REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ni10202506132112
Erivaldo Rocha De Oliveira
Orientador: Professor Doutor Edgar Estuardo Pérez Barrios
RESUMO
O federalismo internacional é um tema que guarda relação com o fenômeno da globalização e com o processo de internacionalização e de universalização pelo qual passa o Direito. A ideia relativa a uma ordem constitucional global como diretriz para um mundo globalizado possui bases históricas nas obras de alguns autores e está ligada diretamente ao estabelecimento de um constitucionalismo comunitário no campo internacional, a qual tem se materializado através de estruturas normativas e jurisdicionais de âmbito mundial e regional. O pensamento em torno de um constitucionalismo global ganhou força após as duas grandes guerras ocorridas no Século XX, com ênfase à Segunda Guerra Mundial (1939-1945), conflito este que com seu término deu origem à Organização das Nações Unidas (ONU), a qual foi criada com o intuito de proteção da vida humana e de sua dignidade, tendo como documentos fundadores a Carta da ONU e a Declaração Universal dos Direitos Humanos. O intuito da pesquisa foi averiguar se o poder, na sociedade internacional, encontra-se distribuído numa sistemática federativa. O trabalho teve como pressuposto, basicamente, a ideia comumente difundida acerca da crescente limitação ou perda do exercício fático da soberania, e, como proposta, uma leitura que identifique – com base numa metodologia qualitativa, descritiva e bibliográfica – a formação dum sistema de federalismo internacional. Para tanto, foi necessário percorrer, analítica e criticamente, as bases do moderno Estado nacional – a ideia de nação, de constitucionalismo e do próprio conceito de Estado – a partir duma releitura que teve como vetor de orientação os reflexos que a globalização projeta nas relações humanas em nível de identidade, economia, geografia etc. Com base na premissa de enfraquecimento da interrelação nacionalismo-Estado-soberania, procedeu-se à leitura da posição dos Estados nação na sociedade global à luz da teoria do federalismo, por meio da qual se pôde perceber que as características comumente atribuídas às federações nacionais podem ser identificadas, de alguma maneira, na forma como se têm estruturado e como têm funcionado os arranjos normativos e institucionais do sistema internacional. A partir duma lógica de distribuição do poder, em escala transfronteiriça, o federalismo “pós-nacional” não apareceria como uma estruturação acordada e projetada por atores internacionais, mas como um processo de reorganização da sociedade global, onde várias entidades funcionam de maneira cooperada e autônoma, sob a orientação dum ordenamento de valores e normas que se mostre, de alguma forma, superior e comum.
Palavras-chave: Federalismo internacional; Direitos Humanos; Globalização; Supraconstitucionalidade; Pós-nacionalismo.
ABSTRACT
International federalism is a theme that is related to the phenomenon of globalization and the process of internationalization and universalization through which law passes. The idea of a global constitutional order as a guideline for a globalized world has historical bases in the works of some authors and is directly linked to the establishment of a community constitutionalism in the international field, which has materialized through normative and jurisdictional structures of the world and regional scope. The thinking around a global constitutionalism gained strength after the two great wars that occurred in the twentieth century, with emphasis on the Second World War (19391945), a conflict that ended in its end gave rise to the United Nations (UN), which was created with the aim of protecting human life and its dignity, documents of the UN Charter and the Universal Declaration of Human Rights.The aim of the research was to ascertain whether power in international society is distributed in a federative system. The work was basically assumed to be the commonly disseminated idea about the increasing limitation or loss of the technical exercise of sovereignty, and, as a proposal, a reading that identifies – based on a qualitative, descriptive and bibliographic methodology – the formation of a system of international federalism.To this end, it was necessary to go analytically and critically through the bases of the modern national state – the idea of nation, constitutionalism and the very concept of state – from a rereading that had as vector of orientation the reflections that globalization projects in human relations at the level of identity, economy, geography, etc. Based on the premise of weakening the nationalism-state-sovereignty interrelationship, we read the position of nation states in global society in the light of the theory of federalism, through which it was possible to perceive that the characteristics commonly attributed to national federations can be identified, in some way, in the way they have structured and how the normative and institutional arrangements of the international system have worked. Based on a logic of distribution of power, on a cross-border scale, “post-national” federalism would not appear as a structure agreed and designed by international actors, but as a process of reorganization of global society, where various entities operate in a cooperative and autonomous manner, under the guidance of an ordering of values and norms that is shown, in some way, superior and common.
Keywords: International federalism; Human rights; Globalization; Supraconstitutionalidae; Postnationalism
1. INTRODUÇÃO
O “federalismo internacional será estudado a partir da Teoria Geral do Direito e da Teoria do Poder. Afinal, quando se abordam temáticas sobre poder político na ordem global, pressupõe-se, necessariamente, o estudo de teorias sobre o poder e a evolução da participação do povo em uma construção de uma visão democrática com uma finalidade ampliativa das nações e do mundo, a partir de conceitos básicos como Estado, Constituição e Direito.
A pesquisa que se pretende desenvolver, estaria assentada num estudo que envolve a relação entre Direito Constitucional e Direito Internacional, especialmente quando se trata dos Direitos Humanos.
E de grande relevância esta temática, principalmente, quando, de um lado, se tem como objeto a interação entre dois ramos jurídicos autônomos, mas que são alvos de constantes embates doutrinários e jurisprudenciais e até mesmo político. Esta temática cuida de um campo jurídico pouco explorado, de modo que a própria bibliografia nacional que estuda essa interdisciplina, a interação direito constitucional/direito internacional dos direitos humanos, ainda estar em “fase de amadurecimento”.
O direito constitucional, em linhas gerais, normatiza a comunidade política estatal, proclamando as normas fundamentais da organização pública e os direitos fundamentais. Tem por objeto primário o Estado, tradicionalmente soberano, que exerceria o poder político em seu território de maneira suprema e independente sobre todas as relações jurídicas que se sujeitam ao seu ordenamento interno.
A Federação, nesse sentido, pressupõe a existência de mais de uma entidade, dotada de capacidade política, concedida pela Constituição.
O constitucionalismo, ao fixar a estrutura do Estado Federal, considera-o como técnica de desconcentração do poder no plano territorial, decorrente de sua divisão funcional, de modo que a “norma fundamental” atribui e delimita as prerrogativas de cada espaço político no plano da Federação.
Ainda assim, a norma suprema do ordenamento jurídico, de uma lado, também deve prever mecanismos de intervenções que sejam capazes de suspender o exercício do poder político das unidades em prol da harmonização da união e, da mesma maneira, permitam às instâncias parciais controlar os desvios perpetrados pela instância central.
Seria possível indaga se no atual cenário mundial, se há existência de institutos jurídico-políticos, de âmbito externo à órbita estatal, na comunidade internacional, que se assemelhem a um sistema federalista?
A evolução do ordenamento internacional sobre direitos humanos, desde os primeiros marcos de seu processo de compartilhamento, protegendo direitos básicos, fixando objetivos de manutenção da paz, assegurando padrões globais mínimos de condições de trabalho, tem rompido com a noção de soberania nacional absoluta, porquanto, são essas normas internacionais que acabam admitindo e legitimando “intervenções no plano nacional, em prol da proteção dos direitos humanos”.
Essa força normativa pode ser percebida, em certo grau, no contexto, por exemplo, da União Europeia, cujo processo integrativo tem ensejado limitações políticas à soberania dos Estados, seja pela fragmentação do poder constituinte nacional, seja pela vinculação das estruturas constitucionais aos modelos democráticos, seja ainda pela exigência de condições democráticas no exercício do poder em cada um dos membros.
Indo mais além, alguns autores afirmam ser juridicamente possível que preceitos tradicionais do Direito Internacional, como o da não intervenção, possam ser afastados em razão da ingerência humanitária, o que, embora ainda sendo o tema “sensível”, evidencia, que os Estados não podem valer-se da soberania como um ‘escudo’ para perpetuarem violações aos direitos humanos.
Diante da internacionalização dos direitos humanos, concretiza-se por meio de regras, instituições e mecanismos para tanto criados, a concepção de que todo país tem a obrigação de proteger os direitos fundamentais de sua população e que os outros países e a sociedade internacional têm a obrigação e o direito de controlar sua observância.
Diante disso, seria possível afirmar se, inicialmente, que os elementos dos sistemas federativos possam ser identificados nos organismos internacionais atribuindo poderes e competências de organização humanitária, gerencial e interventiva.
Assim, ao analisar o status da atual globalização jurídica, os sistemas internacionais – regionais e globais – de proteção aos direitos humanos devem complementar-se, com a finalidade de proporcionar a maior efetividade possível, mesmo que para alguns “líderes políticos” essa efetivação converta-se em ameaça ao status da soberania do “Estado-nação”.
Como se vê, ao se tratar da temática que envolve a soberania estatal, o constitucionalismo e a proteção dos direitos humanos, o palco internacional parece apresentar novos espaços para a rediscussão do estudo do Direito no contexto da ordem global. O que Enaltece a “fragilidade” da definição metodológica do “Estado” baseada apenas no seu âmbito político (soberano), parecendo assim, ser possível considerar sua existência e desenvolvimento condicionados às delimitações do poder em seu ordenamento, refreados pelas normas internacionais de direitos humanos. Frente a tais constatações, emerge, então, a possibilidade de estar-se formando não apenas uma matriz de Direito Comunitário, mas uma tendência a um Constitucionalismo comunitário e a aplicação de um Federalismo Internacional em um período pós nacionalismo.
O pensamento relativo a um Direito Comunitário supraconstitucional encontra base teórica nas obras de doutrinadores clássicos, como Thomas Hobbes, John Locke, Hugo Grotius, Immanuel Kant, Hans Kelsen e John Rawls, as quais serão utilizadas como forma de embasar o desenvolvimento do tema.
Ponto que também deve ser levantado é o fato de que, para se tratar sobre a supraconstitucionalidade, faz-se necessário o enfrentamento de outro tema: a supranacionalidade, pois esta guarda relação direta com a questão supraconstitucional e pode ser entendida como um estágio necessário pelo qual o palco internacional deve passar antes de adentrar em uma ordem constitucional global, ou seja, a supranacionalidade funcionaria como um momento de intersecção para a possível instalação da supraconstitucionalidade no futuro.
Um acontecimento chave na instalação da supranacionalidade foi a ocorrência da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a qual trouxe consequências de forte impacto no campo internacional e mostrou que um novo conflito bélico de tamanhas proporções poderia colocar em risco a manutenção da vida no planeta, principalmente pelo desenvolvimento e pelo uso de armamentos de destruição em massa, os quais mostraram grande poder destrutivo.
Assim, com o término da Segunda Guerra Mundial, surgiu a Organização das Nações Unidas (ONU), organismo que foi criado com o intuito de proteger a vida humana e sua dignidade, situação que foi instrumentalizada por meio da política de Direitos Humanos, a qual é o núcleo dos documentos fundadores da organização: a Carta da ONU e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Com o surgimento da Organização das Nações Unidas, o palco internacional passou a ser orientado pelo Modelo da Carta da ONU, o qual substituiu o Modelo de Vestfália, tendo sido este último originado da Paz de Vestfália (1648) e tendo consagrado como um de seus principais fundamentos a soberania nacional dos Estados. Cabe salientar que o Modelo de Vestfália não foi totalmente abolido, já que o Modelo da Carta da ONU absorveu alguns de seus princípios. A ONU e seus documentos fundadores deram origem ao Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos, do qual passaram a emanar diplomas legais de cunho global, voltados para a proteção da vida humana e de sua dignidade, e que foram acompanhados pelo desenvolvimento de estruturas jurisdicionais voltadas à efetividade dos Direitos Humanos no globo. Diante do que foi exposto, um Direito Comunitário supraconstitucionalidade passou a ser discutido a partir de aspectos diversos, inclusive havendo correntes que enxergam nos documentos fundadores da Organização das Nações Unidas, as já citadas Carta da ONU e Declaração Universal dos Direitos Humanos, como a primeira estrutura de um sistema constitucional em escala mundial, levando assim a uma adaptação do constitucionalismo nacional ao âmbito internacional.
No Capítulo 1 do estudo aqui proposto, o intuito será o de embasar o conteúdo que será desenvolvido em momentos posteriores do trabalho, motivo pelo qual serão trazidos os fundamentos teóricos e históricos ligados a um Direito Comunitário supranacional.
No Capítulo 2 serão expostos os aspectos referentes à materialização do Direito Comunitário supranacional na atual ordem mundial, sendo delimitados os conceitos de tratados internacionais, do jus cogens e as características gerais referentes ao Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos, aos Sistemas Regionais de Proteção dos Direitos Humanos e às estruturas normativas e jurisdicionais a eles vinculadas.
No Capítulo 3 serão estudados temas como a relação estado- nação em uma sociedade internacional, o processo de desenvolvimento da idéia Estado -Nação como um sistema de libedade e legitimação social, a estruturação do nacionalismo nas sociedades modernas, bem como o nacionalismo e o seu processo de internacionalização no mundo.
No capítulo 4 serão analisados os mecanismos do federalismo internacional, tendo como intuito investigar se o mundo caminha para o estabelecimento de uma ordem constitucional de um Direito Comunitário global.
Por fim, afirma-se que o assunto aqui trazido tem caráter atual e abre um leque de oportunidades para o desenvolvimento de estudos e de pesquisas, podendo trazer contribuições válidas para a comunidade acadêmica e permitindo o estabelecimento de debates variados sobre seus aspectos.
2. MARCO TEÓRICO
2.1. O surgimento da ideia de um sistema federativo cosmopolita.
Os conflitos e as guerras têm se mostrado presentes de forma constante na história da humanidade, sendo fruto dos choques de civilizações e de disputas diversas, dentre as quais podem ser destacadas as de cunho territorial, econômicocomercial e geopolítico.
Assim, a desconfiança e o medo são elementos que sempre estiveram presentes nos relacionamentos entre os povos de diferentes locais e entre os próprios Estados, o que em diversos momentos acabou por culminar em agressões e hostilidades recíprocas.
Obviamente, seria uma inverdade afirmar que as relações internacionais se dão e se baseiam exclusivamente a partir do prisma negativo anteriormente indicado, pois há exemplos históricos em que a cooperação e os laços de amizade entre diferentes nações ocorreram e foram consolidados, porém tal observação não contradiz o fato de que, de uma maneira geral, a tensão tem sido um fator preponderante no palco global.
Muitos são os motivos que podem ser apontados para as instabilidades do cenário internacional e da presença regular do caráter conflituoso nas relações globais, estando entre os principais as diferenças e divergências culturais, religiosas, políticas e econômicas.
Diante desta realidade, o assunto referente a um mínimo universal de valores a ser seguido e observado pelos diferentes Estados e por suas populações é um pensamento que tem acompanhado a humanidade no decorrer de sua marcha e tem sido fruto de estudos.
Assim, a ideia de uma ordem supranacional não é nova, uma vez que vem sendo tratada nas obras de diversos autores no decorrer do tempo, os quais enfrentaram o assunto a partir de ângulos diferentes e com visões particulares sobre as questões envolvidas, não necessariamente fazendo uso da expressão supranacionalidade, porém trazendo à tona conceitos e posições que guardam relação direta com o tema e que servem de base para o seu desenvolvimento.
Cabe também salientar que vários fatos históricos também serviram, e têm servido, de base para o estabelecimento de uma ordem supranacional, fatos estes ligados às relações internacionais e às mudanças ocorridas no palco internacional.
Desta forma, o objetivo almejado no presente capítulo é a exposição de posicionamentos doutrinários relevantes sobre o assunto, visando a delimitação dos fundamentos e dos marcos teóricos e históricos que embasam a matéria aqui versada.
2.1.1. Os fundamentos teóricos de uma ordem cosmopolita.
Obviamente, não se faz possível uma análise completa e plenamente abrangente sobre o pensamento de todos os doutrinadores que dedicaram seus estudos ao tema aqui exposto, motivo pelo qual se optou por versar sobre as ideias de autores específicos e que têm sido fundamentais para o estabelecimento dos elementos que servem de alicerce para o assunto do presente trabalho. Assim, serão expostas, de forma sintética, as ideias dos seguintes pensadores: Thomas Hobbes, John Locke, Hugo Grotius, Immanuel Kant, Hans Kelsen e John Rawls.
2.1.1.1. O estado de natureza da obra de Thomas Hobbes e de John Locke
Thomas Hobbes (1588-1679) foi autor de diversas obras, sendo a sua principal o Leviatã (1651), na qual foram expostas ideias sobre a consolidação do Estado como ente essencial para a pacificação social e para mediação e resolução dos conflitos ocorridos entre os indivíduos.
A base fundamental do pensamento hobbesiano se refere ao fato de que, sem a existência da figura estatal, os homens se encontram em estado de natureza, no qual gozam de liberdade plena e acabam buscando de maneira descontrolada a satisfação de seus interesses particulares, o que leva a agressões mútuas e ao constante risco de morte violenta.
Hobbes parte do pressuposto de que o homem é naturalmente mau e, encontrando-se no estado de natureza, não titubeará em atacar seus semelhantes para alcançar seus objetivos e o preenchimento de seus anseios individuais. Assim, de uma forma geral, ou seja, em um local no qual vários homens se digladiam sem qualquer controle pela busca de seus interesses próprios, acaba por se instalar uma permanente “guerra de todos contra todos”, o que estabelece a predominância da lei do mais forte.
É devido aos riscos trazidos pelo estado de natureza que Hobbes defende a necessidade da existência e do estabelecimento de um poder comum, estando este materializado na figura do Estado, ao qual os homens passam a se subordinar e, assim, abrir mão de parte de sua liberdade, visando o estabelecimento da paz social.
Torna-se manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra. Uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens. A guerra não consiste apenas na batalha, ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida. Daí a noção de tempo deve ser levada em conta quanto à natureza do clima. Tal como a natureza do mau tempo não consiste em dois ou três chuviscos, mas numa tendência para chover que dura vários dias seguidos, também a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal, durante todo o tempo em que não há garantia de não haver beligerância. Todo o tempo restante é de paz. Tudo aquilo, portanto, que é válido para um tempo de guerra em que todo homem é inimigo de todo homem, também é válido para o tempo durante o qual os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida por sua própria força e sua própria invenção. Em tal situação não há lugar para a indústria, pois seu fruto é incerto. Seguramente não há cultivo da terra, nem navegação, nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar. Não há construções confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de grande força. Não há conhecimento da face da Terra, nem cômputo do tempo, nem artes, nem letras. Não há sociedade. E o que é pior do que tudo, há um constante temor e perigo de morte violenta. A vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta (HOBBES, 2005, p. 98).
Como resta claro, Hobbes versou no Leviatã sobre as relações entre os homens e sobre a necessidade do estabelecimento de um ente superior, no caso o Estado, para a busca da pacificação dos indivíduos e para se evitar o estabelecimento de um conflito permanente: a já citada “guerra de todos contra todos”.
Não obstante, as ideias trazidas pelo autor inglês são adaptadas para o campo de análises das relações internacionais, sendo feito um paralelo do estado de natureza no que tange ao relacionamento que ocorre entre as nações no palco internacional.
Assim, surge a seguinte indagação: por que se aplicar o pensamento hobbesiano ao palco global? De maneira direta, o que se pode dizer é que a transposição das ideias de Hobbes às relações internacionais se dá pelo fato de que no relacionamento entre Estados não há um poder comum em posição hierárquica superior, ou seja, uma figura supraestatal, algo como um Super-Estado ou um Estado Global.
Desta forma, o cenário que se apresenta é o de que, nas relações internacionais, as nações se encontram no estado de natureza descrito por Hobbes para os homens e cada ator passa a lutar com suas próprias forças pelos seus interesses particulares, o que leva ao constante risco de guerras e à prevalência da lei do mais forte.
Quando transpomos as idéias de Hobbes para o campo das relações entre os Estados, vemos que o estado de natureza dos Estados é exatamente o de liberdade, portanto, o estado natural das relações internacionais é o da guerra, porque não existe nenhuma espécie de contrato social entre os países que os submeta a algum soberano ou instituição internacional, de modo a impedir o confronto entre esses países. Na ausência de um poder soberano e absoluto internacional que disponha do monopólio da violência, todos os Estados podem dispor legitimamente da força. Nesse contexto, a segurança internacional somente poderia ser alcançada por intermédio de uma política de equilíbrio de poder, pois, se o estado de natureza do sistema internacional é o de guerra, os Estados deveriam buscar limitar o poder dos outros Estados e, dessa forma, inibir a sua tendência natural de expansão territorial (SARFATI, 2005, p. 72).
Outro autor que também versou sobre o estado de natureza entre os homens foi John Locke (1632-1704), o qual costuma ter sua obra estudada em conjunto com a de Thomas Hobbes, pelo fato de que o prisma lockeano é antagônico ao pensamento hobbesiano sobre o assunto, o que gera, assim, a possibilidade de comparações e debates sobre ambos os modelos.
Locke, em sua obra Segundo Tratado Sobre o Governo (1690), parte de um conceito contrário ao de Hobbes, uma vez que o primeiro entende que o homem é naturalmente bom, pelo fato de que é dotado da razão e, desta forma, detém a capacidade de discernimento para compreender que ataques mútuos entre os indivíduos seriam negativos e atentariam contra a própria manutenção da vida humana.
Desta forma, Locke afirma que, caso viva no estado de natureza, e conclusivamente em um cenário de liberdade plena, o homem terá capacidade de se relacionar de forma harmoniosa com seus semelhantes e, de uma forma geral, a relação entre diferentes indivíduos se dará com base na cooperação e por meios pacíficos.
De qualquer forma, o autor não nega que possam existir homens de índole má e que estes tendem a atacar os demais buscando tomar o que lhes pertence. Caso isto ocorra, ter-se-á instalado um conflito e a defesa se torna legítima àquele que sofre a ofensa, o qual passa a possuir o direito de repelir e contra-atacar o ofensor.
Todavia, mesmo em se tratando de um estado de liberdade, não implica em licenciosidade; apesar de ter o homem naquele estado liberdade incoercível para dispor da própria pessoa e posses, não a tem para destruir a si mesmo ou a qualquer criatura de sua posse, a não ser quando um fim mais nobre do que a mera conservação o exija. O estado natural tem uma lei de natureza para governá-lo, que a todos obriga; e a razão, que é essa lei, ensina a todos os homens que a consultem, por serem iguais e independentes, que nenhum deles deve prejudicar a outrem na vida, na saúde, na liberdade ou nas posses. E como todos os homens são obra de um Artífice onipotente e infinitamente sábio – todos servos de um único senhor soberano, aqui postos por ordem d’Ele para cumprir-lhe a missão -, são propriedade d’Ele que os gerou, destinados a durar o tempo que a Ele aprouver, e não a uns e outros; e sendo todos providos de faculdades iguais, compartilhando de uma natureza comum, não há como supor qualquer forma de subordinação entre os homens que nos autorize a destruir a outrem, como se fôssemos objeto uns dos outros, tal como as criaturas das ordens inferiores são para nós. Assim como todo homem está na obrigação de preservar-se, não lhe sendo dado abdicar intencionalmente de seu lugar, assim também, pela mesma razão, quando não estiver em jogo a própria preservação, tem de preservar, na medida do possível, o resto da Humanidade, não podendo, salvo o caso de castigar um ofensor, tirar ou prejudicar a vida, ou o que tende à preservação da vida, a liberdade, a saúde, os membros ou os bens de outrem (LOCKE, 2006, p. 24-25).
É devido à possibilidade de ataque por parte destes indivíduos de índole má que Locke também defendeu em sua obra a necessidade da instauração de um poder comum entre os homens, o qual encontra guarida na figura do Estado, pois este deterá os meios necessários para mediar os conflitos e punir aqueles que transgridem as regras estabelecidas para o corpo social.
Assim, como pode ser visto, apesar de partirem de pontos iniciais antagônicos, Locke e Hobbes acabam por chegar a uma mesma conclusão: a importância de os homens abrirem mão de parte de sua liberdade e a entregar para um poder comum, o qual deterá a prerrogativa para intervir nas disputas individuais e as pacificar.
Também como no caso hobbesiano, as ideias lockeanas foram concebidas a partir de análises dos relacionamentos individuais, ou seja, entre os homens, porém, como ocorrido com Hobbes, o pensamento de Locke foi adaptado para o campo das relações internacionais.
Desta forma, enxergar o palco global a partir do prisma lockeano significa afirmar que, diante da ausência de um poder comum que regula o relacionamento entre as nações, estas se encontram no estado de natureza, o que não deve ser visto necessariamente como um cenário conflituoso e de guerra iminente ou declarada, pois, como se dá com os homens, os governantes dos diferentes países são dotados da razão e possuem o devido discernimento para compreender que as relações entre os Estados devem se dar de forma pacífica e harmoniosa.
Obviamente, podem existir nações expostas e subjugadas à maldade de seus líderes, os quais acabam por usurpar o poder em busca de benefício próprio e, assim, instalam um cenário conflituoso com os demais Estados, tendo como justificativa a proteção de interesses nacionais, o que acaba por trazer instabilidade ao palco global e a ocorrência de guerras.
Bull (2002, p. 57-64) trata sobre a adaptação do pensamento hobbesiano e lockeano do estado de natureza humano para o campo das relações internacionais. O autor analisa se é possível afirmar que os Estados configuram no palco global um tipo de sociedade anárquica e, assim, serve-se da obra dos dois doutrinadores ingleses como embasamento.
Para ele, o modelo de Hobbes não se enquadra no âmbito das relações internacionais, pois, mesmo diante da ausência de um poder comum em escala mundial, os países não dedicam todos os seus esforços e seus recursos para a área de segurança e de defesa, a partir do temor de um ataque externo, pelo contrário, as nações direcionam investimentos para campos diversos, o que afasta a ideia hobbesiana de isolamento, solidão e embrutecimento. Além disso, outro ponto que o autor em comento refuta da adaptação do pensamento de Hobbes para o palco das relações internacionais é a inexistência dos conceitos de certo e de errado que se consolida no estado de natureza, uma vez que para proteger suas vidas, os homens não se prendem a definições do que se deve e do que não se deve fazer, tomando qualquer medida necessária para se preservarem. O doutrinador aqui em destaque afirma que no palco global e no relacionamento entre os Estados, a ideia de certo e de errado detém papel importante (BULL, 2002, p. 59).
Apenas um dos aspectos do estado de natureza hobbesiano é aceito por Bull para o campo das relações internacionais: a ideia de que as nações se encontram em uma constante disposição para a guerra e para atacar as demais caso seja necessário. Mesmo havendo paz, o conflito é sempre uma opção e nunca é descartado totalmente, sendo uma realidade com a qual os países convivem a todo o momento (BULL, 2002, p. 59).
Assim, Bull defende que, no que tange às relações internacionais, o paralelo de estado de natureza aplicável é o idealizado por Locke, pois entende que no palco global, diante da ausência de um governo central e de um poder comum, as nações se portam dentro dos parâmetros lockeanos, mesmo que isso signifique a existência de uma paz e de uma justiça fragilizadas.
Portanto, para comparar as relações internacionais com um hipotético estado da natureza pré-contratual entre os indivíduos, podemos escolher não a descrição de Hobbes, mas a de Locke. Ele concebe o estado de natureza como uma sociedade sem governo, oferecendo-se assim uma analogia estreita com a sociedade dos estados. Na sociedade internacional moderna, como no estado de natureza de Locke, não há uma autoridade central capaz de interpretar e aplicar a lei, e assim os indivíduos que dela participam precisam eles próprios julgar e aplicá-la. Como em tal sociedade cada participante é um juiz em causa própria, e como a opinião dos que pretendem aplicar a lei nem sempre prevalece, a justiça nessa sociedade é rústica e incerta. No entanto, há uma grande diferença entre essa forma rudimentar de vida social e a total ausência de ordem (BULL, 2002, p. 60).
Independentemente de qual posicionamento se filie, entende-se que analisar os pensamentos de Hobbes e de Locke sobre o estado de natureza humano e os transpor para o campo das relações internacionais é um ponto analítico fundamental e que deve ser considerado por aqueles que pretendem analisar com embasamento os aspectos e características da ordem mundial, algo que servirá de base no presente trabalho.
2.1.1.2. O surgimento do direito das gentes de Hugo Grotius
Hugo Grotius (1583-1645) é considerado como um dos precursores do Direito Internacional, motivo pelo qual o seu pensamento deve ser utilizado como base em qualquer trabalho que detenha relação com o palco global e com as relações que ocorrem entre os Estados.
Na obra O Direito da Guerra e da Paz (1625), Grotius traz o pensamento de que além das leis que são emanadas pelo Estado para a regulação dos acontecimentos internos, há também aquelas que dizem respeito à relação das nações entre si, as quais fazem parte do Direito das Gentes. Inclusive, um passo importante das ideias do autor é o de diferenciar este último do Direito Natural, entendendo-os como duas áreas diversas.
Assim como as leis de cada Estado dizem respeito à sua utilidade própria, assim também certas leis podem ter surgido entre todos os Estados ou entre parte deles, em virtude de seu consenso. Parece mesmo que regras semelhantes surgiram tendendo à utilidade não de cada associação de homens em particular, mas do vasto conjunto de todas essas associações. Esse é o direito chamado de direito das gentes, porquanto distinguimos este termo do direito natural. Esta parte do direito natural foi totalmente omitida por Carnéades que distribui todo o direito em direito natural e em direito civil próprio de cada povo. E, no entanto, devendo tratar do direito que existe entre as nações (fala, com efeito, sobre as guerras e sobre as coisas conquistadas na guerra), deveria certamente ter feito menção desse direito (GROTIUS, 2005, p. 43- 44).
Ao diferenciar o Direito das Gentes do Direito Natural, Grotius apresenta uma inovação considerável e que serve de base até os tempos atuais para os princípios do Direito Internacional, pois a partir deste pensamento são lançados os alicerces sobre a ideia de um mínimo universal que deve reger as relações entre os Estados, principalmente para as condutas a serem assimiladas em momentos conflituosos e bélicos, já que o autor afirma que se vê convencido de que “existe um direito comum a todos os povos e que serve para a guerra e na guerra” (GROTIUS, 2005, p. 51).
Assim, algo que se pode extrair do que aqui se expôs é que Grotius lançou as bases que hoje fundamentam ramos do Direito ligados à ideia do caráter universal, como os Direitos Humanos, o Direito Humanitário e o Direito dos Refugiados, os quais desempenham papel fundamental quando da ocorrência de guerras e de conflitos armados.
Não obstante, Grotius se mostra ciente das barreiras e das dificuldades para implantação de um direito comum a todas as nações, afirmando o autor que as leis que emanam deste tal direito talvez possam ser aplicadas a uma grande parte dos países, porém dificilmente será possível uma abrangência plena e total.
O direito mais amplo é o jus gentium, isto é, aquele que recebeu sua força obrigatória da vontade de todas as nações ou de grande número delas. Acrescentei “de grande número” porque, à exceção do direito natural, que costumamos chamá-lo também jus gentium (direito das gentes), não encontramos praticamente direito que seja comum a todas as nações (GROTIUS, 2005, p. 88).
Assim, o pensamento de Grotius se mostra de suma importância como base teórica do presente trabalho, uma vez que a ideia de um direito universal e aplicável a todas as nações fará parte das análises do tema aqui proposto em momento posterior deste trabalho.
2.1.1.3. A paz perpétua de Immanuel Kant
Immanuel Kant (1724-1804) dedicou parte de sua vasta obra à análise das relações internacionais e dos fundamentos necessários para a ocorrência e para a prevalência da harmonia no cenário global, estando os pontos principais de seu pensamento sobre o tema no livro À Paz Perpétua (1795).
O autor estabeleceu que três aspectos são essenciais para que as relações entre os Estados se estabeleçam de forma pacífica: I) “A Constituição civil em cada Estado deverá ser republicana” (KANT, 1795, p. 24); II) “O direito internacional deve fundar-se em um federalismo de Estados livres” (KANT, 1795, p. 31); e III) “O direito cosmopolita deve ser limitado às condições da hospitalidade universal” (KANT, 1795, p. 37).
Sobre o primeiro ponto, Kant demonstra a importância de que o documento formador de um país seja uma Constituição Republicana, isto pelo fato de que em uma República os indivíduos são cidadãos e, consequentemente, proprietários do Estado e por ele responsáveis. Assim, o povo é consciente de seu papel e das consequências geradas por uma guerra, além de todos os aspectos negativos que com ela advêm.
Se a Constituição de um país não é republicana, isto significa que os indivíduos formam uma massa manipulável e submissa aos anseios de déspotas e tiranos que lideram o Estado e dele se utilizam para satisfazer seus anseios particulares, não havendo qualquer sentimento de bem-comum e de proteção da coisa pública. Em suma, um país sem uma Constituição Republicana está sempre propenso para o conflito e, assim, afasta-se da ideia da paz perpétua.
Ora, a constituição republicana, além da pureza de sua origem, por ter-se originado da fonte pura do conceito de direito, tem ainda a perspectiva da conseqüência desejada, a saber, a paz perpétua. A razão para isso é esta. – Quando o consentimento dos cidadãos (como não pode ser de outro modo nesta constituição) é requerido para decidir “se deve ou não ocorrer guerra”, nada é mais natural do que, já que têm de decidir para si próprios sobre todas as aflições da guerra (como estas: combater em pessoa, tirar do seu próprio patrimônio os custos da guerra, reparar penosamente a devastação que ela deixa atrás de si; enfim, ainda contrair para si, como cúmulo do mal, uma dívida que nunca será paga, por causa da proximidade sempre de novas guerras, e que tornará a própria paz amarga), eles refletirão muito para iniciar um jogo tão grave. Como, pelo contrário, em uma constituição em que o súdito não é cidadão, que, portanto, não é republicana, isso é a coisa sobre a qual menos se hesita no mundo, porque o chefe, não sendo membro do Estado, mas proprietário do Estado, não tem o mínimo prejuízo por causa da guerra à sua mesa, à sua caçada, a seus castelos de campo, festas da corte etc., e pode, portanto, decidir sobre a guerra por causas insignificantes como uma espécie de jogo de recreação e, por conta das boas maneiras, deixar a justificação do conflito indiferentemente ao corpo diplomático, que está todo o tempo pronto para isso (KANT, 2010, p. 26-27).
O segundo aspecto levantando por Kant para a ocorrência da paz perpétua é que seja formado um federalismo de Estados livres, no qual devem ser respeitadas a liberdade e a autonomia de cada país, ou seja, o autor expõe que as nações devam manter suas soberanias, porém atuar de forma coordenada e harmônica, através do respeito mútuo.
Um ponto de grande importância sobre este segundo aspecto levantado por Kant é o fato de o autor defender a criação de uma liga de paz, a qual teria a função de prevenir a eclosão de guerras e, desta forma, concretizar a pacificação nas relações internacionais.
Entrementes, porém, a razão, de cima de seu trono do poder legislativo moralmente supremo, condena absolutamente a guerra como procedimento de direito e torna, ao contrário, o estado de paz um dever imediato, que, porém não pode ser instituído ou assegurado sem um contrato dos povos entre si: tem de haver então uma liga de tipo especial, que se pode denominar liga de paz (foedus pacificum), que deveria ser distinta do tratado de paz (pactum pacis) que simplesmente procura pôr fim a uma guerra; aquela, porém, a todas as guerras para sempre. Esta liga não visa a nenhuma aquisição de alguma potência de Estado, mas meramente à conservação e à garantia da liberdade de um Estado para si mesmo e ao mesmo tempo para os outros Estados aliados, sem que estes, porém, por isso devam ser submetidos (como homens no estado de natureza) a leis públicas e a uma coerção sob elas. Pode-se representar a exeqüibilidade (realidade objetiva) dessa idéia da federalidade, que deve estender-se gradualmente sobre todos os Estados, conduzindo assim à paz perpétua. Pois, quando um povo poderoso e ilustrado consegue formar-se em uma república (que tem de ser, segundo sua natureza, inclinada à paz perpétua), então esta dá para os outros Estados um centro da união federativa para juntar-se a ela e assim garantir o estado de liberdade dos Estados, conforme à idéia do direito internacional, e expandir-se sempre cada vez mais por várias ligas desse tipo (KANT, 2010, p. 34- 35).
Pode-se afirmar que ao propor a criação de uma liga de paz, Kant acabou de forma visionária idealizando um órgão internacional que hoje pode ser visto na Organização das Nações Unidas (ONU), órgão este que será fruto de análises mais pormenorizadas em momento posterior do presente trabalho, um pensamento realmente inovador para o tempo em que o filósofo viveu.
Além do exposto, com a ideia da liga de paz e de um modelo federalista de Estados livres, Kant demonstra que seu objetivo não é o de propor um Governo Mundial, com uma estrutura supraestatal à qual as nações devem se subordinar, mas sim um sistema cooperativo entre os países, visando o atingimento da paz perpétua.
O terceiro aspecto levantado pelo autor diz respeito à existência de um Direito Cosmopolita baseado na hospitalidade universal, “hospitalidade significa, aqui, o direito de um estrangeiro, por conta de sua chegada à terra de um outro, de não ser tratado hostilmente por este” (KANT, 2010, p. 37).
Desta forma, Kant traz a ideia de regras universais que devem ser respeitadas, visando a proteção dos povos e dos homens como indivíduos, inclusive o autor afirma que a violação deste direito é uma afronta a todas as pessoas de uma forma geral, algo que embasa a proposição do Direito Cosmopolita.
Já que agora a comunidade (mais estreita, mais larga), difundida sem exceção entre os povos da Terra, foi tão longe que a infração do direito em um lugar da Terra é sentido em todos, não é, assim, a idéia de um direito cosmopolita nenhum modo de representação fantasioso e extravagante do direito, mas um complemento necessário do código não escrito, tanto do direito de Estado como do direito internacional, para um direito público dos homens em geral e, assim, para a paz perpétua, da qual podese aprazer encontrar-se na aproximação contínua somente sob esta condição (KANT, 2010, p. 41).
O Direito Cosmopolita é entendido como o “direito dos cidadãos do mundo, que considera cada indivíduo não membro de seu Estado, mas membro, ao lado de cada Estado, de uma sociedade cosmopolita” (NOUR, 2004, p. 55).
Assim, a ideia kantiana do Direito Cosmopolita pode ser visualizada nos fundamentos dos Direitos Humanos, ou seja, o autor traz o posicionamento de que o homem deve ser respeitado em sua condição humana em qualquer lugar que se encontre, esteja ele na condição de estrangeiro ou de nacional.
Com o exposto, não resta dúvida de que o pensamento de Kant, além de inovador para o tempo em que o autor viveu, mostra-se fundamental para a análise das relações internacionais e para os estudos das regras que regem o relacionamento dos Estados entre si. Desta forma, os conceitos kantianos de federalismo internacional e de Direito Cosmopolita serão base para o desenvolvimento do tema aqui trazido.
2.1.1.4. Hans Kelsen e o direito internacional
Hans Kelsen (1881-1973) trabalhou de forma aprofundada o tema do Direito Internacional e de seus impactos no ordenamento jurídico dos Estados, sendo sua obra Princípios do Direito Internacional (1952) uma das principais do autor sobre o tema.
Para se tratar sobre o pensamento kelseniano, o primeiro aspecto a ser versado é a questão relativa à relação entre leis nacionais e leis internacionais, o que coloca em campos opostos as correntes doutrinárias conhecidas como monismo e dualismo, as quais possuem suas orientações particulares sobre a relação hierárquica ou não entre as legislações domésticas e externas.
Kelsen descreve que o monismo, corrente à qual o autor se filia, é um pensamento que defende uma ordem universal, na qual o Direito Nacional e o Direito Internacional são partes de um todo. Já o dualismo, ao qual o autor também chama de pluralismo, é uma corrente que entende ambos os ramos anteriormente indicados como separados e formadores de ordens distintas.
Esta visão monista do Direito Internacional revela sua ligação com o Direito Nacional e, em conseqüência, permite verificar que as duas ordens jurídicas formam uma ordem jurídica universal, contudo a maioria dos teóricos do Direito Internacional, por estranho que possa parecer, não compartilha dessa ótica monista. Em sua percepção das relações entre Direito Internacional e Nacional, os teóricos não procedem do Direito Internacional como seu ponto de partida, em sua opinião, Direito Internacional e Direito Nacional são duas ordens independentes entre si que regulam questões bastante diferentes e têm fontes bastante diversas. (KELSEN, 2010, p. 494).
Kelsen é um crítico do dualismo ou pluralismo, pois entende que esta corrente não se sustenta, uma vez que considerar o Direito Internacional e o Direito Nacional como campos independentes leva a um problema de validade, já que não há como ambos serem sistemas “distintos e mutuamente independentes se as normas forem consideradas válidas para o mesmo espaço e ao mesmo tempo. É impossível logicamente supor que as normas simultaneamente válidas pertençam a sistemas diferentes, mutuamente independentes” (KELSEN, 2010, p. 495).
O pensamento kelseniano se filia ao monismo a partir de várias fundamentações, uma delas tem como argumento a questão de que se mostra inviável separar de forma completa as agendas internas e externas dos Estados, uma vez que estas acabam por se fundir ou, até mesmo se complementar, já que “todos os assuntos domésticos de um Estado podem vir a ser sujeitos de acordo internacional, transformando-se assim em assuntos externos” (KELSEN, 2010, p. 496).
Outro ponto levantado por Kelsen, no que tange à defesa do monismo, diz respeito ao fato de que o autor entende que para se considerar dois sistemas jurídicos como independentes e diversos, ambos devem partir de normas fundamentais também diversas. Segundo a ideia kelseniana, a norma fundamental é aquela que concede validade ao sistema e se encontra em posição superior. Assim, “quando várias normas recebem sua validade de uma mesma norma fundamental, então – por definição – todas elas pertencem a um mesmo sistema” (KELSEN, 2010, p. 501).
No entender de Kelsen, a norma fundamental das ordens nacionais vem do Direito Internacional, ou seja, não há sistemas distintos, mas sim apenas um único sistema que possui sua validade vinda do âmbito externo.
De acordo com o Direito Internacional, a Constituição de um Estado é válida apenas se a ordem jurídica estabelecida com base nessa Constituição for efetiva em termos gerais. É este o princípio geral da efetividade, uma norma positiva do Direito Internacional que, aplicada a uma ordem jurídica nacional individual, estabelece a norma fundamental dessa mesma ordem. As próprias normas fundamentais das diferentes ordens jurídicas nacionais se fundam, por conseguinte, em uma norma geral da ordem jurídica internacional. Se concebermos o Direito Internacional como ordem jurídica a que estão subordinados todos os Estados (e isso significa todas as ordens jurídicas nacionais), então a norma fundamental de uma ordem jurídica nacional não é a mera suposição do pensamento jurídico, mas uma norma positiva, uma norma de Direito Internacional aplicada à ordem jurídica de um Estado concreto. É, portanto, por meio do princípio da eficácia que a ordem jurídica internacional estabelece não apenas as esferas de validade, mas também o fundamento de validade das ordens jurídicas nacionais. Por serem as normas fundamentais das ordens jurídicas nacionais estabelecidas por uma norma de Direito Internacional, são normas fundamentais em um sentido apenas relativo. É a norma fundamental da ordem jurídica internacional que é, em última análise, o fundamento de validade das ordens jurídicas nacionais (KELSEN, 2010, p. 509).
Ao defender a ideia de que a norma fundamental das ordens nacionais pertence ao Direito Internacional, o pensamento kelseniano segue pelo entendimento de que “o conflito entre uma norma de Direito Internacional e uma norma de Direito Nacional é um conflito entre uma norma superior e uma inferior” (KELSEN, 2010, p. 516), ou seja, o autor defende a superioridade do ordenamento jurídico externo em relação ao interno.
Assim, o pensamento de Kelsen, o qual enxerga as normas de Direito Internacional como hierarquicamente superiores às normas de Direito Nacional, provoca reflexos no conceito de soberania dos Estados, uma vez que diante do pensamento kelseniano, os ordenamentos jurídicos internos passam a ser subordinados ao ordenamento internacional. O autor não foge deste tema e defende que aqueles que se filiam à ideia de superioridade das normas de Direito Internacional, por questão de coerência, devem relativizar a ideia dos Estados soberanos, devido à relação de subordinação anteriormente indicada.
Se a construção jurídica – tal qual a defendida nesta obra – procede a partir do Direito Internacional como ordem jurídica válida, o que implica a primazia desse Direito sobre o Direito Nacional, então o Estado, como ordem jurídica nacional, “não é” soberano no sentido de ser suprema autoridade jurídica. O Estado pode, então como ordem jurídica nacional, ser soberano apenas no sentido relativo de que nenhuma ordem outra, apenas a ordem jurídica internacional, é superior à nacional, de modo que o Estado como ordem jurídica nacional está direta e exclusivamente sujeito à ordem jurídica internacional. Quando, por outro lado, a construção jurídica procede da ordem jurídica nacional, o que implica a primazia do Direito Nacional, então o Estado como ordem jurídica nacional “é” soberano no sentido original e absoluto do termo, sendo superior a qualquer outra ordem jurídica, incluindo o Direito Internacional, que, por delegação vem a ser parte de Direito Nacional (KELSEN, 2010, p. 542-543).
Não resta dúvida de que o pensamento de Kelsen sobre o Direito Internacional e o Direito Nacional formarem um mesmo sistema e as normas do primeiro serem hierarquicamente superiores às normas do segundo é um tema envolto em controvérsia, uma vez que traz a questão de relativização das soberanias estatais.
Independentemente do ponto controverso indicado anteriormente, as ideias de Kelsen aqui trazidas não podem ser ignoradas e são fundamentais para análises referentes ao tema da supranacionalidade, já que lançam uma ótica inovadora sobre o assunto, mesmo que representando um posicionamento minoritário.
2.1.1.5. O direito dos povos de John Rawls
John Rawls (1921-2002) foi um doutrinador ligado ao liberalismo político e defensor dos fundamentos e dos valores desta teoria, tendo dedicado parte de seus estudos a análises das relações internacionais, as quais se encontram em sua obra O Direito dos Povos (1999).
Rawls, inicialmente, expõe a ideia de adequar seus estudos que foram delimitados em outras obras para o campo do Direito Internacional. Para tanto, o autor definiu cinco tipos de sociedades nacionais, visando estabelecer diferenças entre elas para posteriormente desenvolver sua concepção sobre o Direito dos Povos.
No § 58 de Uma teoria da justiça indiquei de que modo a justiça como eqüidade pode ser estendida ao Direito internacional (como o chamei lá) para o propósito limitado de julgar os objetivos e limites da guerra justa. Aqui, a discussão cobre um terreno maior. Proponho considerar cinco tipos de sociedades nacionais. A primeira são os povos liberais razoáveis, a segunda, povos decentes. A estrutura básica de um tipo de povo decente tem o que chamo uma “hierarquia de consulta decente”, e a esses povos chamo “povos hierárquicos decentes”. Não tento descrever outros tipos possíveis de povos decentes, mas simplesmente deixo a ressalvar, admitindo que pode haver outros povos decentes cuja estrutura básica não se ajusta à minha descrição de hierarquia de consulta mas que são dignos de integrar uma Sociedade dos Povos. (Refiro-me conjuntamente aos povos liberais e aos povos decentes como “povos bemordenados”). Em terceiro lugar, há Estados fora da lei e, em quarto, sociedades sob o ônus de condições desfavoráveis. Finalmente, em quinto, temos sociedades que são absolutismos benevolentes: honram os direitos humanos, mas porque é negado aos seus membros um papel significativo nas decisões políticas, não são bem-ordenadas (RAWLS, 2001, p. 4-5).
Não cabe aqui um maior aprofundamento sobre cada tipo de sociedade definida por Rawls, porém se pode trazer que o autor enxerga maior razoabilidade nas duas primeiras delimitadas (povos liberais razoáveis e povos decentes), as quais teriam uma predisposição para a paz, dados os seus fundamentos e valores.
Seguindo em seu raciocínio, Rawls traz à tona em sua obra os princípios de justiça inerentes aos povos livres e democráticos, princípios estes que devem servir de alicerce na criação do Direito dos Povos.
Procedendo de maneira análoga ao processo de uma teoria da justiça, examinemos primeiramente princípios tradicionais de justiça entre povos livres e democráticos: 1. Os povos são livres e independentes, e a sua liberdade e independência devem ser respeitadas por outros povos. 2. Os povos devem observar tratados e compromissos. 3. Os povos são iguais e são partes em acordos que os obrigam. 4. Os povos sujeitamse ao dever de não-intervenção. 5. Os povos têm direito de autodefesa, mas nenhum direito de instigar a guerra por outras razões que não a autodefesa. 6. Os povos devem honrar os direitos humanos. 7. Os povos devem observar certas restrições especificadas na conduta da guerra. 8. Os povos têm o dever de assistir a outros povos vivendo sob condições desfavoráveis que os impeçam de ter um regime político e social justo ou decente (RAWLS, 2001, p. 47-48).
Como se pode depreender, o pensamento rawlsiano é o de enxergar os princípios liberais como justos e corretos na regência de uma sociedade, uma vez que eles se fundamentam em valores indispensáveis, como a liberdade, a democracia, a independência e a justiça.
Rawls entende que há diferenças as mais diversas entre os povos que habitam o planeta e que conjugar tal diversidade se mostra um trabalho dificultoso. De qualquer forma, o autor não se furta em afirmar que os valores liberais são os ideais para reger uma Sociedade dos Povos, isto pelo já citado fato de que tais valores permitem que os indivíduos sejam livres e possam se desenvolver dentro de um sistema democrático e das benesses por estes trazidas.
Qual pode ser a base para uma Sociedade dos Povos, dadas as diferenças razoáveis e esperadas entre os povos, com as suas instituições e línguas, religiões e culturas diferentes, assim como as suas diferentes histórias, situados que estão nas diferentes regiões e territórios do mundo e experimentando acontecimentos diferentes? (Essas diferenças são paralelas ao fato do pluralismo razoável em um regime nacional). Para perceber como obter uma base, repito o que disse na introdução: é importante compreender que o Direito dos Povos é desenvolvido dentro do liberalismo político. Esse ponto inicial significa que o Direito dos Povos é extensão de uma concepção liberal de justiça de um regime nacional para uma Sociedade dos Povos. Desenvolvendo o Direito dos Povos dentro de uma concepção liberal de justiça, formulamos os ideais e princípios da política exterior de um povo liberal razoavelmente justo. Faço distinção entre a razão pública dos povos liberais e a razão pública da Sociedade dos Povos. A primeira é a razão pública de cidadãos iguais de uma sociedade nacional que debatem os elementos constitucionais essenciais e questões de justiça básica no que diz respeito ao seu governo; a segunda é a razão pública de povos liberais livres e iguais, debatendo as suas relações mútuas como povos. O Direito dos Povos, com os seus conceitos e princípios, ideais e critérios políticos, é o conteúdo dessa segunda razão pública. Embora essas duas razões públicas não tenham o mesmo conteúdo, o papel da razão pública entre povos livres e democráticos é análogo ao seu papel num regime democrático constitucional entre cidadãos livres e iguais (RAWLS, 2001, p. 70-71).
Importante também destacar que Rawls trabalha com a questão dos Direitos Humanos, demonstrando que estes são frutos de conquistas das sociedades democráticas liberais, sendo estas as únicas capazes de assegurar aos seus cidadãos os mecanismos de proteção à vida e à sua dignidade. De qualquer forma, o autor sempre se mantém consciente de que há outros tipos de sociedades e que estas não procedem de acordo com a ótica liberal, porém algumas delas não devem ser criticadas de forma contumaz em suas estruturas, pois apesar de não liberais, mostram-se sociedades entendidas como decentes (RAWLS, 2001, p. 103).
Deve-se perceber que Rawls diferencia os Direitos Humanos do Direito dos Povos, enxergando os primeiros como uma questão de caráter moral e que devem ser observados de forma universal. Já o segundo é entendido pelo autor como o ordenamento jurídico cabível à Sociedade dos Povos, pois devem ser levadas em conta as diversidades existentes entre as diferentes comunidades que se encontram espalhadas pelo mundo.
Assim, o que se pode afirmar é que, no pensamento rawlsiano, os Direitos Humanos funcionam como um mínimo básico que deve ser observado de maneira universal, inclusive sendo legítimas sanções e até mesmo a intervenção militar contra Estados que violem de forma sistemática os princípios inerentes à proteção da vida e de sua dignidade.
O rol dos direitos humanos honrados por regimes liberais e decentes deve ser compreendido como direitos universais no seguinte sentido: eles são intrínsecos ao Direito dos Povos e têm um efeito (moral) sendo ou não sustentados localmente. Isto é, sua força política (moral) estende-se a todas as sociedades e eles são obrigatórios para todos os povos e sociedades, inclusive os Estados fora da lei. Um Estado fora da lei que viola esses direitos deve ser condenado e, em casos graves, pode ser sujeitado a sanções coercitivas e mesmo à intervenção (RAWLS, 2001, p. 105).
Desta forma, Rawls segue no sentido de que o Direito dos Povos deve se organizar em torno de princípios da justiça política na busca da implementação de valores razoáveis e que possam contemplar todos os tipos de sociedades. Cabe sempre ressaltar que o autor demonstra que as ideias liberais são aquelas que se mostram mais adequadas e que a organização das sociedades democráticas amparadas pelo liberalismo é prova disso.
Ao expor o Direito dos Povos, começamos com os princípios da justiça política para a estrutura básica de uma sociedade democrática liberal fechada e contida em si. Modelamos então as partes numa segunda, mas adequada, posição original em que, como representantes de povos iguais, selecionam os princípios do Direito dos Povos para a Sociedade dos povos bem ordenados. A flexibilidade da idéia da posição original é demonstrada em cada passo do processo, porque pode ser modificada para se ajustar ao tema em questão. Caso se tornasse razoavelmente completo, o Direito dos Povos incluiria princípios políticos razoáveis para todos os temas politicamente relevantes: para cidadãos livres e iguais e os seus governos, e para povos livres e iguais. Também incluiria diretrizes para a formação de organizações de cooperação entre os povos e para a especificação dos vários deveres e obrigações. Se o Direito dos Povos é, dessa maneira, razoavelmente completo, dizemos que é “universal no alcance”, no sentido de que pode ser estendido para oferecer princípios para todos os temas politicamente relevantes. (O Direito dos Povos regulamenta o tema político mais abrangente, a Sociedade política dos Povos). Não há nenhum tema relevante, politicamente falando, para o qual não tenhamos princípios e padrões de julgamento (RAWLS, 2001, p. 112).
Com isto estabelecido, Rawls externa o ponto de vista de que a determinação de um Direito dos Povos legítimo e embasado nos Direitos Humanos leva ao esperado cenário de um confronto entre as sociedades entendidas como justas e decentes com os regimes autoritários e arbitrários, pois estes últimos não possuem interesse em assegurar os valores mínimos de dignidade aos seus cidadãos, já que enxergam em tal situação a perda de poder.
O autor entende que o confronto indicado anteriormente deve ser trabalhado por meio da política externa, a qual deve se dar de forma razoável e pertinente. Inclusive, Rawls defende que os assuntos relativos ao Direito dos Povos devem ser debatidos em um tipo de estrutura confederativa, ou seja, de cunho global, fazendo menção à Organização das Nações Unidas como um provável palco para implementação de tal ideia.
O pensamento rawlsiano em torno da estrutura confederativa tem como um de seus intuitos expor publicamente os regimes totalitários e as atrocidades por eles cometidas, algo que tem o condão de trazer uma forte pressão por parte da opinião pública contra os governos que violam os Direitos Humanos e subjugam seus próprios cidadãos.
Um Direito dos Povos decente guia as sociedades bem ordenadas no confronto com regimes fora da lei ao especificar o objetivo que elas devem ter em mente e indicar os meios que podem usar ou que devem evitar. Sua defesa, porém, é apenas a primeira e mais urgente tarefa. O objetivo a longo prazo é levar todas as sociedades a honrar o Direito dos Povos e se tornarem membros plenos e de boa reputação da sociedade dos povos bem ordenados. Os direitos humanos, assim, seriam assegurados em toda parte. Como levar todas as sociedades a esse objetivo é uma questão de política externa; pede sabedoria política, e o sucesso depende em parte da sorte. Essas não são questões a que a filosofia política tenha muito a acrescentar; simplesmente recapitulo vários pontos familiares. Para que os povos bem ordenados alcancem esses objetivos de longo prazo, devem estabelecer novas instituições e práticas, que sirvam como um tipo de centro confederativo e fórum público para sua opinião e política comuns quanto a regimes não bem ordenados. Podem fazer isso em instituições como as Nações Unidas ou formando alianças separadas de povos bem ordenados em certas questões. Esse centro confederativo pode ser usado para formular e expressar a opinião das sociedades bem ordenadas. Lá, podem expor à visão pública as instituições injustas e cruéis de regimes opressores e expansionistas e as suas violações dos direitos humanos (RAWLS, 2001, p. 122).
Como último recorte teórico do pensamento de Rawls, traz-se a ideia da divergência de pensamento entre o que o autor chama de visão cosmopolita e o Direito dos Povos, situação que é descrita na obra aqui debatida em tópico sobre a justiça distributiva.
O pensamento rawlsiano é no sentido de que a visão cosmopolita defende o bem-estar individual em um nível global, ou seja, coloca-se a favor de que os indivíduos devem ser vistos pela ótica de uma Sociedade Mundial e lhes devem ser asseguradas as condições básicas e dignas de sobrevivência por meio de uma redistribuição de recursos em âmbito internacional.
Já o Direito dos Povos idealizado por Rawls não segue por este caminho, pois sua ideia é a de que o objetivo principal é o de estabelecer um cenário global formado por sociedades que se amparem em regimes justos e democráticos, sendo o ideal que estas sociedades em sua totalidade optassem por aderir aos valores e princípios liberais, os quais são os mais indicados e pertinentes para o estabelecimento da justiça e da democracia. Assim, as questões referentes aos indivíduos e ao seu bemestar devem ser tratadas e averiguadas pelas próprias sociedades nas quais eles estão inseridos, já que elas serão capazes de resolver suas próprias distorções, ou seja, a proteção e o amparo dos indivíduos não é uma questão de âmbito global, mas sim local. A ótica de uma abrangência mundial deve ser observada nas relações entre as sociedades no palco internacional, não para as questões individuais de cada cidadão.
Estas observações ilustram o contraste entre o Direito dos Povos e uma visão cosmopolita. O interesse final de uma visão cosmopolita é o bem-estar dos indivíduos, não a justiça das sociedades. Segundo essa visão, ainda há uma questão referente à necessidade de mais distribuição global, mesmo depois que cada sociedade tenha alcançado instituições internamente justas. O caso ilustrativo mais simples é supor que, em duas sociedades, ambas satisfazem internamente os dois princípios de justiça encontrados em Uma teoria da justiça. Nessas duas sociedades, a pessoa representativa em pior situação em uma delas está em pior situação que a pessoa representativa em pior situação na outra. Suponha que fosse possível, por meio de alguma redistribuição global que permitisse a ambas as sociedades continuar a satisfazer os dois princípios de justiça internamente, melhorar o quinhão da pessoa representativa em pior situação na primeira sociedade. Devemos preferir a redistribuição à distribuição original? O Direito dos Povos é indiferente às duas distribuições. A visão cosmopolita, por outro lado, não é indiferente. Ela se preocupa com o bem-estar dos indivíduos, e, portanto, em determinar se o bem-estar da pessoa globalmente em situação pode ser melhorado. O que é importante para o Direito dos Povos é a justiça e a estabilidade, pelas razões certas, de sociedades liberais e decentes, vivendo como membros de uma sociedade de povos bem ordenados (RAWLS, 2001, p. 157).
Como se pode extrair do que aqui foi trazido sobre o pensamento de Rawls, este autor é um defensor do liberalismo político e de seus valores, levando tal ideia para o âmbito do Direito Internacional, definindo-se que a ideia rawlsiana enxerga os princípios e fundamentos liberais como os corretos a serem seguidos pelos regimes mundiais, uma vez que estão diretamente ligados à prevalência da justiça e da democracia.
Apesar das controvérsias e das críticas que o liberalismo recebe, cabe salientar que a exposição das ideias rawlsianas será de grande importância para o embasamento do presente trabalho e para o conteúdo a ser versado sobre o tema aqui exposto.
2.2. Os modelos internacionais criados em um cenário pós-guerra.
Colocados os fundamentos teóricos relativos ao assunto aqui trabalhado, parte-se neste momento para uma análise da fundamentação histórica, a qual se mostra importante para uma melhor compreensão da matéria. Desta forma, serão analisados o Modelo de Vestfália e o Modelo da Carta da ONU, assim como a relação entre ambos.
2.2.1. O Modelo de Vestfália
O Modelo de Vestfália é compreendido como um cenário surgido na Europa e que veio a instalar no palco internacional a chamada Paz de Vestfália (1648), a qual compreendeu uma série de tratados que encerraram a Guerra dos Trintas Anos (WILSON, 2009) e que fez com que emergissem e passassem a se estabelecer as regras do Sistema de Direito Internacional moderno.
Com a Paz de Vestfália ocorreu o substancial enfraquecimento do Sacro Império Romano-Germânico ou Sacro Império Romano da Nação Germânica, o qual tinha como fundamento a subordinação do mundo cristão a um poder imperial (HEER, 2007). Com tal cenário, passaram a ser estabelecidos conceitos que até hoje fazem parte do pensamento internacionalista, quais sejam: a figura do Estado Nação, a soberania nacional, assim como também o princípio do equilíbrio de poder, tendo como objetivo o estabelecimento de uma paz estável.
Ponendo fine alla sanguinosa Guerra dei Trent’anni, la Pace di Westfalia attribuisce agli Stati tedeschi, che pure rimangono subordinati all’autorità imperiale, il pieno riconoscimento della loro sovranità e indipendenza, con i diritti relativi: di dichiarare la guerra e stipulare la pace, tenere um esercito, amministrare la giustizia e battere moneta. Al di là inoltre delle conseguenze che i trattati firmati a Westfalia hanno per i singoli Paesi, sul più ampio piano della politica europea essi segnano il riconoscimento dell’equilibrio come principio regolatore delle relazioni tra gli Stati e affermano la pluriconfessionalità come dato immodificabile della política europea. Dal punto di vista del Diritto Internazionale, infine, a Westfalia la Comunità Internazionale emerge nei tratti caratteristici che ancora oggi le riconosciamo: insieme di uma pluralità di autorità politiche indipendenti l’una dall’altra, caratterizzate da piena sovranità interna ed esterna, arbitre supreme dei destini dei popoli loro affidati, ma allo stesso tempo interdipendenti: da qui la necessita di regole che comincino a disciplinare la loro vita di relazione (BINDI; D’AMBROSIO, 2005, p. 15).
O Modelo de Vestfália representou uma mudança considerável no campo das relações internacionais, já que a figura do Estado Nação se estabeleceu e a soberania estatal se projetou como um conceito essencial. No âmbito externo, os Estados passaram a gozar de independência, não havendo mais relação de subordinação entre as nações. No âmbito interno, delimitou-se a hierarquização estrutural, estando a figura estatal a ocupar o ponto mais alto e comandando o destino do povo.
Conforme Held (1995), as principais características do Modelo de Vestfália são as destacadas abaixo:
1. The world consists of, and is divided by, sovereign states which recognize no superior authority.
2. The processes of law-making, the settlement of disputes and law enforcement are largely in the hands of individual states.
3. International law is orientated to the establishment of minimal rules of coexistence; the creation of enduring relationships among states and peoples is an aim, but only to the extent that it allows national political objectives to be met.
4. Responsibility for cross-border wrongful acts is a ‘private matter’ concerning only those affected.
5. All states are regarded as equal before the law: legal rules do not take account of asymmetries of power.
6. Differences among states are ultimately settled by force; the principle of effective power holds away. Virtually no legal fetters exist to curb the resort to force; international legal standards afford minimal protection.
7. The minimization of impediments to state freedom is the ‘collective’ priority (HELD, 1995, p. 78).
Com o Modelo de Vestfália ficou estabelecido que os Estados são os únicos atores do Direito Internacional, não existindo subordinação entre eles e também não havendo uma autoridade comum a reger suas relações, ou seja, devido ao fato de as nações gozarem de soberania externa, elas não se submetem a uma ordem hierarquicamente superior.
Como entes soberanos, os Estados gozam de independência e são iguais no palco internacional, uma vez que, como já dito, não se subordinam uns aos outros. Assim, os países são legitimados a desenvolver seus próprios processos legislativos, promulgando leis próprias e aplicáveis dentro apenas de seus territórios, ou seja, suas legislações não se aplicam a outras nações, as quais são livres para promulgarem suas normas internas.
O Direito Internacional traz um mínimo necessário, amparado pelo princípio do equilíbrio, o qual se destina a estabelecer uma relação estável entre os Estados e objetivando o estabelecimento de um cenário de paz nas relações internacionais. No caso de uma possível agressão de um Estado contra outro, o conflito é visto como “particular”, devendo ser resolvido entre os envolvidos e sendo legítimo o uso da força.
Conforme anteriormente indicado, a Paz de Vestfália se consolida no ano de 1648, momento no qual o modelo vestfaliano se instala no palco internacional, porém não foi apenas no âmbito externo que as mudanças passaram a ocorrer, pois internamente os Estados também adentraram em cenários que viriam a alterar drasticamente suas próprias estruturas.
No momento histórico aqui trazido, de uma forma geral os países europeus eram regidos por regimes absolutistas, nos quais o poder era centralizado na figura de um único homem, o soberano, o qual detinha atribuições ilimitadas e agia de acordo com seus próprios anseios e convicções, muitas vezes submetendo o povo a tratamentos desumanos e arbitrários. Assim, diante de tal situação vieram a eclodir as revoluções burguesas, as quais empreenderam a derrubada dos regimes absolutistas e consolidaram o surgimento do Estado Liberal ou Estado de Direito (MOOERS, 1991).
Das revoluções anteriormente citadas, a que se tornou mais notória foi a Revolução Francesa, ocorrida em 1789, a qual consolidou uma série de mudanças significativas que vieram a alterar a estruturação interna do ente estatal, tendo como seu principal diploma a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão.
A Revolução na França contribuiu pouco para o crescimento econômico ou a estabilização política. O que a Revolução efetivamente estabeleceu, porém, foi o potencial mobilizador do republicanismo democrático e a arrebatadora intensidade da mudança revolucionária. A linguagem da regeneração nacional, os gestos de igualdade e fraternidade e os rituais do republicanismo não foram logo esquecidos (HUNT, 2007, p. 37).
Dentre as várias mudanças trazidas pelas revoluções burguesas, deve-se destacar a consolidação das Constituições Nacionais, as quais passaram a ser o diploma político-jurídico supremo dos Estados Nações e amparadas pelo princípio da legalidade, o qual retirou o poder ilimitado da figura do soberano e instalou a ideia do império da lei, visando a proteção dos cidadãos contra atos arbitrários e tendo como base o princípio da separação de poderes, pelo qual as atribuições executiva, legislativa e jurisdicional se tornaram autônomas e passaram a ser conduzidas por indivíduos diferentes, objetivando o equilíbrio e a fiscalização mútuos (MONTESQUIEU, 2005).
No que tange à Revolução Francesa especificamente, um ponto de grande importância relacionado à Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão está ligado ao fato de que com ela foi estabelecida a ideia de caráter universal, ou seja, a intenção daqueles que promulgaram o documento foi a de demonstrar que os valores que nela estavam contemplados não eram inerentes apenas aos franceses, mas sim a todos os povos, independentemente de suas nacionalidades, cabendo salientar que até os dias atuais o diploma em comento é considerado um marco histórico da defesa dos Direitos Humanos, pois foram contemplados diversos princípios para a proteção da vida.
Assim, conforme se pode ver, o Modelo de Vestfália trouxe consigo mudanças de grande alcance, tanto na questão internacionalista, quanto nas estruturações internas dos Estados Nações, mudanças estas que se sustentaram no decorrer do tempo e que se fazem presentes até hoje na realidade mundial.
2.2.2. O modelo da Carta da ONU
No Século XX, o mundo foi palco de dois conflitos armados de grandes proporções, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), as quais deixaram um cenário de destruição e que serviram de base para a implantação de mudanças no campo das relações internacionais. Em 1920 foi criada a Liga das Nações (LN), órgão que foi idealizado para promover a paz em escala global (SILVA, 2008, p. 322-324) e, em 1945, a Organização das Nações Unidas2 (ONU), a qual substituiu a LN e que será fruto das análises do presente tópico.
Diante dos danos e das atrocidades deixados pelas guerras anteriormente indicadas, principalmente a Segunda Guerra Mundial, instalou-se o receio de que um novo conflito de tamanhas proporções poderia ter o condão de colocar em risco a vida no próprio planeta, principalmente pelo fato de que nos momentos finais da Segunda Guerra foram utilizados armamentos com poder de destruição em massa (MANETTI; FIORANI; DE LUCCHI, 2001).
Além do exposto, as consequências da Segunda Guerra Mundial trouxeram à tona uma reflexão sobre a eficácia do Modelo de Vestfália, uma vez que o conflito em comento acabou por se desdobrar devido à aplicação dos princípios vestfalianos, principalmente daquele que tratava agressões entre determinados Estados como questões particulares, as quais deviam ser resolvidas entre as partes envolvidas e sem intervenção dos demais países, o que permitiu que a Alemanha iniciasse seus movimentos bélicos que culminaram na eclosão da guerra.
Diante de tal cenário foi criada a Organização das Nações Unidas, tendo como objetivo a implantação de mudanças na ordem mundial que se instalou pós-Segunda Guerra Mundial e trazendo como bandeira a defesa e a proteção dos Direitos Humanos, estando seus fundamentos principiológicos e estruturais contemplados na Carta da ONU, seu documento fundador.
Com o estabelecimento da Organização das Nações Unidas, o palco mundial adentrou em outro momento e as relações internacionais passaram a ser regidas por um novo sistema, conhecido como Modelo da Carta da ONU, o qual tem suas características descritas por Zolo (1997) da seguinte forma:
First, the subjects of international law are not only states but also international organizations, in particular the United Nations organization. A role, if extremely limited, is also granted to individuals, social groups and peoples having a representative organization. Simultaneously international norms that oblige states to respect the dignity and the fundamental rights of individuals have gradually come into force: a partial ‘erosion of domestic jurisdiction’ has in fact taken place. Second, actual ‘general principles’ of the international legal system have been established that are not only considered binding for all states but prevail, as a mandatory jus cogens, over treaties or customary norms. Of these general principles Cassesse indicates the following, while admitting that not all enjoy the same degree of effectiveness: the sovereign equality of states, the ban on the use of force for the resolution of controversies, noninterference in domestic affairs, respect for human rights. Third, the myth of the legal equality of states has been demolished and differences in power and wealth have assumed legal significance. Fourth, the right of states to resort to war has been restricted to self-defence. The punitive use of force has been entrusted to a centralized body, the United Nations Security Council. Non-compliance with international norms is no longer a private affair between individual states but becomes a public affair involving the whole international community, thereby introducing exceptions to the principle of the absolute sovereignty of states (ZOLO, 1997, p. 95-96).
Como pode se depreender, com a instalação do Modelo da Carta da ONU, importantes mudanças emergiram nas relações internacionais, sendo superados alguns dos fundamentos vesfalianos, que até então estavam em vigor. Os Estados Nações continuaram a deter soberania interna e externa, porém deixaram de ser os únicos membros do palco mundial, uma vez que as organizações internacionais, com destaque para a própria ONU, passaram a integrar também o rol de sujeitos de direito, além também dos próprios indivíduos, dos grupos sociais e das associações, valendo ressaltar que estes três últimos de forma mais restrita.
Ganharam força os diplomas legais internacionais, os quais se materializaram por meio de tratados, convenções, resoluções, declarações, entre outros, e que devem ser observados pelos Estados que a eles aderiram.
Surgiu a “relativização” do princípio da igualdade entre os diferentes países, uma vez que se passou a levar em consideração as assimetrias de poder existentes, principalmente na questão econômica, o que trouxe à tona o fato de que muitas nações se encontram em uma posição de maior fragilidade no palco global e por este motivo necessitam de tratamento diferenciado em certas situações.
O uso da força por parte de um Estado Nação passou a ser legítimo apenas em caso de autodefesa, sendo vedado para dirimir quaisquer outros tipos de controvérsias, as quais devem ser tratadas por meio do campo diplomático. Aqui emergiu também o papel do Conselho de Segurança (CS) da Organização das Nações Unidas, o qual passou a ser legitimado para usar a força em casos punitivos específicos e restritos.
Emergiu como preocupação prioritária a proteção dos Direitos Fundamentais, sendo que estes valores surgiram com a instalação do Estado Liberal, mas que passaram a receber amparo e proteção no âmbito global, consagrando a expressão Direitos Humanos, a qual se liga à questão internacionalista. Inclusive, em 1948 foi promulgada pela ONU a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a qual teve por base a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, estabelecida pela Assembléia Nacional da Revolução Francesa.
Liberté, Egalité, Fraternité, palavras símbolos da Revolução Francesa que deram origem à Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), estão presentes também na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Que há de comum entre a Declaração de 1789 e a Declaração de 1948? A vontade política manifesta de instaurar outra ordem, radicalmente diversa daquela até então vigente (ALMEIDA; PERRONE-MOISÉS, 2002, p. 15).
A Carta da ONU e a Declaração Universal dos Direitos Humanos são consideradas as pedras fundamentais da Organização das Nações Unidas, tendo sido a partir delas que todo o modelo do organismo se desenvolveu e se ramificou no decorrer dos anos, perdurando até os dias atuais e sendo a base do modelo internacionalista contemporâneo.
2.2.3. Uma análise conjunta dos modelos internacionais criados pósguerra.
Colocados os fundamentos teóricos e históricos do tema aqui tratado, passarse-á a uma análise conjunta de ambos, objetivando estabelecer um paralelo entre os conceitos doutrinários que foram expostos e os cenários que se estabeleceram com a instalação dos modelos internacionais anteriormente analisados.
A adaptação do pensamento de Thomas Hobbes e de John Locke para o cenário das relações internacionais estabelece a ideia de que os países se relacionam no palco internacional dentro dos parâmetros do estado de natureza, ou seja, não há uma autoridade comum e superior que rege as relações internacionais. Assim, tal situação é propícia para a eclosão de conflitos, já que cada sujeito age de acordo com seus próprios interesses, o que faz com que a guerra seja uma opção constante em caso de desavenças.
Ao se analisar a adaptação dos pensamentos hobbesianos e lockeanos para o campo das relações internacionais, chega-se à conclusão que tal adaptação se compatibiliza com a situação vivida no campo das relações internacionais durante o Modelo de Vestfália, uma vez que, conforme visto, com a implantação do modelo em comento foi estabelecida a figura dos Estados Nações, à qual se firmou o conceito de soberania estatal, de âmbito interno e externo, e os países passaram a se relacionar no palco global mediante uma relação horizontal, amparada pelo princípio da igualdade, não sendo levadas em consideração as assimetrias de poder existentes entre as nações.
Com o modelo vestfaliano foi consagrado o princípio do equilíbrio, o qual tinha por objetivo estabilizar as relações entre os Estados, buscando o estabelecimento da paz. No caso de agressões entre países, tal situação era vista como “particular” e deveria ser resolvida pelas partes envolvidas. Conforme detalhado em momento anterior deste capítulo, foi exatamente este aspecto que acabou por levar à eclosão da Primeira Guerra Mundial e da Segunda Guerra Mundial, sendo que nesta última os acontecimentos levaram à reflexão de que um novo conflito de tamanhas proporções poderia colocar em dúvida a manutenção da vida no planeta, diante do fato de ter ocorrido o desenvolvimento e o uso de armas de destruição em massa.
Assim, o Modelo de Vestfália demonstrou que o estado de natureza hobbesiano e lockeano era uma realidade e as consequências advindas das grandes guerras ocorridas no Século XX, principalmente da Segunda Guerra Mundial, deixaram claro que mudanças eram necessárias, pois em se mantendo os princípios vestfalianos haveria a possibilidade real do estabelecimento no futuro de um cenário de “guerra de todos contra todos”.
Como trazido no presente capítulo, o Modelo de Vestfália deu lugar ao Modelo da Carta da ONU, estabelecido este com a criação da Organização das Nações Unidas, o qual implantou uma série de alterações em relação aos fundamentos vestfalianos, sendo importante salientar que estes últimos não foram extintos por completo, tendo alguns permanecido, como o conceito de soberania estatal.
Com o Modelo da Carta da ONU, as mudanças principais que se podem destacar são: I) Os Estados Nações deixaram de ser os únicos sujeitos de direito no palco internacional, juntando-se a eles as organizações internacionais, os próprios indivíduos, os grupos sociais e as associações; II) Os diplomas legais internacionais, materializados como tratados, convenções, resoluções, declarações, entre outros, passaram a ganhar força e devem ser observados pelos Estados que a eles aderiram; III) Passaram a ser consideradas as assimetrias de poder entre as nações, o que levou a uma “relativização” do princípio da igualdade, já que determinados países se encontram em situações mais fragilizadas em relação a outros; IV) O uso da força por parte de algum Estado passou a ser legitimado apenas em caso de autodefesa, dando-se prioridade à solução de controvérsias por meios diplomáticos e pacíficos. Assim, estabeleceu-se o Conselho de Segurança das Nações Unidas, órgão que passou a ter a prerrogativa de autorizar o uso da força em situações específicas como meio punitivo; V) Consagrou-se a prioridade de defesa dos Direitos Humanos, sendo estes valores universais de proteção aos indivíduos e à sua dignidade, tendo como documento básico a Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada pela própria ONU.
Ao se analisar as características do Modelo da Carta ONU, entende-se que elas se compatibilizam com os pensamentos de dois autores anteriormente citados neste capítulo, quais sejam: Hugo Grotius e Immanuel Kant.
Grotius trouxe o conceito de Direito das Gentes, segundo o qual os Estados, além das suas leis internas, deveriam respeitar um mínimo universal comum, voltado à relação das nações entre si e visando a proteção dos indivíduos, principalmente em momentos conflituosos e períodos de guerra.
Kant estabeleceu o pensamento de que os países deveriam formar uma federação de Estados livres, cada um destes tendo uma Constituição republicana e sendo estabelecido um Direito Cosmopolita, baseado na hospitalidade universal. Com tal pensamento, o autor também acabou por estabelecer a ideia de um mínimo universal a reger as relações internacionais e visando a proteção dos indivíduos. Inclusive, Kant propôs a criação de uma liga de paz, a qual teria como função guardar o Direito Cosmopolita e assegurar um cenário de paz permanente.
Assim, entende-se que os pensamentos de Grotius e de Kant estão ligados ao Modelo da Carta da ONU, principalmente no que tange à proteção e à defesa dos Direitos Humanos, os quais são prioritários e devem ser vistos como um mínimo universal a ser respeitado por todos os Estados, já que têm por objetivo resguardar a vida humana e sua dignidade. A ideia kantiana sobre a liga de paz, inclusive, mostrouse visionária, pois tal liga pode ser enxergada na materialização da própria Organização das Nações Unidas.
No que tange ao pensamento de John Rawls, a ideia do autor segue pelo caminho de que as normas de Direito Internacional, assim como os próprios organismos internacionais, devem ter como orientação os princípios do liberalismo político, pois este sistema é o único capaz de assegurar o estabelecimento da democracia e da justiça, algo que se comprova ao se analisar as características dos povos liberais razoáveis e dos povos decentes.
Rawls entende que a aplicação dos princípios do liberalismo político no sistema internacional é a única forma de fazer com que países submetidos a regimes autoritários possam vir a se democratizar, sendo a Organização das Nações Unidas o palco ideal para pressões diplomáticas que levem a um quadro de mudança e de disseminação da democracia. O pensamento rawlsiano também estabelece que em casos graves de violação dos Direitos Humanos por parte de determinado Estado, o uso da força deve ser utilizado para fazer cessar a situação.
Conforme se pode depreender, o pensamento de John Rawls está coadunado com o Modelo da Carta da ONU, uma vez que os documentos fundadores da Organização das Nações Unidas possuem matriz liberal e o Conselho de Segurança é um órgão legitimado para autorizar o uso da força em casos de violação aos Direitos Humanos por parte de algum país.
Em relação ao pensamento de Hans Kelsen, há uma outra ótica sobre as questões aqui versadas, uma vez que a ideia do autor estabelece que o Direito Internacional e os Direitos Nacionais de cada Estado fazem parte de um mesmo todo, estando o primeiro em posição hierárquica superior aos últimos, o que se entende por teoria monista.
Ao delimitar tal pensamento, Kelsen estabelece a ideia da supranacionalidade ou mesmo da supraconstitucionalidade, uma vez que os ordenamentos jurídicos de cada Estado devem estar coadunados com as normas de Direito Internacional, ou seja, as Constituições, diplomas maiores dos sistemas legais de cada país devem se harmonizar com os diplomas normativos externos. Em caso de colisão, prevalecerão os últimos.
O que se poder afirmar é que o Modelo da Carta da ONU não se fundamenta no pensamento kelseniano, pois se trata de um modelo no qual as soberanias estatais permanecem preservadas, herança dos princípios vestfalianos, sendo as Constituições os diplomas legais superiores e dos quais emanam as normas a serem observadas. Assim, o pensamento de Kelsen possui aspectos que o ligam a outro modelo internacional, o qual ainda não faz parte da realidade atual.
2.3. A relação estado-nação em uma sociedade internacional
Para compreender a conceituação do Estado-nação, bem como sua posição na globalização que avança na sociedade internacional, parece necessário analisar, antes, a própria conceituação da nação e do Estado e a sua interrelação política.
2.3.1. O processo de desenvolvimento da ideia Estado-nação
A identidade do sujeito, desde a modernidade, é comumente atrelada à noção de nacionalidade. Embora essa identificação seja culturalmente concebida de maneira metafórica, mesmo assim, parece difícil não concordar que as pessoas comumente – e efetivamente – se percebam como sujeitos duma identidade nacional, e isso parece fazer parte de sua essência (HALL, 2003, p. 47)
Essa identificação, todavia, não é apenas cultural. Ela, na verdade, determina todo o sistema político ainda hoje vigente.
Afinal, como lembra Jürgen Habermas (2002, p. 121), a sociedade internacional é organizada com base em Estados nacionais, como revela a própria designação “Nações Unidas”, formação que deriva do histórico legado pelas revoluções liberais do século XVIII, em especial a francesa e a norte-americana.
Portanto, parece ser a lógica do Estado-nação que orienta a forma de compreender as relações político-jurídicas, tanto entre “concidadãos” quanto na projeção do direito internacional. Para se compreender essa lógica, porém, parece necessário analisar os aspectos políticos que envolvem tanto a ideia de nação quanto a de Estado.
A despeito de já se reconhecerem estruturas político-institucionais do Estado moderno antes mesmo dos “nacionalismos” europeus aparecerem, explica o próprio Habermas (2002, p. 126), “somente a partir das revoluções do final do século XVIII é que Estado e nação se fundiram para se tornar Estado nacional”. Esse fenômeno, portanto, acompanhará ou será acompanhado, então, pelo movimento políticoideológico do constitucionalismo, principalmente a partir dos fatos ocorridos na França e nos Estados Unidos da América.
Miguel Carbonell (2010, p. 72), aliás, lembra que não só o constitucionalismo moderno teve ponto de partida nos EUA, mas seu intuito era, ali, fundar uma nação, independente, baseada numa filosofia política liberal.
Mas o discurso do nacionalismo, na verdade, funcionaria, antes, como pressuposto da unidade constitucional.
Sendo as identidades nacionais conformadas no interior das representações, a nação, enquanto comunidade simbólica, é algo que produz sentidos, num sistema de representação cultural, algo que traduziria, em si, um conjunto de significados (HALL, 2003, p. 48-49), os quais, todavia, são apropriados, controlados e transmitidos pelo discurso, e a partir do aprimoramento de instituições que fixam os destinatários dessa comunicação.
O discurso do nacionalismo aparece, então, como significado próprio para criar uma comunidade e, a seguir, fundamentar sua organização na retórica desse mesmo discurso.
A construção moderna de sujeitos e realidades políticos, assim, acontece a partir da própria construção da nação. Nesse sentido, o discurso liberalconstitucionalista como “representação do mundo” alcançaria na modernidade “sua larga difusão em forma de senso comum, mas caracterizadamente por meio da categoria de representação, responsável pela construção unitária do povo, da nação, apesar da força pulverizante do nominalismo individualista” (ALBUQUERQUE, 2015, p. 200).
Talvez por isso Stuart Hall (2003, p. 59) afirmaria que uma cultura nacional é sempre – não um ponto de lealdade, união, identificação simbólica – uma estruturação de poder.
É a partir da nação que se instituem os semáforos, os signos do discurso utilizados na superposição duma visão sobre o todo, pela consolidação de instituições que dão respaldo à versão progressista da história social, tarefa na qual, inclusive, a construção dum patrimônio cultural “nacional” e “oficial”, duma historiografia própria, dum consciente comunitário, é sempre uma prioridade (uma preocupação), no sentido de impedir que outros grupos identitários instituam seus próprios símbolos, sua própria historicidade, sua própria identificação – concorrência que pode dificultar o controle das verdades, das formas, enfim, do discurso “oficial” (CHAUI, 2006, p. 119).
E a identidade do sujeito, assim, vai sendo construída a partir desse imaginário, dessa imagem própria, construída a partir de outras imagens, que lhes são anteriores e superiores, no âmago das quais ele se identifica pela expropriação subjetiva – como explica Dominique Colas:
O ‘eu’ constrói-se por via duma alienação original sobre a qual se edificará a série de imagens que especificam o sujeito. Mas este nascimento do sujeito como ‘eu’, como ‘ego’ mostra que o imaginário é sempre imaginário do corpo que se projeta, se despoja, se despedaça, se recombina, se desprende e junta o sujeito a outros sujeitos, eles próprios comandados por esse jogo de espelho fundador (COLAS, p. 353).
Nesse sentido, então, é que se destaca a doutrina do poder constituinte, que se apresentou – e se reapresenta, sempre que oportuno – com o escopo de reordenar a nação, a partir da premissa da necessidade de renovação do pacto social, e, inicialmente da perspectiva de teorizar a nação como “força capaz de constituir a sua própria organização” (MACEDO, 2009, p. 40).
A concepção basilar, nessa teorização, seria a de que, mais do que limitação de poderes, o movimento do constitucionalismo deveria traduzir a legitimidade da nação, visto que a noção fundamental seria a de que os poderes e as normas do ordenamento devem ser decididos pela nação: “Essa ideia traduz-se no reconhecimento de que existe um Poder Constituinte originário incrustado na consciência da nação, capaz de se justificar pelo seu próprio argumento de ser ele o poder que estabelece a constituição […]” (MACEDO, 2009, p. 42).
Tradicionalmente, o constitucionalismo – numa dimensão reconstrutiva do discurso que orientou as revoluções liberais – é cultuado como teoria-ideologia de limitação ao poder, instrumentalizada como garantia às liberdades, numa dimensão estruturante da organização político-social, o que revelaria, assim, algum juízo de valor, que, por sua vez, alimentaria uma teoria normativa da política; mas, doutro lado, também seria visto como movimento sociopolítico-cultural de questionamentos e (re)proposições acerca das forças e dominações políticas tradicionalmente mantidas, num panorama de criação de novas conformações e fundamentações do poder, confrontando as instituições antigas (CANOTILHO, 2003, p. 51- 55).
Mas, além disso, no discurso do constitucionalismo a organização da estrutura político-estatal, sob a ideologia do contrato social, traduziria um movimento democrático, isto é, “como uma ordem de domínio legitimada pelo povo” (CANOTILHO, 2003, p. 98-100).
E, assim, esse elemento democrático é introduzido na concepção moderna do “Estado constitucional”, não apenas para discursar sobre a limitação do poder, mas também pela necessidade dum discurso que possa legitimar as normas e as formas, tanto quando se fala da construção do sistema jurídico, quanto do exercício político.
Dessa maneira, todavia, vai se consolidando um certo tipo de saber sobre as fórmulas jurídicas e os modos de produzir e controlar as realidades, a partir do direito constitucional, que enxergaria o “mundo” conforme os desígnios escritos nos textos e propagados pelos “juristas”, sob um discurso de liberdade, de igualdade e de fraternidade.
Epistemologicamente, o direito – como a filosofia – seria uma disciplina que conserva o monopólio de sua própria história e que, por isso, faz uma história interna, “uma história sem agentes”, como lembra Pierre Bourdieu; por outro lado, contudo, todas as (re)construções teóricas, ao explicarem as instituições, descrevem certamente suas harmônicas relações de causa-efeito, “mas esquecemos que essas próprias ideias são oriundas de lutas dentro das instituições” e que somente percebendo que “elas são, a um só tempo, o produto de condições sociais e produtoras de realidades sociais, construtoras de realidades sociais, que podemos compreendê-las por completo” (BOURDIEU, 2014, p. 442-443).
No discurso do Estado-nação, o “princípio democrático” passa a ser visto como processo de continuidade transpessoal, dinâmico, inerente à sociedade aberta e ativa, onde se pudesse oferecer aos cidadãos a possibilidade de desenvolvimento e de participação, em condições de igualdade, supondo-se, ainda, também como processo de democratização econômica etc. Afinal, se, por um lado, o poder político assenta em estruturas de domínio, por outro, a ideia de democracia – numa análise tradicional – implicaria numa forma de organizá-lo (o poder), a partir de ideias de autodeterminação e autogoverno, acreditando-se constituído, legitimado e controlado pelos cidadãos – “igualmente legitimados para participarem no processo de organização da forma de Estado e de governo” (CANOTILHO, 2003, p. 290).
Acontece que o discurso democrático do nacionalismo vai, antes, disfarçar as relações de poder subjacentes, cujo vetor, nessa nova forma de dominação, está no movimento do constitucionalismo moderno.
Na verdade, o discurso constituinte, reverberado desde virada do século XVIII para o XIX, desandaria por acabar “permitindo” tentativas de limitar, com discriminação, a praticidade do pretexto político-ideológico que fora nomeado de soberania nacional-popular, por exemplo, “através da adoção do voto censitário e da exclusão de vastos contingentes populacionais do processo de representação” (MACEDO, 2009, p. 37).
A adoção duma estrutura constitucional que toma por base e propõe a representatividade política – formulando o desenvolvimento duma visão de corpo político como motor democrático que, todavia, funciona antidemocraticamente, porque não apenas a sistemática da representação é controlada (voto censitário, exclusão de contingentes sociais, aristocracia perpetuadas no poder etc.), mas a própria mola propulsora (a força da nação) é construída a partir do jogo de dominação que acontece na instalação do Estado – vai pressupor e necessitar, sempre, da aceitação (individual e grupal) de que todos fazem parte da mesma massa nacional, têm as mesmas aspirações políticas, partem das mesmas premissas socioeconômicas, compartilham a mesma imagem, a mesma memória, a mesma cultura etc.
E é na “constituição”, então, que o nacionalismo e o liberalismo finalmente se encontram. A nação aparece como a força que desenha a constituição, estruturando o Estado; a representação popular põe esse sistema em funcionamento, sob um discurso de legitimidade.
Isso explicaria como democracia liberal-representativa e Estado nacional são, no âmago, indissociáveis, como diz Emilio Santoro (2011, p. 71-73), pois “a regra da decisão democrática se funda sobre o pressuposto de que, sobre muitas questões, exista um acordo ‘pré-político’ que garanta que a solução de tais questões não demandará jamais uma decisão ‘democrática’”, ou seja, as estruturações políticojurídicas já são formuladas a partir de pressupostos de consenso – que, no entanto, são inscritos no inconsciente e imaginário coletivos apenas pela transmissão do discurso de legitimidade e justiça do direito constitucional.
Estendendo-se dessa perspectiva, a construção do Estado-nação pode ser compreendida, segundo Jürgen Habermas (2002), como um processo paralelo, que desenvolve tanto a ideia de nação quanto a noção de Estado.
2.3.2. O Estado-nação como um sistema de liberdade e legitimação social
O Estado moderno – modelo teórico-político que até hoje orienta o sistema internacional – teria aparecido como uma unidade autônoma; mas uma autonomia que pressupõe, justamente, uma pluralidade e, ao mesmo tempo, sua desconexão com qualquer coisa acima ou além de si.
Pensar o Estado moderno, então, pressupõe a coexistência de outras unidades, igualmente autônomas, distintas e, até mesmo, opostas entre si.
A partir da teorização de Jean Bodin, na metade do século XVI, o conceito de soberania “designaria o caráter de todo poder não-vassalo e, particularmente, o caráter do poder real, que não seria vassalo de nenhum outro” (MATIAS, 2014, p. 35). Essa conceituação serviria de base para o firmamento da chamada Paz de Vestefália (1648), resultante de tratados assinados na Europa, onde se reconheceu que os Estados tinham, cada um, sua soberania, isto é, um poder que não se subordinava a qualquer outro e suas decisões internas valiam de maneira independente e suprema, marcando, assim, os primórdios do funcionamento da atual sociedade internacional:
De acordo com tais regras, o mundo é dividido em Estados soberanos iguais perante a lei, não importando as possíveis assimetrias de poder existentes. Esses Estados concentram em suas mãos o processo de criação e execução do direito e não reconhecem a existência de uma autoridade superior. A minimização das restrições à liberdade estatal é uma prioridade coletiva, e ainda que os Estados procurem estabelecer relações duradouras entre eles, tais relações não podem impedi-los de atingir seus objetivos políticos (MATIAS, 2014, p. 37).
Disso derivaria a percepção, então, de que o direito internacional traduziria apenas regras de coexistência ou de convivência entre Estados, cuja violação, nesse sentido, interessaria somente às partes envolvidas, sendo que, no fim, as disputas interestatais seriam tradicionalmente resolvidas com “uso da força” (MATIAS, 2014, p. 37).
Por outro lado, dizer que o Estado passa a ser uma entidade autônoma e específica é compreender que nele funciona uma forma de governar que ultrapassa as relações de governança que não sejam estritamente políticas, isto é, “o Estado não é uma casa, nem uma igreja, nem um império”; ele é, na verdade, “uma realidade descontínua e específica”, que só existe para si e em relação a si mesmo (FOUCAULT, 2008, p. 7).
Talvez por isso diria Pierre Bourdieu (2014, p. 95) que, na gênese do discurso público, “o Estado tem por efeito fazer crer que não há um problema do Estado”.
Disso se pode extrair uma crítica às questões estatais fundamentais, isto é, que dão fundamento ao discurso do Estado-nação.
Segundo analisa Pierre Bourdieu (2014, p. 66), a visão que se apôs tradicionalmente sobre a construção estatal (“como conjunto de pessoas organizadas que mandatam o Estado”), é obra dum certo fetichismo social, ou melhor, é uma visão implicitamente “democrática”, mas que seria completamente falsa, por conceber o Estado-nação a partir duma comunidade originária, preexistente, que se organizou para criar as estatalidades.
Eric Hobsbawn (2013, p. 19), analisando programas, mitos e realidades históricas do Estado nacional, identifica que, na verdade, “as nações não formam os Estados e os nacionalismos, mas, sim, o oposto”.
Nesse sentido, ademais, é que Bourdieu explicaria a construção do Estadonação como produto de agentes sociais (os juristas, em particular), da utilização de recursos organizacionais, de discursos de autolegitimação, de destinos de conjunto, de falas oficiais que traduzem ordens lógicas sobre o organicismo nacional:
Em outras palavras, foi construindo essa espécie de organização sem precedente, essa espécie de coisa extraordinária que é um Estado, construindo esse conjunto de recursos organizacionais – ao mesmo tempo materiais e simbólicos – ao qual associamos a noção de Estado, que os agentes sociais responsáveis por esse trabalho de construção e de invenção construíram o Estado, no sentido de população unificada falando a mesma língua, ao qual geralmente associamos o papel de causa primeira (BOURDIEU, 2014, p. 66).
Hardt e Negri (2001, p. 111-112) explicitam, por outro lado, que “o conceito de nação na Europa desenvolveu-se no terreno do Estado patrimonial e absolutista”, que antes era definido como propriedade do monarca, traduzindo um tipo de soberania, que reinava para manter a paz entre os súditos, num território próprio, onde “até a religião era propriedade do soberano”.
A concepção de nacionalidade como poder político supremo encontraria suas raízes, assim, nas transformações institucionais promovidas pelo que se tem chamado de absolutismo, num contexto europeu onde “o processo de concentração e de centralização do poder levava à absorção de unidades políticas menores e mais fracas”, o que consolidaria novos tipos de instituições, de caráter nacional, dando origem à noção de ordem jurídica estatal, abrangente de territorialidades, criando um sistema de poder uniforme, porém centrado num único núcleo de validação e força, como descreve Eduardo Felipe Matias (2014, p. 41):
Nele, as fronteiras territoriais passam a coincidir crescentemente com uma ordem jurídica uniforme e novos mecanismos de produção e execução de leis são criados. A administração fiscal, antes dispersa, é centralizada e desenvolvida. Por fim, as relações entre Estados são formalizadas por meio do desenvolvimento das instituições diplomáticas, e exércitos permanentes são formados.
Mas o despontar do movimento liberal levaria à transformação do modelo absolutista e patrimonial, destacadamente pela substituição da fundamentação teológica do direito divino por outra fundamentação igualmente transcendente: “a identidade espiritual da nação, mais do que o corpo divino do rei, agora propunha o território e a população como abstração ideal” (HARDT; NEGRI, 2001, p. 112-113).
Assim, “o território físico e a população foram concebidos como extensão da essência transcendente da nação”, de modo que “essa nova totalidade de poder foi estruturada em parte pelos novos processos capitalistas produtivos, de um lado, e pelas velhas redes de administração absolutistas, de outro”, numa relação ambígua que, todavia, foi estabilizada pelo discurso da identidade nacional: “uma identidade cultural e integradora, fundada num continuidade biológica de relações de sangue, numa abrangência espacial de território, e em comunalidade linguística” (HARDT; NEGRI, 2001, p. 113).
Mas da herança apropriada pelo movimento e discurso do liberalismo fazia parte um Estado que já havia se tornado uma gerência específica, segundo Michel Foucault (2008, p. 8), com objeto próprio de governança, que já não reproduzia mais a relação de paternidade dos reis com seus súditos. Existiram, para o autor, ao menos 3 (três) fatores ou práticas que demonstrariam como se consolidou a maneira de pensar e governar o Estado moderno – maneiras precisas de governar: o mercantilismo como economia, a regulação policial da ordem interna e as relações externas equilibradas pela diplomacia e pelo exército.
Mercantilismo, Estado de polícia e balança europeia, portanto, traduziriam 3 (três) maneiras de governar conforme uma racionalidade que teve por princípio e domínio de aplicação o Estado – “tudo isso foi o corpo concreto dessa nova arte de governar que se pautava pelo princípio da razão de Estado” (FOUCAULT, 2008, p.8)
Nesse sentido, então, o Estado surgiria, na verdade, não como uma natural e tendenciosa agremiação da modernidade pós-medieval, mas a partir duma certa maneira de pensar o governo político, isto é, “o correlato de uma certa maneira de governar” (FOUCAULT, 2008, p. 9).
É basicamente dessa realidade que vai se apropriar o discurso revolucionário do liberalismo, isto é, duma lógica de governabilidade que interrelaciona a economia, a manutenção da ordem e o equilíbrio internacional. Muda-se apenas o discurso sobre a condução da economia, que vai ser construído no âmbito de um direito público que tem como centro a perspectiva do livre mercado.
O pensamento liberal-democrático de Locke e Rousseau teria fomentado o processo de contestação ao poder monárquico, “introduzindo na sociedade ideias como a valorização da nação e do indivíduo” (MATIAS, 2014, p. 44). Com a ascensão desse pensamento, a soberania popular-nacional, que expressaria a tal vontade geral, substituiria a concepção de soberania do monarca: “Essa substituição consolidou-se com a Revolução Francesa. Nela, o indivíduo do povo tornou-se de fato cidadão e, daí em diante, ao menos idealmente, nenhum indivíduo sozinho poderia mais – mesmo sendo ele rei – apropriar-se da soberania” (MATIAS, 2014, p. 45).
O modelo de Estado soberano, ainda hoje compreendido, seria construído a partir duma lógica de liberdade, no centro da qual o indivíduo é o titular da soberania (Locke), porque submetido à sua própria decisão, quando integra a “vontade geral”, que, por sua vez, traduziria um discurso de igualdade (Rousseau), ao subjugar todos à mesma norma e, concomitantemente, ao corpo político unitário – a nação – que expressa o poder supremo dentro dum território (MATIAS, 2014, p. 44-48).
Na análise de Jürgen Habermas (2002), o Estado nacional tem um êxito histórico, que se apresenta em 2 (duas) perspectivas. Em primeiro ponto, teria consolidado o monopólio da força para imposição da ordem, internamente, contra outros poderes concorrentes; seu êxito, portanto, estaria medido pela conquista – ou construção – da paz nacional, o que se traduziria numa capacidade de, internamente, fazer valer a ordem jurídica, e, externamente, de autoafirmação diante da concorrência “anárquica” (HABERMAS, 2002, p. 124-125).
Em segundo plano, o Estado-nação teria logrado – ou para tanto pressupôs – a separação entre Estado e sociedade, ou seja, uma lógica de “especificação funcional do aparelho estatal”; nesse sentido o Estado apareceria como aparato e função administrativa, que nada produz no domínio público (deixando livre a iniciativa privada); funcionaria apenas como arcabouçou jurídico e infraestrutura para a economia; teria um direito positivo, que é impositivo para o Estado e permissivo para o indivíduo (HABERMAS, 2002, p. 126).
Esse protagonismo que se atribuiu ao indivíduo, à sociedade, ao povo, por sua vez, traduz a lógica que orientaria a consolidação dos Estados nacionais, que teriam sua soberania desvinculada da figura do rei, e passariam à nação, única força política que justificaria e legitimaria a organização estatal. À nação se atribui o poder de constituir o Estado.
É na teoria do poder constituinte que a nação toma dimensão política, aparece como um todo social integrado pelo conjunto de indivíduos dispersos, que compõem uma cadeia produtiva. A nação exclui privilégios, agregando todos em torno dum projeto de desenvolvimento econômico, sob um discurso igualitário. E a constituição redigida pela nação tem o papel de estabilizar essa realidade. A criação e a organização do Estado constitucional são produtos do exercício desse poder constituinte, o qual resultaria do direito natural da nação, que é jurídico-politicamente a titular da soberania, enquanto composta pela massa de indivíduos agregado no projeto de constituir o Estado. Uma soberania que é atualizada e esgotada no exercício desse próprio poder (BERCOVICI, 2013, p. 137).
Na doutrina de Sieyès, antes de ser um programa normativo de contenção do poder, a Constituição configuraria “um estatuto carregado de denso conteúdo político”, que se compõe de juridicidade por força da “consciência suprema e ilimitada da nação”, único sujeito que tem a prerrogativa de estabelecer a constituição, como uma espécie de “direito natural”, sendo que a energia geradora e propulsora dessa ação é expressa na “vontade nacional” (MACEDO, 2009, p. 43).
Nesse sentido, a revolução francesa, na análise de Gilberto Bercovici (2013, p. 134), “não era apenas uma reviravolta política bem-sucedida, mas um movimento irresistível da revolta do povo soberano”, já que, a partir de 1789, tanto o “processo revolucionário” quanto a “consciência da revolução” revelam-se indissociáveis, na percepção acerca das modificações na organicidade política e social, como uma reformulação que se pretende legítima e universal, entendida como “mudança total”.
Na concepção de Pierre Bourdieu (2014, p. 103), todavia, “o Estado é um fantasma…”, isto é, uma coisa personificada que se inscreveu no referente imaginário, em nome e em razão do qual seus teóricos falam, produzindo tanto um discurso – pretensamente desinteressado – quanto a crença na universalidade do discurso sobre o Estado – reforçada pela teatralização. Nesse sentido, segundo ele, “o Estado é, em grande parte, produto de teóricos” (BOURDIEU, 2014, p. 63).
Certamente, a construção do Estado-nação é devida aos aportes teóricos dos “juristas”, como diz o autor, interessados numa concepção de comunidade política que se unificasse tanto “contra as regiões e províncias” quanto “contra as divisões em classes”, isto é, um trabalho de unificação, a um só tempo, “transregional” e “transocial” (BOURDIEU, 2014, p. 450-451).
Os constitucionalistas, que pensaram o Estado-nação como uma nova plataforma socioeconômica, organizada como sistema de liberdade, acabariam fomentando teorias, ou melhor, discursos que até hoje seduzem pela pureza, desinteresse e positividade que transmitem.
Pierre Bourdieu (2014, p. 451) os resume em 3 (três) contribuições “mais decisivas”: em primeiro lugar, a noção de Estado e nação; além da invenção dum “espaço público”, um campo político legítimo; e, ademais, a ideia de “cidadão”, por oposição àquela de “súdito”.
A invenção da nação teria desempenhado papel catalisador, nessa transformação do Estado moderno em república democrática, especialmente por ter criado o contexto cultural, forjando uma coesão social laica, na qual os “súditos” puderam se autoidentificar como “cidadãos politicamente ativos” (HABERMAS, 2002, p. 128).
O “Estado constitucional”, nesse sentido, “homogeneíza a nação pela extinção dos privilégios e o estabelecimento de um direito igual” (BERCOVICI, 2013, p. 137).
Portanto, o Estado-nação, segundo Habermas (2002, p. 128), teve o mérito de que, “com base em um novo modo de legitimação”, “tornou possível uma nova forma de integração social”:
A partir do final do século XVIII, a nação irá se arrogar a soberania das leis e irá superar o dualismo contratual das leis fundamentais. A soberania ilimitada e absoluta de Hobbes vai se realizar na Revolução Francesa. Com esta nova dimensão políticojurídica para o Estado, a constituição vai ser criada pelo poder constituinte, não mais pelos estamentos. E a lei passa a ser entendida como fruto da vontade geral (BERCOVICI, 2013, p. 135).
O giro político-jurídico provocado pela ascensão do discurso da participação democrática refletiria na mudança de posição e compreensão do indivíduo diante do poder estatal, que passou do direito de “integrar o Estado”, não mais como submissão à autoridade central, porém como membro ativo, à condição conquistada “por cidadãos participantes do exercício da autoridade política” (HABERMAS, 2002, p. 128-129).
Quando propagou a ideia de soberania nacional, haveria Sieyès pensado numa massa política que constituiria o Estado como seu instrumento, para servir à “sociedade civil já capaz de se auto-organizar por si mesma”, de modo, portanto, que a nação equivaleria ao Estado, que fora pensado como “solução pragmática para satisfazer concretamente o problema de decidir a política em uma sociedade preocupada com a produção de riquezas” (BERCOVICI, 2013, p. 136).
A soberania baseada na autoridade popular transmudaria os direitos dos súditos em direitos dos cidadãos, ou seja, “em direitos liberais e políticos de cidadania”, formalmente titularizados por sujeitos iguais, autores e destinatários do poder, de modo tal que “o Estado constitucional democrático”, no discurso do nacionalismo, seria “uma ordem desejada pelo próprio povo e legitimada pelo livre estabelecimento da vontade desse mesmo povo” (HABERMAS, 2002, p. 129).
Mas entre a força da soberania popular e a ideia dos direitos individuais, na tomada da soberania, restaria um espaço disforme que precisaria ser animado por um motor capaz de propulsar as reformulações político-jurídicas necessárias para contemplar essa integração social vinculativa. “Essa lacuna é preenchida pela ideia de nação”, como explica Jürgen Habermas (2002, p. 129), pois é o nacionalismo que “torna consciente aos habitantes de um mesmo território a nova forma de pertença a um todo”, pertencimento que passa a ser mediado política e juridicamente:
Apenas a consciência nacional que se cristaliza em torno da percepção de uma ascendência, língua e história em comum, apenas a consciência de se pertencer a ‘um mesmo’ povo torna os súditos cidadãos de uma unidade política partilhada – torna-os, portanto, membros que se podem sentir responsáveis uns pelos outros (HABERMAS, 2002, p. 129).
Na teoria de Sieyès, a nação é uma força política que não está submetida a qualquer outra, nem a regras jurídico-constitucionais, sendo independente e absoluta no exercício do poder:
Para Sieyès, o Estado nasce juridicamente da constituição para garantir e aperfeiçoar os direitos emanados do estado de natureza, isto é, a constituição fundamenta e limita o poder do Estado. A soberania permanece, no entanto, latente, podendo ser exercida excepcionalmente em caso de violação despótica dos fins do Estado. A titularidade da soberania é da nação e seu exercício se dá pelo poder constituinte, nunca pelos poderes constituídos. Sieyès, deste modo, destaca a necessidade de institucionalizar o processo revolucionário com o Estado constitucional (BERCOVICI, 2013, p. 138).
O discurso da nação, desse modo, estruturaria juridicamente a coesão social baseada na soberania do “espírito do povo”, fundindo artificialmente, numa só comunidade homogênea e amorfa, as “antigas lealdades” e formando alguma nova “consciência nacional” (HABERMAS, 2002, p. 129-130).
2.3.2.1. A estruturação do nacionalismo nas sociedades modernas
Hoje o Estado-nação faz parte da realidade política mundial, justamente por ter logrado superar outras formações comunitárias, mais antigas (HABERMAS, 2002, p. 122).
Eric Hobsbawn (2013, p. 18-19) esclarece que a “nação” pertence ao período recente na historiografia humana, um período particular, e não se trata duma entidade social originária ou imutável, mas dum artefato, que é objeto dum discurso – o nacionalismo – apropriado numa perspectiva institucionalizada (estatal), enfim, de modo tal que os nacionalismos, na verdade, vêm antes das nações.
O processo de consolidação da nação, ou melhor, a sobrevivência da sociedade nacional seria devida, também, à organicidade do Estado moderno (HABERMAS, 2002, p. 126), que acomodou a praticidade do discurso do nacionalismo.
Para tanto, porém, foi necessário criar o substrato nacional (pré-político) da entidade estatal (política).
Seria necessário criar uma nação, para justificar o Estado a ser por ela criado – em palavras metafóricas, a galinha precisa chocar um ovo que, ao mesmo tempo, deve gera-la.
A lealdade e a identificação, na pré-modernidade, ou sociedade tradicional, estão ligadas à tribo, à religião etc. Modernamente, é o Estado-nação que aparece como fonte de significados para a identidade cultural (HALL, 2003, p. 49).
É nesse sentido, então, que se pode dizer que, se “as identidades nacionais não são coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação”, a nação aparece como sistema de representação cultural, como explica Stuart Hall (2003, p. 48-49), “não é apenas uma entidade política, mas algo que produz sentidos”.
A nação é construída com base no despertar de, praticamente, 2 (dois) – por assim dizer – sentimentos coletivos: “lembranças de uma história partilhada” e “desejo de seguir vivendo em conjunto” (MATIAS, 2014, p. 45).
Passado e futuro, assim, vão delinear o contexto temporal da identidade nacional, que, paradoxalmente, vai se tornando atemporal.
Stuart Hall (2003, p. 58) identifica os elementos da nação como comunidade imaginada nas memórias do passado, no desejo por viver em conjunto e na perpetuação da herança cultural. E, segundo o autor, o discurso do nacionalismo conseguiria unificar tais elementos, numa identidade simbolicamente ligada tanto à condição de membro do Estado-nação quanto à identificação com a cultura nacional – revelando seu potencial de esterilização das microidentidades; o nacionalismo funciona como homogeneização: “[…] não importa quão diferentes seus membros possam ser em termos de classe, gênero ou raça, uma cultura nacional busca unificálos numa identidade cultural, para representá-los todos como pertencendo à mesma e grande família nacional.” (HALL, 2003, p. 59).
Os motores do nacionalismo, segundo Jürgen Habermas (2002), podem ser identificados tanto numa razão conceitual quanto numa razão empírica.
Ao analisar o conceito e formação do Estado constitucional na modernidade, Jürgen Habermas (2002, p. 132-133) constata que o nacionalismo iria responder a uma problemática conceitual, na configuração da nova realidade política, já que “o voluntarismo da decisão em favor de uma práxis constituinte não passa de ficção racional-jurídica”, porquanto, na verdade, é à sorte dos acontecimentos históricos – guerras externas e conflitos internos – que compete a demarcação dos limites das comunidades políticas, de modo que não se poderia explicar a organização políticoconstitucional dos Estados nacionais com base num aspecto normativo, isto é, como se houvesse de fato algum “direito à autodeterminação nacional”. Seria necessário elaborar e desenvolver substrato teórico de legitimação, contexto no qual, justamente, o nacionalismo ofereceria solução à ficção do contratualismo constitucional, dando formação espontânea e natural – embora artificial – ao Estado-nação e suas fronteiras (HABERMAS, 2002, p. 133).
Mas também haveria uma razão empírica no desenvolvimento do sentimento nacionalista. É que, se, por um lado, a artificialidade do mito nacional faz o nacionalismo ser vulnerável à dominação política de quem estiver à frente do processo estatal constituinte, principalmente pela via belicosa, do outro lado, porque o nacionalismo agrega de maneira igualitária os indivíduos debaixo duma linguagem política única, revela-se também como mecanismo de equalização social. Nesse sentido, o apelo aos êxitos da política externa (uma espécie de patriotismo) pode servir à neutralização dos conflitos internos – “mecanismo sociopsicológico do qual os governos sempre fizeram uso” (HABERMAS, 2002, p. 133).
Tem-se, portanto, de um lado, a necessidade de criar-se a “pedra fundamental” do edifício estatal e, de outro, há a necessidade de manter esse corpo social coeso, sem diferenciações, sem distinções, sem microidentidades – todos devem ser da mesma língua, da mesma terra, da mesma etnia, da mesma identidade. Mas seria preciso transmitir e legitimar esse discurso.
A formação da cultura nacional, então, vai depender de algumas medidas que ajudariam a estabilizar uma realidade estatal, como a adoção de padrões universais de alfabetização; o vernáculo como forma dominante de comunicação; a homogeneização das expressões e da memória coletiva; instituições culturais e de instrução nacionalizadas (p.ex., sistema educacional), como explica Stuart Hall (2003, p. 48-49), pois, “dessa e de outras formas, a cultural nacional se tornou uma característica-chave da industrialização e um dispositivo da modernidade”.
É nesse sentido que Dominique Colas relacionaria o Estado-nação à modificação da estrutura social, o que interfere na articulação entre esfera política e cultural, orientando-se pelos tipos de competência que a sociedade industrial exige, contexto no qual a nação é o efeito dum novo tipo de divisão do trabalho, que conduz à determinada estruturação popular que rompe com as formações políticoeconômicas anteriores – panorama onde, dos veículos de transmissão dos discursos, a escola ganha maior destaque para validação das práticas sociais de conformação, enquanto instituição que assegura a transmissão dum mesmo saber, unilateralizado, o que é também exigência técnica da sociedade industrial (COLAS, p. 528- 535).
Como no exemplo da experiência francesa, os constitucionalistas fizeram o Estado, como universalidade, que se encarregou de fazer a nação, “pela escola, pelo exército etc.” (BOURDIEU, 2014, p. 451). Não se criou a estatalidade como decorrência de aproximações religiosas, linguísticas, étnicas. Definiram-se os cidadãos conforme modelos supostos de boa cidadania, em torno dum projeto socioeconômico.
Foi com base na representatividade puramente jurídica que se pôde pensar o Estado-nação pelo direito, aquilo que Pierre Bourdieu chamaria de “Estado jurídico”, que foi aquele construído na experiência francesa, desde a revolução de 1789, e cujo modelo foi seguido mundo afora. Esses Estados nacionais consagrariam um espaço jurídico, na escala dum território-limite, dentro do qual a noção de cidadão teria lugar, como sendo “essa entidade jurídica que existe como alguém que mantém relações de direito e de dever com o Estado” (BOURDIEU, 2014, p. 455).
Nesse contexto de artificialidade, a noção de cidadania é construída apenas abstratamente, pelo trabalho político sobre as condições sociais de unificação, de tal modo que, por exemplo, “a unidade linguística não é condição da unidade estatal, ela será seu produto…”, como diz Bourdieu (2014, p. 456), para quem o Estado, como no caso francês, é que faz a nação, a partir de dispositivos de unidade, ou seja, se “todos os cidadãos da nação X têm de falar a linguagem X; é preciso, portanto, pôlos em condições de aprendê-la”.
Com efeito, o discurso de legitimidade político-democrática, que se baseia numa estrutura culturalmente planificada, retira os homens dos “grupos de pertença”, revelando-se numa desigualdade social inerente, presente nessa nação industrial; e, nesse contexto, a modernização da divisão do trabalho teve por consequência, primeiramente, o desenvolvimento da escola, para assegurar uma exoformação por profissionais da transmissão do saber (COLAS, p. 536).
Esse é um contexto em que nacionalismo, capitalismo e industrialização se interrelacionam, pois, por exemplo, “as populações analfabetas, ao serem retiradas de seus horizontes rurais, aspiram a incorporarem-se ao Estado-nação que surge com o processo de industrialização, com a promessa de adquirirem uma cidadania plena” (BUNCHAFT, 2015, p. 27).
A construção nacional perpassa o caminho da exclusão da diferença, da diversidade, das minorias, cujas identidades são abafadas pela supremacia da nação como única concepção cultural (BUNCHAFT, 2015, p. 30). O problema a ser enfrentado, logo, é compreender, todavia, como esse discurso é apreendido.
É nesse contexto, então, que ganham destaque as relações de poder subjacentes à construção da nação.
A estruturação do nacionalismo como relação de poder acontece, segundo Stuart Hall (2003), por meio de, no mínimo, 3 (três) fatores.
O primeiro deles é a supressão forçada da diferença, é dizer, “a maioria das nações consiste de culturas separadas que só foram unificadas por um longo processo de conquista violenta” (HALL, 2003, p. 59).
Um outro preceito é enxergar o nacionalismo como ponto alternativo de agregação, uma vez que “as nações são sempre compostas de diferentes classes sociais e diferentes grupos étnicos e de gênero”, o que despertaria certa cumplicidade entre classes sociais distintas e entre gêneros com papeis distintos – num sentimento transindividual de pertencimento à grande família nacional15 (HALL, 2003, p. 59).
E, ademais, essa estruturação é devida também ao comparativo civilizaçãobarbárie: “as nações ocidentais modernas foram também os centros de impérios ou de esferas neoimperiais de influência, exercendo uma hegemonia cultural sobre as culturas dos colonizados” (HALL, 2003, p. 59).
Segundo analisa Maria Eugenia Bunchaft (2015, p. 24), a ascensão do nacionalismo compreenderia o movimento de contrafluxo respondente ao declínio das formas cosmológicas e místicas de explicação do mundo, que estaria associado “à decadência das línguas sagradas, dos Estados dinásticos e ao surgimento das tecnologias de comunicação”.
A gradativa erosão da força vinculativa Estado-Igreja católica, principalmente motivada pelas cisões religiosas da Idade Moderna, aos poucos privou a autoridade política da sua base “divina” de legitimação, de modo que outras fontes de poder foram necessárias para sustentar o Estado laico (HABERMAS, 2002, p. 128). Isso também contribuiria para o rearranjo da sociedade europeia, cuja integração – superados teoricamente os estamentos sociais, pelas ideais revolucionárias de igualdade e liberdade – seria relacionada à urbanização e modernização econômica, com um corpo social posto em movimento e individualizado:
Aos dois desafios o Estado nacional responde com a mobilização política de seus cidadãos. Pois a consciência nacional emergente tornou possível vincular uma forma abstrata de integração social a estruturas políticas decisórias modificadas (HABERMAS, 2002, p. 128).
O nacionalismo, assim, funciona como dispositivo discursivo, que “representa a diferença como unidade”, como diz Stuart Hall (2003, p. 62), para quem as identidades nacionais “são atravessadas por profundas divisões e diferenças internas, sendo ‘unificadas’ apenas através do exercício de diferentes formas de poder cultural”.
De acordo com Stuart Hall (2003, p. 52-56), os diferentes modos de conceber cada nação, formada a partir de estratégias representacionais, envolveria – de maneira geral – 5 (cinco) fatores que atuam sobre a ideia de pertencimento e de construção da memória coletiva.
Em primeiro lugar, a narrativa da nação, construída enquanto história, literatura, mídia e cultura popular, que fomentam estórias, imagens, panoramas, cenários, eventos, símbolos e rituais, ou seja, representações que dão sentidos às identidades, forjando-se, no compartilhamento de experiências, derrotas, triunfos e desastres, uma comunidade imaginada – “ela dá significado e importância à nossa monótona existência, conectando nossas vidas cotidianas com um destino nacional que preexiste a nós e continua existindo após nossa morte” (HALL, 2003, p. 52).
Outro discurso seria o da ênfase nas origens, na continuidade, na tradição e na atemporalidade da comunidade nacional, isto é, a crença na essência e permanência dos elementos identitários da nação.
Também a questão da invenção da tradição ganha destaque, enquanto funciona como estratégia discursiva acerca da antiguidade de tradições que, na verdade, são recentes ou mesmo inventadas.
Em quarto lugar, o mito fundacional – mística temporal sobre a origem remota da nação, do povo, da comunidade – ajudaria na compreensão dos fatos históricos, principalmente desastres e massacres, como fatores que conduziram à identificação de grupos sociais. E esse discurso, consoante o autor, aplicar-se-ia tanto às minorias (grupos desfavorecidos) quanto às maiorias (grupos dominantes).
Por fim, Hall (2003, p. 55-56) também destaca a ideia de povos originários (o “folk” puro) – embora raramente esse grupo primordial permaneça ou exerça o poder.
Disso tudo já se pode concluir que, se, por um lado, o mito do constitucionalismo como fruto da vontade soberana da nação, que atinge patamares jurídico-políticos poderosos, já não reflete a sinceridade dos fatos (servindo mesmo como discurso-objeto de apropriação pelos atores sociais que, pela teatralização, vão tomar as rédeas do espaço público), por outro, a própria ideia de que existiria mesmo uma nação é, antes, um mito – por assim dizer – ainda mais “falso” e, por isso, mais ainda maleável e manipulável.
Nesse sentido, quando, por exemplo, Nietzsche trata da realidade que se está construindo na Alemanha do final do século XIX, que tenta se formar e moldar a partir desses mitos, discursos e tradições “para falar em prol do nacionalismo e do ódio racial, para poder nos regozijar do nacionalista envenenamento do sangue e sarna de coração, em virtude do qual cada povo da Europa de hoje se fecha e se tranca, como se estivessem de quarentena”, o autor parece questionar – quiçá ironizando – a necessidade de confinar populações em territórios delimitados, sob o espírito duma coletividade artificial, e de “querer a perpetuação dos pequeninos Estados europeus”, já que – na sua leitura – os tais “homens modernos” não compartilham de mitologias de origem nem de ascendência étnica comum, sendo “muito pouco inclinados a partilhar essa mentirosa autoadmiração e indecência racial, que agora desfila na
Alemanha como sinal da mentalidade alemã e que, no povo do ‘sentido histórico’, é algo duplamente falso e obsceno” (NIETZSCHE, 2012, p. 253-254).
Michel Foucault (1999, p. 167), por seu turno, entende que a nação apareceu na Europa como uma expressão, um discurso histórico de rompimento com a tradição romana e dos cultos à sua memória política. Essa desagregação da louvação de Roma teria se processado entre o final do século XVI e o início do século XVII, por meio, basicamente, de 2 (duas) formas, segundo o autor. Uma delas seria pela ascensão do nacionalismo.
Ainda segundo o autor, porém, pertenceu à nobreza a iniciativa de construir uma ideia de nação – especialmente para dizer que, na verdade, tanto a nobreza quanto a burguesia constituíam, cada uma, uma nação. E isso viria a ter importância central na Revolução Francesa, destacadamente na doutrina de Sieyès (FOUCAULT, 1999, p. 168-169).
A nação apareceria como novo sujeito-objeto histórico, introduzido pelo discurso da nobreza – como no exemplo francês.
Na virada do século XVII para XVIII, a nobreza francesa tinha que “lutar em duas frentes”, isto é, dum lado, contra a monarquia e suas usurpações de poder, e para tanto valorizava suas “liberdades fundamentais”; e, doutro lado, contra o avanço do terceiro estado, e aí valorizava seus “direitos ilimitados” (FOUCAULT, 1999, p. 170).
O autor atribui a isso, então, a resposta que teria sido dada, já no século XVIII, pela definição enciclopédica de nação, cujo conceito englobava, basicamente, 3 (três) elementos ou características: uma grande população, habitante de certo território, delimitado por fronteiras, e que obedeceria ao mesmo governo:
É verdade que, na Encyploédie, vocês encontram uma definição – que eu diria – estatal da nação […]. Eu creio que essa é uma definição polêmica que visava, se não refutar, pelo menos excluir a definição ampla que reinava naquele momento, que encontramos tanto nos textos oriundos da nobreza quanto naqueles oriundos da burguesia, e que fazia dizer que a nobreza era uma nação, que a burguesia também era uma nação (FOUCAULT, 1999, p. 168-169).
De qualquer maneira, é no eclodir das revoluções liberais que o mito do nacionalismo vai ser apropriado e utilizado num específico discurso político. Fundar uma nação como ato constitucional, tal qual ocorreu nos EUA, ou fundar uma nova ordem política, a partir da “verdadeira” vontade da nação, como aconteceu na França, tudo isso revela o nacionalismo como ato de poder.
Liberalismo e nacionalismo nascem da mesma modernidade. A lealdade à pátria e o discurso de autogoverno são partes da complementariedade que existiria entre sociedades industriais culturalmente homogeneizadas – ou com algum grau de homogeneidade cultural suficiente para permitir a divisão social e técnica do trabalho, e também sua mobilidade – com a necessária coesão política mediante um nacionalismo ou patriotismo que identifica todos os indivíduos com a nação – e a nação com o Estado (CAMINAL, 2002, p. 44-46).
O mito de que existiria uma etnia primária – uma língua, uma religião – à qual se liga, de geração em geração, cada indivíduo nacional e que está subjacente à concepção cultural daquele povo é a forma de representação que melhor caracterizaria o sentimento de lugar, de pertença, que encontra no discurso “fundacional” o purismo da origem e da raiz que liga os indivíduos à identidade imaginária – quando, na verdade, “as nações modernas são, todas, híbridos culturais” (HALL, 2003, p. 62).
Enfim, a fragilidade desse laço nacional que se ata pelas interseções sociais construídas em cima de falsas premissas de identidade revela, por outro lado, a mitologia da nação como comunidade cultural, mas também, antes, como evanescência política.
E, portanto, se é verdade que o discurso do Estado-nação somente desponta a partir das revoluções liberais do final do século XVIII (HABERMAS, 2002, p. 126), também parece correto apontar o constitucionalismo como o suporte políticoideológico-normativo para subsidiar, respaldar, legitimar, justificar a criação desse modo de compreender essa unificação, que não deixa de ser uma planificação abstrata.
2.3.2.2. O Nacionalismo e o processo de internacionalização no mundo
Stuart Hall (2003, p. 67) define a globalização como “um complexo de processos e forças de mudança”, que tem transformado as características temporais e espaciais das relações humanas.
Um dos efeitos desse “complexo” que recaem sobre a identidade do sujeito contemporâneo é a própria contestação acerca das bases e dos contornos tradicionalmente estabelecidos para a identidade nacional (HALL, 2003 p. 83).
Parece comum afirmar que a globalização tem causado certo “descentramento” ou mesmo o abalo das identidades individuais e coletivas.
Todavia, quando se fala sobre os supostos deslocamentos que o processo de globalização tem causado às identidades nacionais, é necessário levar em conta, porém, que, na contramão, foi o processo de nacionalização que contribuiu para “costurar” as diferenças culturais numa única identidade (HALL, 2003, p. 65).
Mas a herança deixada pelas grandes guerras do século XX, ao passo que levantou “suspeitas” contra o nacionalismo, que se revelou grande motor de contingente bélico, também deslocou várias populações de seus espaços nacionais, impulsionando a migração e, consequentemente, constituindo minorias étnicas (DUPAS, 2005, p. 137-138)
No avançado contexto da globalização, principalmente após o fim da guerra fria, haveria um aparente “redespertar dos nacionalismos”, reagindo à diluição das fronteiras e à implementação do “reino universal do mercado único”, o que acontece num quadro em que esse processo de desenvolvimento da rede mundial de interrelações “parece exigir […] o preço do enfraquecimento dos Estados-nação e da perda da identidade e da soberania de cada um” (DUPAS, 2005, p. 138).
Conforme a análise de Eric Hobsbawn (2007, p. 86), o fim da Guerra Fria, com o colapso da União soviética e a queda da sua esfera de influência, modificou profundamente a organicidade da sociedade das nações, que passaria a vivenciar “uma era de instabilidade”, já que, segundo o autor, “desde 1989, e pela primeira vez a história europeia desde o século XVIII, deixou de existir um sistema de poder internacional”.
Nesse período, as Nações Unidas ganharam mais 33 membros, ocasionando aumento de 20% (vinte por cento), a partir de novos processos de independência (HOBSBAWN, 2007, p. 87).
Os novos países, certamente, foram originados de outros Estados, que, para reconhecimento internacional, já tem seu território e sua população. Isso quer dizer, então, que os novos Estados-nação aparecem como desmembramento.
O fato de “surgirem” nações, em pleno século XX, reforça, porém, a evanescência do nacionalismo – seja porque não havia identidade suficiente para manter essas novas nações agregadas à antiga comunidade, seja porque demonstra como algumas identidades ainda podem ser forjadas com o apelo ao nacionalismo.
A questão relevante, enfim, é perceber como o processo de globalização afeta o próprio nacionalismo.
Eric Hobsbawn consegue resumir em, basicamente, 3 (três) os problemas centrais da temática nacional.
Primeiramente, entra em destaque o contexto de instabilidade pós-guerra-fria: os processos de independência (especialmente com a desintegração da União Soviética); a onda de “Estados falidos”, cujos governos não conseguem dirigir os acontecimentos políticos no próprio território (na África, em países ex-comunistas, e alguns lugares na América Latina); a erosão do monopólio estatal sobre armamento, que perde força contra os grupos concorrentes (combatentes, organizações criminosas etc.), numa “guerra assimétrica” fomentada pelo comércio ilegal de armas; massacres, genocídios e episódios de “limpeza étnica”; invasões estrangeiras em detrimento da autonomia de Estados mais fracos (por exemplo, o que acontece em países arábico-islâmicos); dentre outras crises derivadas da instabilidade internacional (HOBSBAWN, 2007, p. 86-89).
Em segundo plano, o autor também destaca o avanço da globalização, com a respectiva intensificação do fluxo de pessoas, de capital e de comunicação, com os respectivos reflexos sobre a identidade territorial-nacional.
O aumento extraordinário da mobilidade e do deslocamento da humanidade, certamente, tem gerado movimentos transfronteiriços temporários e duradouros. Também se intensificou o fluxo migratório em massa, especialmente das regiões mais pobres para as mais ricas do mundo. Esse é um sentido em que a globalização da economia estaria afetando a marca inicial do nacionalismo como homogeneidade étnico-cultural, o nacionalismo construído imaginativamente ao longo da história e também reforçado pelas guerras do século XX que incitaram genocídios e a expulsão de grupos minoritários (HOBSBAWN, 2007, p. 89-90).
O avanço da tecnologia de transporte e comunicação também tem afetado os ligames nacionais nesse contexto de migração internacional de longo prazo, pois, no avançado processo de globalização, emigrar já não significa romper laços ou minimizar os contatos com a cultura originária nem com sua própria comunidade – emigrantes prósperos costumam manter residências ou negócios em 2 (dois), 3 (três) países; as comemorações tradicionais hoje são realizadas no país de destino, por correligionários que lá se encontram também, mesmo vindos de outras localidades; os emigrados podem fazer remessas financeiras e de produtos tecnológicos para suas famílias e organizações que estão nos locais de origem etc. (HOBSBAWN, 2007, p. 90).
Diante disso tudo tem resultado ainda o aumento no número de países que adotam a dupla nacionalidade, de modo tal que, se “ainda não é possível julgar os efeitos dessa extraordinária mobilidade transfronteiriça sobre os conceitos mais antigos de nação e nacionalismo”, por outro lado, “não há dúvida de que eles serão substanciais” (HOBSBAWN, 2007, p. 91).
Um terceiro “problema” destacado pelo autor, enfim, é a xenofobia, por ele explicada como reações contrárias à sensação de desintegração de comunidades tradicionais que se autocompreendem como étnica, linguística ou religiosamente homogêneas. Essa refutação, todavia, também está relacionada à circulação internacional de forças de trabalho, que gera sentimentos de ameaça econômica no mercado de empregos (HOBSBAWN, 2007, p. 91-92).
Isso tudo afeta – de maneira incentivadora ou não – o sentimento nacionalista, pois, afinal, “a xenofobia também reflete a crise de uma identidade nacional” (HOBSBAWN, 2007, p. 95).
O processo de agregação social que foi implantado pela construção do nacionalismo – seja pela transmigração equalizadora de classes sociais (camponeses em franceses), seja pela fundação de nações pela migração (imigrantes tornados em cidadãos americanos) – estaria sendo “revertido” e, nesse sentido, “dissolve as grandes identidades, como a do Estado nacional, convertendo-se em identidades grupais autorreferentes, ou mesmo em identidades particulares não-nacionais, sob o lema ubi bene ibi patria19” (HOBSBAWN, 2007, p. 95-96)
Esse processo não apenas tem diminuído a legitimidade e a autoridade do “Estado nacional” sobre aqueles que residem no território, como também tem afastado cada vez mais a perspectiva das exigências que o governo nacional poderia esperar dos cidadãos locais (HOBSBAWN, 2007, p. 96).
Por isso, muito se tem falado em identidade e, principalmente, em soberania nacional, com o avanço da globalização.
Resumidamente, então, isso pode ser explicado tanto pela aproximação das relações político-jurídicas entre os Estados-nação (diminuindo-se as forças centrífugas interestatais), quanto pelo aumento do fluxo internacional de pessoas, bens e culturas, contribuinte do “esvaziamento” que tem ocorrido à identidade nacional (diminuindo-se a força centrípeta intraestatal).
A ideia de soberania, segundo Eduardo Felipe Matias (2014, p. 31), costuma se aproximar, comumente, da noção de legitimidade política, numa conceituação que tem servido “tanto para justificar quanto para derrubar regimes” e, talvez por isso, “não é surpreendente que a doutrina da soberania tenha sempre estado em crise nos períodos de mudança”.
Mas, se, por um lado, soberania não parece traduzir algum conceito imutável ou absoluto, justamente por ser uma noção historicamente construída, conforme o contexto político, não se pode deixar à parte, doutro lado, o fato de que sua história está ligada à do Estado moderno (MATIAS, 2014, p. 32-33).
Todavia, se o sistema internacional foi – e permanece – moldado a partir da lógica de soberania nacional, então, quando se mexe nos alicerces dessa rede, isto é, quando se questiona a atribuição do poder à nação e, mais a fundo, quando se põe em xeque a própria existência da nação, puxa-se, pelo fio-condutor, todo o processo de construção do Estado nacional.
Se, por um lado, a doutrina da soberania foi desenvolvida sob a lógica de 2 (duas) premissas principais, isto é, dum poder supremo que, internamente, é exercido por quem se identifica como seu legítimo titular e, externamente, desconhece qualquer autoridade superior, por outro lado, ao longo do século XX essa sistemática foi sendo “varrida”, principalmente pela globalização jurídico-política que se expande pelo discurso dos direitos humanos e da democracia, que, por sua vez, na onda da descolonização e da ênfase ao multiculturalismo (exigindo-se proteção às minorias étnicas, linguísticas, religiosas etc.), desafiam os poderes e a soberania estatal, a qual fica limitada no sistema internacional por regulamentações de pretensão universal (DUPAS, 2005, p. 163-164).
O processo de internacionalização das relações vem trazendo à evidência a tensão que existe em torno da identidade cultural, situada entre os influxos do “global” e do “local”, e que existiu ao longo da modernidade, sendo fomentada pelo desenvolvimento do Estado – nação, das economias nacionais, das identificações culturais e, por outro lado, pela expansão do mercado global e da nova forma “moderna” de compreensão do mundo (HALL, 2003, p. 76).
No contexto da globalização, o contato – cada vez mais acentuado e aprofundado – entre diferentes culturas tem sido observado, de maneira geral, por 2 (duas) perspectivas: uma nova fonte criativa de produção das novas identidades; uma indeterminação relativista, que tem custos e perigos “culturais” (HALL, 2003, p. 91)
Por isso tudo é que a questão da identidade rotulada e da diversidade mascarada, todavia, além de ser uma espécie de dívida histórica, entra constantemente em destaque no contexto corrente da globalização. Principalmente porque, lembra Stuart Hall (2003, p. 68- 69), desde a segunda metade do século XX, o fenômeno da globalização vem se intensificando também na perspectiva do alcance e do ritmo dos fluxos e laços entre os Estados-nação.
E, assim como foi o liberalismo moderno que orientou a estruturação do Estado-nação, voltando-se para a centralização dos processos e decisões dentro do território, há uma nova forma liberal de pensar a economia em escala mundial que também conduziria a uma nova centralização, mas agora voltada para estruturas supranacionais, debilitando-se os Estado nacionais – não como avanço duma democratização territorial, porém – na direção dum horizonte que é definido num duplo processo de internacionalização, que centrípeto no campo econômico e centrífugo na política (CAMINAL, 2002, p. 42).
Mas o nacionalismo não está simplesmente superado. O tema da “missão”, do mito da comunidade superior, do “povo eleito”, do imperialismo como razão de governar e orientar a política, sempre presente na retórica do discurso sobre o poder, “é uma prova da remanescência arquetípica da mitologia na formação da nação” (DUPAS, 2005, p. 140).
Da mesma maneira, também não se pode prever, no contexto atual, o mero fim do Estado-nação. Na sistemática de funcionamento da sociedade internacional, ainda são os Estados que exercem papel fundamental, pois “é neles que se colocam os problemas da gestão de recursos, do emprego, do direito do trabalho, da proteção social, da integração social das diferentes camadas das populações”, ou seja, “questões que evocam legitimidade política e governabilidade” (DUPAS, 2005, p. 141).
Mas, se é verdade que o surgimento do Estado nacional, na modernidade, “foi uma resposta convincente ao desafio histórico de encontrar um equivalente funcional às formas de integração social tidas, na época, como em processo de dissolução”, parece correto, noutro giro, que “a globalização do trânsito e da comunicação, da produção econômica e de seu financiamento, da transferência de tecnologia e poderio bélico, especialmente dos riscos militares e ecológicos” revela fatores que denotam necessidades e demandam repostas e soluções que já não encontram satisfação no âmbito do Estado-nação, nem mesmo pela tradicional via do “acordo entre Estados soberanos” (HABERMAS, 2002, p. 122-123).
Portanto, se “o território nacional, a nação e uma economia constituída dentro das fronteiras nacionais formaram então uma constelação histórica na qual o processo democrático pôde assumir uma figura institucional mais ou menos convincente”, esse quadro, no entanto, tem sido posto em questão “pelos desenvolvimentos que se encontram no centro das atenções e que leva o nome de ‘globalização’” (HABERMAS, 2001, p. 78). E isso tudo deve ser levado em conta, sempre que se pretende estudar as relações internacionais e as próprias questões ligadas à estruturação e ao processo do Estado-nação.
2.4. O Federalismo como organização social no mundo
Para que se possa propor alguma leitura federativa da globalização, parece necessário traçar uma análise mais específica sobre os elementos que envolvem a teoria do federalismo, desde suas conceituações até uma identificação de seus princípios e formas.
2.4.1. Federalismo pluralista, uma sociedade de sociedades
Montesquieu parece ter sido o primeiro dos tradicionais pensadores do Estadonação que acabou tratando expressamente da temática “federativa” na abrangência da organização estatal (FORTES, 2015, p. 93).
O barão francês abordou o assunto com enfoque na ideia de organização do poder político para constituição duma estrutura de agregação de forças; uma forma de congregação de comunidades que buscam a união, entre si, para construir um novo Estado, o que fariam por uma questão de preservação e desenvolvimento:
[…] há grandes indícios de que os homens teriam sido obrigados a viver sempre sob o governo de um só, se não tivessem imaginado um tipo de constituição que possui todas as vantagens internas do governo republicano e a força externa da monarquia. Refiro-me à república federativa.
Esta forma de governo é uma convenção pela qual vários corpos políticos consentem em tornar-se cidadãos de um Estado maior que querem formar (MONTESQUIEUE, 2005, p. 173).
Essa forma de união política significaria, no entendimento do autor, uma “sociedade de sociedades”, da qual poderia ser feita uma nova, que, por sua vez, poderia ser aumentada pela agregação de novos associados – e assim por diante:
Foram essas associações que, durante tanto tempo, fizeram florescer o corpo da Grécia. Através delas os romanos atacaram o universo, e somente através delas o universo defendeu-se contra eles; e, quando Roma atingiu o ápice do poderio, foi por associações do outro lado do Danúbio e do Reno, associações que o terror construíra, que os bárbaros puderam resistir.
É graças a tais associações que a Holanda, a Alemanha e as Ligas Suíças são encaradas, na Europa, como repúblicas eternas (MONTESQUIEU, 2005, p. 173).
Como se pode notar, a concepção modernamente reproduzida acerca das estruturas estatais federativas encontra ressonância na visão descrita pelo autor francês. Ao mencionar a formação duma “sociedade de sociedades”, Montesquieu fundamentaria as bases teóricas dos sistemas federativos que viriam a ser implantados em vários espaços geográficos do mundo.
Afirma-se, comumente, que o Estado federal é um fenômeno político relativamente recente, tendo-se em vista que o seu primeiro exemplar formal se consolidou no século XVIII, mais precisamente com o advento da Constituição dos Estados Unidos da América, em 1787, onde se conformou a união associativa dos então 13 Estados soberanos num só país (DENARI, 2008, p. 20).
Mas não parece que a ligação federativa entre as americanas ex-colônias da Inglaterra somente surgiu a partir daí. Antes mesmo de comporem o novo país, os futuros Estados federados já se encontravam congregados entre si, mas dentro dum sistema confederativo (BERCOVICI, 2004, p. 11), caracterizado pela associação política de Estados soberanos e independentes, unidos por um laço comum de defesa externa e segurança interna (BONAVIDES, 2011, p. 179).
O federalismo, na verdade, aparece como uma constante na associação americana, que, partindo duma união política (confederativa), evoluiu na consolidação dum novo Estado (federativo), tendo em vista a instabilidade daquele primeiro arranjo.
Até o advento da Constituição americana, todavia, os conceitos de federalismo e confederalismo foram vistos como sinônimos (CORRALO, 2009, p. 102). Aliás, na própria época em que se arregimentava – durante as convenções deliberativas acerca do futuro das excolônias – a composição dos Estados Unidos como um novo país, os termos “federação” e “confederação” foram utilizados, até mesmo, indistintamente (BERCOVICI, 2004, p. 11).
Tal confusão, até certo ponto, possuiria respaldo na própria essência desses conceitos, pois ambas as formas de organização política – federação e confederação – estariam fundadas na existência dum pacto, ou seja, caracterizadas pela presença do federalismo, presente – assumindo gradações – nas composições associativas estatais, como nas ligas entre Estados, nas chamadas Uniões de Estados, na confederação e, certamente, no Estado federal (FRANCO, 1958, p. 157).
Essa perspectiva, doutro lado, levaria à conclusão de que o federalismo, de fato, não surge junto ao moderno Estado federal; e tampouco poderiam ambos ser confundidos, consequentemente, no termo “federação” – embora todos carregassem, na sua conceituação teórica, o “princípio federativo” (FORTES, 2015, p. 95).
Para os objetivos do presente trabalho, contudo, é necessário fazer uma análise mais acurada dessa diferenciação, para fins de delimitação do objeto de estudo. Afinal, a hipótese inicial que aqui se pretende averiguar tem como premissa, justamente, uma diferença possível, que consiga destacar a ideia de federalismo da concepção de federação e da própria noção de Estado federal.
Distinção também é feita por Ronald Watts (2008), para quem um sistema político federativo não é o mesmo que uma federação, e “federalismo”, ademais, conteria um preceito mais amplo. Para o autor, a diferença inicia pela natureza dos conceitos, isto é, enquanto federalismo apareceria como termo normativo-prescritivo, que se refere ao governo misto, combinando compartição de autoridade e autogoverno, as federações e os sistemas políticofederativos (p. ex., Estados federais), por sua vez, traduziriam termos descritivos, voltados para alguma específica forma de organização política.
Como retrata Afonso Arinos Franco (1958, p. 155), o fenômeno federativo poderia ser analisado sob diversos espectros, compreendendo os três vocábulos acima suscitados. Segundo autor, então, federalismo seria matéria a ser incluída no campo da ciência política; federação seria termo relacionado, de preferência, com a teoria do Estado, representando os fatos; e Estado federal diria respeito, propriamente, ao direito constitucional, oferecendo as normas.
Dessa abordagem, contudo, podem ser destacadas algumas percepções.
Primeiramente, pode se perceber que – não obstante o estudo da temática federativa somente passar a ser tratada de maneira sistematizada a partir da consolidação da Federação americana – o federalismo, em si, não se confundiria na forma do Estado federal, uma vez que também poderia, simplesmente, representar uma ideia a ser aplicada por comunidades particularizadas, não somente pela organização político-institucional da sociedade estatal (ARAÚJO, 2010, p. 515).
A organicidade federativa, então, poderia ingressar noutros domínios da vida social, para – do mesmo modo que atuaria na estruturação jurídica do Estado federal – conformar sua estrutura orgânica, como no caso de associações, partidos políticos, sindicatos e outros grupos sociais (HORTA, 2003, p. 715).
Federalismo, portanto, revelaria antes o modo de organizar um determinado universo sistemático do que mesmo a estrutura formal dum Estado (FORTES, 2015, p. 96).
Aliás, demonstrando a abrangência que o próprio conceito possui, Raúl Machado Horta (2003, p. 715) aponta distinções que se podem fazer acerca da extensão e aplicabilidade do federalismo, em três níveis: no âmbito estatal, no qual se manifesta pela Constituição, que organiza a divisão de poderes dentro do Estado, em nome duma união política; no âmbito supranacional, onde o federalismo resultaria de alianças entre Estados soberanos, reunidos em torno dum pacto comunitário; e no âmbito social, isto é, de grupos e associações com vida própria e independente da organização do Estado.
Essas 3 (três) perspectivas – político-estatal (estrutural), social (orgânica) e internacional (cosmopolita) – podem ser analisadas, neste estudo, para compreensão da abrangência conceitual do fenômeno federativo e para verificação dos seus âmbitos de aplicabilidade.
Dessa explanação, ademais, já é possível captar a ideia de que o federalismo não parece mesmo se limitar à delineação da teoria do Estado federal, assim como expõe Ferdinand Kinsky (1997, p. 14), recordando que a doutrina federalista também se mostra em searas não “políticas”, ou melhor, não “estatais”:
Percebe-se, então, que a ideia de federalismo pode alcançar desdobramentos em diversas searas das relações institucionais, não se limitando, por certo, à concepção fechada de Estado federal, porquanto “o federalismo envolve a compreensão da autoridade como associação de grupos e, toda vez que um processo de decisão envolver negociação com os grupos abrangidos pela decisão, surgirá o federalismo” (HORTA, 2003, p. 715), como “tendência natural da organização social”, indo além de qualquer ordenamento jurídico e não se limitando a uma ordem políticonormativa (FRANCO, 1958, p. 156).
Aliás, essa perspectiva sobre o federalismo enquanto modo associativo de organização já havia sido tratado, de certa maneira, por Johannes Althusius, no século XVII, que formulou a ideia de simbiose entre associações privadas e públicas, as quais inevitavelmente se relacionariam, por convenções sociais, na busca duma harmonização de objetivos. Segundo analisa Carlos Eduardo Reverbel (2012, p. 65), o projeto sociopolítico de Althusius discriminaria a essência do sistema federativo, ao conceber a organização dos homens a partir de células de autogoverno que contemplam uma associação de maiores dimensões.
A passagem seguinte da obra “Política”, do referido pensador, pode evidenciar esse prenúncio federativo-associativo:
[…] a sociedade humana se desenvolve da associação privada para a pública por intermédio de progressões e passos definidos das pequenas sociedades. A associação pública surge quando muitas privadas se vinculam com o objetivo de estabelecer uma ordem política abrangente (politeuma). Ela pode ser chamada de uma sociedade (universitas), um corpo associado ou associação política por excelência, permitida e aprovada pelos direitos das gentes (jus gentium). […] Os homens reunidos sem direito simbiótico (jus symbioticum) constituem uma multidão, uma turba, uma reunião, um encontro, um aglomerado, uma assembleia, ou povo. Quanto maior a associação e quanto mais associados ela englobar, de mais ajuda ela precisa em termos de recursos e auxílios para manter sua auto-suficiência em alma, corpo e vida, e requer também boa ordem, disciplina adequada e maior e mais ampla comunicação de bens e serviços (ALTHUSIUS, 2003, p. 135).
Para o autor, essa ordem política geral traduz-se no direito de comunicação e participação nas questões relevantes que são levadas ao conhecimento prático da comunidade, organizada associativamente:
Ela pode chamar-se direito simbiótico público. Essa associação simbiótica pública pode ser particular ou universal. A particular é circunscrita a localidades fixadas e definidas, dentro das quais seus direitos são comunicados. Por sua vez, ela pode ser uma comunidade local (universitas) ou uma província.
A comunidade local é uma associação formada por leis fixas e composta por muitas famílias e collegia que vivem num mesmo local. Em outros lugares, ela é chamada de cidade (civitas) no mais amplo dos sentidos, ou seja, um corpo de muitas e diversificadas associações. […]. É chamada de pessoa representada e responde coletivamente pelos homens, não individualmente. Em termos mais estritos, contudo, a comunidade local não é conhecida pela designação da pessoa, mas toma o lugar de uma pessoa quando legitimamente convocada e congregada.
Os membros de uma comunidade local são as diversas associações privadas de famílias e collegia, não os membros individuais das associações privadas. Essas pessoas, aqui, não são cônjuges, parentes afins ou colegas, são cidadãos da mesma comunidade, pelo fato de se unirem. Dessa forma, passam do relacionamento simbiótico privado para uma só comunidade local (ALTHUSIUS, 2003, p. 135-137).
O pensamento político de Johannes Althusius parece estar calcado na expansão das formas de relacionamento consensual (pactos) que vinculam desde as menores e mais íntimas unidades autônomas até abranger uma comunidade de dimensões universais. Mas essa abordagem, certamente, ainda não estava formulada com base numa perspectiva sistematizada do que viria a ser o moderno Estado federal; é vista, na verdade, como decorrência lógica e natural da associabilidade política humana. Não obstante, talvez aí tenham sido mesmo lançadas as bases para o desenvolvimento e a teorização do sistema federativo dentro duma indissociável e necessária congregação política, como tratado por Montesquieu. De qualquer forma, pode se perceber como o federalismo, enquanto modo de ver e de viver a sociedade, precedeu a própria estruturação do moderno Estado federal (FORTES, 2015, p. 98).
Outra distinção pode ser feita no sentido de que a ideia de Federação está relacionada às estruturas ou aos arranjos institucionais que dividem o poder em círculos associados e autônomos, embora dependentes, ao passo que o federalismo, conceito mais abrangente, caracterizar-se-ia pelo comportamento ou vocação social para congregar a diversidade numa unidade (BERNARDES, 2010, p. 32).
Não se pode negar que o modo de organizar o arranjo institucional dum determinado sistema, quando se faz com base nos “princípios” do federalismo, tende a resultar numa estrutura federativa, ou seja, numa federação. Nesse ponto, enxergar-se-ia confluência maior entre as concepções de federação e de Estado federal. Teoricamente, o federalismo está presente na organicidade dos dois termos, mas o primeiro (federação), por certo, representa a congregação estrutural que prescinde dum viés político ou de caráter estatal. Doutro lado, o Estado federal seria tanto um Estado quanto uma federação de Estados (HORTA, 2003, p. 720).
A distinção entre federação e Estado federal, assim, acaba se delimitando pelo campo de valimento da estrutura utilizada (política, social etc.). Nesse contexto, não obstante a abrangência dos termos, de acordo com a análise que se pretende operar no presente trabalho, adotar-se-á, por questão prática, a similitude entre os dois conceitos, desde que vinculados à estruturação do poder político, como assim se pretende fazer nesta pesquisa. Assim, tendo-se, propriamente, o Estado federal como uma federação, observa-se, contudo, que o conceito de federalismo, como visto, não pode aí ser englobado por completo (FORTES, 2015, p. 99).
Desconsiderando-se as particularidades normativas, a análise do fenômeno federativo suscita duas perspectivas principais: a teoria do Estado federal e a visão global da sociedade (LEVI, 1998, p. 475).
No primeiro caso, o federalismo estaria relacionado à forma (estruturação) do Estado, que passa a assumir o caráter de Estado composto (MIRANDA, 2014, p. 301), onde se conjugam vários centros autônomos de poder, diversamente do que ocorre no Estado unitário, onde um órgão central monopoliza o poder político (STRECK; MORAIS, 2003, p. 158). O Estado federal, nesse diapasão, seria aquele que, teoricamente, se estrutura com base na sistemática do federalismo, cuja ideia-chave seria a descentralização do poder (BARROSO, 1982, p. 18).
Já na segunda perspectiva, para que possa ter lugar a teoria federativa na organicidade dum Estado, não se podem desconsiderar as características da sociedade, que serão providenciais para permitir o desenvolvimento das instituições políticas de acordo com essa teoria (LEVI, 1998, p. 475). E isso leva à prenunciação, desde logo, de que o Estado federal não pode se desenvolver nem se consolidar, como federação, se não houver base social que com ele esteja afinada (ARAÚJO, 2010, p. 516).
Essas duas visões sobre o federalismo, por certo, não apenas são complementares, como, muitas vezes, indissociáveis. Mas é possível – e não raro – que algum Estado possa se rotular federativo, sem assumir, todavia, os preceitos políticos que identificam o federalismo. E isso revelaria que, se o exame da teoria do federalismo não pode ser efetuado sem o estudo da teoria do Estado, ambos, contudo, não se confundem (FORTES, 2015, p. 100).
Ressalte-se, de antemão, que, pelo fato de não haver regra inquebrantável – embora a experiência americana seja tida como paradigma – para delineação do que caracterizaria ou não uma Federação, “inúmeras são as formulações e as materializações possíveis que se podem conferir ao Estado Federal”, desde que seja observada “a essência material do regime federativo” (OLIVEIRA, 2012, p. 22), é dizer, a descentralização do poder (DALLARI, 1986, p. 22).
Portanto, não seria a nomenclatura ou arranjo formal adotado na Constituição que caracterizaria o Estado como federativo. Federalismo pressupõe, nesse sentido, substrato tanto em âmbito institucional quanto no campo social. (FORTES, 2015, p. 100).
Mas seria a descentralização do poder estatal a característica suficiente para identificar o sistema federativo? A indagação demanda, no mínimo, duas observações.
Primeiramente, essa descentralização não seria apenas administrativa, mas política (FRANCO, 1958, p. 161). A descentralização administrativa, afinal, pode acontecer em Estados unitários, onde se concedem às entidades regionais prerrogativas burocráticas etc. (ZIMMERMANN, 2005, p. 155).
A descentralização política, por outro flanco, apresentaria significância mais “relevante”, em termos de organização socioeconômica, dentro dum Estado (DALLARI, 1986, p. 22).
É nesse contexto, então, que, se, por um lado, a descentralização administrativa – seja territorial, seja institucional – é contemplável na maioria dos Estados (unitários e compostos), por outro, somente alguns comportam a descentralização efetivamente política (MIRANDA, 2014, p. 300).
Em qualquer das situações, porém, a forma dessa descentralização também não possui pauta intransigível, de modo que poderá tanto haver Estados unitários administrativamente mais ou menos descentralizados quanto Estados federais politicamente mais ou menos centralizados, e isso suscita que a diferença entre essas descentralizações, a priori, identifica se antes no plano qualitativo (tipo) do que no quantitativo (grau), embora ambos integrem a análise e caracterização do Estado federal (FORTES, 2015, p. 101).
Assim, será possível encontrar Estados unitários com distintos graus e formas de descentralização (PEREIRA-DINIZ, 2009, p. 41), que poderão até parecer, em alguns aspectos, sistemas (quase) federativos. Aliás, conforme Wilba Bernardes (2010, p. 59-60), o federalismo comporta diversos arranjos de distribuição de poder, independentemente da forma de Estado adotada – e, assim, é possível encontrar, por exemplo, federalismo em Estados unitários, como é o caso da Espanha ou da Itália.
Do contrário, também haverá – dada a pluralidade de espécies de Estados federais e suas respectivas estruturações normativas – Federações que se mostram muito próximas, na verdade, de Estados unitários, dado o baixo grau de distribuição do poder político, como se pode observar, por exemplo, nos países da América Latina (SEGADO, 2003, p. 449). Em casos tais, a “ausência de federalismo” está relacionada, comumente, à falta de normatização expressa dos seus requisitos definidores e à própria deformação dos seus preceitos básicos, que passam a ser politicamente violados, reduzindo-se a instituição a formas “semi-federais” ou “quase- federais” (HORTA, 2003, p. 716). Nesse sentido, James Gardner (2012, p. 30) assenta, por exemplo, que um Estado no qual não é possível fazer oposição às diretrizes do governo central, por ser inócua a descentralização do poder, não é uma organização federativa, mesmo que assim se declare.
Percebe-se, então, que para delinear o marco da Federação não bastaria apenas uma estrutura institucional que estabeleça alguma possível descentralização política, mas seria necessário que nela aconteça o fenômeno federativo. O Estado federal estará caracterizado pelo federalismo, portanto, se comportar uma descentralização de caráter especial (política) e de elevado grau (BARACHO, 1986, p. 43).
Inobstante a variação que essa questão possa gerar, não parece inócuo, todavia, o debate sobre a diferenciação, visto não ser raro existirem Estados unitários que se inclinam para maior descentralização de poder e, inversamente, Estados ditos federais tendentes à centralização, tanto política quanto administrativa (BARROSO, 1982, p. 26).
Mas, de qualquer forma, uma constatação deve ser feita e que certamente influencia nessa própria configuração, isto é, o federalismo – enquanto teoria política ou doutrina social – geralmente tem lugar na estrutura da federação, mas dela não necessariamente depende para existir, ou seja, é possível haver federalismo sem federações (BERNARDES, 2010, p. 125).
2.4.2. O nacionalismo, o federalismo e a sociedade internacional
Tendo-se identificado, então, as bases teóricas do federalismo, pode-se agora propor uma leitura da sociedade internacional e da própria noção de Estado-nação que relacione as ideias, as teorias e os acontecimentos até aqui estudados.
Miquel Caminal (2002, p. 41) aponta que haveria uma diferença de raiz entre nacionalismo e federalismo. Enquanto o primeiro criaria uma identidade superior ao indivíduo, que seria a nação, o segundo vincularia o sujeito a distintas identidades.
Como já foi visto anteriormente, o problema da identidade no contexto do nacionalismo evidencia a expropriação que a nação faz, pelo – e para o – Estado, contra os grupos político culturais menores, interferindo nas suas relações territoriais e temporais com sua própria comunidade.
Já o federalismo, que tem como princípio conjugar a diversidade na unidade, também afetaria, direta ou indiretamente, a questão da identidade. Numa relação que pode ser matizada e analisada em várias perspectivas.
Mas o federalismo, em si, não seria uma doutrina contrária ou mesmo incompatível com o nacionalismo. Em que ponto, então, eles se relacionam?
Certamente, tanto o federalismo quanto o nacionalismo traduzem uma teoria política “territorial”, é dizer, relacionando governo e indivíduos com base num território que tem passado, que tem história. (CAMINAL, 2002, p. 153).
Ambos também são ideologias modernas, justamente, porque tratam do governo e do território partindo do princípio de que os indivíduos, seja como povo ou nação, são os depositários da soberania, são quem legitima os poderes públicos (CAMINAL, 2002, p. 153).
O problema, segundo Caminal (2002), é que existem algumas limitações na maioria dos estudos sobre federalismo e sistemas federais, dentre as quais o autor destaca certo “descaso” com o problema do nacionalismo estatal.
Nos 2 (dois) tradicionais modelos de Estado nacional, isto é, tanto no federalismo norte-americano quanto no jacobinismo francês, a organização política foi enjeitada a partir da lógica democrático-liberal, que se baseava no poder de um único povo, uma nação, soberana num determinado território, de modo que o nacionalismo, independentemente da distribuição territorial do governo, foi a marca de constituição de cada Estado (CAMINAL, 2002, p. 102).
Isso refletiria, porém, como o federalismo sempre esteve ao serviço do nacionalismo, e não o contrário, de modo tal que, ao longo dos 2 (dois) séculos que se seguiram à Constituição norte-americana, as federações liberal-democráticas com base nela instituídas foram ou tentaram ser federações nacionalistas (CAMINAL, 2002, p. 102-103).
E é dessa perspectiva que se pode analisar a interrelação federalismo-identidade – nacionalismo.
Miquel Caminal (2002) transita, inicialmente, pelas formas paralelas como o nacionalismo e o federalismo tangem a questão da identidade.
Para o autor, o federalismo pode, enquanto projeto político, ser concebido para unir comunidades distintas, e não necessariamente para transformá-las ou dissolvêlas. Já o nacionalismo apareceria sempre para criar e legitimar um novo corpo político (CAMINAL, 2002, p. 153).
Assim, o federalismo conseguiria unir indivíduos, comunidades, nações, preservando, cada um, sua identidade. O nacionalismo, por sua vez, cria – ou recria – a nação como fundamento moderno do poder do Estado e, portanto, reúne as identidades num corpo novo, que os inclui, mas também que os transcende (CAMINAL, 2002, p. 153).
Disso deriva que, nessa linha, o federalismo não precisa necessariamente conduzir à homogeneização nacional, ou melhor, um sistema federal, que se construa politicamente, pode funcionar além ou aquém da lógica do Estado-nação.
Tomando-se em conta que “todas as identidades estão localizadas no espaço e no tempo simbólicos” (HALL, 2003, p. 71), então, pode se ter a relação que o indivíduo ou a comunidade mantem com seu território e sua história como grande fator na construção da identidade (individual e coletiva), que no projeto do Estadonação, todavia, é conduzida do âmbito histórico-cultural para a alçada política.
Quando se desvincula, porém, o federalismo do nacionalismo, o resultado pode aparecer como um sistema federativo que serviria para manter unidas, politicamente, comunidades que sejam identitariamente distintas. Mas isso poderia funcionar tanto dentro quanto fora do âmbito estatal?
Não se pode simplesmente virar as costas para a realidade mundial. O Estadonação ainda é a base do sistema internacional e, ao mesmo tempo, tanto o Estado quanto a nação ainda permanecem como parâmetro de identificação política dos sujeitos, individual e coletivamente.
Mas isso não anula tudo aquilo que já se constatou no presente estudo.
De qualquer modo, ainda que se continue analisando e projetando a sociedade internacional com base em Estados, isso não exclui a possibilidade de conceberemse arranjos políticos que possam reconhecer a diversidade identitária dentro e fora do Estado. Aliás, essa análise parece até mesmo necessária, ao menos para legitimar os processos políticos que acontecem dentro do espaço estatal de representação.
Com efeito, a globalização tem estremecido as bases do purismo identitárionacional. O movimento da migração, por exemplo, impulsionou a miscigenação no interior dos Estados-nação ocidentais (onde tradicionalmente se identificavam os nacionalismos “puros”), conduzindo à “pluralização” das identidades e das culturas locais (HALL, 2003 p. 83).
Ao mesmo tempo, o refluxo dos movimentos contra hegemônicos ou contra majoritários – como desponta o multiculturalismo – também põe em xeque as identidades politicamente construídas pelo discurso da história oficial, da escola, da memória nacional.
Tendo como coordenadas de significação o espaço e o tempo, os sistemas de representação – a literatura, a pintura, o desenho, a fotografia ou mesmo as redes de telecomunicações – buscam traduzir o objeto da sua expressão em dimensões espaciais e temporais, de modo tal que as narrativas transcrevem os eventos numa sequência temporal de “começo-meio-fim” e os sistemas visuais de representação descrevem objetos tridimensionais em 2 (duas) dimensões, ao evidenciarem que “diferentes épocas culturais têm diferentes formas de combinar essas coordenadas espaço-tempo” (HALL, 2003, p. 70).
Nessa perspectiva, porém, se os indivíduos tendem a já não se identificarem com o território nacional (coordenada espacial) ou mesmo com a memória oficial da nação (coordenada temporal), ao menos plenamente, então, torna-se necessário compreender a diversidade e a identidade como questões políticas.
A multiplicação dos sistemas de significação e de representação cultural implica numa multiplicidade de identidades possíveis de serem construídas, em variados contextos (HALL, 2003, p. 13). Nesse sentido, é possível conceber que movimentos de localismo possam ganhar força contra identidades nacionais – os quais podem ter inicialmente conotação étnica, religiosa, linguística, até atingir patamares políticos, dando origem a movimentos separatistas, que podem se basear inclusive no próprio discurso do nacionalismo (uma espécie de “nacionalismo de oposição”).
Quando, porém, num determinado território, não há “nacionalismo” com força suficiente para impor a união, nem tampouco são suficientemente fortes os “nacionalismos de oposição” para conduzir à secessão, o sistema federal pode ser uma via de solução ou de acordo para a questão política, como aponta Miquel Caminal (2002, p. 154).
Certamente, os sistemas federais podem ser mais ou menos estáveis conforme for o grau de divergência político-identitária no território.
Os arranjos federativos estáveis, segundo Caminal (2002), têm sido aqueles construídos em Estados no âmbito dos quais somente um nacionalismo é reconhecido: o oficial, aquele que identifica o Estado-nação. Seria este o caso da Alemanha, da Áustria, do Brasil etc.
E, já no outro polo, quando há mais de uma identidade nacional em disputa, com projeção territorial de poder, a instabilidade da federação pode ser tamanha, a ponto de levar à ruptura, à secessão, como foi o caso da Checoslováquia, que deu origem a 2 (dois) Estados independentes (CAMINAL, 2002, p. 104-105).
O arranjo federativo, mesmo assim, poderia servir como forma de compatibilização entre comunidades-identidades que disputam a proeminência num determinado território e tentam alcançar a hegemonia interna ou buscam independência dentro do próprio Estado nacional (CAMINAL, 2002, p. 105).
A federação, aparentemente, poderia oferecer estrutura para o resguardo da “legitimidade política”, potencializando a superação dos preceitos centralizadores do nacionalismo (homogêneo), talvez apresentando condições de fomentar o desenvolvimento democrático tanto quanto promovesse o pluralismo, em várias dimensões, ao contrapor “policentrismo” e “monocentrismo”, “plurinacionalidade” e “nacionalidade única”, “multiculturalismo” e “monoculturalismo” (CAMINAL, 2002, p. 156).
As variadas condições socioeconômicas, encontradas em diferentes localidades do mesmo território, demandam o enfrentamento heterogêneo das questões “nacionais”, principalmente quando se trata de espaço territorial tão largo quanto culturalmente diverso – conjugação que tende a requerer maior descentralização e distribuição do poder ao longo do território (KELSEN, 1992, p. 298).
A ideia de unidade na diversidade, princípio do sistema federativo, seria compreendida, assim, numa perspectiva que ultrapassa a simples análise da forma de Estado, mas que apreende questões históricas, sociais, culturais e econômicas (CORRALO, 2009, p. 141).
A multiplicação dos centros de decisão e a dimensão de autonomia política das comunidades poderiam servir à conservação da diversidade identitária, funcionando, ademais, como mecanismo contra majoritário, seja de ordem histórico-geográfica, seja de ordem socioeconômica, seja de ordem étnico-cultural. Aliás, como destaca James Gardner (2012, p. 32), reivindicações de pluralismo etnoculturais têm aparecido na configuração do federalismo na Bélgica, na Bósnia, na Índia, na Nigéria, na Rússia, na Suíça e, até mesmo, no Reino Unido, entre outros lugares.
É o pluralismo, certamente, que dá o tom da política contemporânea.
Conforme lembra Jürgen Habermas (2002), a nação apareceu como unidade, que se traduziu em força política, montada a partir da ideia de comunidade de ascendência e procedência, fomentando ou forjando um laço mais antigo e anterior mesmo à própria política, mas que acabaria servindo para configuração de estereótipos sociais na defesa contra o “outro”, gerando exclusão de minorias nacionais e também xenofobia.
E, por isso, é necessário levar em conta o processo de compressão espaçotempo, no contexto da globalização que se intensifica, e os reflexos que traz para os sistemas de representação de identidades.
Esse processo global “bagunça” a compreensão simétrica e equilibrada dos sistemas de representação legados pelo pensamento iluminista, com o senso de ordem, limites etc., numa remodelagem das relações espaço-temporais que gera “efeitos profundos” sobre a forma “como as identidades são localizadas e representadas” (HALL, 2003, p. 70-71).
Nação e autodeterminação foram conceitos essenciais na “era nacionalista”, mas só continuam orientando os problemas e confrontos nacionais na medida em que não existem ainda outros conceitos “pós-nacionalistas” que introduzam formas alternativas de organização política da sociedade (CAMINAL, 2002, p. 47).
As condições tecnológicas, econômicas e até da comunicação, por certo, têm mudado de maneira tal que afetam – e tendem a afetar, ainda mais – as formas de organização política, num mundo cada vez mais global e, ao mesmo tempo, local (CAMINAL, 2002, p. 47).
Nesta era de transição, parece indubitável reconhecer a decrescente utilidade do conceito de autodeterminação como via de resolução de conflitos nacionais. Mas também permanece o fato de que o princípio da autodeterminação continua guiando grande parte dos movimentos nacionais, ou ao menos está na base da “defesa” do governo interno dos Estados diante de poderes externos, nacionais ou supranacionais (CAMINAL, 2002, p. 49).
O quadro político internacional, portanto, parece se dividir entre a independência e a interdependência.
Acontece que, se, por um lado, “o Estado nacional suprimiu todos os ligames espontâneos de união que os homens sempre tiveram para com as comunidades locais menores e para com as coletividades maiores do que a nação” (LEVI, 1998, p. 477), a “dissolução” do nacionalismo estatal, por outro, permitiria que os laços dos indivíduos, das comunidades, enfim, possam ser atados noutros patamares.
Disso tudo decorre que, se não é possível “fugir” da estrutura estatal, é preciso pensar o mundo levando-se isso em conta. Mas também não se pode “fingir” que o nacionalismo ainda mantém o vigor, a lógica e a virtude que antes lhe atribuíram, tanto como uma questão política quanto de identidade.
Neste ponto firma-se a questão que motivou a presente pesquisa: se as identidades individuais já não se circunscrevem à memória da nação; se as questões políticas já não se limitam ao território nacional; se a própria noção de Estado como exercício de independência já não tem lugar no mundo econômica, social, cultural, política e juridicamente globalizado; então, como pensar sistematicamente as relações internacionais/interestatais e transindividuais?
A hipótese, neste trabalho, é que o mundo estatal poderia caminhar para a “federalização”.
2.4.3. A soberania dos Estados modernos, a globalização e o pósnacionalismo
A soberania do Estado moderno apoiou-se no “tripé” da soberania militareconômico cultural, ou seja, “no domínio estatal dos recursos outrora utilizados pelos focos difusos de poder social, mas todos agora necessários para sustentar a instituição e a manutenção da ordem administrada pelo Estado” (BAUMAN, 1999, p. 69).
Jürgen Habermas, por sua vez, analisa os elementos do Estado moderno em 3 (três) perspectivas. Como objeto, o autor identifica o poder estatal em si (governo), interna e externamente soberano. Já o espaço de observação, nesse contexto, seria uma área delineada, por fronteiras, que corresponderia ao território estatal. E, quanto ao sujeito, o autor analisa o Estado socialmente, isto é, pelo conjunto de integrantes desse conceito – a nação, o povo, os indivíduos (HABERMAS, 2002, p. 123-124).
Poderia se identificar, no encontro dessas perspectivas, o exército ou a defesa de fronteiras como expressão de governo (talvez por isso as forças armadas sejam tradicionalmente submetidas ao chefe governamental); o território como âmbito de economia, nacionalizada, onde os processos econômicos deveriam se circunscrever, como projeto de desenvolvimento nacional; e talvez a nação, o povo, os indivíduos como fatores culturais, de memória, história, identidade, e de legitimação.
Nesse sentido, o tradicional quadro da “ordem global” antes refletia, basicamente, o conjunto das ordens locais, “cada uma eficientemente mantida e policiada por um e apenas um Estado territorial” (BAUMAN, 1999, p. 70-71).
É certo que a consolidação histórica do Estado nacional modificou o curso da ideia de soberania. A noção moderna de “nação” esteve ligada à necessidade de autoafirmação, principalmente contra os inimigos externos. A independência da nação traduzia uma liberdade coletiva.
O nacionalismo, portanto, albergou a organicidade da comunidade interna e os processos políticos que diziam respeito à imagem coletiva dos cidadãos como paradigma de coesão social, e, ao tomar um corpo unitário imaginativo-personificado, a nação descobre uma liberdade que iria caracterizar o modo de pensar as relações internacionais à razão da concorrência, ou mesmo da cooperação (HABERMAS, 2002, p. 130).
Mas é certo que a ideia de soberania costuma envolver a questão da legitimidade política. E, por isso, a doutrina ou teoria da soberania sempre entra em “crise” nos períodos de mudança (MATIAS, 2014).
Isso explicaria, duma maneira geral, como é problemático e, por isso mesmo, crucial tratar do quadro político do Estado-nação, no contexto de mudanças provocadas pela globalização e pelo pensamento pluralista.
Como visto, Stuart Hall (2003) analisa a “cultura nacional” como um discurso que, à base de símbolos e representações, produz sentidos sobre a comunidade, influenciando e organizando as ações e a concepção dos indivíduos nacionais, construindo identidades no imaginário.
E, no âmbito estatal, a nação aparece como elemento meta político, o substrato imaginativo de agregação que conduziria a história do povo à formação duma comunidade, por conta de laços étnicos, religiosos, linguísticos, que se propagam para as estruturas e processos políticos (HABERMAS, 2002, p. 124).
As nações funcionaram para firmar a autoidentificação coletiva, formando comunidades imaginárias, pela criação duma memória nacional e pela tomada de consciência política: “[…] mudança de consciência, inspirada por intelectuais, que se impõe inicialmente na burguesia citadina, sobretudo academicamente letrada, antes de alcançar eco em camadas mais amplas da população e ocasionar progressivamente uma mobilização das massas.” (HABERMAS, 2002, p. 127).
Acontece que, como visto, os processos globais vêm apresentando efeitos sobre as formas nacionais de identidade.
Não é que as identidades nacionais caminhem necessariamente à evaporação, já que permanecem fortes as representações e ligações que dizem respeito aos direitos e à cidadania em cada Estado, mas as identidades locais, regionais e comunitárias têm ganhado notoriedade, e passam a “concorrer” entre si.
A rápida modificação é o que tem caracterizado as relações políticas, econômicas, sociais, culturais, pessoais, na contemporaneidade. A globalização mexe com a identidade, e tem marcado aquilo que Stuart Hall (2003, p. 14) chamaria de “sociedades de mudança constante”: “[…] a sociedade não é […] um todo unificado e bem delimitado, uma totalidade, produzindo-se através de mudanças evolucionárias a partir de si mesma […]. Ela está constantemente sendo ‘descentrada’ ou deslocada por forças fora de si.” (HALL, 2003, p. 17).
A globalização, nesse panorama, traduz-se em descontinuidade, fragmentação, ruptura, deslocamento – processos humanos que, todavia, vão além do aspecto pessoal, ganhando contornos culturais, políticos etc.
Mas é certo que os deslocamentos e as rupturas estão relacionados à falta de matrizes identitárias. Afinal, as identidades estão se revelando contrapostas. A identificação do sujeito já não é automática, porque muda conforme ele se sente representado no mosaico da paisagem política. Esse processo conduz à politização da identidade – do sentimento de pertencimento ao reconhecimento da diferença (HALL, 2003, p. 20-21).
O processo de mundialização, ademais, tem repercutido no fomento de identificações – por assim dizer – globais, que “começam a deslocar e, algumas vezes, a apagar as identidades nacionais” (HALL, 2003, p. 73).
Especialmente após a segunda guerra mundial, segundo Jürgen Habermas (2002, p. 136), haveriam se “esgotado as fontes de energia de um nacionalismo exacerbado”.
Baseado no discurso de liberdade, ironicamente, o nacionalismo teria se revelado antidemocrático:
[…] a história do imperialismo europeu entre 1871 e 1914, tal como o nacionalismo integral do século XX (isso sem falar no racismo dos nazistas), ilustra o triste fato de que a ideia de nação serviu muito menos para fortalecer as populações em sua lealdade ao Estado constitucional do que para mobilizar as massas em favor de objetivos que dificilmente se podem harmonizar com princípios republicanos (HABERMAS, 2002, p. 133).
A partir daí, especialmente na Europa, a ideia de força ou coesão nacional deixou de ser vinculada necessariamente à política externa, de forma tal que, por um lado, tanto as “questões polêmicas sobre fronteiras não estavam na ordem do dia” quanto, por outro, os “conflitos sociais não podiam estender-se ao exterior”, tendo que “ser contornados sob o primado da política interna” (HABERMAS, 2002, p. 136).
Em resumo, o Estado-nação enfrentaria 2 (dois) problemas, que atacam a mesma questão: a integridade da comunidade soberana, visto que, como sintetiza Habermas (2002, p. 134), estão em xeque tanto a coletividade histórica de origem e ascendência comum (desafiada internamente pela força do multiculturalismo) quanto a inteireza político-jurídica estatal (pressionada externamente pela globalização).
Com efeito, o movimento do multiculturalismo e os processos de globalização têm refletido em modificações das identificações tradicionais, pelo contato e exposição com outros sistemas de representação, num panorama em que se torna difícil conservar as identidades culturais como “intactas”:
Os fluxos culturais entre as nações e o consumismo global criam possibilidades de ‘identidades partilhadas’ – como ‘consumidores’ para os mesmos bens, ‘clientes’ para os mesmos serviços, ‘públicos’ para as mesmas mensagens e imagens – entre pessoas que estão bastante distantes umas das outras no espaço e no tempo (HALL, 2003, p. 74).
Nesse contexto, “quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação”, ou seja, quão maior o fluxo de objetos de representação, quão maior o contato com outras práticas, outras simbologias, outras formas de expressão, “mais as identidades se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicos, e parecem ‘flutuar livremente’” (HALL, 2003, p. 75).
Por outro lado, a conjuntura mundial tem se caracterizado pela institucionalização da interdependência entre os povos, pelo protagonismo do direito internacional em diversas matérias, o aumento de regras e instituições de caráter internacional e transnacional, entre outros fatores que desenham um contexto no qual, embora o Estado tenha participação na criação das estruturas e na aceitação das normas internacionais, a agenda político-jurídica global e o movimento pela cooperação mundial afetam a autonomia estatal e, por conseguinte, também o exercício – fático – da soberania (MATIAS, 2014, p. 71).
Tanto cultural quanto politicamente, então, o projeto do Estado nacional apresenta alguma “debilidade”. Talvez neste contexto, então, é que se possa pensar em formas de organização política “pós-nacionais”.
Nesse sentido, primeiramente, Habermas (2002, p. 136) ressalta que o republicanismo do Estado democrático pode apartar-se da necessidade de autoafirmação nacional, que antes dirigia a política externa de dominação, orientada por interesses nacionais e motivada por razões geopolíticas, dando origem, assim, ao que o autor chamaria de “pós-nacionalismo”.
Para o autor dificilmente a identidade cultural como nacionalismo poderá sustentar o projeto estatal do constitucionalismo moderno. Mas um projeto político de organização legitimada do poder não deveria – nem poderia – ser abandonado.
E, já que a ideia de nação como origem étnico-identitária perde a força de integrar a comunidade, o autor aponta a noção de “patriotismo constitucional” como substituto do nacionalismo histórico-originário (HABERMAS, 2002, p. 135).
Conforme esclarece Bunchaft (2015, p. 31-32), a proposta de Habermas aparece no sentido de que, num contexto de reconhecimento do pluralismo, as comunidades democráticas somente conseguiriam manter um projeto constitucional de pertencimento numa perspectiva de identificação política pós-nacional, já que, afinal, o nacionalismo tradicionalmente assume caráter discriminatório.
Nesse sentido, a ideia de comunidade de origem poderia ser substituída pela noção de cidadania política, desde que funcione como espaço para integração social, não apenas como substrato da liberdade individual e da autonomia privada (HABERMAS, 2002, p. 135-136).
Na ideia de patriotismo constitucional, “os cidadãos são politicamente integrados na base de procedimentos discursivos”, não se tratando de integração étnico-cultural, pois a “nação de cultura” seria substituída por uma “nação de cidadãos”, baseada no entendimento coletivo pela deliberação democrática nas decisões políticas (BUNCHAFT, 2015, p. 36).
Nessa proposta, o patriotismo constitucional aparece como uma maneira de “fornecer um modelo de identificação política capaz de superar o nacionalismo” (BUNCHAFT, 2015, p. 34).
Na visão de Jürgen Habermas (2002, p. 130-131), portanto, a “nação” poderia assumir uma acepção contratualista, numa perspectiva de autonomia pública comunitária, formada por cidadãos que “compreendem e defendem a constituição como uma conquista no contexto da história do seu país”, mas que enxergariam na liberdade nacional a autorização e o compromisso em prol de cooperação e aliança entre os povos em busca de soluções pacíficas.
Afinal, por outro lado, insistir no entendimento naturalista da “nação como grandeza anterior à política” pode resultar numa incisiva perspectiva de autoafirmação coletiva, isto é, “na capacidade de afirmar sua independência, até mesmo pela força militar”48 (HABERMAS, 2002, p. 131).
A partir da segunda metade do século XX, o avanço na proteção e na concretização de direitos humanos – tanto monitorados externamente, quanto cumpridos nacionalmente – haveria, segundo Habermas, acarretado numa “pacificação socio estatal do antagonismo de classes”, gerando coesão social em torno de projetos constitucionais de equalização e inclusão. Essa “transformação dos direitos fundamentais em realidade” contribuiria na agregação da “nação real de cidadãos” em preferência à “nação imaginada” (HABERMAS, 2002, p. 137).
Habermas, então, trabalha a noção de solidariedade enquanto elemento integrativo da comunidade democrática em torno dum projeto constitucional, desvinculado do nacionalismo de raiz, mas no qual todos podem se sentir contemplados com direitos e, por isso, também com deveres ou corresponsabilidade entre os membros da nação: “A constituição revelou-se como moldura institucional eficiente para uma dialética entre a igualdade jurídica e factual, que ao mesmo tempo fortaleça a autonomia privada dos cidadãos, bem como sua autonomia cidadã no âmbito do Estado.” (HABERMAS, 2002, p. 137).
Mas não se pode esquecer que a própria autonomia do Estado – equiparado ou não à nação, construído ou não na base dum projeto constitucional pós-nacional – é posta em dúvida no contexto da globalização.
Ademais, pensar em identificações políticas a partir de projetos normativos não parece contemplar ou mitigar o fato de que as identidades culturais têm relação com a própria agregação dos sujeitos em torno da comunidade política, podendo afetar, talvez, o desenvolvimento desse “patriotismo constitucional”.
De fato, para Miquel Caminal (2002, p. 41), por exemplo, tem pouco sentido conceitual a contraposição entre nacionalismo cívico-cidadão e nacionalismo étnicohistórico, porque não deixariam de ser, na verdade, 2 (duas) faces da mesma moeda.
Segundo o autor, sempre haveria alguma forma de “etnicismo” mesmo num nacionalismo “constitucional”, em maior ou menor grau.
Portanto, para Caminal (2002, p. 41), pensar a nação tanto como comunidade cívica quanto étnica revelaria 2 (duas) acepções de um único conceito: a nação – que só tem sua razão histórica de existir na medida em que se relaciona com a formação, evolução e consolidação do Estado moderno nacional.
Parece inevitável, portanto, pensar em formas políticas de organização que se possam estruturar fora do Estado-nação.
Afinal, num contexto em que a autonomia do sistema econômico, funcionando em dimensão transfronteiriça, tende a neutralizar a autonomia da política nacional, a qual passa a ser identificada apenas como questão tecno econômica (nível de inflação, limites de endividamento etc.), “deplora-se a política e anseia-se, por outro lado, por uma Grande Política, pensada como mundial” (DUPAS, 2005, p. 158).
Expostas às interseções econômico-políticas do mercado global, as comunidades tendem a perder a singularidade das suas realidades, uma vez que, “no interior do discurso do consumismo global, as diferenças e as distinções culturais” acabam “reduzidas a uma espécie de língua franca internacional ou de moeda global”, modificando-se a lógica dum contexto onde, antes, a diversidade/individualidade dava o tom da identidade, ao passo que, na pós modernidade global, “as tradições específicas e todas as diferentes identidades podem ser traduzidas”, fenômeno que poderia ser chamado de homogeneização cultural (HALL, 2003, p. 75-76).
Por um lado, então, um projeto político de globalidade pode ser viabilizado, na medida em que a interação entre os diferentes sujeitos do planeta parece aproximar as diferentes identidades, as diferentes linguagens, os diferentes modos de viver, o que pode fomentar a construção de lugares-comuns que possam agregar desde a tolerância cultural até a deliberação política.
Noutro giro, Jürgen Habermas (2002, p. 135) entende que as constituições democrático-republicanas adotam princípios comuns – “tais como soberania do povo e direitos humanos” – mas que são lidos ou interpretados, em cada diferente realidade, de maneira diversa, muito sob a luz da própria história política de cada “nação”. Isso apontaria, por um lado, certa compatibilidade política entre as estruturas constitucionais dos Estados, mas também alguma divergência no resultado dos processos internos.
Eduardo Felipe Matias (2014, p. 503-504), por sua vez, identifica a concepção de comunidade internacional a partir da adoção de valores comuns – como aqueles expressos em direitos humanos – a todos os Estados, princípios que regem as relações entre nações, Estados, sujeitos internacionais (MATIAS, 2014, p. 503-504).
Daí, então, decorreria a ideia de que também uma “homogeneidade político-jurídica” poderia ocorrer no contexto da globalização.
Talvez a linguagem política, assim, possa aproximar, ou melhor, aproveitar a aproximação entre as identidades culturais e os projetos constitucionais, mundo afora.
É nesse sentido, então, que se recorre à doutrina-teoria do federalismo, como proposta para pensar e sistematizar as relações internacionais, a partir duma lógica de conjugação entre unidades políticas autônomas, mas que mantêm padrões de conduta humana comuns, que alberga o fluxo social-econômico-cultural e, ao mesmo tempo, fomenta identidades locais e – por assim dizer – globais.
Afinal, explica Miquel Caminal (2002, p. 161), a conjugação da diversidade na unidade aparece como princípio do pensamento federativo, por meio do qual se busca, num Estado, alcançar a união nacional, tornando-a compatível, porém, com a manutenção da pluralidade das comunidades menores.
E a lógica por trás dessa doutrina, então, conduziria à seguinte pergunta: poderia essa união ser mantida com comunidades externas à nação? Ou melhor, poderia essa conjugação (unidade-diversidade) ser pensada além do Estado-nação?
Afinal, se o federalismo serve para manter a união dentro do Estado-nação, resta saber se, “superada” – hipoteticamente – a nação, e “rompida” a soberania estatal como unidade hermética, ele poderia funcionar também para manter uma união “pós-nacional”.
2.4.4. A diluição da soberania, um direito cosmopolita e uma comunidade internacional
Immanuel Kant haveria fundado, no final do século XVIII, “a teoria da paz perpétua democrática na política internacional”, segundo Gilberto Dupas (2005, p. 137), ao projetar que somente por meio duma união pacífica entre Estados republicanos, orientada por um direito cosmopolítico, seria “menor a probabilidade de guerra e maior a possibilidade de paz”:
Segundo ele, a paz perpétua pode ser alcançada, após a incorporação e aceitação, por parte de todos os Estados, de um sistema internacional, com três artigos definitivos: a constituição civil do Estado deve ser republicana; o estabelecimento de uma federação ou união pacífica entre eles, para garantia de liberdade e segurança, com manutenção de direitos particulares; e, por fim, o estabelecimento de um direito cosmopolita, operando em conjunto com a união pacífica (DUPAS, 2005, p. 136- 137).
Ao conceber uma forma de organizar a vida público-estatal a partir duma conexão entre a política interna e a política externa de cada país, Kant teria contribuído para o abrandamento da “razão de Estado” como expressão particular do uso da soberania, ao passo que promoveria alguma sobreposição do “direito das gentes”, lançando, naquela época, as bases teórico-filosóficas para a globalização político-jurídica, num contexto de expansão e repercussão internacional dos movimentos – e teoremas – político-econômicos do liberalismo (DUPAS, 2005, p. 136-137).
Kant (2010, p. 65) chegou a afirmar quando escreveu o texto “À paz perpétua” –a comunidade humana vinha si estreitando, “até o ponto de que uma violação do direito, cometida em um lugar, repercutisse nos demais”, o que lhe permitiu inferir que “a ideia do direito da cidadania mundial não é uma fantasia jurídica”, mas seria um “complemento necessário do código não escrito do direito político e do direito das gentes, que se eleva, desse modo, à categoria do direito público da humanidade e favorece a paz perpétua”.
Para o autor, os Estados só têm como sair do permanente estado de guerra abrindo mão da sua “liberdade natural”, tal qual se daria com os indivíduos que saem do estado de natureza. Ao abrirem mão da soberania, então, inclinar-se-iam os Estados necessariamente às normas coletivas e cosmopolíticas, e, assim, poderiam se autolimitar numa “federação de povos”, que evite guerras e refreie as investidas arbitrárias (KANT, 2010, p. 57).
E é neste momento, então, que se encontram todos os pressupostos construídos ao longo desta pesquisa.
Na base da hipótese lançada no presente trabalho está a proposta de analisar se o quadro político-jurídico atual oferece condições para pensar-se numa federação internacional ao estilo kantiano.
A consolidação do Estado moderno, como visto, pressupôs uma soberania que envolvia, basicamente, o governo sobre um povo, um território e uma economia.
Esse conjunto era governado segundo uma razão própria de Estado. E ela se caracterizava pela lógica da autolimitação externa, que expressava o princípio da concorrência necessária e suficiente para manter a sociedade internacional em equilíbrio. Naquele contexto, a “balança europeia” era calibrada a partir da diplomacia e da guerra:
[…] cada Estado deve se autolimitar em seus próprios objetivos, assegurar a sua independência e um certo estado das suas forças que lhe permitam nunca estar em situação de inferioridade, seja em relação ao conjunto dos outros países, seja em relação aos seus vizinhos, seja em relação ao mais forte de todos os outros países […] (FOUCAULT, 2008, p. 9).
Por outro lado, havia uma ilimitação interna, isto é, a razão de Estado traduzia objetivos ilimitados do governo, dentro do território, onde se vivia um “estado de polícia”. No âmbito da política interna, os que governam tomam em consideração e encarregam-se não apenas da atividade dos grupos, das diferentes situações e condições, dos tipos de cidadãos, mas das individualidades em minúcia, “da atividade dos indivíduos até em seu mais tênue grão”; o objeto dessa polícia era um objeto praticamente infinito (FOUCAULT, 2008, p. 10).
O resultado disso, então, é que, externamente, todo Estado tinha objetivos limitados, encontrava limites fora de si, bem definidos. Mas, em âmbito interno, sua força, a força política de quem governava, adentraria os mais recônditos espaços da vida humana, disciplinando os indivíduos e toda a organicidade social. E esses objetivos internos eram praticamente ilimitados, justamente, para viabilizar a concorrência internacional, isto é, para manter o estado de “equilíbrio sempre desequilibrado” – a balança concorrencial equilibrada entre os Estados. Desse modo, quem governava tinha que regulamentar a vida dos súditos, sua atividade econômica, sua produção, o preço pelo qual se vendem e compram as mercadorias etc. (FOUCAULT, 2008, p. 10).
Como resume Michel Foucault (2008, p. 10-11), naquele contexto, “a limitação do objetivo internacional do governo segundo a razão de Estado” teria por correlato “a ilimitação no exercício do Estado de polícia”.
A partir do século XVIII, a noção moderna de soberania cederia espaço – numa certa perspectiva – àquilo que Foucault vai chamar de “arte de governar”, a qual, por sua vez, se voltaria para a direção de 2 (dois) processos simultâneos: “o movimento que faz aparecer a população como um dado, como um campo de intervenção, como o objeto da técnica de governo” e, por outro lado, “o movimento que isola a economia como setor específico da realidade e a economia política como ciência e como técnica de intervenção do governo neste campo da realidade” (FOUCAULT, 1993, p. 291).
E, assim, como diz o autor, “são estes três movimentos – governo, população, economia política – que constituem, a partir do século XVIII, um conjunto que ainda não foi desmembrado” (FOUCAULT, 1993, p. 291).
Um dos aspectos da “arte liberal de governar”, para Foucault (1999, p. 71), está relacionado aos “equilíbrios internacionais”, ao “espaço internacional no liberalismo”.
O autor pronuncia que, na verdade, com o despontar do liberalismo (portanto, a partir do Estado-nação), a ideia de paz perpétua e a ideia de organização do espaço internacional começariam a articular-se, não tanto como limitação das forças internas de cada Estado, mas como uma perspectiva de “ilimitação do mercado externo”, num sentido de: quão “mais vasta” for a projeção da lógica econômica do liberalismo, “menos fronteiras e limites haverá”, e mais se teria nisso a garantia de paz (FOUCAULT, 1999, p. 78).
Tomando o exemplo do projeto de Kant, sobre a paz perpétua, Michel Foucault (2008) identifica que o filósofo, no texto de 1795, atribuiria a garantia desse projeto de paz à própria natureza:
E como é que a natureza garante a paz perpétua? Pois bem, diz Kant, é muito simples. A natureza tem feito, afinal, coisas absolutamente maravilhosas, tanto assim que conseguiu, por exemplo, fazer não somente animais, mas até mesmo pessoas viverem em países impossíveis, completamente calcinados pelo sol ou gelados por neves eternas (FOUCAULT, 2008, p. 78).
Disso se concluiria, nesta interpretação, que, se há pessoas que vivem em todos esses lugares, então, não haveria parte do mundo onde os homens não pudessem viver:
Mas, para que os homens possam viver, eles precisam poder se alimentar, produzir sua alimentação, ter uma organização social [e] trocar seus produtos entre si ou com os homens de outas regiões. A natureza quis que o mundo inteiro, em toda a sua superfície, fosse entregue à atividade econômica que é a da produção e da troca. E, a partir daí, a natureza prescreveu ao homem certo número de obrigações que são ao mesmo tempo para o homem obrigações jurídicas, mas que a natureza de certa forma lhe ditou por baixo do pano, de certa forma deixou impressas na disposição das coisas, da geografia, do clima etc. (FOUCAULT, 2008, p. 78-79).
As “disposições da natureza” voltadas para o homem, no pensamento de Kant, seriam, basicamente, 3 (três), como sintetiza Foucault (1999, p. 79).
Primeiramente, a possibilidade e capacidade dos homens para manterem relações entre si, para manterem relações de troca baseadas na propriedade etc. Seriam prescrições da natureza que se convertem nas obrigações jurídicas que vão caracterizar o direito civil.
Em segundo plano, por natureza, os homens teriam sido agrupados em diferentes regiões, mantendo entre si relações privilegiadas em cada comunidade, que se desenvolveram como Estados, os quais, separados, mantêm relações jurídicas uns com os outros. E essas relações, por sua vez, originariam o direito internacional.
E, além disso, querendo a natureza que os Estados mantivessem não apenas relações jurídicas que garantissem a independência, mas também relações comerciais que atravessassem fronteiras, o mundo seria coberto por uma rede de interrelações que vai se estender por onde houver população, é dizer, se o mundo todo é povoado (e povoável), então, assim nasceria o direito cosmopolita.
Portanto, em Kant, “esse edifício – direito civil, direito internacional, direito cosmopolita – nada mais é que a retomada pelo homem, na forma de obrigações, do que havia sido um preceito da natureza” (FOUCAULT, 1999, p. 79).
No projeto kantiano, explica Foucault (1999, p. 80), “a paz perpétua é garantida pela natureza, e essa garantia é manifestada pelo povoamento do mundo inteiro e pela rede de relações comerciais que se estendem através de todo o mundo”.
Ou seja, noutras palavras, “a garantia da paz perpétua é, portanto, de fato, a planetarização comercial” (FOUCAULT, 1999, p. 80).
A razão econômica, então, conduziria à planificação dos interesses, diminuindo os confrontos – ao menos os confrontos armados.
Na base do pensamento cosmopolita de Kant está, fundamentalmente, a abdicação de qualquer violência na resolução de conflitos. Aliás, a manutenção de exércitos já seria, em si, uma ameaça contra a perpetuação de qualquer estado de paz, pois o “estar preparado” para o confronto armado já induziria no imaginário coletivo o estado permanente de guerra – sensação que pode ser construída até mesmo pela simples reserva financeira de fundos voltados propriamente para eventual contingente bélico (KANT, 2010, p. 25).
No pensamento de Kant, pois, a razão conduziria as decisões políticas no sentido contrário à guerra, vendo-se na busca pela paz um dever consciente entre os homens, mas que somente é possível mediante um pacto, uma aliança coletiva, que deveria ser de tipo permanente – foedus pacificum (KANT, 2010, p. 53).
A federação pensada por Immanuel Kant, todavia, não pressupõe que venha a ter nem que adquira os poderes dos Estados. Sua proposta seria apenas de “manter e assegurar a liberdade de um Estado em si mesmo e também a dos demais estados federados”, sem que se veja qualquer parte submetida à coação (KANT, 2010, p. 53).
Como se vê, então, segurança e economia aparecem como os 2 (dois) pilares desse federalismo internacional.
Por sua vez, Miquel Caminal (2002, p. 158) enuncia aqueles que seriam os 2 (dois) preceitos que estão pressupostos na história de todo federalismo. Um negativo, outro positivo. O primeiro (negativo) traduziria uma maneira de evitar a guerra ou o enfrentamento dispendioso para as partes implicadas – a partir duma lógica que recomenda a união do adversário, se não se pode vencê-lo. Mas, porque é necessário estabilidade e confiança num arranjo desse tipo, o segundo princípio (positivo) orienta a manutenção do pacto federativo numa lógica de construir um projeto comum e com benefícios equalizados.
Assim, a primária razão para a origem de pactos federativos entre comunidades seria a da segurança mútua entre as partes pactuantes. Uma segunda razão seria a criação dum espaço econômico e social protegido da concorrência ou ameaça exterior – afinal, a defesa compartida assegura a paz e o comércio interno gera cumplicidade e interesses comuns (CAMINAL, 2002, p. 158).
E essas 2 (duas) razões também são encontradas, como se vê, no pensamento de Kant sobre a paz perpétua.
De certa maneira, é isso que talvez esteja acontecendo – ou possa vir a acontecer – no quadro político internacional.
Não é que a internacionalização da economia esteja conduzindo necessariamente à paz mundial. Longe disso. Mas é certo, por outro lado, que a planetarização econômica tem levado a uma planificação dos interesses estatais, a partir duma linguagem política universal, que tem formado estruturas abertas ao curso dos projetos liberais de constitucionalismo, direitos humanos, democracia etc.
Ademais, se o Estado se consolidou, soberano, ao tentar conter a população e a economia dentro das fronteiras nacionais, o novo fluxo – de pessoas, capitais etc. – da globalização parece romper as bordas da soberania estatal.
Os territórios já não comportam a economia nem os indivíduos; o governo estatal já não tem a mesma força política.
As mudanças provocadas pelo processo de globalização, interferindo nos fatores econômicos, culturais, comunicacionais, tecnológicos de todo o mundo, também alcançam a política e afetam os alicerces do Estado moderno.
É diante disso que Miquel Caminal (2002, p. 154-155) entende que o federalismo pode ser a via de continuidade entre o ontem e o amanhã, é dizer, contribuindo na transformação do Estado nacional em outra forma político-estatal de organização da sociedade.
Trata-se aí duma perspectiva que o autor aproxima da história da federação norteamericana, que fora concebida como arranjo capaz de construir uma “grande nação” com vários Estados no seu interior (CAMINAL, 2002).
Se o federalismo apareceu, na constituição dos EUA, como uma saída, um arranjo político capaz de manter unidos Estados independentes em torno dum projeto de poder comunitário, isto é, que se dividia entre as unidades de poder numa complexa rede de instituições, então, a indagação central da hipótese aqui colocada reside em tentar identificar qual seria o resultado, caso se “projetasse” essa sistemática federativa para fora do Estado nacional.
O mundo do Estado-nação traduziria uma realidade na qual se costumam dirimir as relações internacionais tradicionalmente pela força, conforme constata Caminal (2002, p. 155), de modo tal que os Estados nacionais teriam não apenas se tornado “perigosos” para seus vizinhos, mas débeis também para defender seus próprios cidadãos.
É nesse sentido que Jorge Miranda (2014, p. 67) explica, por outro lado, como o movimento de internacionalização da proteção à pessoa humana – complementando ou substituindo as garantias e tradicionais anteparos jurídicos nacionais – teria sido motivado por 2 (dois) fatores, reconhecidos ao longo do século
XX, seja porque, em vários episódios, o Estado “rompeu as barreiras jurídicas da liberdade e se converteu em fim em si mesmo”, seja pela “multiplicação das formas de coordenação e de subordinação” ocorridas no contexto da globalização política.
Ainda segundo o autor, mesmo que não se atribuam direitos subjetivos universais ao indivíduo, o sistema de proteção humanitária buscaria assegurar a sua integridade diante do seu próprio Estado ou perante a comunidade internacional, e isso tende a ser feito pela percepção de direitos tanto de ordem jurídica material quanto de natureza processual (MIRANDA, 2014, p. 70-71).
Enfim, também por conta da “ascensão do indivíduo” como sujeito global e do “fortalecimento da comunidade internacional”, Eduardo Felipe Matias (2014, p. 496- 497) compreende que “o modelo do Estado soberano não consegue mais explicar com precisão a forma pela qual o mundo se organiza”.
No atual panorama, Matias (2014, p. 501) constata como “a proliferação de normas e instituições internacionais permite concluir que vivemos em uma sociedade internacional”. Uma sociedade onde o Estado já não é um fim em si mesmo, onde a razão de Estado já não prevalece, onde o trânsito de pessoas, de culturas, de bens, da economia etc. demanda um novo paradigma para organização política.
É nesse sentido, então, que se poderia identificar a tendência à formação duma federação internacional.
Como já assentado por Miquel Caminal (2002, p. 33), embora tenha se prestado à construção e manutenção do Estado nacional, o federalismo pode traduzir uma forma autônoma de pensar a organização político-social.
No sistema de organização aqui pensado, os Estados nacionais apareceriam como Estados-membros duma federação, interligados por uma rede de instituições que se agrupam em torno dum projeto maior, baseado na distribuição do poder político entre instâncias de diferentes níveis, que são capazes de adotar padrões de “direito público” comuns a todos, embora possam ter variadas aplicações nas diferentes realidades sociais.
Esse federalismo organizaria o poder tanto em níveis locais como globais, harmonizando as decisões políticas, desde leis municipais até convenções internacionais, a partir de normas reconhecidas – e cobradas – por todos, na maior medida possível.
Das características centrais do federalismo aqui já estudadas, as que se destacaram estão ligadas à ideia de autonomia política das unidades, dentro dum sistema maior, caracterizado pela participação nas decisões mais abrangentes, bem como na convivência de normas político-constitucionais próprias de cada localidade – tudo isso englobado sob uma ordenação comum, superior, com princípios fundamentais.
Talvez essas características possam ser identificadas – ainda que em estágio embrionário de formação e desenvolvimento – no quadro de instituições do direito internacional público e na própria realidade da globalização.
Os pressupostos da hipótese aqui aventada residem, basicamente, na noção de “liquidez” das formas político-estatais, no mundo contemporâneo.
Retomando-se a análise de Bauman (1999), no sentido de que o Estado se formou soberano pelo controle do território, da economia e da cultura (aqui entendida como identidade coletiva), seria possível reconhecer, noutra mão, que – como já visto – os processos econômicos e as identidades tornaram-se fluidos, já não cabendo no exclusivo espaço do Estado-nação.
E, assim, se já não há povos nem economias a serem contidas dentro das fronteiras, “as nações estão se transformando, de corpos territoriais coesos, em associações, cada vez mais transplantáveis e espacialmente dispersas de unidades aliadas do ponto de vista espiritual” (BAUMAN, 2013, p. 69).
A globalização, “ao corroer a soberania”, tem desintegrado “os alicerces da independência territorial”, que foi o “antigo abrigo da identidade nacional” e a “garantia de sua segurança durante os últimos duzentos anos” (BAUMAN, 2013, p. 68).
O discurso legitimado de causas globais, como a ecologia, os direitos humanos etc., conduzem à agregação dos indivíduos e de coletividades – como entidades sociais, Organizações Não-Governamentais (ONG) – em torno de projetos jurídicopolíticos trans estatais, o que tem conduzido à esfera de legitimação das macro decisões políticas a esferas externas.
Os Estados-membros têm limites evidentes nesse sistema. O fato de serem reprovadas, de serem condenadas, por exemplo, as ações unilateralmente tomadas (o que pode ser percebido em diversas áreas) “seria um dos indícios de que os Estados decidiram abrir mão de grande parte da liberdade que originalmente possuíam a fim de poderem alcançar os ganhos obtidos com a cooperação” (MATIAS, 2014, p. 502).
O regulamento da ONU, por exemplo, obriga os Estados “a respeitar os direitos humanos, a soberania recíproca de cada um, bem como a abdicar ao uso da violência militar”; e, embora as instituições das Nações Unidas não assumam a mesma forma e força que os tribunais e as policiais nacionais tradicionalmente têm, ainda assim “podem impor sanções e conferir mandados para a execução de intervenções humanitárias” (HABERMAS, 2001, p. 134).
Certamente, a ONU não encabeça esse federalismo, nem representa uma entidade capaz de constituir, ainda, uma federação mundial. Mas ela faz parte dessa rede de instituições que ajudam a organizar o poder político, em torno de projetos internacionais – assim como a União Europeia, o Mercosul, a UNASUL etc.
Segundo constata Eduardo Matias (2014, p. 503), “a forma como o mundo evoluiu faria que a ideia de soberania estatal passasse a fazer pouco sentido”.
E, por outro lado, “a diluição da soberania seria acompanhada da ideia de que a legitimidade passaria a ser conferida por uma entidade diferente dos Estados: a comunidade internacional” (MATIAS, 2014, p. 503).
O autor adota, nesse sentido, uma concepção de comunidade que se designa pela adoção de valores comuns – como aqueles expressos em direitos humanos, por exemplo – os quais, todavia, na medida em que deixam de ser exclusivamente interestatais, quando envolvem também atores transnacionais (como ONGs que atuam em perspectiva transfronteiriça), podem se colocar acima da vontade política dos Estados, assumindo caráter supranacional (MATIAS, 2014, p. 504).
Ademais, a crescente internacionalização da economia também delimita o reduzido âmbito de ação das políticas nacionais, territorialmente restritas, bem como de estratégias que podem ser adotadas para administrar os efeitos da globalização (DUPAS, 2005).
Por outro lado, sendo a economia o que orienta a política nacional, desvinculando-se de qualquer sistemática de garantia social, o que, segundo Jürgen Habermas (2002, p. 140- 141), isso dissolveria a coesão popular que haveria sido agregada, por meio da participação democrática, no discurso do nacionalismo.
Poderia, então, a internacionalização da economia orientar a política, contudo, à coesão internacional, em torno de projetos de estabilidade?
Conforme propõe Habermas (2002, p. 141), se assim for, a política nacional, neste contexto globalizado, deveria orientar e formar cidadãos “capazes de agir politicamente em um plano supranacional”, de modo a concatenar ações e conduções sociais, diante dos processos econômicos externos aos Estados, a partir de estruturações conformadas democraticamente.
A ideia de superação do Estado nacional – comumente veiculada ou profetizada no contexto avançado da globalização – pode desaguar, basicamente, em 2 (duas) perspectivas: uma organização interpessoal que independe de Estados, mas que funciona à lógica da eficiência econômica, uma sociedade descentrada, sem qualquer autoridade central ou superior; ou uma sociedade global que se relaciona em nível supranacional. Entretanto, como lembra Habermas:
Uma ordem mundial e uma ordem econômica global mais pacífica e mais justa não podem ser concebidas sem instituições internacionais capazes de agir, nem sem processos de conciliação entre os regimes continentais ora emergentes, nem tampouco sem políticas que provavelmente só poderão se impor sob a pressão de uma sociedade civil capaz de transitar em esfera global (HABERMAS, 2002, p. 145).
De fato, Gilberto Dupas (2005) aponta como uma das perspectivas que restam para lidar com a globalização aquilo que chama de “estratégia cosmopolita”, que revelaria um modo de conceber as relações internacionais como um espaço de necessária cooperação, onde a noção de soberania perderia espaço – pois a política nacional não consegue conter o trânsito internacional de mercadorias, pessoas etc. – num contexto institucional de integração transnacional, como o que se deu na Europa desde o final do século passado.
Tal processo, por outro lado, conduziria – diz o autor – à “progressiva dissolução da unidade ‘natural’ entre Estado e nação”, restringindo-se a autonomia estatal e empolgando-se a auto desnacionalização, numa espécie de “cessão de soberania nacional em favor de um novo centro de poder político supranacional”, o que seria organizado como “uma federação de Estados ou arranjo semelhante” (DUPAS, 2005, p. 168-169).
Habermas, noutro giro, reconhece não é possível ainda pensar numa comunidade global, que simplesmente se projete politicamente para fora do âmbito estatal, porque lhe faltaria a coesão social e o comunitarismo político que torna os indivíduos, dentro do Estado nação, conscientes duma identidade coletiva própria:
Não vejo nenhum impedimento de ordem estrutural para o prolongamento da solidariedade civil nacional e da política estatal de bem-estar social no âmbito de um Estado federativo pós-nacional. Mas falta à cultura política da sociedade mundial a dimensão ético-política comum, que seria necessária para uma tal construção da comunidade e da identidade globais (HABERMAS, 2001, p. 137).
O autor aponta, então, 2 (dois) problemas que deveriam ser superados, para que se possibilite conceber uma política mundial – mesmo que desprovida dum governo mundial. O primeiro deles seria pensar “uma legitimação democrática de decisões para além do esquema da organização estatal”. E o segundo reside em “modificar a autocompreensão dos atores capazes de negociações globais”, de modo tal que tanto os sujeitos dos Estados quanto as administrações supranacionais possam se reconhecer como membros da mesma comunidade, isto é, que percebam como “são obrigados, sem outra alternativa, a levar em conta reciprocamente os interesses uns dos outros e a defender os interesses universais” (HABERMAS, 2001, p. 140).
Como alternativa à primeira questão, o autor aponta que a força legitimadora do procedimento democrático deriva menos da participação, da expressão da vontade, da representação, do voto etc., do que do acesso universal ao “processo deliberativo cuja natureza fundamenta a expectativa de resultados racionalmente aceitáveis”, de modo tal que poderiam ser levados ao foro internacional outros atores capazes de participar das deliberações, como ONGs transnacionais, bem como serem consultados os Estados-membros em questões relevantes (HABERMAS, 2001, p. 140-141).
Para o segundo ponto, o autor chama à responsabilidade os atores que representam as forças capazes de negociar em plano global, desde que estejam dispostos a transpor as barreiras dos “interesses nacionais”, o que, todavia, também exige “mudança de consciência” das próprias populações, ou seja, “de certo modo, uma consciência da solidariedade cosmopolita obrigatória” (HABERMAS, 2001, p. 141).
Mas, como se pode ver, é nesse fluxo político entre autonomia estatal e distribuição do poder que se podem construir novas identidades políticas, de projeção internacional. A questão humanitária, a preocupação com a ecologia, por exemplo, são aspirações sociais que já transpassam as fronteiras estatais. Os Estados não apenas deixaram de ter força política para administrar a economia, mas não apresentam mais legitimidade suficiente para decidir como administrar a população local, os recursos naturais etc.
Mas eventual ou hipotética diminuição ou dissolução da soberania estatal não significa necessariamente a desimportância do Estado na política nacional e internacional.
Afinal, se, por um lado, “o Estado nacional não dispõe mais, de fato, do monopólio da soberania jurídica”, por outro, ele ainda é partícipe do quadro político, no qual os atores globais exercem, de maneira conjunta, o poder – atores como “escritórios jurídicos, ONGs, instituições internacionais e nações hegemônicas” (DUPAS, 2005, p. 144).
O processo de globalização conduziu às mudanças políticas que se expressaram no desenvolvimento de estruturas complementares de poder, que mantêm interrelações institucionais, em nível nacional, regional e global; são transformações que, “em último, grau, buscam a globalização de padrões de conduta para a humanidade”, ou seja, que têm conotação jurídica, ao mesmo tempo em que “põem em xeque o princípio da soberania como organizador básico do sistema internacional”, como descreve Gilberto Dupas: “[…] a partir da criação da ONU, a soberania é definida como autoridade legítima, baseada na manutenção dos direitos humanos e da democracia. Antes disso, era definida como a capacidade efetiva de exercer poder num território […].” (DUPAS, 2005, p. 147)
Nesse contexto, parece certo que “as transformações políticas e legais nos últimos cinquenta anos na área internacional limitaram e demarcaram o poder político em bases globais e regionais” (DUPAS, 2005, p. 165).
Curiosamente, porém, esse jogo entre o local e o global, como já ventilado neste trabalho, também afeta a questão da identidade. E isso toma proporções sensíveis, no contexto de mundialização das relações político-pessoais.
É que, como já percebido, a preocupação com a homogeneização cultural induzida pela globalização acaba despertando algumas “reações” contra essa possível mundialização. E, nesse sentido, algum “redespertar” do nacionalismo e certa efervescência do “fundamentalismo” têm aparecido como expressão de resistência – caracterizando as 2 (duas) principais reações identitárias que emergiram no final do século XX.
Esse particularismo, esse localismo que se vê crescer, então, apareceria como resposta “inesperada” ao processo de globalização, o qual – pensava-se – tenderia a consolidar inevitavelmente a universalização:
Entretanto, a globalização não parece estar produzindo nem o triunfo do ‘global’ nem a persistência, em sua velha forma nacionalista, do ‘local’. Os deslocamentos ou os desvios da globalização mostram-se, afinal, mais variados e mais contraditórios do que sugerem seus protagonistas ou seus oponentes (HALL, 2003 p. 97).
Isso reforça, pois, que o quadro que se desenha no mundo, atualmente, então, estaria dividido entre o global e o local, formando algum tipo de “dupla-identificação” – nem cidadãos-do-mundo nem patriotas.
Mas haveria, segundo Stuart Hall (2003), ao menos 3 (três) pontos a serem considerados nesse movimento de “resistência”. Um deles, e o principal a ser levado em conta neste momento, é que a oposição à mundialização revelaria, por outro lado, alguma fascinação pelo local.
Desse modo, destaca-se um interesse pela diferença e até mesmo, outrossim, a mercantilização da etnia e da alteridade, numa lógica de mercado que, em vez de apresentar o global como superposição, dialoga com o local (HALL, 2003 p. 77).
Em resumo, portanto, se, por um lado, não se pode esperar que a globalização conduza – por si só – à eliminação das identidades nacionais, é provável, por outro, “que ela vá produzir, simultaneamente, novas identificações ‘globais’ e novas identificações ‘locais’” (HALL, 2003 p. 78).
E, assim, “a globalização caminha em paralelo com um reforçamento das identidades locais” (HALL, 2003 p. 80).
Disso tudo deriva, então, que, se não se pode mais falar em nacionalismo, em soberania, em identidade nacional, como sinônimos de isolamento global, por outro lado, os vínculos – políticos e culturais – com o local não estão – e não serão – simplesmente rompidos.
Subsiste, portanto, a percepção de identidades, de autoridades, de instâncias de legitimidade, de normas, de instituições, que são compostas. Embora não haja unicidade político-cultural, também não subsiste qualquer purismo envolvendo tais questões. A lógica contemporânea, pois, é a do pluralismo, que se traduz no diálogo entre o local e o global, num sistema poli cêntrico, plurinacional, multicultural.
O discurso do nacionalismo escondeu – e ainda esconde – uma identidade cultural que se aloja ambiguamente entre o passado e o futuro. “As culturas nacionais são tentadas, algumas vezes, a se voltar para o passado, a recuar defensivamente para aquele ‘tempo perdido’, quando a nação era ‘grande’; são tentadas a restaurar as identidades passadas”, revelando-se o elemento regressivo do nacionalismo, discurso que oculta o apelo que é feito aos cidadãos “para que purifiquem suas fileiras, para que expulsem os ‘outros’ que ameaçam sua identidade e para que se preparem para uma nova marcha para frente” (HALL, 2003, p. 56).
Como se vê, enquanto o nacionalismo sublinha, destaca, reverencia, como governo supremo, a representação da nação, o federalismo promoveria diversos governos com suas competências e âmbitos territoriais respectivos, na análise de Miquel Caminal (2002, p. 156), desde o governo local até o governo federal, desde a federação plurinacional de Estados federados até a confederação mundial.
Segundo lembra Wilba Bernardes (2010, p. 47), a estrutura “de princípio” do federalismo parece propensa a abrigar, reciprocamente, diversidade na unidade, igualdade e diferença, centralismo e descentralização, autonomia e coordenação, poderes centrais e periféricos, numa verdadeira distribuição geopolítica de poder.
As características do sistema federativo – anteriormente tratadas – parecem descrever, portanto, o modo como a sociedade internacional tem se organizado.
Restaria, todavia, pensar numa condição “constitucional” para esse sistema. E é aqui que entra em destaque a mesma lógica veiculada na teoria habermasiana do “patriotismo constitucional”, desde que utilizada na construção de novas identidades globais.
A tradicional imbricação entre nacionalismo e constitucionalismo torna ainda mais evidente a tendência de superação das estruturas político-sociais estatais, consoante a percepção de Jürgen Habermas (2002, p. 132), para quem o êxito que teve o Estado nacional esteve na sua capacidade de ter “substituído as débeis alianças corporativas da sociedade pré-moderna pela coesão solidária dos cidadãos”, capacidade essa que, todavia, sempre esteve revestida dum aspecto negativo, relativamente à coesão social, na medida em que a força da ideia de “nação” fosse sobremaneira atribuída a alguma construção ou fato anterior à instituição jurídicopolítica do Estado-nação, isto é, “a algo independente da formação política da opinião e da vontade dos próprios cidadãos” – revelando-se o já constatado perigo duma comunidade etnocêntrica, em latente estado de guerra.
Mas, da mesma maneira que o autor pensou na construção duma nação contratual, que se agregasse, não por conta de laços étnicos ou históricos, mas em torno dum projeto político de convivência, plural por definição, capaz de congregar as diferentes expressões e vertentes humanas, fomentando uma identidade constitucional, talvez essa teoria possa orientar o modo de interrelacionar a sociedade mundial.
A noção de compartição de soberanias pode se traduzir numa espécie de “vontade coletiva dos Estados” (MATIAS, 2014, p. 502-503), na qual se pode expressar a adoção de projetos constitucionais de caráter global.
A força – normativa ou ideológica – da proteção humanitária internacional, por exemplo, acarretaria “transformações jurídico-políticas” que determinariam tanto a crise ou superação do conceito de soberania quanto o alargamento da noção de “subjetividade internacional” (MIRANDA, 2014, p. 80), de modo que também se criam perspectivas no sentido da cooperação internacional e do compartilhamento de vontades políticas.
Segundo analisa Norberto Bobbio (2004, p. 27-28), é principalmente a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada, em 1948 (DUDH/48), no âmbito da ONU, que um sistema de bens e valores conseguiria, de fato, ser universalizado, porquanto adotado explicitamente por meio do consenso entre os povos, isto é, direitos que foram construídos intersubjetivamente pela maioria das nações, configurando, assim, a base do sistema mundial de proteção humanitária, que é fundamentado na solidariedade e cooperação.
E é pela força desse consenso e dessa construção intersubjetivamente normatizada que os direitos humanos passariam a influir diretamente nas decisões legislativas, executivas e judiciárias dos Estados inseridos no sistema, com objetivos e preceitos da comunidade internacional.
Alguns autores, inclusive, identificam nessa ordenação normativa de valoresbens universais uma espécie de “constitucionalismo global”, como relata Canotilho (2003, p. 1370), no âmbito do qual as normas de direitos humanos e as organizações internacionais ganhariam destaque para estabilização dum sistema jurídico-político internacional caracterizado tanto pela relação não mais horizontalizada entre governos estatais, mas entre “Estados e povos”, numa acepção de verticalidade, quanto pela emergência da coercibilidade (jus cogens), por ser o sistema “materialmente informado por valores, princípios e regras universais progressivamente plasmados em declarações e documentos internacionais”, e também pela centralidade constitucional da proteção à dignidade humana nos ordenamentos nacionais, fazendo coincidirem, assim, os direitos fundamentais das constituições e os direitos humanos das convenções mundiais.
Esse quadro, por outro lado, gera repercussões e reafirma a discussão sobre os limites e contornos da doutrina do Estado-nação, e também sobre a plenitude da soberania, visto que, como assevera Canotilho (2003, p. 1372), “o direito de ‘ficar fora’ (opting out) do direito internacional e das instituições internacionais é cada vez mais uma ficção”.
Para o autor, na verdade, independentemente da discussão sobre a existência dum padrão mínimo axiológico-humanitário, que consiga ter ou não força imperativa, ou dum sistema jurídico internacional de efetiva defesa dos direitos humanos, é necessário que se reconheça “que o poder constituinte soberano criador das Constituições está hoje longe de ser um sistema autônomo que gravita em torno da soberania do Estado” (CANOTILHO, 2003, p. 1372).
Enfim, na lógica dessa sistemática federal, as Constituições “nacionais” devem ser pensadas, também a partir duma perspectiva “pós-nacional”, como projetos políticos que estejam abertos à diversidade e ao fluxo de valores e de normas que transitam globalmente, por meio dessa rede federativa de organização do poder.
No projeto de paz perpétua, Kant pressupunha que, na sociedade mundial, os indivíduos deveriam ter o direito ao livre trânsito e à permanência em qualquer Estado, sem poder ser refutado ou perseguido simplesmente por ser estrangeiro (KANT, 2010, p. 59). Esse direito de hospitalidade serviria, precipuamente, para que os estrangeiros possam intentar ou iniciar relações entre si, pois o contato pacífico pode levar a relações cada vez mais estreitas e duradouras, as quais, por fim, “levarão quiçá a raça humana a instaurar uma constituição cosmopolítica” (KANT, 2010, p. 63).
Bom, ainda que não se possa afirmar nem reconhecer que exista uma constituição mundial, nos moldes propugnados a partir da tradição do liberalismo (documento escrito, com separação de poderes, para garantia de direitos individuais), talvez haja condições políticas para pensar um direito com tendências “universais”, que possa contemplar todos os indivíduos, em todos os Estados – ao menos no chamado mundo ocidental.
De qualquer maneira, no sistema plural que se desenha internacionalmente, nenhum ente político – seja um município, seja um bloco comunitário – tende a tomar decisões sem levar em consideração todo o ordenamento normativo que envolve as outras esferas de poder. E isso é basicamente o que acontece dentro dum sistema federativo.
Miquel Caminal (2002) prevê na teoria do federalismo pluralista uma “saída” para compatibilizar os interesses difusos e conflitivos que existem em torno da identidade, da diversidade e da autonomia que todos os grupos humanos mantêm, mesmo confinados ou apartados em territórios nacionais. Talvez essa teoria é que possa organizar o poder político, numa forma matricial, em escala mundial, de maneira legítima, com sentido de distribuir competências, formalizar sistemas de freios e contrapesos e reconhecer princípios “sensíveis”, comuns a todas as esferas autônomas, que se interligariam com o propósito de buscar assegurar a estabilidade internacional.
Afinal, no âmbito do federalismo, é a estabilização das relações políticas, entre comunidades autônomas, que aparece como preceito inicial. Dentro do Estado federal, o processo de “federalização” – seja centrípeto ou centrífugo – teria um único objetivo: a união nacional, como lembra Caminal (2002, p. 103). Talvez, então, com a mesma lógica, a união internacional se desenhe a partir do federalismo.
É neste contexto, portanto, que talvez se possa começar a falar e pensar em formas de organização política “pós-nacionais”.
3. METODOLOGIA
3.1. Projeto de pesquisa
O projeto de pesquisa foi apresentado a partir de abordagens político-jurídicas, com análises teóricas acerca dos aspectos que envolvem o tema. Foram consultados livros de doutrina e periódicos das áreas de Teoria do Estado, Teoria do Direito, Ciência Política, Direito Constitucional, Direito Internacional, Direitos Humanos e Direitos Fundamentais.
A pesquisa tem natureza qualitativa.
Finalmente, foi feita pesquisa jurisprudencial, tendo como critério de inclusão o posicionamento dos Tribunais Constitucionais e, no caso do Brasil, do Supremo Tribunal Federal, acerca da temática que envolve os tratados internacionais e as normas de direitos humanos diante dos ordenamentos jurídicos nacionais.
Foram utilizadas as seguintes etapas fundamentais para o desenvolvimento da pesquisa: escolha do tema; levantamento bibliográfico preliminar; elaboração do plano provisório do assunto; busca de fontes; leitura dos materiais; organização lógica do assunto; e redação do texto.
3.2. População e amostra
Devido à natureza da pesquisa realizada, não resultou dados referentes à população e amostra.
3.3. Variáveis
As variáveis aplicadas são teóricas e legais.
3.4. Instrumentos de medição e técnicas
Observação de dados legais concernentes ao federalismo internacional no mundo como artigos científicos, publicações em revistas especializadas, sites, matérias relacionadas, livros e manuais.
3.5. Procedimentos
A pesquisa foi realizada com a busca de fontes bibliográficas em bibliotecas especializadas, com leitura e fichamentos específicos dos temas. Ademais, foi realizada coleta de dados específicos em páginas especializadas na rede mundial de computadores (internet), bem como em revistas jurídicas que abordem o tema em questão, assim como publicações institucionais de órgãos oficiais nacionais e internacionais.
Tal perspectiva trouxe uma pertinência ao tema – caracterizando uma pesquisa bibliográfica e documental.
3.6. Análise estatística
Não vislumbro analisar dados estatísticos.
4. RESULTADOS
Verificando-se, no estudo do Direito Internacional, uma tendência à globalização jurídica, que se vem consolidando, também, no âmbito do Direito Constitucional, a partir da experiência política de vinculação dos Estados a normas comunitárias, pode-se a evidenciar a construção de ordenamentos comuns que apresentam força jurídica cada vez maior, por veicularem as aspirações estatais mais relevantes para a comunidade internacional, sob a fiscalização de organizações supranacionais. A consolidação dos direitos humanos no âmbito internacional, por sua vez, revela essa matriz de juridicidade efetiva que vêm apresentando os tratados comunitários, principalmente quando normas que, antes previstas apenas em acordos diplomáticos, tratando de proteção aos direitos humanos, vêm sendo inseridas nos ordenamentos estatais, por força de previsão constitucional em cada país que adere à causa internacional, como é o caso do Brasil, sendo provável, nesse cenário, que, devido à existência de normas jurídico-políticas, na atual organização mundial, que vinculam os Estados e que se mostram tanto de origem comum – em tratados sobre direitos humanos – quanto de reprodução análoga em vários ordenamentos internos, se verifique alguma tendência a um constitucionalismo “globalizado”. Acredita-se possível que, por essa perspectiva de constitucionalismo internacional, sejam identificados elementos típicos de um sistema federativo de organização estatal, que, transportados para o âmbito comunitário, demostrariam a consolidação de uma instância de poder político superior aos Estados, no cenário mundial, com vistas, em especial, à proteção dos direitos humanos, e, tendo-se em conta a possibilidade que, por exemplo, é dada atualmente à ONU de intervir no país onde ocorra grave violação a tais direitos, é possível falar em um federalismo comunitário, isto é, supranacional, de modo que a hipótese aqui levantada deve ser analisada a partir do estudo dos elementos constitucionais e internacionais mencionados e sua importância política e relevância jurídica para a comunidade internacional.
5. DISCUSSÃO
Federação é a qualificação que se dá a um Estado que, por não ser unitário em sua forma, está dividido em instâncias de poder político (tradicionalmente, união e unidades), o qual deve estar distribuído entre titulares (entes políticos) distintos e ser exercido sobre o mesmo território, de maneira cooperada e autônoma, sob orientação de um ordenamento jurídico superior, definido, hodiernamente, como uma Constituição – norma comum à qual devem estar submetidos os interesses das instâncias de poder interno, que deve impor limites de competência e prever, no ordenamento, mecanismos institucionais capazes de frear os desvios cometidos por qualquer desses entes, seja o central ou os periféricos. Nesse contexto, fala-se tradicionalmente que o Estado federal, em si, é um ente soberano, perante outros Estados (âmbito externo), mas suas instâncias políticas internas possuem apenas autonomia política entre si (âmbito interno). É possível verificar, no entanto, que essa estrutura política fechada dos Estados, figurada na ideia clássica de soberania, tem perdido vigor diante do cenário político mundial, na medida em que as relações internacionais – tão necessárias, cada vez mais, quanto inevitáveis – vêm realizando a aproximação dos sistemas jurídicos dos países que buscam integração econômica, política, social e cultural. A formação de uma comunidade internacional – regionalizada ou global – dentro da qual possam obter significativos ganhos para o desenvolvimento das nações, tendo como pano de fundo, o ideal da estabilidade (financeira, bélica etc.), acaba limitando para os Estados o exercício de sua soberania de maneira independente e inconsequente, porquanto acabam circunscritos aos interesses que lhes sejam comuns. Todavia, na evolução das relações interestatais, ganhou destaque a busca pelo bemestar da humanidade, tendo por enfoque o preceito de dignidade da pessoa, principalmente, após as atrocidades cometidas na 2ª Guerra Mundial, com a doutrina dos Direitos Humanos. Assim, o compromisso assumido com a ideia de proteção ao gênero humano e à natureza do Homem fez-se presente, de forma concreta, tanto na criação de organismos internacionais, como a Organização das Nações Unidas, entidade cuja pauta de atuação principal para mediar os interesses internacionais é a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), quanto na previsão de abertura política à qual muitas nações se comprometeram, com o intuito de que obtivesse força o acordo comunitário de bemestar geral. Essa vinculação compromissária ganhou força, ademais, quando muitos Estados, após o período bélico, promulgaram novas constituições ou, ao menos, alteraram significativamente suas Cartas Políticas, de modo que, em muitos casos, se permitiram tanto a introdução da ideologia humanitária em dispositivos dos ordenamentos de cada país, quanto a própria previsão constitucional de juridicidade de normas internacionais sobre direitos humanos. Destarte, os países compromissários, assumindo a responsabilidade pelo acordo comum, acabaram por permitir que seus ordenamentos constitucionais sofressem a devida influência do preceito universal então imposto, de modo que as “nações”, sem detrimento de sua soberania, assumiram o compromisso jurídico (interno), que teve origem política (internacional), de proteção e promoção dos direitos humanos, permitindo, assim, que normas internacionais, dispondo de efeitos jurídico-normativos, pudessem modificar ou, até mesmo, invalidar algumas regras do direito interno de cada país, além de poderem assumir, em alguns casos, feições de normas constitucionais. Nesse quadro, verifica-se que o conceito de soberania tem sido mitigado, ao menos no que tange ao âmbito do poder político estatal, uma vez que eventual compromisso internacional (norma externa), cuja temática seja os direitos humanos, firmado, por exemplo, pela República Federativa do Brasil não vinculará apenas o Governo que assinalar o acordo, nem somente o Estado brasileiro em si, mas o próprio povo, cujos agentes constitucionais não poderão revogá-lo ou negar esforços para concretizá-lo, dada sua força vinculativa. De outro lado, muito se discute, no âmbito de estudos do Direito Internacional, que, a despeito da possibilidade de cada “nação” poder renovar sua própria ordem constitucional, por uma questão de soberania política, o Estado que assume o compromisso internacional de proteção aos direitos humanos, adotando as normas comunitárias, não pode nesse ponto retroceder, ainda que reelaborado seu ordenamento jurídico (cláusula de não-retrocesso). Essa visão implica reconhecer, portanto, que parece haver, na ordem internacional, uma parcela da soberania política que não pode ser exercida sem limites pelos Estados, mitigando, assim, a ideia de completa independência e reforçando, por outro lado, a percepção de que mais parece restar certa autonomia estatal – ainda muito acentuada – porém talvez não sua plena soberania, pelo menos quanto às normas de direitos humanos. Deve-se notar, nesse contexto, que o binômio alternativo soberania/autonomia é de análise fundamental para desvendar-se a estrutura política de poderes dentro de uma organização estatal – a exemplo do que se tem em Federações, onde as unidadesmembros dispõem apenas de autonomia, sem poder desvincular-se do planejamento jurídico comum, e, distintamente, em Confederações, cujos entes participantes, por definição, são soberanos e, portanto, não se encontram limitados a seguir o ordenamento integrativo. De outro lado, porém, no atual quadro internacional, o descumprimento dos compromissos internacionais para proteção da causa humanitária enseja, além das medidas de censura ante a comunidade internacional, a possibilidade, a depender do grau de violação dos direitos humanos, de medidas coercitivas e, inclusive, de intervenção na gerência do Estado faltante (ingerência humanitária). No sistema da ONU, por exemplo, é o Conselho de Segurança, nesse caso, o órgão responsável por administrar a repreensão aos chamados crimes contra a humanidade. Exemplo disso está consubstanciado no art. 5°, §3°, da Constituição brasileira: “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. Ocorre que essa também sempre foi uma característica típica de sistemas federalistas de organização política, isto é, a previsão, possibilidade e legitimidade de medidas interventivas, forçadas contra a autonomia do membro federativo que se desviar do compromisso comum do ordenamento. Diante disso, todavia, surge a indagação acerca da possibilidade de que, hodiernamente, se esteja formando, na órbita internacional, senão uma espécie de “constitucionalismo comunitário”, pelos menos, um sistema federativo, englobando países submetidos a uma vontade superior e comum, mas impessoal e difusa, que, tendo por foco a proteção dos direitos humanos, limita a livre disposição jurídico-política interna de cada Estado. Tendo-se em vista esse novo quadro jurídico, então, que acaba retirando dos Estados, em face do compromisso difuso com os direitos humanos, uma parte do seu poder político, dentro de uma estrutura comum envolvendo nações soberanas (formalmente isonômicas), a pesquisa que se pretende desenvolver terá por objeto responder às seguintes indagações: 1 Diante da estipulação de normas internacionais de compromisso comum, a estabilização de uma instância de poder (político) incumbida de impor respeito e obediência a tais normas assemelha-se à formação de uma instância de poder estatal? 2 É possível identificar, diante da evolução do conceito de soberania estatal e frente ao atual sistema de compromisso internacional, uma espécie de constitucionalismo comunitário? 3 É possível identificarem-se elementos característicos do sistema federalista de Estado, que pressupõe uma aliança para gerência do interesse comum num dado ordenamento, na atual estrutura jurídicopolítica mundial? Sendo certo que a tendência conjuntural do Direito Internacional é promover uma agregação cada vez maior dos sistemas jurídicos de nações com interesses comuns, diante disso, faz-se necessário identificarem-se os limites constitucionais e políticos que delimitam essas relações de interdependência, de modo que se possa trabalhar a ideia de soberania/autonomia para o desenvolvimento comunitário, sob a égide de um mecanismo federativo comum de orientação e autoridade.
6. CONCLUSÕES
Foi possível identificar que a sociedade internacional tende a organizar-se em uma base lógica federativa, conformando-se num sistema de distribuição de poder onde várias entidades funcionam de maneira cooperada e autônoma, sob orientação dum ordenamento de valores e normas que se mostra, de alguma forma, “superior” – expressando um conjunto normativo comum ao qual se submetem os interesses das comunidades-membros do sistema, no qual existem limites de competência e mecanismos institucionais capazes de orientar a harmonização política e, inclusive, de refrear desvios eventualmente cometidos. Parece haver uma ordenação jurídica – que tende a ser – “global”, vinculada, principalmente, à temática dos direitos humanos, ao lado das ordens jurídicas “parciais” instituídas autonomamente pelos Estados, mas todas interligadas e ostentando praticamente os mesmos princípios de organização do poder – até mesmo porque foram os preceitos do liberalismo moderno que orientaram a formação e estruturação constitucional do mundo ocidental.
O federalismo, enquanto teoria política e doutrina social, independentemente da forma estatal, funciona mais como sistema de partilha e organização do poder político do que como uma estrutura de Estado. Esse sistema é baseado numa lógica de distribuição de competências, onde todos os membros mantêm autonomia política, isto é, o poder de criar e administrar normas, mas não podem confrontar os princípios fundamentais da comunidade. E, na atual constelação pós-nacional, onde não haveria mais “nação”, onde a globalização interligou todos os aspectos e espaços sociais – a economia, a cultura, a política – e onde a soberania tem se mostrado inexequível como plenitude estatal, todos os membros encontram-se interligados por princípios comuns, sem apresentarem condições efetivas nem mesmo prognósticos palpáveis de escaparem dessa sistemática. Aliás, a participação dos Estadosmembros nas decisões gerais, seja pela representação nos foros internacionais, seja pela assinatura de convenções etc., só reforça a caracterização desse sistema federativo, pois, como nas federações, as modificações nas competências e atribuições dos membros devem ter seu reconhecimento e consentimento. Ademais, assim como num federalismo estatal convivem várias ordens jurídicas, também nesse federalismo internacional os Estados-membros detêm autonomia para organizar o poder local, distribuí-lo territorialmente e garantir sua harmonização com o projeto mundial de estabilização. Nesse federalismo internacional que se desenha, os Estados compartilham a mesma “falta de soberania”, o que permite concluir que o poder político, se não foi eliminado, encontra-se hoje distribuído num complexo sistema de entidades locais, regionais e globais.
O objetivo geral, neste trabalho, seria identificar de que modo é possível compreender a organização política internacional como uma espécie de “federalismo”, delineando-se os principais fundamentos dessa abordagem e os indícios que possam, a partir dos movimentos e dos arranjos político-jurídicos que vêm tendo lugar no âmbito das relações globais, demonstrar a construção, ao menos em tese, dum sistema federativo em âmbito internacional.
A base da pesquisa esteve centrada no modo como os Estados nacionais têm se relacionado, a partir de arranjos estruturais de integração e convenções normativas que têm reflexo sobre os limites da soberania política, mas também na própria releitura que se tem promovido acerca da ideia de soberania nacional. Certamente, a globalização seria o fenômeno eleito como objeto central de observação, principalmente no seu viés jurídico-político. Mas o estudo não se limitou à análise da “simples” internacionalização do direito. A expectativa inicial foi averiguar se o modo como a sociedade internacional tem funcionado poderia ser caracterizado como um sistema federativo.
Como resultado deste estudo, algumas conclusões podem ser apontadas, a partir do que se pôde identificar e relatar anteriormente. Ao longo da pesquisa foi possível constatar, inicialmente, que tanto o Estado moderno quanto a nação, longe de serem resultados de processos evolutivos e graduais de agregação social, foram construídos a partir de perspectivas de administração territorial da economia e como expressão de força política diante da comunidade internacional.
Os conceitos de Estado e de nação foram conjugados no movimento do constitucionalismo, que introduziu no pensamento político ocidental uma nova forma de conceber, legitimar e conformar as estruturas de poder. Acontece que, não bastasse essa “fragilidade” histórica, tanto a nação quanto o Estado passam a ter suas bases teóricas questionadas, principalmente, pela realidade que se mostra no contexto em que avança a globalização.
Se, num primeiro momento, a nação foi utilizada como artifício para legitimar a apropriação dos espaços públicos, a partir dos processos constituintes do liberalismo moderno, pôde-se perceber, contudo, que não apenas a agregação em torno dum contratualismo originário e uníssono fora uma ficção, que era todavia necessária para modificar a estruturação do poder numa nova lógica econômica, mas também que a lealdade cultural e a identidade coletiva que se projetam no corpo da “nação” expropriam, numa razão estatal, a diversidade das expressões humanas e anestesiam os movimentos sociais.
O discurso do nacionalismo, então, teria funcionado muito mais para manter agregada uma comunidade em torno dum projeto econômico do que pelo sentimento comunitário de origem e ascendência étnico-cultural que fomentasse alguma ideia coletiva de pertencimento, de solidariedade, de predestinação. E, no contexto da globalização, essa “falsa” identidade é posta em xeque de maneira ainda mais acentuada, pelos processos de deslocamento do sujeito, que tende a perder raízes históricas e locais na compressão espaço-tempo. A perda dessa identidade cultural entre o indivíduo e a nação reflete no campo político, onde a soberania “nacional”, por outro lado, também é fragilizada pela globalização e padronização das estruturas normativas, que se voltam para os processos de internacionalização da economia e das próprias relações pessoais.
Ademais, também o movimento do multiculturalismo – que tende ainda a ser protegido, cada vez mais, pelas próprias normas internacionais – põe em xeque essa unidade da identidade nacional, projetando-se contra a homogeneização que o nacionalismo propôs, supôs e impôs, na formação do Estado soberano.
Se por fora, há o movimento da globalização, por dentro, há a força do multiculturalismo, então, tornam-se fatores de enfraquecimento da ideia de soberania nacional.
Tudo isso, enfim, contaminaria os alicerces do Estado-nação, pondo em risco a noção de soberania e, com isso, também a legitimidade das decisões políticas, mas, por outro lado, a relativização da soberania e também do nacionalismo não funcionam mais como legítimo agregador dos indivíduos dentro de fronteiras política, cultural e economicamente delimitadas, mas sim a dinâmica e interdependente das sociedade em um modelo internacional na formação de um sistema federativo de âmbito internacional.
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