A APLICAÇÃO DAS PENAS PARA O CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL NO BRASIL: DIFICULDADES PROCESSUAIS E OS DESAFIOS NA PRODUÇÃO DE PROVAS

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/fa10202505311543


Fábio Augusto Frizzo¹
Andréia Alves de Almeida²


RESUMO

O presente artigo propõe-se a discutir os desafios enfrentados pelo sistema penal brasileiro na aplicação das penas relativas ao crime de estupro de vulnerável, previsto no artigo 217-A do Código Penal. Assim, a problemática consiste em analisar e compreender os entraves jurídicos, institucionais e probatórios na aplicação das penas pelo crime de estupro de vulnerável. Desse modo, delimitou-se como objetivo geral analisar criticamente tais dificuldades no contexto brasileiro. De forma específica, examinar a fundamentação legal do artigo 217-A do Código Penal; identificar obstáculos na produção de provas; avaliar a atuação institucional dos operadores do Direito; e propor caminhos para maior efetividade e humanização do processo penal. A metodologia utilizada é qualitativa, com base em revisão bibliográfica, documental e jurisprudencial, com foco nas dificuldades processuais que permeiam desde a instauração do inquérito até a sentença condenatória, bem como na complexidade da produção de provas em casos que, em sua maioria, envolvem vítimas crianças ou pessoas com deficiência intelectual.

Palavras-chave: Estupro de vulnerável. Processo penal. Provas. Penas. Criança.

ABSTRACT

This article aims to discuss the challenges faced by the Brazilian criminal justice system in applying penalties for the crime of rape of vulnerable individuals, as defined in Article 217-A of the Penal Code. The central issue lies in analyzing and understanding the legal, institutional, and evidentiary obstacles in the enforcement of penalties for this specific offense. Thus, the general objective is to critically assess these difficulties within the Brazilian context. More specifically, the study seeks to examine the legal basis of Article 217-A of the Penal Code; identify obstacles in the production of evidence; evaluate the institutional performance of legal professionals; and propose strategies to enhance the effectiveness and humanization of criminal proceedings. The methodology used is qualitative, based on bibliographic, documentary, and case law review, focusing on procedural difficulties that arise from the initiation of the investigation to the sentencing phase, as well as the complexity of evidence production in cases that predominantly involve child victims or individuals with intellectual disabilities.

Keywords: Rape of vulnerable. Criminal procedure. Evidence. Penalties. Child.

1. INTRODUÇÃO

O estupro de vulnerável é uma das mais perversas manifestações da violência sexual, configurando-se como afronta brutal à dignidade humana, especialmente quando a vítima é uma criança, um adolescente ou pessoa com deficiência mental. A violência sexual contra esses grupos não é apenas uma violação física — ela é um colapso moral, jurídico e social que desafia as estruturas mais elementares da convivência civilizatória. No Brasil, o artigo 217-A do Código Penal, introduzido pela Lei nº 12.015/2009, busca tipificar e punir esse crime de forma mais contundente. No entanto, o abismo entre a letra da lei e a realidade do processo penal continua a desafiar a efetividade das penas e a proteção das vítimas.

Neste cenário, a aplicação das penas para o crime de estupro de vulnerável encontra-se em constante tensão entre o imperativo da justiça e as entranhas do sistema processual penal brasileiro. A produção de provas, o depoimento da vítima, a ausência de testemunhas e a necessidade de proteger a dignidade do ofendido colidem com a rigidez dos ritos jurídicos, transformando o julgamento de tais crimes em uma arena permeada de contradições, lacunas e, muitas vezes, silenciamentos.

Nesse contexto, a presente pesquisa busca responder à seguinte problemática: quais são os principais entraves jurídicos, institucionais e probatórios enfrentados na aplicação das penas para o crime de estupro de vulnerável no Brasil, e como esses obstáculos comprometem a efetividade do processo penal?

Como objetivo geral, propõe-se analisar criticamente os desafios enfrentados pelo sistema penal brasileiro na responsabilização dos autores de estupro de vulnerável, com especial atenção à produção de provas e à atuação dos operadores do Direito.

Os objetivos específicos consistem em: examinar a fundamentação legal do artigo 217-A do Código Penal; identificar obstáculos na produção de provas; avaliar a atuação institucional dos operadores do Direito; e propor caminhos para maior efetividade e humanização do processo penal.

Há uma escassez crônica de recursos humanos e materiais nos órgãos de persecução penal, que se reflete diretamente na qualidade da instrução probatória. A escuta da vítima — geralmente uma criança — exige uma abordagem técnica e humanizada, como preconiza o depoimento especial previsto na Lei nº 13.431/2017. Contudo, essa prática ainda não é implementada de forma homogênea, deixando espaços para a revitimização e para a descrença institucional.

Além disso, a atuação do Ministério Público, da Defensoria Pública e dos magistrados revela, por vezes, um hiato entre a legislação protetiva e a aplicação pragmática das normas. Enquanto a Constituição Federal de 1988 consagra a dignidade da pessoa humana como fundamento da República (art. 1º, III), o Código Penal mantém dispositivos que, na prática, dificultam a responsabilização eficaz dos agressores, especialmente quando a prova material é escassa — o que é uma constante nesse tipo de delito. Assim, o direito penal, que deveria operar como última trincheira de proteção, passa a reproduzir os silêncios da sociedade.

O que se vê, em inúmeros casos, é um processo penal que caminha em círculos: não raro, o relato da vítima é posto em xeque; a perícia, quando realizada, limita-se a vestígios físicos nem sempre presentes; e a sentença se apoia em “ausência de provas suficientes para condenação”. Trata-se, portanto, de um campo de conflito epistemológico e moral, no qual a palavra da vítima — por vezes, a única evidência possível — precisa disputar legitimidade com o dogma da certeza jurídica.

Assim, o presente artigo será dividido em quatro capítulos. No primeiro será abordado a fundamentação teórica acerca da proteção penal aos vulneráveis e os fundamentos do artigo 217-A. No segundo capítulo será pontuado as dificuldades processuais concretas enfrentadas nos tribunais; No terceiro capítulo, os dilemas na produção de provas em contextos de vulnerabilidade e silêncio, e por fim o último capítulo abordará  os desafios reais na aplicação da pena e na concretização da justiça. Ao final, serão apresentadas considerações que apontam para possíveis caminhos de superação das falhas estruturais e interpretativas que comprometem a tutela penal dos vulneráveis.

Para a realização deste estudo, adotou-se uma metodologia qualitativa, com base em revisão bibliográfica e documental, utilizando o método dedutivo. Para tanto, considerando esta como uma investigação cuidadosa com a aplicação de avaliação crítica e síntese de informações selecionadas, foram sintetizadas evidências relacionadas ao tema específico abordado nesse trabalho. Assim, a pesquisa para referido estudo consistiu na utilização de livros, artigos acadêmicos e dados secundários relativos ao tema, possuindo uma abordagem teórica e de natureza qualitativa.

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Falar sobre estupro de vulnerável é adentrar um campo jurídico espinhoso, ético e sensivelmente tensionado entre a proteção da dignidade humana e as limitações dogmáticas do direito penal. É um terreno onde a teoria do delito encontra suas fissuras mais profundas, revelando um sistema que se debate entre punir eficazmente e não violar garantias constitucionais, mesmo diante da brutalidade dos fatos. A figura do estupro de vulnerável, positivada no artigo 217-A do Código Penal, configura-se como um marco na evolução normativa da proteção de pessoas em condição de especial fragilidade — notadamente crianças, adolescentes e pessoas com deficiência mental.

Historicamente, o direito penal brasileiro adotou uma perspectiva formalista e conservadora sobre os crimes contra a dignidade sexual, tratada até 2009 como uma ofensa aos “costumes”. A mudança de paradigma veio com a Lei nº 12.015/2009, que reformulou profundamente os tipos penais relativos à violência sexual e inseriu o artigo 217-A, definindo como estupro de vulnerável “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos”. A presunção de violência nesse caso é absoluta, o que significa que não se admite consentimento, mesmo se houver manifestação da vontade da vítima, conforme consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) no julgamento do HC 598.051/SP.

Essa norma guarda consonância com princípios constitucionais fundamentais, especialmente o princípio da proteção integral (CF, art. 227), o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, como a Convenção sobre os Direitos da Criança e o Estatuto de Roma. O reconhecimento jurídico da vulnerabilidade impõe ao Estado não apenas o dever de abstenção — de não violar —, mas também o dever positivo de proteger e intervir quando essa condição for ameaçada (SILVA, 2019).

No campo da teoria geral do crime, o estupro de vulnerável é classificado como crime de natureza formal, de ação penal pública incondicionada e de resultado presumido, não exigindo demonstração de violência real nem consentimento. Essa tipificação, contudo, não é imune às críticas. A doutrina penal liberal, representada por autores como Zaffaroni (2014), aponta os riscos da abstração do dolo quando se prescinde da análise concreta do consentimento. Em contrapartida, a doutrina garantista, inspirada em Ferrajoli (2002), sustenta que, diante da hipossuficiência estrutural da vítima, o Estado tem o dever de suprimir a margem de autonomia jurídica fictícia que favoreceria o agressor.

Outro aspecto teórico relevante é o da presunção absoluta da vulnerabilidade de menores de 14 anos. Embora consolidada legalmente, essa presunção tem sido alvo de debates doutrinários e jurisprudenciais, especialmente em casos que envolvem relações afetivas entre adolescentes com idades próximas. O STF, no julgamento do HC 133.604/MG, relativizou a aplicação da pena em uma relação entre jovens com diferença etária de dois anos, sinalizando uma tensão entre o princípio da legalidade estrita e a razoabilidade. Tal decisão, embora excepcional, aponta para a necessidade de calibragem entre o rigor normativo e a realidade fática.

No plano processual, o artigo 217-A impõe desafios adicionais ao sistema penal. Por tratar-se de crime cometido quase sempre na clandestinidade, sem testemunhas e com vítimas que, muitas vezes, não compreendem plenamente o que lhes aconteceu, a prova testemunhal da vítima ganha peso central. Essa centralidade, contudo, choca-se com o paradigma da prova plena e da presunção de inocência (CF, art. 5º, LVII), gerando insegurança tanto na atuação da acusação quanto na fundamentação das sentenças.

Autores como Nucci (2022) defendem que o relato da vítima, quando coerente e circunstanciado, deve ter valor probatório suficiente para a condenação, desde que corroborado por outros elementos mínimos de convicção. Por outro lado, a jurisprudência dominante ainda exige, na prática, uma “prova robusta”, o que leva a altíssimos índices de absolvição por “insuficiência de provas”, especialmente nas comarcas de pequeno porte, onde a estrutura de proteção é precária.

No campo das políticas públicas, o depoimento especial, regulamentado pela Lei nº 13.431/2017, representa avanço significativo na garantia de um processo menos traumático para as vítimas. Essa técnica processual, inspirada em práticas internacionais como a child-friendly justice, busca evitar a revitimização ao permitir que a criança ou adolescente seja ouvido em ambiente protegido, com suporte psicológico e mediado por profissional capacitado. No entanto, sua implementação ainda é incipiente, e muitos juízos não dispõem de salas adequadas ou de equipes técnicas treinadas, o que compromete a eficácia do mecanismo.

O princípio do “melhor interesse da criança”, consagrado no ECA (art. 100, parágrafo único), deve orientar toda a atuação do Estado diante de crimes de estupro de vulnerável. Isso inclui desde a recepção da denúncia até a sentença, passando pela fase probatória. Nesse sentido, a doutrina de Direito Penal Constitucional enfatiza que os direitos da criança devem prevalecer mesmo diante das garantias penais do acusado, quando estes se mostrarem inconciliáveis (BITTAR, 2020).

Portanto, a fundamentação teórica do presente trabalho não se limita à análise da norma penal em si, mas se estende à crítica da estrutura institucional que sustenta a sua aplicação. A leitura constitucionalizada do direito penal — aquela que integra os direitos fundamentais e os tratados internacionais ao corpo da legislação infraconstitucional — é essencial para que o enfrentamento ao estupro de vulnerável não se limite ao campo simbólico, mas se concretize como resposta efetiva do Estado.

O próximo capítulo abordará as dificuldades processuais concretas enfrentadas no julgamento do estupro de vulnerável, com base em dados empíricos e análise crítica da jurisprudência. A tensão entre a proteção da vítima e a legalidade estrita do processo penal será o eixo condutor da discussão, destacando como o sistema jurídico brasileiro lida — ou falha em lidar — com um dos crimes mais graves e complexos da contemporaneidade.

3. DIFICULDADES PROCESSUAIS: ENTRAVES JURÍDICOS E REVITIMIZAÇÃO

Quando se pensa no crime de estupro de vulnerável, o direito processual penal brasileiro se vê diante de um paradoxo inquietante: proteger uma vítima fragilizada, muitas vezes incapaz de verbalizar a violência sofrida, ao mesmo tempo em que se exige o respeito estrito às garantias fundamentais do acusado, como a presunção de inocência, o contraditório e a ampla defesa. Trata-se de uma equação processual de difícil solução, cujo desfecho, não raro, resulta na revitimização da criança e na impunidade do agressor. As dificuldades processuais nesse tipo penal são, portanto, estruturais, reiteradas e, acima de tudo, silenciadas nos corredores dos fóruns.

O primeiro grande entrave processual reside no momento da denúncia. Em crimes dessa natureza, o tempo entre a ocorrência do fato e a comunicação às autoridades pode ser extenso, tanto por fatores emocionais — como medo, vergonha ou confusão — quanto por contextos familiares e comunitários em que o agressor ocupa posição de poder ou confiança. Conforme estudos de Vieira e Silva (2021), em mais de 65% dos casos de estupro de vulnerável, o agressor é alguém do círculo familiar ou próximo da vítima, o que dificulta, ou até inviabiliza, uma denúncia espontânea e precoce.

Esse fator compromete, de início, a preservação dos vestígios materiais, fundamentais para a instrução processual. A inexistência de exames médicos realizados dentro do intervalo considerado “útil” para fins probatórios — geralmente até 72 horas — impede a produção da chamada prova pericial direta, lançando sobre o processo a dependência quase exclusiva do relato da vítima, que pode ser confuso, incompleto ou contraditório, sobretudo se se tratar de uma criança ou adolescente com pouca capacidade de articulação verbal.

A segunda dificuldade recorrente se dá na instrução criminal, especialmente no que tange à colheita do depoimento da vítima. O depoimento especial, previsto na Lei nº 13.431/2017, deveria ser regra nesses casos, proporcionando um ambiente acolhedor, com escuta mediada por profissionais capacitados e adequado à idade e condição psicológica da vítima. Contudo, como ressalta Lima (2022), em mais de 40% das comarcas brasileiras, ainda não há estrutura física e técnica mínima para sua implementação. Isso significa que, em pleno século XXI, crianças ainda são interrogadas em salas comuns, por juízes e promotores, muitas vezes diante do réu — cenário que viola frontalmente os princípios da proteção integral e do melhor interesse da criança.

A escassez de peritos especializados e a morosidade nos laudos técnico-científicos representam outro obstáculo contundente. Laudos psicológicos e psiquiátricos, quando requeridos, demoram meses para serem entregues e, quando prontos, muitas vezes assumem um caráter vago e inconclusivo. Segundo levantamento do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP, 2023), 72% dos promotores que atuam em varas da infância e juventude relataram dificuldade em obter laudos técnicos consistentes em tempo hábil, o que prejudica a tomada de decisões durante a instrução processual.

Há também uma cultura jurídica ainda resistente à valorização da palavra da vítima. Embora o Supremo Tribunal Federal tenha reconhecido a possibilidade de condenação baseada em prova testemunhal unívoca e firme, como no julgamento do HC 548.681/SP, muitos magistrados, por receio de eventual reforma em instâncias superiores ou por convicções pessoais, preferem a absolvição por “ausência de provas”. Isso revela um viés implícito de descrença institucional, uma espécie de ceticismo estrutural que exige da vítima uma prova impossível — o que, por sua vez, reforça a impunidade e o ciclo de violência.

Além disso, as estratégias defensivas nos processos de estupro de vulnerável são, muitas vezes, marcadas por abordagens cruéis, que beiram o revanchismo moral. A tentativa de desqualificação da vítima — colocando em dúvida seu comportamento, sua sexualidade, sua “reputação” — ainda é prática comum, embora a jurisprudência tenha evoluído para repelir tais condutas. A jurisprudência do STJ, em acórdãos como o REsp 1.581.320/MG, tem reiterado que não cabe discutir a conduta anterior da vítima como elemento de descaracterização da vulnerabilidade. No entanto, a presença desse discurso nos autos mostra que o sistema ainda carrega vícios patriarcais e adultocêntricos que colocam a vítima no banco dos réus.

Por fim, a lentidão processual contribui para o enfraquecimento da persecução penal. O tempo excessivo entre a denúncia e a sentença não só esgarça a memória dos envolvidos como também expõe a vítima a novas formas de violência institucional. Em alguns casos, a criança cresce antes mesmo de ver seu agressor punido, tornando o processo uma segunda pena. Como lembra Greco (2021), “a morosidade do processo penal é, em si mesma, uma forma de injustiça, pois nega à vítima a resposta que o Estado lhe prometeu”.

Diante desse quadro, torna-se imperativo repensar o processo penal aplicado ao estupro de vulnerável. É preciso encontrar formas de acelerar os trâmites sem violar as garantias constitucionais do réu. É necessário investir em formação continuada de juízes, promotores, defensores e policiais sobre as especificidades desse tipo penal. É urgente construir espaços adequados, contratar profissionais habilitados e desburocratizar os fluxos de atendimento à vítima. E, acima de tudo, é preciso compreender que, quando o processo falha, a lei não falhou — falhou o Estado, falhou a estrutura, falhou a empatia.

Neste capítulo, analisou-se como o sistema processual penal brasileiro, embora munido de leis protetivas avançadas, ainda esbarra em uma realidade institucional precária e em uma cultura jurídica que, em muitos momentos, distancia-se dos interesses da vítima. No capítulo seguinte, a análise se concentrará especificamente na produção de provas nos crimes de estupro de vulnerável, destacando os limites técnicos, morais e jurídicos que tornam a investigação e o julgamento desses casos tão desafiadores.

4. A PRODUÇÃO DE PROVAS NO ESTUPRO DE VULNERÁVEL

O cenário probatório nos casos de estupro de vulnerável é, por excelência, um terreno de silêncios, ausências e palavras que doem mais pela dificuldade de serem ditas do que pela violência que nomeiam. A produção de provas nesses crimes desafia os alicerces clássicos do direito processual penal, pois rompe com a expectativa racional de que a verdade dos fatos pode ser reconstruída com documentos, testemunhos e perícias. Quando o sujeito ofendido é uma criança, ou uma pessoa com deficiência intelectual, as provas não surgem de modo cristalino — elas são fragmentadas, emocionais, por vezes contraditórias, e, ainda assim, profundamente verossímeis. É nesse paradoxo que se instala o maior desafio: como provar o invisível?

Nos crimes de estupro de vulnerável, especialmente os previstos no artigo 217-A do Código Penal, os vestígios materiais são a exceção, não a regra. Diferentemente de outros delitos, a violência sexual raramente deixa rastros físicos permanentes, sobretudo quando o tempo entre o fato e o atendimento médico excede 72 horas, limite considerado crítico para coleta de DNA, fluidos corporais ou lesões compatíveis com conjunção carnal. Conforme o Manual de Atendimento a Vítimas de Violência Sexual do Ministério da Saúde (2021), apenas 15% das vítimas chegam ao serviço de saúde em tempo hábil para coleta de provas materiais.

A ausência de elementos físicos, contudo, não deveria significar a ausência de verdade. A narrativa da vítima, ainda que solitária, pode e deve ser valorada como prova — desde que inserida em um contexto de coerência interna e compatibilidade com a lógica dos fatos. Autores como Capez (2020) e Greco (2021) defendem que, nos crimes sexuais, o depoimento da vítima assume um papel central, e que sua palavra, quando firme, reiterada e não contraditória, pode fundamentar uma condenação, mesmo na ausência de outras provas diretas.

Todavia, essa concepção enfrenta resistências práticas. Muitos juízes e tribunais exigem um “lastro probatório mínimo” para confirmar a narrativa da vítima, o que revela a persistência de uma cultura probatória tradicionalista, que desconfia da palavra infantil ou que insiste em equiparar a vítima à testemunha comum. Essa postura, embora compreensível do ponto de vista das garantias processuais, ignora a especificidade das vítimas vulneráveis, cuja condição impõe dificuldades naturais de expressão, rememoração e linearidade narrativa.

No caso de crianças pequenas, a escuta deve ser feita por meio do depoimento especial, técnica prevista na Lei nº 13.431/2017. Esse dispositivo legal determina que crianças e adolescentes vítimas de violência sejam ouvidos uma única vez, em ambiente adaptado e com acompanhamento de profissional capacitado, a fim de evitar a revitimização. O depoimento especial não é apenas um mecanismo protetivo — é, também, uma ferramenta probatória de alta relevância. No entanto, como já abordado, sua aplicação no Brasil ainda é desigual. Conforme relatório do CNJ (2023), apenas 32% das comarcas possuem salas próprias para esse tipo de escuta.

O relato colhido por depoimento especial possui valor processual pleno, desde que respeitados os critérios de legalidade, contraditório e ampla defesa. O STJ, no julgamento do RHC 92.076/MG, reafirmou a validade dessa prova, considerando que sua estrutura técnica e seu protocolo de perguntas garantem a fidelidade da informação sem contaminações externas. Ainda assim, defensores e promotores precisam atuar com cautela para evitar o chamado “efeito sugestão”, que pode ocorrer quando a criança é induzida a narrar fatos que não vivenciou ou a adaptar sua fala à expectativa do adulto.

Outro desafio na produção de provas reside na perícia psicológica. Quando realizada, essa avaliação visa aferir a credibilidade do relato da vítima, seu nível de discernimento e os possíveis traumas decorrentes da violência sofrida. No entanto, como destaca Fernandes (2022), muitos peritos ainda utilizam instrumentos obsoletos ou aplicam critérios subjetivos, o que compromete a validade da perícia. Em alguns casos, o laudo psicológico serve mais para desqualificar do que para validar o relato, invertendo a lógica da proteção.

Além disso, há os casos em que o agressor nega o fato de forma veemente e apresenta versões alternativas, geralmente sustentadas em supostas inimizades familiares, disputas por guarda ou motivações econômicas. Esse tipo de estratégia, comum em ações penais envolvendo crianças, acaba transformando o processo penal em um duelo de versões, em que a vítima, mesmo protegida pela presunção de veracidade de seu relato, vê-se obrigada a “provar” o que não deveria ser questionado: sua própria dor.

A jurisprudência brasileira ainda carece de uniformidade quanto ao valor da palavra da vítima. Em alguns julgados, como no HC 480.881/DF, o STJ reconhece que o depoimento da vítima, isoladamente, pode fundamentar uma condenação, desde que coerente e compatível com os demais elementos do processo. Em outros, a corte entende que a ausência de provas materiais ou testemunhais impõe a absolvição por dúvida razoável, como no REsp 1.346.328/RS. Essa oscilação prejudica a previsibilidade das decisões e enfraquece a confiança das vítimas no sistema de justiça.

Por fim, cumpre destacar que a produção de provas no estupro de vulnerável exige não apenas técnica jurídica, mas sensibilidade institucional. O Ministério Público, a Defensoria Pública e a Magistratura precisam compreender que estão diante de um crime que exige protocolos próprios, empatia redobrada e atuação intersetorial. A escuta da vítima deve ser preparada, acompanhada e respeitada como ato probatório solene. A perícia deve ser célere, técnica e respeitosa. E a sentença deve refletir não a dúvida do julgador, mas a firmeza ética de um Estado que se recusa a ser cúmplice do silêncio.

Diante disso, o próximo capítulo abordará os desafios na aplicação das penas para os condenados por estupro de vulnerável, destacando os obstáculos normativos, a jurisprudência instável e os riscos de impunidade institucionalizada.

5. DESAFIOS NA APLICAÇÃO DAS PENAS

A aplicação das penas no crime de estupro de vulnerável representa, por excelência, um dos campos mais tensionados do direito penal contemporâneo. Trata-se de um enfrentamento direto entre a expectativa punitiva social, o rigor das garantias constitucionais do réu e a fragilidade estrutural das vítimas, quase sempre crianças ou pessoas com deficiência intelectual. A pena, que deveria simbolizar a resposta do Estado à violência intolerável, torna-se, em muitos casos, uma ficção jurídica, atravancada por lacunas interpretativas, fluxos processuais ineficientes e um punitivismo seletivo que mais desumaniza do que protege.

A começar pela fixação da pena-base, o julgador depara-se com o desafio de avaliar a culpabilidade do réu à luz de um tipo penal cuja violência é presumida e cujo dano é irreparável. Ainda que o artigo 217-A do Código Penal preveja penas que variam de 8 a 20 anos de reclusão, a prática judiciária revela uma tendência à fixação no mínimo legal, mesmo diante de agravantes como a reincidência, o uso de posição de autoridade e o vínculo familiar. Como aponta Bitencourt (2022), a pena mínima torna-se a regra, e não a exceção, em um contexto no qual a função preventiva da sanção é solapada pela leniência institucional.

A progressão de regime é outro ponto nevrálgico. Apesar da gravidade do delito, a legislação permite que, cumprido 2/5 da pena (para réus primários), o condenado possa progredir para o regime semiaberto. Na prática, isso significa que alguém condenado por violentar uma criança poderá, em poucos anos, voltar ao convívio social com relativa liberdade, inclusive participando de atividades externas. A jurisprudência tem sido tímida ao aplicar as causas de aumento previstas no §1º do artigo 217-A, como o concurso de agentes ou a reincidência, deixando de refletir a gravidade do crime na dosimetria da pena.

O indulto e a comutação de penas, embora teoricamente restritos, ainda figuram como possibilidades em um sistema penal sobrecarregado e com forte viés ressocializador. Decisões como a proferida no HC 434.139/SP pelo STJ, que flexibilizou requisitos formais para progressão de regime, demonstram que o ideal de justiça retributiva perde força diante do garantismo difuso. Essa tensão entre punir e ressocializar esvazia o simbolismo da pena e enfraquece a mensagem normativa de intolerância ao abuso sexual.

Outro fator crítico é a ausência de acompanhamento pós-penal. O retorno do agressor ao convívio familiar, quando não acompanhado por medidas protetivas e terapêuticas, reabre feridas, perpetua traumas e expõe novas vítimas. Conforme relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH, 2023), a reincidência em crimes sexuais contra vulneráveis chega a 14% nos primeiros cinco anos após a soltura, sobretudo quando não há acompanhamento psicossocial. No Brasil, programas de reintegração de agressores sexuais ainda são raríssimos, revelando um despreparo institucional em lidar com a complexidade do agressor.

A jurisprudência também apresenta sinais de instabilidade. Em julgados como o REsp 1.529.561/DF, o STJ admitiu a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos em caso de “baixo grau de reprovabilidade” da conduta — mesmo em crime de estupro de vulnerável. Essa interpretação desfigura a gravidade do delito e relativiza o sofrimento da vítima em nome de uma leitura abstrata da proporcionalidade. Em contrapartida, outros tribunais endurecem suas posições, gerando uma disparidade regional inadmissível no tratamento de casos semelhantes.

A morosidade processual também afeta diretamente a efetividade da pena. A demora entre a denúncia e a execução penal compromete a finalidade retributiva e preventiva da sanção. Em muitos casos, quando a sentença condenatória transita em julgado, a vítima já passou por inúmeros episódios de revitimização institucional. A lentidão do sistema penal, denunciada por Greco (2021) como “uma forma de violência estatal”, mina a confiança da sociedade na justiça e contribui para a cultura da impunidade.

Por fim, há os desafios legislativos. Embora o ordenamento jurídico tenha avançado na tipificação do estupro de vulnerável, a ausência de mecanismos normativos específicos para a dosimetria da pena em casos com múltiplas vítimas, violência continuada ou vínculos de dependência afetiva entre vítima e agressor, limita a atuação do julgador. A complexidade dos casos exige uma hermenêutica penal que vá além da letra fria da lei, alcançando a realidade social em que o crime se insere. Nesse ponto, a atuação do Congresso Nacional tem sido tímida e reativa, sem propor reformas estruturais que fortaleçam a aplicação da pena.

É preciso, portanto, repensar a arquitetura punitiva do Estado frente ao estupro de vulnerável. A pena, nesses casos, não pode ser mera formalidade jurídica ou instrumento de estatística carcerária. Deve ser a afirmação categórica de que certas condutas são inaceitáveis em uma sociedade que se pretende civilizada. E essa afirmação exige não apenas leis mais rigorosas, mas instituições mais corajosas, operadores do direito mais sensíveis e uma sociedade menos complacente com a violência sexual infantil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Falar sobre estupro de vulnerável no Brasil é descer às profundezas de uma realidade dolorosa, onde o horror é cotidiano, a dor é silenciada e a justiça, muitas vezes, é tardia ou ausente. É confrontar um sistema jurídico que oscila entre a pretensão de proteção integral e a prática de omissão institucional. Este trabalho, ao mergulhar na análise dos entraves jurídicos, processuais e probatórios que envolvem a aplicação das penas para esse tipo penal, revelou mais do que falhas técnicas — escancarou uma crise ética.

A análise dos dispositivos legais, da jurisprudência e da prática processual demonstrou que o sistema de justiça criminal brasileiro, embora munido de dispositivos legais robustos, falha reiteradamente em garantir uma resposta eficaz e humanizada às vítimas. A palavra da criança, ainda que revestida de verdade, continua sendo desconsiderada por uma cultura jurídica que exige provas materiais quase impossíveis. Os ritos processuais, apesar das reformas, permanecem distantes da realidade das vítimas, e a pena, muitas vezes, se esvazia de conteúdo simbólico.

As dificuldades na produção de provas, a ausência de estrutura para o depoimento especial, a resistência cultural à palavra da vítima, a leniência na fixação das penas e a ausência de um sistema de acompanhamento ao agressor demonstram que o Estado brasileiro ainda não assumiu plenamente seu papel de garantidor da dignidade infantojuvenil. Como já apontava Ferrajoli (2002), “o direito penal não pode ser neutro diante da desigualdade”, e, nesse caso, a desigualdade entre vítima e agressor é abissal.

A impunidade, neste cenário, não é apenas a ausência de pena — é a negação da existência da própria vítima. Quando o sistema falha em reconhecer o relato da criança, quando relativiza a gravidade do ato, quando permite que o agressor retorne ao convívio social sem qualquer reabilitação, ele está, na prática, anulando a subjetividade da vítima. Isso é mais do que falha institucional: é cumplicidade estrutural.

As soluções, contudo, não se limitam à alteração de leis. Passam, antes, por uma reestruturação ética do sistema. É preciso que os operadores do direito compreendam que o processo penal não é um fim em si mesmo, mas um meio para a realização da justiça. É necessário investir em formação continuada, em infraestrutura adequada, em protocolos humanizados e em políticas públicas integradas. A criança não pode ser apenas uma testemunha — deve ser tratada como sujeito de direitos, com voz, proteção e centralidade no processo.

A construção de um sistema mais justo e eficaz para o enfrentamento do estupro de vulnerável exige coragem política, compromisso institucional e, acima de tudo, sensibilidade humana. Não basta reconhecer a gravidade do crime — é preciso agir com a urgência que a dor da vítima impõe. E essa urgência se traduz em reformas legais, estruturais e culturais que rompam com o ciclo de negligência e violência.

Finaliza-se este artigo com a esperança de que a reflexão crítica aqui proposta possa servir como semente de transformação. Que os silêncios não sejam mais regra, que a palavra da vítima não seja mais dúvida, e que a justiça, enfim, seja mais do que um rito — seja um ato de reconhecimento, reparação e compromisso com a dignidade humana.

REFERÊNCIAS

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2022.

BITTAR, Eduardo C. B. Direito penal constitucional: fundamentos, princípios e garantias. São Paulo: Atlas, 2020.

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