CLINICAL INTERVENTIONS WITH FAMILIES OF GIFTED INDIVIDUALS: EMOTIONAL CHALLENGES, THERAPEUTIC LISTENING, AND PROPOSALS FOR ONLINE OPERATIVE GROUPS
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/dt10202506201109
Auriciene Pereira de Araújo Lidório1
RESUMO
Este artigo aborda os desafios enfrentados por famílias de pessoas com Altas Habilidades/Superdotação (AH/SD) a partir de uma experiência clínica com atendimentos psicoterapêuticos individuais e familiares. Compreendendo que o sofrimento vincular e a sobrecarga emocional são frequentes nesses contextos, a proposta do trabalho é analisar os impactos das intervenções realizadas e propor diretrizes terapêuticas que considerem o sistema familiar como parte essencial do cuidado. A amostra compreendeu indivíduos com AH/SD, entre 6 e 32 anos, e seus familiares, acompanhados em contexto clínico, em Londrina (PR). A metodologia baseou-se em entrevistas semiestruturadas, observação clínica e análise qualitativa de conteúdo e discurso. Os resultados apontam para a importância da escuta ativa, do acolhimento das famílias e da construção de redes de apoio emocional. A proposta de grupos operativos online é apresentada como estratégia clínica futura, com base em referenciais psicanalíticos e grupais. O estudo contribui para preencher lacunas existentes nas práticas de cuidado em superdotação e propõe caminhos concretos para o fortalecimento do suporte psicossocial a essas famílias.
Palavras-chave: Superdotação. Altas Habilidades. Família. Psicoterapia. Intervenção Clínica.
ABSTRACT
This article addresses the challenges faced by families of individuals with High Abilities/Giftedness (HA/G) through a clinical experience involving individual and family-based psychotherapeutic interventions. Recognizing that relational suffering and emotional overload are frequent in these contexts, the study aims to analyze the impacts of the therapeutic interventions carried out and to propose clinical guidelines that consider the family system as an essential component of care. The sample included individuals with HA/G, aged between 6 and 32 years, and their family members, who received clinical psychological support in Londrina (PR), Brazil. The methodology was based on semi-structured interviews, clinical observation, and qualitative analysis of content and discourse. The results highlight the importance of active listening, family engagement, and the development of emotional support networks. The implementation of online operative groups is presented as a future clinical strategy, grounded in psychoanalytic and group dynamics frameworks. This study contributes to addressing existing gaps in the care practices for gifted individuals and proposes concrete pathways for strengthening psychosocial support for their families.
Keywords: Giftedness. High Abilities. Family. Psychotherapy. Clinical Intervention.
1. INTRODUÇÃO
A temática das Altas Habilidades/Superdotação (AH/SD) vem ganhando espaço nas discussões educacionais e neuropsicológicas nas últimas décadas, especialmente em função dos avanços nos estudos sobre cognição, neurociência e desenvolvimento humano. No entanto, embora a literatura contemporânea ofereça modelos teóricos consistentes para a identificação e desenvolvimento desses indivíduos (RENZULLI, 2016; GAGNÉ, 2009), o suporte psicossocial às suas famílias permanece consideravelmente negligenciado, sobretudo no contexto brasileiro (FREEMAN, 2010).
Pessoas com AH/SD frequentemente enfrentam dificuldades de adaptação social, sensibilidade emocional intensa, expectativas internas e externas elevadas e sentimentos de inadequação, o que pode repercutir diretamente em suas relações familiares (NEIHART et al., 2016). Esse contexto é agravado quando os núcleos familiares não dispõem de suporte adequado, orientação especializada ou compreensão suficiente sobre as características específicas da superdotação. Famílias sem acompanhamento psicológico podem reproduzir padrões disfuncionais, adotar práticas educativas inadequadas ou, ainda, negligenciar aspectos emocionais fundamentais para o desenvolvimento de seus filhos e filhas superdotados (SILVERMAN, 2012).
No Brasil, apesar da legislação reconhecer o direito de atendimento educacional especializado para alunos com AH/SD (BRASIL, 2009), a lacuna entre a identificação e o acompanhamento clínico-familiar ainda é significativa. Muitos adultos superdotados relatam uma história marcada por sofrimento subjetivo, invisibilidade institucional e experiências de exclusão. Ao mesmo tempo, seus familiares, especialmente pais e cuidadores, enfrentam angústias silenciosas, solidão diante das decisões e carência de espaços de escuta e orientação.
A literatura nacional recente reforça que a rede de apoio emocional e psicológico à família tem impacto direto no desenvolvimento integral da pessoa com AH/SD (DELLATORRE ANDRADE; MENEZES; BORGES, 2022). Nesse sentido, a clínica psicológica assume papel estratégico como espaço de cuidado, reflexão e transformação das relações familiares. A abordagem psicanalítica, especialmente a perspectiva winnicottiana, fornece fundamentos teóricos para compreender as dinâmicas emocionais que atravessam essas vivências, com destaque para os conceitos de holding, ambiente suficientemente bom e autenticidade do self (WINNICOTT, 1965).
A presente pesquisa emerge, portanto, da constatação prática de que o sofrimento dos familiares de pessoas com AH/SD é frequentemente invisibilizado nos serviços de saúde mental. Ao longo de atendimentos clínicos realizados entre 2023 e 2024 com pessoas superdotadas e seus familiares, identificaram-se padrões recorrentes de sobrecarga emocional, culpa parental, dificuldades de comunicação e ausência de repertório para mediação de conflitos. Com base nessas observações, o presente artigo busca sistematizar os efeitos de intervenções psicoterapêuticas individuais e familiares realizadas nesse contexto, e apresentar diretrizes clínicas e estratégicas para o cuidado dessa população.
O objetivo central deste estudo é analisar o impacto de intervenções psicológicas no fortalecimento dos vínculos afetivos e na promoção da saúde mental de famílias com membros superdotados. Como objetivo específico, propõe-se ainda discutir a viabilidade da implementação futura de grupos operativos online como forma de ampliar o alcance das intervenções e potencializar o suporte emocional, psicoeducativo e social às famílias envolvidas.
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
A compreensão da superdotação passou por significativas transformações ao longo das últimas décadas. Os modelos clássicos baseados exclusivamente no quociente de inteligência (QI) vêm sendo superados por concepções mais complexas e multifatoriais, que articulam habilidades cognitivas, emocionais, sociais e contextuais. No centro desse avanço está o Modelo dos Três Anéis, de Joseph Renzulli (2016), que propõe que a superdotação se manifesta na confluência entre habilidade acima da média, criatividade e comprometimento com a tarefa. Esse modelo tem sido referendado em diversas pesquisas por evidenciar que talentos não emergem apenas da cognição bruta, mas também de traços motivacionais e das condições do ambiente.
Outro aporte teórico relevante é o Modelo Diferenciado de Talento (MDT) proposto por François Gagné (2009), que distingue claramente entre dons naturais — aptidões em estado bruto — e talentos desenvolvidos, que dependem de variáveis intrapessoais (como resiliência, motivação e autorregulação emocional) e ambientais (como apoio familiar, oportunidades educacionais e redes de suporte). Essa perspectiva é especialmente útil para pensar o papel da família, da escola e da comunidade na conversão do potencial em realização concreta. Recentemente, estudos neurocientíficos também passaram a contribuir para a compreensão da superdotação, revelando padrões de ativação cerebral diferenciados e maior conectividade em áreas associadas à metacognição e ao processamento emocional (Shearer & Gaesser, 2015; Franco & Batista, 2024), indicando que o talento não é apenas quantitativo, mas também qualitativamente distinto.
Essas mudanças paradigmáticas provocaram uma reconfiguração das práticas de identificação e acompanhamento de pessoas superdotadas, mas ainda persistem lacunas significativas quando se trata do suporte emocional e relacional. A literatura aponta que indivíduos com AH/SD frequentemente enfrentam uma dessincronia entre suas capacidades cognitivas e suas habilidades emocionais ou sociais, o que pode gerar experiências de inadequação, isolamento, baixa autoestima e, em alguns casos, quadros de sofrimento psíquico como ansiedade e depressão (Neihart et al., 2016; Pfeiffer, 2013). Esses aspectos são frequentemente negligenciados por políticas públicas e programas educacionais centrados unicamente no desempenho acadêmico.
O impacto da superdotação estende-se, inevitavelmente, às famílias. A vivência familiar é atravessada por idealizações, projeções, frustrações e exigências muitas vezes não verbalizadas. Cuidadores e responsáveis enfrentam dúvidas constantes sobre como agir, educar e acolher esses filhos que desafiam os modelos normativos de desenvolvimento. Freeman (2010) enfatiza que, em muitos casos, o sofrimento parental é invisibilizado ou subestimado, sendo confundido com “superproteção” ou excesso de expectativas. Isso contribui para o desgaste emocional de pais e mães que, na ausência de rede de apoio, se sentem sozinhos no manejo das questões trazidas pela superdotação.
Nesse cenário, a psicoterapia emerge como um recurso potente e necessário. A escuta clínica das famílias permite acessar não apenas o discurso racional, mas também as angústias latentes, os conflitos inconscientes e os vínculos disfuncionais que podem estar afetando o desenvolvimento emocional dos filhos superdotados. A abordagem winnicottiana oferece elementos fundamentais para essa escuta. Winnicott (1965, 2001) defende que o desenvolvimento do self autêntico depende da existência de um ambiente suficientemente bom, onde o sujeito possa experimentar, brincar e expressar sua espontaneidade. O conceito de holding, entendido como sustentação emocional promovida pelo cuidador, torna-se especialmente relevante no contexto da superdotação, em que a sensibilidade emocional costuma ser exacerbada. Ao mesmo tempo, a falta de reconhecimento do sofrimento dos pais compromete a sua capacidade de oferecer esse suporte fundamental.
Na clínica, o trabalho psicoterapêutico com famílias permite reconfigurar os papéis, fortalecer o vínculo afetivo e desenvolver estratégias mais conscientes de mediação de conflitos. A escuta das experiências parentais e dos adultos superdotados que não receberam apoio em sua infância revela histórias marcadas por repressão de emoções, silenciamento e medo da diferença. Muitos desses sujeitos relatam uma trajetória de adaptação forçada e ocultação de suas habilidades em nome da aceitação social (Silverman, 2012). Ao intervir nesse ciclo, a psicoterapia não apenas acolhe, mas também ressignifica, criando condições para que a subjetividade desses indivíduos possa se constituir de forma mais livre e integrada.
Diante da complexidade do fenômeno, faz-se necessário ampliar as estratégias de cuidado para além da psicoterapia individual. É nesse ponto que a proposta de grupos terapêuticos — mais especificamente, os grupos operativos — ganha relevância. Inspirados nas formulações de Pichon-Rivière e desenvolvidos no Brasil por autores como Zimerman e Osorio (1997), os grupos operativos configuram-se como espaços coletivos de escuta, reflexão e elaboração emocional. Diferente dos grupos psicoeducativos, os grupos operativos têm como foco o processo grupal e a análise das interações, o que permite que os participantes tomem consciência de suas posturas, defesas e modos de funcionamento. Essa proposta é particularmente adequada para familiares de pessoas superdotadas, pois oferece um espaço horizontal de partilha de experiências, diminuição do isolamento e construção coletiva de soluções.
Com o avanço da tecnologia e a experiência forçada da pandemia de COVID-19, as intervenções clínicas mediadas por dispositivos digitais tornaram-se cada vez mais comuns e, em muitos casos, eficazes. “O contexto pandêmico exigiu dos profissionais de saúde mental uma rápida adaptação das práticas presenciais para o formato online, impulsionando a utilização de recursos digitais e possibilitando a continuidade do cuidado clínico” (Melo et al., 2023, p. 9). A adaptação dos grupos operativos para o formato online, portanto, representa uma possibilidade promissora de ampliação do cuidado, mantendo o rigor clínico e respeitando os princípios éticos da escuta qualificada.
Por fim, destaca-se que o cuidado em AH/SD precisa ser pensado como uma política pública intersetorial, que articule saúde, educação e assistência social. O suporte clínico às famílias é parte fundamental dessa engrenagem, e a criação de estratégias terapêuticas eficazes e acessíveis é condição para que a superdotação não seja apenas reconhecida, mas verdadeiramente acolhida em sua complexidade. O presente estudo, ao apresentar os efeitos de intervenções clínicas com famílias de pessoas superdotadas e propor como diretriz futura a implementação de grupos operativos online, busca contribuir para o fortalecimento de práticas clínicas sensíveis às singularidades desse público.
3. METODOLOGIA
Este estudo caracteriza-se como uma pesquisa qualitativa, de natureza interventiva, com delineamento exploratório e clínico, desenvolvida no contexto da psicologia aplicada a famílias de pessoas com Altas Habilidades/Superdotação (AH/SD). A proposta investigativa fundamenta-se na escuta clínica das experiências subjetivas e nas transformações observadas ao longo de processos psicoterapêuticos com indivíduos superdotados e seus familiares, buscando compreender as repercussões dessas intervenções nas dinâmicas emocionais e relacionais.
A amostra foi composta por 14 participantes, com idades entre 6 e 32 anos, acompanhados em um serviço clínico de atendimento psicológico na cidade de Londrina (PR), entre os anos de 2023 e 2024. Os critérios de inclusão abrangeram: (a) ter diagnóstico formal de AH/SD emitido por equipe multiprofissional, (b) estar em acompanhamento clínico ativo no momento da pesquisa, e (c) consentimento livre e esclarecido dos responsáveis legais, no caso de menores de idade. A seleção dos participantes foi intencional, baseada na disponibilidade de acesso e na continuidade do vínculo clínico. Os atendimentos ocorreram tanto no formato presencial quanto online, de acordo com as necessidades e condições das famílias envolvidas.
As intervenções realizadas foram de natureza psicoterapêutica, estruturadas a partir de referenciais da psicanálise winnicottiana e da escuta clínica dialógica. Foram conduzidos atendimentos individuais com os sujeitos superdotados e atendimentos familiares, priorizando o fortalecimento do vínculo afetivo, a mediação de conflitos e a promoção da autorregulação emocional. O foco terapêutico incidiu sobre o reconhecimento das singularidades subjetivas dos participantes e a elaboração de vivências emocionais complexas, como a frustração parental, a sensação de inadequação, o medo do fracasso e os sentimentos de isolamento vividos pelos superdotados.
Para a coleta de dados, utilizaram-se três estratégias principais: (1) entrevistas semiestruturadas realizadas ao longo dos atendimentos, com questões abertas voltadas à percepção dos participantes sobre sua vivência emocional e familiar; (2) registros de observação clínica, compostos por notas de campo elaboradas pela pesquisadora-terapeuta após cada sessão; e (3) relatos espontâneos dos participantes, colhidos durante o processo terapêutico, sempre com autorização expressa para fins de pesquisa.
A análise dos dados foi realizada por meio da Análise de Conteúdo (Bardin, 2011), em diálogo com procedimentos da Análise de Discurso (Tracy, 2020), com o objetivo de identificar categorias emergentes relacionadas à experiência familiar, ao sofrimento emocional e à construção de vínculos. O material empírico foi organizado e triangulado, respeitando os critérios de fidedignidade, saturação teórica e coerência interpretativa.
Embora o presente estudo tenha se baseado exclusivamente em atendimentos clínicos individuais e familiares, a proposta metodológica de Grupos Operativos Online é discutida como estratégia de ampliação futura, diante das potencialidades identificadas ao longo da intervenção. Essa proposta será fundamentada na discussão teórica e apresentada como uma diretriz para o desenvolvimento de ações clínicas e comunitárias de maior alcance e sustentabilidade.
Todos os procedimentos da pesquisa foram conduzidos em conformidade com os princípios éticos estabelecidos pela Resolução nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde (BRASIL, 2016), assegurando o respeito à autonomia, privacidade e confidencialidade dos participantes.
4. RESULTADOS E DISCUSSÃO
As intervenções psicoterapêuticas realizadas com indivíduos superdotados e seus familiares revelaram um conjunto expressivo de vivências emocionais marcadas por ambivalência, solidão, sobrecarga parental e tensão nas relações familiares. A análise das entrevistas, registros clínicos e relatos espontâneos possibilitou a identificação de três grandes núcleos temáticos: (a) invisibilidade do sofrimento psíquico no contexto da superdotação, (b) sobrecarga emocional nas figuras parentais, e (c) potência transformadora da escuta clínica e do vínculo terapêutico.
No primeiro núcleo, observou-se uma constante nos relatos dos participantes: a sensação de que o sofrimento emocional de pessoas com AH/SD é sistematicamente subestimado ou negado, tanto por familiares quanto por profissionais da educação. Relatos como “me dizem que não posso sofrer porque sou inteligente” ou “ninguém acredita que eu estou mal porque tiro nota boa” exemplificam a invisibilidade subjetiva que acompanha esses indivíduos. Esse dado corrobora as observações de Silverman (2012) e Neihart et al. (2016), que identificam uma tendência à medicalização do desempenho e à negligência dos aspectos emocionais em contextos de superdotação. A dessincronia entre desenvolvimento cognitivo e emocional, amplamente discutida por Terrassier (1994), também se manifesta aqui, gerando angústias que permanecem silenciadas em razão das expectativas externas de excelência.
O segundo núcleo se refere à sobrecarga emocional e afetiva vivida por pais e mães de pessoas superdotadas. Muitos relataram sentimento de culpa, confusão, medo do fracasso educacional e, em alguns casos, autoacusação por não conseguirem atender adequadamente às demandas de seus filhos. Uma mãe verbalizou: “sinto que tudo o que eu faço é errado; se sou firme, estou sendo autoritária, se sou flexível, estou sendo omissa”. Tais relatos apontam para uma vivência parental fragilizada, sem acesso a informações qualificadas ou redes de suporte emocional, como também evidenciado em estudos de Freeman (2010) e Dellatorre Andrade et al (2022). Há, nesse ponto, uma sobreposição entre o papel do cuidador e o campo da idealização social: espera-se que pais e mães de superdotados sejam ao mesmo tempo orientadores técnicos, psicólogos, mediadores sociais e educadores, muitas vezes sem qualquer suporte institucional.
Nesse cenário, o trabalho clínico mostrou-se uma ferramenta de reestruturação simbólica e vincular. A escuta oferecida no espaço terapêutico permitiu que tanto os sujeitos com AH/SD quanto seus familiares pudessem nomear suas dores, reorganizar expectativas e ressignificar vivências passadas. A clínica, nesse sentido, funcionou como um espaço transicional (no sentido winnicottiano), onde foi possível experimentar falas não permitidas, romper pactos de silêncio familiar e construir novos sentidos para as experiências. O conceito de holding, central em Winnicott (2001), mostrou-se operante: a presença sustentadora do terapeuta ofereceu um ambiente simbólico capaz de acolher as angústias sem julgamento, condição essencial para a emergência do self autêntico.
Um exemplo dessa função transformadora pode ser visto no caso de uma participante adulta, de 28 anos, que, ao longo do processo, conseguiu associar suas crises de ansiedade atuais às vivências de constante repressão emocional na infância, quando era incentivada a se destacar intelectualmente, mas desautorizada a expressar medo ou frustração. A verbalização dessa memória no setting terapêutico permitiu elaborar simbolicamente a ferida psíquica, promovendo alívio emocional e abertura para novas formas de se relacionar com sua história. Casos semelhantes foram identificados por Pfeiffer (2013), que aponta para a importância da escuta clínica em adultos superdotados não acompanhados na infância.
As intervenções familiares, por sua vez, contribuíram para o fortalecimento dos vínculos, ampliando a escuta empática e promovendo maior compreensão das diferenças entre os membros. A mediação de conflitos, realizada em sessões compartilhadas, possibilitou que familiares enxergassem o outro em sua singularidade, diminuindo projeções idealizadas ou punitivas. Em várias famílias, o processo psicoterapêutico resultou em mudanças concretas de comunicação, reorganização de rotinas e revalorização de afetos historicamente reprimidos.
Com base nesses achados, a proposta de implementação futura de grupos operativos online mostra-se não apenas plausível, mas altamente desejável. Os relatos evidenciam a necessidade de espaços coletivos de acolhimento emocional e troca de experiências entre famílias que compartilham desafios semelhantes. Como apontam Zimerman e Osorio (1997), os grupos operativos promovem reflexão e transformação por meio da análise das interações grupais, favorecendo o autoconhecimento e a construção conjunta de estratégias de enfrentamento. Adaptada para o meio online, essa estratégia poderá beneficiar famílias em diferentes regiões do país, com maior flexibilidade e menor custo operacional, como também destacam Melo et al (2023) ao analisarem os efeitos da psicoterapia online no pós-pandemia.
A análise dos dados obtidos neste estudo confirma, portanto, a hipótese de que a escuta clínica individual e familiar com pessoas superdotadas produz efeitos significativos na organização emocional dos sujeitos e no fortalecimento de suas redes de apoio afetivo. A partir disso, abrem-se caminhos para a criação de políticas públicas e dispositivos clínicos que reconheçam as famílias como protagonistas no processo de cuidado em AH/SD, superando a lógica de responsabilização individualizada e tecnicista que ainda predomina no campo.
5. CONCLUSÃO
A pesquisa aqui apresentada demonstrou que os atendimentos clínicos individuais e familiares com pessoas com Altas Habilidades/Superdotação (AH/SD) e seus cuidadores têm um impacto terapêutico relevante, especialmente no fortalecimento dos vínculos afetivos, no desenvolvimento da escuta empática e na elaboração de angústias subjetivas relacionadas à superdotação. A escuta clínica permitiu acessar experiências emocionais frequentemente silenciadas, marcadas por estigmas e idealizações que cercam a condição da AH/SD.
Os resultados ressaltam a importância de abordagens terapêuticas que reconheçam a complexidade subjetiva desses sujeitos e que incluam seus familiares como parceiros ativos no processo de cuidado. As intervenções inspiradas na psicanálise winnicottiana mostraram-se potentes na promoção da autorregulação emocional e na reconfiguração de vínculos afetivos comprometidos por sentimento de culpa, sobrecarga e silêncio.
Como encaminhamento, propõe-se a criação de grupos operativos online voltados aos familiares de pessoas com AH/SD, como estratégia para ampliar o alcance do cuidado clínico e fomentar redes de apoio coletivas. Essa proposta surge como resposta à escassez de serviços especializados e à demanda crescente por intervenções acessíveis e tecnicamente qualificadas.
Embora os objetivos da pesquisa tenham sido atingidos, a limitação amostral e a ausência de um acompanhamento longitudinal merecem ser consideradas. Investigações futuras, com grupos mais amplos e abordagens metodológicas integradas, podem aprofundar a compreensão dos efeitos terapêuticos identificados.
Reafirma-se a urgência de políticas públicas intersetoriais que articulem saúde mental, educação e suporte às famílias, promovendo uma escuta mais sensível e transformadora da realidade vivida por pessoas com AH/SD.
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1Psicóloga Clínica, Mestre em Psicologia pela UMINHO (Portugal); Mestranda em Psicologia Clínica e da Saúde pela UNEATLANTICO (Espanha). Email: auriciene@lidorio.com.br