade, promovendo a inclusão acerca dos padrões de gênero construídos culturalmente.
Conclui-se este estudo, portanto, que a literatura infantojuvenil assume um papel fundamental – principalmente em tempos de feminicídios e violência contra a mulher –, como uma promotora da consciência crítica das crianças, permitindo seus questionamentos, vivências e formação social. Nessa perspectiva, a literatura de Ruth Rocha inspira, educa e forma jovens leitores e leitoras, oferecendo-lhes um espelho para refletirem acerca das práticas sociais e abrindo-lhes uma janela para o mundo, desmistificando padrões patriarcais que limitam a figura feminina em seu progresso e conquistas sociais.
Ao explorar temas universais e sensíveis com criatividade, autores como Rocha conseguem ampliar horizontes, quando discorre sobre histórias que transcendem o imaginário do ser e o estimulam a promover o desenvolvimento cognitivo e empático de futuras gerações. Essas contribuições podem mudar de maneira significativa a visão de mundo do leitor ou leitora criança, permitindo-lhe compreender, de modo didático, as vivências e como as ações têm o poder de transformar a sociedade.
Nesse viés, ao debater sobre essas reflexões, é notável quanto o papel da literatura infantojuvenil exerce sobremaneira importância sobre o pequeno leitor ou leitora, colaborando para a formação e o senso crítico deste. Ademais, tornam-se indispensáveis essas abordagens no contexto social para trazê-las à luz da sociedade e constatar como a literatura corrobora para essa mudança almejada, trabalhando para a formação do indivíduo, seja em aspectos emocionais, físicos e/ou psicológicos.
Desse modo, quando se aborda a valorização da representatividade do gênero feminino em narrativas como as de Mulheres de Coragem, cria-se no entendimento do leitor criança a percepção de que os direitos femininos devem ser discutidos pois esta, tendo mãe e, por vezes irmãs, tias, avós, pode mostrar-se aberta à empatia. Apresentando a temática a esse público-alvo específico, estimula-se não somente a leitura crítica, mas também a compreensão de aspectos sociais cruciais urgentes que podem influenciar positivamente nas mudanças para a aquisição dos direitos da mulher para uma sociedade mais feliz.
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1Discente do curso de Licenciatura em Letras – Língua Portuguesa do Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará – campus Belém.
2Doutora em Ciências da Educação pela Universidade de Évora (Portugal), professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará (IFPA), coordenadora do grupo de Estudos Literários e Linguísticos da Amazônia (GELLA) e pesquisadora do grupo de pesquisa e Linguagem, Literatura e Tecnologia na Amazônia, ambos do IFPA.