REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/pa102025061591402
Bruno Renan Joly
Resumo
Este artigo aborda a noção de risco e vulnerabilidade na profissão policial militar a partir de duas perspectivas: a epidemiológica e a social. Apresento aqui a ideia de que para pensar de forma crítica a segurança pública, é preciso entender o policial militar como um trabalhador, dar voz a esses profissionais da segurança pública, em especial os agentes que compõem a linha de frente da Polícia Militar, ou seja, os praças. Apresento a ideia de risco como epidêmico na medida em que há a junção de uma polícia estruturada sob os princípios do militarismo em uma sociedade democrática em conjunto com orientações institucionais que estimulam o confronto bélico configura um contexto extremamente perigoso para os policiais militares que trabalham nas ruas. Já a abordagem social a respeito do risco na profissão policial militar envolve aspectos como o gosto pelo afrontamento ou pela ousadia, e pode ser compreendida por duas vias: a primeira é a que passa pela formação policial e uma segunda que passa por questões institucionais como premiações e incentivos a ações policiais que potencializam o risco. Este artigo é fruto de minha pesquisa de mestrado em sociologia e conta com trechos de entrevistas dadas por policiais miliares ao autor deste trabalho.
Palavras-chave: risco; vulnerabilidade; polícia militar; segurança pública.
Introdução
Esse artigo aborda a ideia de risco na profissão policial militar a partir de duas perspectivas: a epidemiológica e a social. A primeira delas, a epidemiológica, põe em discussão o fato de que, para além de ser um traço característico ou inerente à profissão de policial militar, a noção de risco pode ser potencializada em função da adoção de determinadas estratégias de administração de conflitos e difusão de discursos restritos ao ambiente da caserna que estimulam o enfrentamento bélico. A outra perspectiva, ou seja, a social traz à luz do debate o fato de que para além do gosto pessoal que o policial pode ter pelo enfrentamento, pela adrenalina e pelo risco, esse apreço é demasiadamente estimulado ao longo de toda carreira do profissional.
Nesse sentido, um dos objetivos a serem alcançados ao longo do processo de formação do policial está justamente na difusão de valores que estimulam o indivíduo que está se formando ao enfrentamento. Esse suposto apreço pela adrenalina, pelo risco é estimulado visto as constantes honrarias e premiações que as corporações militares tendem a conceder a PMs, elevando-se dessa forma sua estima perante os colegas de farda e elevando-se, também, a possibilidade de vitimização.
Este artigo conta com trechos de entrevistas dadas por profissionais da segurança pública ao referido autor deste trabalho entre os anos de 2015 e 2017 para a produção de uma dissertação de mestrado em sociologia (Joly, 2017).
O risco na profissão policial militar
Falar sobre a noção de risco na profissão policial militar exige seguir por uma via diferente da tradicional quando se procura compreender essa instituição a partir do prisma sociológico. Muito se tem escrito e falado sobre a violência policial nos últimos anos, suas causas e consequências desde os trabalhos de Pinheiro (1979) e Paixão (1982), pioneiros na área.
Para falar sobre a noção de risco na profissão policial militar, no entanto, há uma grande demanda por reflexões acerca do cotidiano do policial militar, sobre o que os policiais pensam a respeito do seu trabalho e da segurança pública. É necessário entender a subjetividade policial militar pois, como diz Muniz (1999, p.44),
[…] são raros os trabalhos históricos que tem se ocupado em tentar resgatar os aspectos cotidianos das atividades de polícia, como as interações dos policiais e as pessoas nas tarefas rotineiras de patrulhamento ou ainda nas contingências surgidas das ruas.
Para que isso seja feito é necessário, então, entender o policial militar como um trabalhador, dar voz a esses profissionais da segurança pública, especialmente os agentes que compõem a linha de frente da Polícia Militar, aqueles que estão diariamente no “front de batalha”, ou seja, os praças da polícia militar: soldados, cabos e sargentos que, devido a sua posição hierárquica, estão mais sujeitos ao risco e à vitimização (SOUZA e MINAYO, 2005, p.922; MIRANDA, 2016). A noção de risco constitui-se em elemento que não só faz parte do dia a dia desses indivíduos envolvendo tanto sua vida profissional quanto sua vida pessoal, como é elemento estruturante de sua profissão (MINAYO, 2008). Devido a isto, a noção de risco será aqui problematizada na tentativa de pensar polícia militar e segurança pública, de modo mais geral, a partir da perspectiva dos policiais militares.
Abordagem epidemiológica do risco
A noção de risco no trabalho policial militar deve ser compreendida sob duas abordagens: a epidemiológica e a social:
[…] essa noção [a epidemiológica] diz respeito, ao mesmo tempo, à probabilidade das ocorrências de lesões, traumas e mortes e ao significado da escolha profissional que traz intrínseca o gosto pelo afrontamento e pela ousadia como opção e não como destino. […] o conceito de risco desempenha um papel estruturante das condições laborais, ambientais e relacionais para esse grupo social, uma vez que seus corpos estão permanentemente expostos e seus espíritos não descansam. Eles vivem o que Giddens (2002) denomina de “risco de alta consequência” (SOUZA e MINAYO, 2005, p.920).
O risco pode ser compreendido, então, de duas maneiras: em primeiro lugar, como sendo algo inerente a profissão de policial militar. Ser praça das polícias militares no Brasil significa expor o corpo diariamente durante o trabalho de patrulhamento ostensivo das ruas, o que pode levar a lesões, traumas físicos e psicológicos, além do óbito dada a possibilidade de enfrentamento armado com civis envolvidos em atividades ilícitas e a convivência com situações de forte impacto emocional:
“Eu matei dois jovens de 15 e 17 anos. […] Você acha que eu me sinto bem sabendo que eu matei duas pessoas?
(Cabo PMESP, 25 anos de serviços).
“O primeiro impacto que eu tive na minha vida como policial militar foi ver um acidente de trânsito onde tinha uma criança de dois anos morta dentro de um fusca no banco de trás. Foi muito impactante”.
(Cabo PMESP, 20 anos de serviços).
Sendo a polícia militar a instituição base da estrutura de segurança pública existente no Brasil, requisitada a administrar conflitos das mais variadas ordens, situações como as descritas acima acabam por ser corriqueiras na vida profissional dos indivíduos que servem a ela. Devido a isso, a noção epidemiológica é, de certa forma, intrínseca a profissão policial militar e é, também, resultante de um contexto sociopolítico em que esse policial atua, um contexto de crescimento da criminalidade violenta representado pelo crescimento dos homicídios, do tráfico ilegal de armas de fogo, emergência do tráfico de drogas como instância normativa, além da expansão da corrupção policial (ZALUAR, 1985, 2007; PERALVA, 2000, FELTRAN, 2009).
Junto a isso temos o enfrentamento armado dessa criminalidade, representado sobretudo pela política atual de “guerra as drogas” como a principal política de segurança pública. Assim, a noção de risco torna-se epidemiológica porque ser policial militar pode representar a convivência diária com o “mundo do crime” (Feltran, 2009) e possibilidade diária de entrar em confronto com o mesmo.
Pensando ainda no contexto atual em que o trabalhador policial militar está inserido, existe um fator que colabora sobremaneira para que o risco que envolve a profissão seja potencializado: orientações recebidas por policiais militares e que estimulam o enfrentamento armado. Tais orientações podem vir tanto de indivíduos que ocupam cargos em instituições como a secretaria de segurança pública como também de indivíduos oriundos das fileiras militares que agora ocupam cargos eletivos na política brasileira. A crise na segurança pública de São Paulo, conhecida como “crimes de maio de 2006”, ilustra bem essa ideia.
Em maio de 2006, uma série de rebeliões estouraram simultaneamente em presídios paulistas ao mesmo tempo em que dezenas de agentes públicos como policiais militares e agentes penitenciários foram mortos por integrantes do PCC – Primeiro Comando da Capital. A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP/SP), junto ao governo do estado de SP, na época administrado por Cláudio Lembo – filiado ao extinto Partido da Frente Liberal (PFL), atual Democratas (DEM) -, atribuíram como motivação dos ataques o fato de que presidiários ligados ao PCC estavam sendo transferidos para penitenciárias diferentes no interior do Estado, ação que tinha como objetivo dificultar a organização do PCC. Essa foi a versão oficial dada pelo governo do estado para explicar os ataques. Contudo, segundo o documento produzido pela Justiça Global (2011), a megarrebelião orquestrada pela organização criminosa, assim como os ataques a policiais militares principalmente durante suas folgas, foram uma espécie de retaliação à práticas de extorsão cometidas por agentes do Estado contra integrantes da facção criminosa. Segundo o documento,
[…] a corrupção praticada por agentes públicos foi uma das principais motivações do PCC para realizar os ataques em maio de 2006, especificamente, um esquema de achaques (extorsão), praticados contra familiares e líderes do PCC em 2005 (JUSTIÇA GLOBAL, 2011, p.4).
Tais extorsões culminaram, segundo o relatório da Justiça Global, no sequestro e posterior exigência de pagamento de resgaste de um enteado de Marcola, como é conhecido Marcos Wilians Herbas Camacho, principal liderança do PCC.
O governo do Estado já havia sido alertado sobre a possibilidade de rebeliões em massa no dia das mães daquele ano, sabia que os ataques ocorreriam e falhou em alertar seus agentes para que se precavessem. Segundo o documento, “[…] mais do que demonstrar a força do PCC, os Crimes de Maio revelaram um Estado que […] falhou ao não proteger seus agentes públicos” (2011, p.3). Ainda na esteira do que diz o relatório,
O PCC matou dezenas de agentes públicos, todos de baixo escalão. Geralmente, os funcionários foram surpreendidos em seu horário de folga, nos primeiros dois dias de onda de violência, em razão da falha do governo em alertar devidamente seus policiais e agentes penitenciários sobre o ataque que já havia sido anunciado (JUSTIÇA GLOBAL, 2011, p.27)
Além da megarrebelião, equipe de governo e secretaria de segurança pública do Estado de São Paulo, à época dos atentados, já estavam cientes, também, de que ataques a seus agentes, tanto policiais militares de baixas patentes como agentes penitenciários, poderiam ocorrer. E nada foi feito por parte das instituições estatais a fim de proteger seus servidores.
Não é novidade que dentre os policiais militares são justamente os que ocupam as mais baixas posições hierárquicas que são mais vitimizados em decorrência da profissão. Não é novidade também que a maior parte das vitimizações ocorre no horário de folga dos policiais (MINAYO 2008; SOUZA e MINAYO, 2005; MIRANDA, 2016; MUNIZ, 1999). Contudo, em muitas das vezes em que a vitimização policial acontece, ela se dá em situações mais difíceis de serem previstas pelos policiais ou pelas instituições de segurança pública pelo fato de acontecerem em meio ao cotidiano desses profissionais sem que haja uma grande crise da segurança pública deflagrada ou mesmo uma situação de extrema delicadeza como a dos ataques do PCC em 2006. Isso não exime, porém, a administração estatal, comandante maior das polícias e nem a secretaria de segurança da responsabilidade para com a vida de seus subordinados.
Algumas das situações em que os policiais são vitimizados fora de seu horário de trabalho geralmente se configuram pelo fato de esses profissionais residirem nas mesmas localidades em que trabalham ou próximas a elas. Quem determina o itinerário de patrulhamento dos policiais são seus oficiais superiores, portanto, a própria instituição policial pode colaborar para que o risco de vitimização seja maximizado ao designar uma determinada área para que um determinado policial patrulhe. Outra situação passível de vitimização policial se configura na égide do chamado “espírito militar”, elemento que resulta do processo de formação do militar e que “não permite” que um policial à paisana deixe uma situação como a de um assalto, por exemplo, passar em branco, ou seja, na tentativa de intervir e interromper uma ação criminosa durante sua folga, o policial se expõem e pode ser baleado.
O espírito militar advém do tipo de preparação e formação que os policiais recebem, sendo a polícia considerada como uma espécie de sacerdócio pelos policiais, como disse em entrevista o ex-comandante da ROTA (Rondas Ostensivas Tobiar de Aguiar) – tropa de elite da polícia militar paulista -, Coronel Alberto Malfi Sardilli1. A subjetividade do policial é moldada de modo que o ethos, o espírito militar e guerreiro do policial não seja “esquecido” mesmo nos seus horários de folga. Ele sente-se, então, obrigado a intervir numa ocorrência, correndo assim risco de ser vitimizado.
Uma terceira situação que pode elevar o risco entre os policiais remete ao chamado “bico”, serviços de segurança particular que PMs vinculados a empresas privadas de segurança oferecem com o objetivo de complementar sua renda (MINAYO, SOUZA e CONSTANTINO, 2007, p.2776). Sobre isso, a problemática referente a responsabilidade da administração estatal sobre a amplificação do risco a que o PM está submetido diz respeito ao fato de que se é necessário fazer “bico” para complementar renda, isso significa que questões trabalhistas como os salários dos policiais militares devem ser revistas.
Essa questão dos bicos ganha especial relevância pelo fato de que tal prática é proibida pelos regulamentos disciplinares que norteiam o comportamento do policial militar tanto dentro quanto fora dos quarteis. Segundo o parágrafo 1º do artigo 8º do capítulo II, intitulado “Da deontologia Policial Militar”, constante da seção III do Regulamento Disciplinar da Polícia Militar de São Paulo, é vedado aos policias militares a “execução de atividades profissionais ligadas à segurança privada, comércio ou tomar parte da administração ou gerência de sociedade comercial ou dela ser sócio ou participar, exceto como acionista, cotista ou comanditário”.
A notoriedade do problema encontra-se no fato do duplo risco existente no cotidiano de um PM que necessite fazer bicos para suplementar sua renda. Em primeiro lugar, caso o/a trabalhador/a não faça o “bico” há o risco de se enfrentar dificuldades financeiras; em segundo lugar, caso o/a funcionário/a da polícia militar opte por realizar atividade remunerada em paralelo com seu trabalho na corporação militar, estará sujeito a punições.
Mas, ainda assim e apesar da responsabilidade (in)direta do Estado nessas situações citadas acima, não se pode ignorar que são cenários em que a capacidade de intervenção das instituições de segurança em prol de seus agentes torna-se mais limitada, com exceção, talvez, da questão salarial e dos bicos. Diferentemente do que ocorreu em 2006.
Segundo um cabo da polícia militar de São Paulo (PMESP), em depoimento para o relatório produzido pela Justiça Global, “[…] Se tivessem sido avisados, não teriam morrido tantos policiais. Não foram avisados. Os policiais não estavam sabendo de nada” (JUSTIÇA GLOBAL, 2011, p.62). Dessa forma, as mortes dos agentes de segurança pública em 2006 poderiam ter sido evitadas ou minimizadas.
Uma fala atribuída a Saulo de Castro, então secretário de segurança pública de São Paulo em maio de 2006, evidencia a postura adotada pelo governo do Estado e pela secretaria em relação ao episódio. Sobre como lidar com o ataque de criminosos contra policiais, Saulo de Castro disse: “distribua os armamentos de grosso calibre e vamos partir pra cima” (JUSTIÇA GLOBAL, 2011, p,4). A fala do secretário faz pensar sobre duas coisas: 1) o tipo de política de segurança adotada em São Paulo: a opção primordial pela estratégia militarizada de combate ao crime (SINHORETTO, 2014); e 2) quem de fato pegou os armamentos e “partiu para cima” foram os policiais, especialmente os praças da PM – soldados, cabos e sargentos -, aqueles que estão na linha de frente da instituição policial militar, os mesmos que são os mais vitimizados e que, no contexto de maio de 2006 eram os alvos prioritários dos integrantes do PCC. Os policiais não foram devidamente avisados sobre os ataques e, além disso, foram mandados para o enfrentamento armado. Isso evidencia a pouca preocupação dos gestores da segurança pública para com a vida de seus profissionais.
A ideia de segurança púbica é definida constitucionalmente como “[…] dever do Estado, direito e responsabilidade de todos” (Art. 144, Constituição Federal). Para além disso, a ideia de segurança pública com a qual as forças policiais operam constitui, segundo Minayo e Adorno (2013 p.589),
[…] a garantia que o Estado oferece aos cidadãos, por meio de organizações próprias, contra todo o perigo que possa afetar a ordem pública, em prejuízo da vida, da liberdade ou dos direitos de propriedade. A promoção da Segurança Pública é a essência da missão dos policiais e deriva do campo jurídico.
As ações das instituições e dos agentes de segurança pública deveriam pautar-se pela preservação da vida. No entanto, o modo como as instituições de segurança pública lidaram com os ataques do PCC em maio de 2006 dá indícios de que o pensamento que norteia suas ações é justamente o contrário da ideia que Minayo e Adorno (2013) difundem. Ao que parece, pouca atenção é dada por essas organizações à preservação de vidas, seja dos profissionais que atuam na base da segurança pública, seja dos que compõem o corpo social como um todo. Isto porque,
[…] Quando o auge dos ataques do PCC havia passado, os comandos das polícias incentivaram e/ou aceitaram uma resposta violenta e indiscriminada por parte de seus subordinados e foram complacentes com violações de direitos humanos em grande escala contra a população de São Paulo, em especial os moradores de áreas pobres. (JUSTIÇA GLOBAL, 2011, p.27).
Era de se esperar que os policiais militares fossem reagir de alguma forma após os ataques que sofreram da organização criminosa. Dessa forma, as instituições estatais – equipe de governo e secretaria de segurança – e o comando geral da polícia militar não só incentivaram que os policiais “partissem pra cima” como legitimaram ações violentas da polícia contra a vida de vários indivíduos, especialmente os pobres moradores de periferias que, devido a essa condição, foram assassinados em massa como retaliação da polícia militar aos ataques do PCC. O interessante nessa questão é o fato de que, segundo o relatório da Justiça Global, a megarrebelião e os ataques a PMs tiveram início após uma série de extorsões e corrupções praticadas por agentes da polícia civil. As ações do PCC foram uma resposta a isso. No entanto, o papel do estado como protagonista dos “crimes de maio” foi ignorado. A repressão e a punição dada pela PMESP recaiu sobre as populações periféricas de São Paulo. Ao fim de todo esse conflito, a maior quantidade de vidas perdidas situava-se entre esse segmento social, fossem as vítimas ligadas a atividades criminosas ou não.
Nesse sentido, portanto, o risco na profissão policial militar é epidêmico: a junção de uma polícia estruturada sob os princípios do militarismo em uma sociedade democrática em conjunto com orientações institucionais que estimulam o confronto bélico configura um contexto extremamente perigoso para os policiais militares que trabalham nas ruas. A partir disso o risco e a vitimização na profissão policial tem raízes não só no enfrentamento cotidiano da criminalidade, mas os próprios gestores da segurança pública ao negligenciarem o âmbito investigativo, ao não promoverem políticas de proteção aos seus agentes devem ser responsabilizados pelas mortes dos mesmos.
Abordagem social sobre o risco
A abordagem social a respeito do risco na profissão policial militar envolve aspectos como o gosto pelo afrontamento ou pela ousadia, e pode ser compreendida por duas vias: a primeira é a que passa pela formação policial e uma segunda que passa por questões institucionais como premiações e incentivos a ações policiais que potencializam o risco.
A literatura sociológica já produziu diversos estudos sobre o processo de formação militar (FOUCAULT, 1987; FRANÇA, 2015a; 2015b; 2014; SOUZA, 2013; MUNIZ, 2001; GUIMARÃES et. al, 2005). Esses estudos apontam, com maior ou menor ênfase, para a questão do desenvolvimento daquilo que Castro (2004) vai chamar de espírito militar ou, segundo a conceitualização de Zaluar (2007) ethos guerreiro. Tais estudos remetem a um processo de formação do policial militar que é desenvolvido com vistas a tornar o policial severo, duro, resistente à dor e ao sofrimento tanto físico quanto psicológico com o objetivo de fazê-lo mais “preparado”, mais apto para o confronto. Tais características estão relacionadas a um ethos, a uma subjetividade ou, utilizando das palavras de Muniz (1999), “uma razão de ser” que se baseia na exaltação de valores machistas, num ideal de virilidade, em comportamentos tidos como masculinos e que reproduzem atitudes e discursos sexistas (FRANÇA, 2014). Sobre isso, Adorno (2006, p.5) diz que
[…] a ideia de que a virilidade consiste num grau máximo de suportar dor que há muito se converteu em fachada de um masoquismo que (…) se identifica com o sadismo. O elogiado objetivo de “ser duro” de uma tal educação significa indiferença contra a dor em geral (…) Quem é severo consigo mesmo adquire o direito de ser severo também com os outros, vingando-se da dor cujas manifestações precisou ocultar e reprimir.
O processo de formação policial enseja, portanto, a ação violenta, truculenta, a ousadia ou o “elogiado objetivo de ser duro” de forma que, demonstradas tais características, o policial militar será digno da farda, será parte integrante do grupo uma vez que tais ideias estão associadas a um ideal de masculinidade que constitui parte fundamental na estrutura de relações interpessoais que se dão no interior de uma instituição com fortes traços sexistas. Nesse sentido, França (2014b, p.80) coloca que
Em meio ao enaltecimento de uma cultura de valorização da virilidade, […] o sofrimento surge como outra característica importante na formação PM para a consolidação do ethos guerreiro, pois, como nos diz Bertaud (2013) sobre se conseguir um “brevê de virilidade militar”, os recrutados não o obtém senão após um rude aprendizado em que não faltam nem os sofrimentos físicos nem as dores morais. Os ritos de passagem aos quias são submetidos transformam seu corpo e marcam para sempre seu espírito.
O processo de formação do militar constitui-se, segundo Castro (2004) num intenso processo de socialização secundária no qual o indivíduo que ingressa nas fileiras militares “[…] ‘muda de mundos’ e em que há uma ‘intensa concentração de toda interação significante dentro do grupo’” (Idem, op.cit., p.35). Sendo as interações que ocorrem no interior das corporações militares estruturadas pela imposição do sofrimento e de situações consideradas humilhantes essa marca tende a ser reproduzida nas ações orquestradas por policiais militares que atuam nas ruas em contato direto com a sociedade civil:
- Entrei em 92 e no meu primeiro dia de curso, eu lembro que eu fui, como todos os outros que estavam com a gente, eu fui humilhado. Isso no primeiro dia… a humilhação dizendo que a partir desse momento a sua vida é nossa, vocês fazem o que a gente quer, vocês são subumanos e outras palavras que não me recordo. E esse foi o primeiro dia.
[…]- Achei estranho, né? Se eu tô aqui pra – pensando hoje, né? – se eu tô aqui pra fazer parte da sociedade, defender a sociedade, ser recebido desse jeito? Você vai estranhando isso aí…
[…]
Será que faz parte do curso pra que a gente se torne mais guerreiro, mais combatente?
E no decorrer do curso muitas coisas aconteceram, muitas humilhações que eu creio serem desnecessárias na vida de um policial, como por exemplo: se arrastar pelo banheiro. Você tá dormindo e te acordarem a socos e ponta- pés, te jogarem no chão. Não só eu, todos os companheiros da época, né?
[…]- Me trata como um ser humano desde o primeiro dia de formação q eu vou ser um bom ser humano na rua. Me trate como um bandido dentro da PM que eu vou ser um bandido contra a sociedade e a favor do Estado
(Cabo PMESP, 25 anos de serviços).
Assim, vê-se que a abordagem social acerca do risco envolve o processo de formação pelo fato de que o modo como este se estrutura reverbera na atuação profissional do policial que, quando flagrado se utilizando do uso excessivo da força durante uma abordagem ou na contenção de manifestações populares pode suscitar na sociedade civil um sentimento de aversão e expor esse profissional a possíveis reações da mesma.
A abordagem social do risco pode também englobar aqueles policiais que o tem como parte integrante do seu dia a dia por opção. Pesquisas apontam que esse é um dos motivos elencados por policiais para o ingresso nas fileiras militares. Como diz Minayo (2008, p.187- 88),
A percepção e a vivência do risco pelos policiais militares tem também uma conotação positiva […] como o próprio sentido e movimento da existência. Quem não se arrisca está fadado à morte no sentido real e simbólico. Portanto, os policiais militares falam sobre ou aludem ao apelo à aventura e à adrenalina que a profissão lhes proporciona. […] A adrenalina produzida pelo inusitado, segundo os policiais, os “vicia” e os motiva para a ação.
Entretanto, não se pode deixar de considerar o fato de que a formação policial baseada no sexismo, na valorização de um policial “herói” cujo o corpo e a mente são, em tese, capazes de suportar toda sorte de dor e sofrimento não corrobore e colabore para que a exposição ao risco seja potencializada.
Outro aspecto institucional que influi de modo a elevar o risco entre os agentes de segurança pública são os prêmios e honrarias dados àqueles policiais que agem, segundo critérios da caserna, com “bravura”. Tal prática não é recente no interior da polícia militar. Barcellos (2014) já apontou isso em sua pesquisa acerca da atuação ROTA durante a ditadura militar. Tanto mais reconhecido e valorizado o policial será perante seus colegas de farda quanto mais combatente ele for, recebendo elogios e incentivos de seus superiores. O seguinte excerto extraído por Barcellos (2014) de boletins internos da ROTA é cabal para a elucidação dessa ideia:
[…] surpreendeu dois marginais no momento em que carregavam o produto do furto… travou tiroteio na hora de efetuar suas detenções, sendo que um deles veio a ser alvejado, falecendo ao dar entrada no PS de São Miguel Paulista… com o marginal morto foram apreendidas duas armas de fogo e todo produto do furto, que foi restituído ao seu legítimo proprietário… Demonstrando assim coragem, arrojo e abnegação à causa abraçada, fazendo-se merecedor dos cumprimentos deste comando…” (Boletim interno da Rota de número 154, assinado em 22 de outubro de 1982) (BARCELLOS, 2014, p.185).
A leitura sobre o trecho destacado permite perceber que o confronto policial registrado no boletim de 1982 resultou na morte dos marginais, identificados enquanto tal pela própria polícia, ou seja, permite induzir que houve confronto entre policial e supostos criminosos. Permite observar, também, a satisfação dos superiores para com seu subordinado em função de seu ato de “coragem, arrojo e abnegação da causa abraçada”.
A premiação ou exaltação do policial que se engaja no confronto armado persiste ainda hoje. Relatos dados por policiais militares à Joly (2017) permitem fazer tal afirmação. Ao falar sobre sua experiência como policial, um cabo da polícia militar narrou a seguinte experiência:
- […] comecei a viver na polícia, achar que o que eu tava fazendo era certo, a ponto de você acordar de madrugada e ir até a base da PM onde você trabalha e convidar os amigos pra ir lá porque chegou droga na favela, no morro e que o informante ligou e que a gente ia, e eu ia pra lá… Eu vivia a polícia 24 horas, eu só vivia da polícia, eu achava que ia mudar tudo, que eu ia resolver tudo, ao ponto de eu abandonar tudo e viver pra polícia.
Eu fui agraciado com medalhas, fui o policial do mês, eu era o policial mais respeitado daquela região, eu prendia todo mundo. Os ladrão tinha medo… Então isso vai enchendo o seu ego, vai enchendo… você vai se sentindo
importante, você vai se achando, vai achando que é o super polícia. E aquilo vai alimentando, vai alimentando, alimentando até não ter mais volta…(Cabo PMESP, 20 anos de serviços).
Mais uma vez vê-se a exaltação e valorização do profissional que se expõe demasiadamente, por vontade própria e para além do seu horário de trabalho. Viver polícia 24 horas significa não desvencilhar-se do ethos guerreiro, significa que “seus corpos estão permanentemente expostos e seus espíritos não descansam” (SOUZA e MINAYO, 2005, p.920), significa expor-se a situações em que mesmo a instituição policial não estará preparada para dar o suporte necessário como, por exemplo, subir o morro de madrugada devido a um telefonema dado por um informante. No entanto, em detrimento de uma repreensão ou aconselhamento sobre tamanha exposição, o policial é agraciado com medalhas ou com o título de policial do mês.
Tal questão é problemática e eleva o risco e a possibilidade de vitimização dos agentes de segurança pública não só pelo fato de eles se encontrarem constantemente em situações de risco, mas devido também ao fato de que ao se expor de tal maneira o policial pode tornar-se conhecido, visado por uma organização criminosa que atue em determinado território. Assim, emboscadas podem ser armadas para este policial, em especial durante seu horário de folga, culminando na sua vitimização.
Isto posto, por mais que a vivência do risco possa ser derivada de uma escolha pessoal, mais uma vez não se pode negligenciar o papel da instituição militar, por intermédio dos valores por ela disseminados durante a formação e depois no cotidiano da caserna, como fatores que fazem do risco e da vitimização mais do que uma possibilidade constante, mas sim uma realidade cotidiana em meio a esses profissionais.
Risco e vulnerabilidade na profissão policial militar
Uma vez expostos os significados das abordagens epidemiológica e social e o papel das instituições de segurança pública e seus gestores a respeito da potencialização do risco na profissão policial militar, faz-se necessário discorrer sobre aspectos que giram em torno da dinâmica cotidiana do trabalho policial militar e que fazem dessa uma profissão de risco.
Segundo Dejours (1992, p.63-64),
Algumas categorias profissionais são expostas a riscos relacionados à integridade física. […] Os riscos estão relacionados ao corpo do indivíduo. […] Podemos descrever diversas características destes riscos: o risco é exterior e na maioria das vezes, inerente ao trabalho; independente, então, da vontade do trabalhador. Por outro lado, frequentemente, […] o risco é coletivo.
A ideia de risco relacionado ao corpo como sendo inerente ao trabalho e, portanto, exterior ao indivíduo, cabe perfeitamente na profissão policial militar. Isso nos remete a existência de uma oposição entre o risco como opção pessoal e o risco como falta de alternativa. Os policiais militares, em especial aqueles que realizam o trabalho ostensivo de patrulhamento das ruas, são aqueles que menos tem poder decisório e de intervenção quanto à elaboração de políticas voltadas à área da segurança pública e mesmo na organização interna do trabalho. Estes profissionais, em específico, encontram-se, como diz Lotin (2016), “em situação de extrema vulnerabilidade”, sendo esta definida como pessoa ou grupo de pessoas susceptível de ser exposto a danos físicos ou morais devido à sua fragilidade.
Lotin (2016) elenca alguns aspectos que fazem parte do cotidiano de um praça da polícia militar e que contribuem para que esse grupo se encontre numa situação de risco ou vulnerabilidade, como: 1. Estão na ponta do sistema; 2. São os primeiros a chegar; 3. Vivem o dia a dia da violência; 4. O modelo militar os cobra sobremaneira, sendo que muitas vezes não dá condições devidas para o desempenho da função; 5. Não raras vezes são “culpados” na prática, pela má gestão, falta de investimentos, falta de política de segurança pública (são os praças que são hostilizados no dia a dia por conta das deficiências do estado e do modelo de segurança pública); 6. O estado os cobra, os gestores os cobram e a sociedade os hostiliza. Internamente são os mais suscetíveis aos abusos de poder, torturas físicas e psicológicas (vide regulamentos arcaicos).
Percebemos, portanto, que apesar de o risco ligado à profissão policial militar poder ser interpretado como uma opção pessoal, essa característica do trabalho é, em boa parte, exterior ao indivíduo e, devido a questões hierárquicas e organizacionais, independe dele.
Os praças, por estarem na ponta do sistema de segurança pública, por serem os profissionais que ocupam as posições hierárquicas mais subalternas são aqueles que mais vivenciam o cotidiano da violência na prática, a violência das ruas, a violência que vitimiza civis e os próprios policiais. Por isso são os profissionais de segurança pública mais conhecidos, mais vistos pela população que, ao questionar a atuação das instituições de segurança pública pode incorrer no equívoco de atribuir toda a responsabilidade da má gestão desta área, de sua ineficiência e ineficácia no combate à criminalidade, aos policiais militares. O risco na profissão policial militar extrapola o âmbito da individualidade, da subjetividade própria daqueles que o tem como opção pessoal, tornando-se, como diz Dejours (1992, p.64), “[…] via de regra, coletivo, na maioria das situações de trabalho”. O risco é coletivo e é a regra, portanto, devido a fatores que são externos aos indivíduos policiais militares, que independem de sua vontade.
Segundo pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2015)2, “a percepção do risco entre esses profissionais é elevada em todos os tipos de situação: 37,1% tem medo de morrer em serviço; 32,1% fora dele; e 29,6% tem medo independente se estão em serviço, fora dele ou no exercício de outras atividades profissionais”. Nessa esteira, a percepção do risco entre os praças da PM é permanente e coletiva devido a estratégias de enfrentamento do crime e administração dos conflitos que se baseiam, entre outras coisas, nas prisões em flagrante e apreensão de drogas e armas (SOARES, 2015; SCHLITLLER, 2016), fato que expõe sobremaneira os praças, risco esse que “[…] mesmo se […] combatido por medidas e regras de segurança, ele quase sempre conta com uma prevenção incompleta pela organização do trabalho” (DEJOURS, 1992, p.64).
Essa prevenção incompleta do risco ficou evidente na postura adotada em 2006 por Saulo de Castro, secretário de segurança pública de São Paulo à época dos ataques do PCC, que incitou os incitou ao embate num contexto de ataques a bases e viaturas da PM.
Em outra pesquisa, desta vez realizada pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) intitulada “Perfil dos cargos das instituições estaduais de segurança pública: estudo profissiográfico e mapeamento de competências”, publicada no ano de 2012, foram elencados diversos fatores vistos pelos próprios policiais militares como dificultadores da realização do seu trabalho3, além de terem sido elencados aspectos facilitadores do mesmo e de ter sido feita uma espécie de gradação das tarefas que consideram mais importantes e mais difíceis de serem realizadas. Quanto a esta última, uma das conclusões que o documento aponta é a seguinte:
Zelar pela sua integridade física e pela dos companheiros” foi considerada a mais importante, além de ser a mais frequente. Está relacionada ao caráter ostensivo da atividade do policial militar e aos riscos inerentes à profissão, indicando ainda a necessidade de uma maior atenção por parte dos gestores, considerando que os respondentes relataram possuir domínio relativamente baixo desta tarefa. Outras tarefas de maior importância foram “Fazer abordagens, buscas e vistorias em pessoas e veículos” e “Preservar o local de crime”, ambas também consideradas com dificuldade média a alta e realizadas periodicamente (BRASIL, 2012, p.28).
Zelar pela integridade física própria e pela dos companheiros é uma tarefa inerente à profissão de policial militar visto a função desempenhada pelo mesmo. Contudo, quando esta se torna, a partir da perspectiva dos mesmos, a mais frequente e mais importante das tarefas a ser realizada, algo pode estar errado. Por mais que o caráter da função seja ostensivo, isso demonstra a sensação de insegurança cotidiana entre os policiais militares decorrente não só da essência da profissão, mas também da falta de preparo dos policiais, visto que, segundo o excerto acima, esses profissionais relatam não possuir domínio completo para executar a tarefa de zelar pela própria integridade e a dos companheiros.
A responsabilidade pelo fato de não se sentirem preparados para tal tarefa deve ser atribuída, em última instância, a Secretaria de Segurança Pública e ao governo do Estado, responsáveis maiores pelas instituições de segurança pública. Dessa forma, se o policial não se sente preparado para proteger a si mesmo, como poderá proteger a sociedade?
Considerações finais
Para concluir, é importante salientar aqui o fato de que se o policial que patrulha as ruas julga não ser plenamente apto, técnica e profissionalmente falando, na preservação de sua integridade e na de seus companheiros em uma situação de confronto armado, há de se levar em consideração a constante presença da morte no seu dia a dia, seja a morte por ele causada, seja o medo de morrer, seja a experiência de perder colegas de trabalho diariamente. Esse aspecto do trabalho policial, a presença cotidiana da morte, pode acarretar em uma série de patologias psíquicas oriundas de um grande estresse emocional como o medo, insônia, ansiedade, nervosismo, autoculpabilização, raiva, tristeza, vergonha e depressão (Minayo e Adorno, 2013) além de torná-los mais vulneráveis aos pensamentos e atos suicidas (Miranda, 2016), atos corriqueiros no interior das corporações policiais militares e que tem recebido pouca atenção das instituições de segurança pública.
Outra consequência do convívio diário com o risco de vitimização é o desenvolvimento nos policiais de uma espécie de banalização da morte, das situações de confronto que, mais do que naturalizadas, podem ser encaradas como algo jocoso (Idem, 2013). O relato trazido por Minayo e Adorno (op.cit., p.2205) de um gestor operacional da polícia militar exemplifica bem isso:
Há uma carga de anormalidade muito grande que nós naturalizamos como normal. Eu volto, a viatura toda furada, e eles rindo. Falam assim: “Puxa vida! Quase pegou você”!
Todas essas situações podem ser encaradas como reflexo da convivência diária com o risco de vitimização, risco esse que não é fruto, essencialmente, da opção pessoal pelo enfrentamento, ou seja, o risco exacerbado que permeia o cotidiano dos praças da polícia militar na contemporaneidade é menos uma opção de destino e mais fruto de políticas de segurança pública que optam majoritariamente pelo militarismo como doutrina estruturante tanto do modo como o trabalho desses profissionais é realizado nas ruas como também das relações sociais desenvolvidas pelos militares no interior de suas corporações, local no qual até mesmo falar pode ser considerado um risco (Muniz, 1999) visto a possibilidade de punições administrativas que podem ser inferidas aos policias de mais baixa patente por seus oficiais superiores.
Policiais militares trabalhando nas ruas sob situação de estresse, de medo e de banalização da vida representam um risco para si próprios e para a sociedade civil, pois seu estado psíquico influencia diretamente na sua atuação profissional, na qualidade dos serviços por eles prestados.
Dessa forma, é possível aferir que a alta letalidade na ação policial que se verifica no estado de São Paulo e no Brasil, de modo geral, pode também ser explicada por essa via. No entanto, o caminho sugerido por Miranda (2016) no que concerne ao modo como tratar policiais em situação de vitimização parece não estar nos horizontes dos gestores da segurança pública no Brasil visto o elevado índice de vitimização e policiais com problemas que continuam a trabalhar e o tratamento dado aos agentes pela instituição, assunto esse que merece ser mais investigado pela ciência e olhado com mais atenção pelos gestores públicos.
1< http://www.diariosp.com.br/mobile/noticia/detalhe/86387/-nao-tolero-vagabundo-diz-novo-chefe-da-rota >.
Acesso em 22/09/2015.
2Pesquisa de vitimização e percepção de risco entre profissionais do sistema de segurança pública, FBSP, 2015.
As porcentagens por nós referidas referem-se à policiais militares, porém não discrimina as unidades da federação à qual os respondentes pertencem.
3A pesquisa discorre também sobre as características das profissões de policial civil e bombeiro militar.
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