SOCIEDADES AFRICANAS E O CONCEITO DE GÊNERO: POSSÍVEIS CONTRIBUIÇÕES

AFRICAN SOCIETIES AND THE CONCEPT OF GENDER: POSSIBLE CONTRIBUTIONS

REGISTRO DOI:10.69849/revistaft/pa10202505311044


Adriana Maciel1
Alexandre de Souza2
Fabio Lopes3
Rosi Juncker4


Resumo

O termo “gênero” refere-se à gama de características, comportamentos, papéis e identidades que uma determinada sociedade considera apropriados para homens e mulheres. As abordagens ocidentais sobre gênero e sexualidade frequentemente falham em reconhecer a pluralidade cultural africana, apresentando narrativas que se sobrepõem e marginalizam as experiências locais. Este trabalho busca uma reflexão crítica sobre as diversas definições de gênero e suas implicações práticas nas sociedades africanas, propondo um diálogo necessário, numa perspectiva mais inclusiva e fundamentada. Para entender as definições de gênero no continente africano, é essencial considerar como a colonização moldou ideais e estruturas sociais preexistentes. Em muitas sociedades africanas o matriarcado foi substituído pelo patriarcado a partir da colonização, deixando resquícios do sistema nessas sociedades. A diversidade cultural e as histórias específicas moldam as experiências de gênero no continente, evidenciando que não existe uma forma única de entender gênero, e suas definições variam de acordo com a região, cultura e história de cada grupo. O mesmo podemos aplicar a nossa sociedade, visto que, apesar de apresentar características diferentes, apresenta os conflitos oriundos das concepções de gênero definidas a partir de uma sociedade patriarcal.

Palavras-chave: Gênero, Sociedades africanas, Matriarcado, Patriarcado

Abstrat

The term gender refers to the range of characteristics, behaviors, roles, and identities that a given society considers appropriate for men and women. Western approaches to gender and sexuality often fail to acknowledge African cultural plurality, presenting narratives that overlap and marginalize local experiences. This work seeks a critical reflection on the diverse definitions of gender and their practical implications in African societies, proposing a necessary dialogue from a more inclusive and grounded perspective. To understand the definitions of gender on the African continent, it’s essential to consider how colonization shaped pre-existing social ideals and structures. In many African societies, matriarchy was replaced by patriarchy starting with colonization, leaving remnants of the system in these societies. Cultural diversity and specific histories shape gender experiences on the continent, demonstrating that there isn’t a single way to understand gender, and its definitions vary according to each group’s region, culture, and history. The same can be applied to our society, as, despite presenting different characteristics, it exhibits conflicts arising from gender conceptions defined by a patriarchal society.

Palavras-chave: Gender, African Societies, Matriarchy, Patriarchy

1. Introdução

Gramaticalmente, o termo ‘gênero’ refere-se a indivíduos de sexos distintos ou a seres sexuados. Contudo, nas últimas décadas, ele adquiriu novos significados, inicialmente impulsionados por movimentos feministas, que enfatizaram as relações sociais e culturais (SCOTT, 1995). Em algumas culturas, as noções de gênero são estritamente binárias, com papéis claramente definidos para homens e mulheres. Por exemplo, em certas sociedades ocidentais, espera-se que os homens sejam responsáveis pelo sustento material da família, enquanto as mulheres cuidam do lar e dos filhos (BUTLER, 2019), e qualquer desvio desses papéis pode ser socialmente desaprovado. Em contraste, outras culturas apresentam concepções de gênero mais fluidas e adaptáveis.

Em algumas sociedades matriarcais, por exemplo, as mulheres ocupam papéis de liderança e autoridade, enquanto os homens podem se envolver mais em atividades domésticas e cuidados infantis. Além disso, em sociedades mais progressistas, as noções de gênero tendem a ser mais inclusivas, reconhecendo uma ampla gama de identidades de gênero e expressões.

 O termo ‘gênero’ refere-se à gama de características, comportamentos, papéis e identidades que uma sociedade específica considera apropriados para homens e mulheres. Essas concepções variam substancialmente entre diferentes sociedades e culturas; em outras palavras, o gênero é uma construção social. Por outro lado, o sexo refere-se a um conjunto de atributos biológicos em humanos e animais, associados a características físicas e fisiológicas, incluindo cromossomos, expressão gênica, função hormonal e anatomia reprodutiva/sexual (COEN & BANISTER, 2012).

A expansão europeia nos últimos séculos, durante a chamada era da modernidade, foi a principal responsável pela colonização de territórios na África, Américas e Ásia, promovendo a instituição de uma hegemonia cultural e intelectual que aclamava a Europa como a fonte de todo o conhecimento, enquanto estabelecia categorias raciais e de gênero. Nesse contexto, em que as narrativas são contadas pelos “caçadores” e não pela “caça”, os interesses, preocupações, preferências, neuroses, preconceitos, instituições sociais e categorias sociais euro-americanas têm dominado a escrita da história humana (OYEWÙMÍ, 2004).

O gênero como categoria analítica na sociedade ocidental tem suas raízes nos estudos feministas, que buscavam, através de trabalhos acadêmicos, descrever e propor soluções para os problemas enfrentados pelas mulheres e as hierarquias. Apoiada em conceitos biológicos, esta análise parte do conceito de uma família nuclear de comando binário, na qual o homem é responsável pelo sustento econômico e ocupa posições de destaque sociopolítico, enquanto a mulher, no papel de “esposa”, cuida das tarefas domésticas, dos filhos, e deve ser subserviente e obediente ao “marido”. Embora este retrato possa refletir as famílias europeias e norte-americanas, ele serve de base para questionamentos e demandas por mudanças nos padrões estabelecidos. No entanto, a aplicação deste modelo nuclear para analisar questões de gênero em outras sociedades com diferentes estruturas torna os argumentos insuficientes para abranger a diversidade das relações de gênero globalmente.

É crucial reconhecer que, além de serem socialmente construídas, as concepções de gênero podem evoluir com o tempo e variar em diferentes contextos culturais. O estudo comparativo das concepções de gênero em várias sociedades é vital para compreender como as normas de gênero são formadas, mantidas e desafiadas (SCOTT, 1995). Ademais, resistir a essas narrativas ocidentais é fundamental na busca por uma verdadeira autonomia na definição de gênero.

O discurso feminista ocidental, frequentemente baseado no modelo nuclear da família euro-americana, influencia a interpretação das experiências de mulheres e homens globalmente (OYEWÙMÍ, 2000).

Então, quando pensamos em gênero no continente africano, é essencial que as abordagens considerem as especificidades e a riqueza das culturas africanas, evitando o risco do etnocentrismo. Com o aumento da conscientização sobre a necessidade de descolonizar os discursos de gênero, surge uma nova geração de feministas africanas empenhadas em redefinir e reivindicar suas próprias experiências. Contudo, esse caminho não é isento de desafios. As feministas africanas frequentemente enfrentam barreiras significativas, tanto de instituições patriarcais locais quanto de pressões externas para se alinhar a uma narrativa ocidental. A resistência que essas ativistas demonstram ao promoverem diálogos locais e globais é essencial para a reinterpretação das questões de gênero no contexto africano (OKECH & MUSINDARWEZO, 2019).

Nesse sentido, a urgência de descolonizar os conceitos e discursos sobre gênero se torna evidente. O fortalecimento das vozes locais e a valorização das particularidades culturais e sociais são fundamentais para uma abordagem mais equitativa e justa das questões de gênero. Assim, este trabalho objetiva evidenciar as diversas definições de gênero e suas implicações práticas nas sociedades africanas, propondo um diálogo necessário e contínuo sobre como compreender as experiências de gênero no continente com uma perspectiva mais inclusiva e fundamentada, além de indicar possíveis contribuições para nossa sociedade.

A metodologia adotada neste trabalho é de natureza qualitativa, desenvolvida por meio de pesquisa bibliográfica. A abordagem é teórica e exploratória a partir de textos científicos, buscando, sempre que possível, destacar autores africanos.

2. Fundamentação Teórica

A pesquisa sobre a diversidade das definições de gênero nas sociedades africanas revela um cenário rico em possibilidades, que desafia as linguagens e categorias ocidentais frequentemente aplicadas a essas questões. As construções de gênero no continente não apenas se diversificam entre os diferentes grupos étnicos, mas também se transformam em resposta às dinâmicas sociais, históricas e políticas que permeiam as comunidades locais.

Em algumas culturas africanas, os sistemas de parentesco são matrilineares, significando que a descendência é traçada pela linha materna, o que pode fortalecer o vínculo entre mães e filhos e influenciar a distribuição de recursos e herança. Esses aspectos estão associados ao matriarcado, que, segundo Cheikh Anta Diop (2015), foi o sistema de organização social mais comum no continente africano. Em sociedades matriarcais, as concepções de gênero frequentemente diferem das encontradas em sociedades patriarcais. Enquanto nas sociedades patriarcais os homens tendem a ocupar posições de poder e autoridade, nas matriarcais as mulheres desempenham papéis centrais nas estruturas social, política e econômica. Elas podem ser responsáveis por tomar decisões importantes para a comunidade e exercer autoridade sobre questões como política, economia e justiça. Além disso, os sistemas de herança em sociedades matriarcais frequentemente transferem bens e propriedades de mãe para filha, em vez de pai para filho, refletindo a importância das mulheres na transmissão de riqueza e status.

Vale destacar que as sociedades matriarcais não são necessariamente o oposto das patriarcais. Em muitos casos, elas simplesmente possuem estruturas sociais e políticas diferentes que reconhecem e valorizam as contribuições das mulheres de formas que podem não ser tão evidentes em sociedades patriarcais.

As interações durante o período colonial tiveram efeitos profundos sobre as percepções de gênero nas sociedades africanas, geralmente impondo um modelo ocidental que desconsiderava as práticas locais. Essa imposição de narrativas externas não apenas distorceu as experiências de gênero, mas também marginalizou as vozes locais que detêm um entendimento profundo de sua própria realidade.

Historicamente, a colonização desempenhou um papel crucial na reconfiguração das percepções de gênero, impondo modelos que frequentemente ignoravam as práticas e cosmovisões africanas.

A imposição de normas de gênero ocidentais durante o período colonial causou um desfasamento significativo. Muitas vezes, essas normas eram estereotipadas e limitantes, reduzindo a complexidade das identidades de gênero africanas a categorias binárias que não se encaixavam nas realidades locais, como afirma Chawane (2016): “A colonização da mente não poderia ter sucesso sem remover a língua e os nomes dos governados e substituí-los pelos do governante”.

Essa negação das narrativas locais levou à marginalização das vozes que historicamente tinham um entendimento mais profundo sobre suas identidades. Além disso, a resistência a essas imposições manifestou-se não apenas no âmbito cultural, mas também por meio de movimentos feministas que buscavam rearticular e redefinir o conceito de gênero em suas comunidades, criticando o discurso feminista ocidental. Essa crítica enfatiza a necessidade de desenvolver uma abordagem que respeite e reflita a diversidade cultural do continente africano, reconhecendo que não se pode, a partir de um único ponto de vista, compreender as complexidades das experiências de gênero.

Um estudo feito por Ifi Amadiume (1987) na aldeia Nnobi, entre o povo Igbo nigeriano, mostrou que o gênero pode ser muito flexível. A ponto de homens serem tratados com pronomes femininos e vice-versa, a depender da sua posição social. Uma mulher pode, inclusive, casar-se com outra mulher para manter sua linhagem. A autora relata também que o gênero das palavras não é, necessariamente, definido. Ou seja, a palavra utilizada pra esposa, por exemplo, pode também ser empregada a um homem que ocupe essa posição na família.

Os diferentes grupos étnicos têm suas próprias definições de gênero, que vão além das limitações impostas pelo colonialismo. Por exemplo, algumas culturas africanas reconhecem e respeitam formas de gênero que não se encaixam no binarismo masculino-feminino, percebendo o gênero como uma experiência fluida e contextualizada. Isso se manifesta em práticas sociais, rituais e instituições que reconhecem a multiplicidade das identidades e das expressões de gênero. Nesse contexto, é vital destacar como as interações sociais contemporâneas, exacerbadas pela globalização e pela internet, influenciam as percepções de gênero e permitem uma troca de ideias que pode levar a novas formas de entendimento e resistência.

A interseccionalidade é outra chave importante para a análise do gênero nas sociedades africanas. Este conceito permite uma compreensão mais aprofundada das diversas camadas de opressão que afetam indivíduos em várias circunstâncias. Integrando aspectos de classe, raça, etnia e orientação sexual, as feministas africanas podem articular uma visão mais abrangente e inclusiva das experiências de gênero.

Críticas ao uso da teoria queer ocidental em contextos africanos, apresentadas em vários estudos, destacam a importância de respeitar as particularidades culturais na formulação de teorias de gênero. Segundo Rea e Amancio (2018), “uma simples transplantação da Teoria Queer Ocidental para contextos do Sul Global corre o risco de perpetuar o eurocentrismo e a dinâmica do poder colonial”.

Assim, movimentos feministas contemporâneos em diferentes partes da África estão cada vez mais focados na valorização das práticas locais e na luta pela autonomia sobre suas próprias narrativas de gênero. Esses movimentos buscam não apenas a igualdade, mas também a liberdade de definição e expressão. Esta luta é muitas vezes complexa, pois, como contextualizado, as vozes femininas precisam navegar por estruturas patriarcais e expectativas sociais impostas tanto interna quanto externamente. No entanto, a tenacidade demonstrada por essas feministas, que se propõem a criar diálogos que refletem suas realidades, atesta o fortalecimento da luta por justiça de gênero em contextos africanos.

Além disso, a colaboração entre mulheres africanas de diferentes nações e origens está crescendo, desafiando a noção de uma única narrativa. Os esforços de organizações transnacionais têm se intensificado, unindo ativistas em torno de causas comuns, mesmo diante de desafios significativos. Portanto, é crucial promover uma solidariedade que respeite as especificidades locais, enquanto se alinha com as experiências globais de feminismo. A diversidade das definições de gênero nas sociedades africanas, portanto, não é apenas uma questão de identidades e práticas, mas também um campo de luta e resistência contra um histórico de imposições externas.

A busca por uma compreensão mais aprofundada e contextualizada do gênero exige um compromisso com a descolonização das ideologias dominantes e uma ênfase na valorização das vozes africanas. Assim, ao examinar as construções de gênero no continente, é essencial reconhecer a riqueza e complexidade que essas experiências oferecem, sem desconsiderar as lutas por reconhecimento e autonomia que continuam a moldar as realidades sociais africanas.

2.1. Descolonizando as Perspectivas Ocidentais sobre Gênero e Sexualidade

As abordagens ocidentais sobre gênero e sexualidade frequentemente não reconhecem a pluralidade cultural africana, apresentando narrativas que sobrepõem e marginalizam as experiências locais. Para descolonizar essas perspectivas, é essencial identificar quais características dominantes devem ser desafiadas e reconfiguradas. Com frequência, essas narrativas ocidentais enfatizam uma compreensão binária de gênero, que não reflete as realidades complexas, fluidas e diversas das sociedades africanas.

É importante destacar que as narrativas hegemônicas que descrevem a homossexualidade como uma importação ocidental ignoram as complexidades da experiência sexual e a diversidade das realidades africanas; a luta pela sexualidade não é meramente sobre direitos, mas sobre a validação da humanidade de todos os indivíduos (REA & AMANCIO, 2018). Essa imposição de normas ocidentais impacta fortemente as definições locais sobre gênero e sexualidade, resultando em uma reconfiguração das identidades e experiências que não se alinha com as visões ocidentais.

Feministas africanas têm se empenhado em articular suas vozes dentro de contextos muitas vezes hostis e resistentes a pressões externas. Assim, suas lutas não se limitam a questões de gênero, mas envolvem um confronto com diversos sistemas de opressão. A pesquisa e os testemunhos dessas ativistas revelam como o reconhecimento das interseccionalidades — que incluem raça, classe, etnia e orientação sexual — é crucial para compreender a realidade vivida por mulheres e minorias sexuais na África. Desta maneira, o reconhecimento de uma abordagem interseccional não apenas enriquece a luta, mas também evidencia a necessidade de rearticular as definições de gênero.

Segundo Tiriba et al. (2017), “a ‘virada queer’ na África do Sul tem simultaneamente avançado e invisibilizado as lutas de mulheres lésbicas negras; enquanto algumas ganham visibilidade, suas experiências de violência e discriminação continuam sendo frequentemente ignoradas”. Este fenômeno destaca a importância de considerar a diversidade de experiências dentro das lutas feministas, que frequentemente são fragmentadas e negligenciadas nas narrativas dominantes.

As novas tecnologias e a globalização emergem como fatores que influenciam o discurso sobre gênero e sexualidade na África contemporânea. A disseminação de informações e o acesso a plataformas digitais têm fomentado redes de solidariedade entre ativistas, permitindo a troca de ideias e experiências que desafiam as normas impostas. A internet, em particular, possibilita que vozes marginalizadas sejam ouvidas e que novas narrativas sejam elaboradas em um espaço global. No entanto, essa influência não é uniforme e apresenta desafios significativos, onde a cultura local deve ser respeitada e integradora das especificidades de cada comunidade.

O potencial de resistência e reconfiguração das narrativas de gênero nos contextos africanos destaca a urgência de descolonizar as perspectivas ocidentais sobre sexualidade. As mulheres africanas não apenas questionam as narrativas hegemônicas, mas também propõem suas próprias definições e modos de ser, que reconhecem a riqueza de suas culturas. O espaço onde essas novas definições podem emergir é frequentemente encontrado em lugares inesperados: “as experiências das lésbicas negras revelam um espaço temporário onde o banheiro se transforma em um local de prazer e pertencimento, desafiando as normas raciais e de gênero que dominam suas vidas cotidianas” (TIRIBA et al., 2017).

Essa reconfiguração política e cultural é um ato de resistência que não apenas redefine o que significa ser mulher e ter uma sexualidade na África, mas também convida à transformação das visões ocidentais que muitas vezes ignoram as complexidades da vida africana. Assim, descolonizar as perspectivas ocidentais sobre gênero e sexualidade não envolve apenas uma crítica às normas existentes, mas também uma valorização das vozes e experiências africanas em suas múltiplas formas. Portanto, ao priorizarmos essas vozes locais, promovemos um entendimento mais inclusivo e abrangente das questões de gênero e sexualidade, que consideram a diversidade e a riqueza cultural do continente africano.

2.2. Influências Históricas e Culturais nas Definições de Gênero

A relação entre gênero e os fatores históricos e culturais nas sociedades africanas é marcada pela complexidade. Para compreender as definições de gênero no continente, é essencial considerar como a colonização moldou ideais e estruturas sociais, muitas vezes impondo um modelo ocidental de gênero que não condiz com as realidades locais.

O impacto da colonização é significativo, não apenas na redefinição dos papéis de gênero, mas também na própria concepção de identidade. Enquanto os colonizadores buscavam estabelecer uma narrativa única que refletisse suas próprias epistemologias, muitos estudiosos argumentam que “o colonialismo moderno impôs uma epistemologia eurocêntrica, criando uma imagem distorcida da África e de seu povo” (MENESES, 2023). Isso resultou em profundas consequências para como as sociedades africanas entendem e vivenciam o gênero, frequentemente marginalizando práticas e expressões de identidade que não se encaixavam nas categorias binárias ocidentais.

Em muitos contextos africanos, as tradições culturais locais desempenham um papel crucial na formação das percepções contemporâneas de gênero. As definições de gênero muitas vezes se entrelaçam com cosmologias e práticas sociais específicas de cada comunidade. O reconhecimento da pluralidade dessas definições é fundamental para compreender a diversificação de gênero nas sociedades africanas.

As experiências de gênero variam não apenas entre diferentes grupos étnicos, mas também dentro das próprias comunidades, onde as identidades de gênero podem se manifestar de maneiras que desafiam categorizações simplistas. Essa diversidade é uma resposta tanto à história colonial quanto às necessidades contemporâneas da população, que busca afirmar sua autonomia cultural e social.

As implicações das narrativas históricas sobre gênero nas sociedades africanas são vastas e exigem um exame crítico das realidades contemporâneas. As concepções de gênero são complexas e interconectadas, refletindo um legado de resistência cultural e histórica que continua a moldar as dinâmicas sociais atuais. Portanto, ao considerar as influências históricas e culturais que moldam as definições de gênero, é essencial reconhecer que, ao contrário do que frequentemente se pensa, elas não são homogêneas, mas ricas em diversidade e em contínua evolução.

É preciso considerar também que a linguagem de uma sociedade também é uma construção, que está de acordo com seus valores culturais. Assim como em sociedades ocidentais o gênero aparece com distinções muito claras na linguagem, para o povo iorubá por exemplo, essas distinções não são significativas (OYEWÙMÍ, 2000).

2.3. Manifestações Contemporâneas de Gênero entre os Povos Africanos

As manifestações contemporâneas de gênero entre os povos africanos demonstram uma evolução dinâmica nas identidades e práticas de gênero, influenciadas por contextos culturais, sociais e políticos diversos. As tradições, que historicamente têm moldado as compreensões de gênero, agora interagem com pressões modernas, criando um espaço onde diversas vozes lutam para redefinir tais identidades.

As práticas contemporâneas de gênero revelam desafios às normas tradicionais que têm sido institucionalizadas ao longo do tempo, permitindo um questionamento e, em muitos casos, uma resistência a estas. A crítica às narrativas ocidentais é evidente, e o reconhecimento de que as mulheres são responsáveis por mais de 70% da produção de alimentos nas regiões mais pobres da África Ocidental. As leis existentes no Senegal garantem direitos iguais à terra para homens e mulheres, mas não são implementadas na prática devido a normas sociais profundamente enraizadas e dinâmicas de poder tradicionais (NDIAYE, 1998) reflete as complexidades das lutas por igualdade e direito à terra, que são frequentemente ignoradas ou mal interpretadas por discursos externos.

As mulheres sempre estiveram no centro dos processos de paz em diferentes sociedades africanas pré-coloniais. Sua atuação na paz pode ser identificada em seus papéis culturais e sociopolíticos, bem como em suas contribuições para o bem-estar geral dessas sociedades (ISIKE & UZODIKE, 2023). O que evidencia o potencial das mulheres não apenas como agentes de mudança, mas também como defensoras de suas comunidades.

A crítica às fortalezas teóricas ocidentais também é relevante quando se diz que “A importância do uso de línguas africanas na ciência e na educação não pode ser exagerada.  A esse respeito, Diop (1974) argumentou que compreender e preservar a cultura nacional é crucial para alcançar a verdadeira independência nacional e resistir à dominação colonial. Essa integração de saberes locais nos debates acadêmicos e ativistas é imprescindível para uma compreensão de gênero que ressoe com as realidades culturais africanas.

As manifestações contemporâneas de gênero entre os povos africanos são o resultado de um processo coletivo de construção identitária que recusa a imposição de narrativas externas. Em vez disso, elas enfatizam a necessidade de um diálogo que permita a emergência de perspectivas locais, reconhecendo a complexidade e a diversidade das experiências de gênero. As feministas africanas, ao articularem suas vozes, não só resistem contra as pressões externas, mas também reafirmam suas identidades e experiências em um contexto global muitas vezes hostil.

3. Reflexões

Considerando o que foi exposto, podemos afirmar que a definição de gênero, como a conhecemos em nossa sociedade, não deve ser vista como um conceito universal. Sendo uma construção social, está intrinsecamente ligada a aspectos econômicos, religiosos e familiares da sociedade, refletindo seus valores culturais.

Em muitas sociedades africanas, o matriarcado foi substituído pelo patriarcado durante a colonização. Entretanto, como era esperado, ainda existem vestígios do sistema matriarcal, evidentes na valorização do papel da mulher e nas posições que elas ocupam, contrastando com as concepções europeias. De maneira mais específica, em relação à nossa sociedade, é importante lembrar que ela se originou a partir da sociedade europeia. Diferentemente do que ocorreu no continente africano, que já possuía uma sociedade estruturada, tornando possível resgatar valores culturais de uma antiga sociedade africana, algo inviável em nossa sociedade.

Para Oyewùmí (2004), em grande parte da teoria feminista branca, a sociedade é representada como uma família nuclear, composta por um casal e suas/seus filhas/os. Não há lugar para outros adultos. Assim, devemos pensar que, o feminismo não necessariamente busca uma igualdade de gênero capaz de atender os anseios de todas as sociedades. Para as mulheres, nesta configuração, como descrita anteriormente, a identidade esposa é totalmente uma definição; outros relacionamentos são, na melhor hipótese, secundários. Parece que a extensão do universo feminista é a família nuclear (IBDEM, 2004). Sociedades africanas não necessariamente possuem a família nuclear tal como a euro-americana, de modo que a introdução de conceitos de gênero a partir deste tipo de família não são capazes de refletir a realidade dessas sociedades.

Em sociedades ocidentais, as definições de gênero estão intimamente ligadas a hierarquias. Já em sociedades africanas, a hierarquia se dá a partir do conceito de senioridade, ou seja, a idade (cronológica) da pessoa é utilizada como parâmetro para o respeito na sociedade em que vive, não importando se homem ou mulher (AMADIUME, 1987). Desta forma, em sociedades africanas, a questão de gênero não é central, nem define hierarquia.

Apesar da complexidade do tema, e das inúmeras barreiras que sociedades africanas enfrentam na tentativa de terem suas próprias definições de gênero, tais barreiras refletem, na verdade, a tentativa de resgatar seus valores sociais aos quais o conceito de gênero está inserido. No entanto, não é tarefa fácil, visto que o conceito de gênero e tantos outros foram absorvidos por essas sociedades durante a colonização.

4. Considerações Finais

Em conclusão, revisitamos as principais definições de gênero entre sociedades africanas, destacando a importância de uma abordagem descolonizada que valorize as vozes locais.

A pesquisa revelou que a diversidade cultural e as histórias específicas influenciam as experiências de gênero no continente. Essa diversidade indica que não existe uma única maneira de compreender o gênero, com definições que variam conforme a região, cultura e história de cada grupo. A crítica à hegemonia do feminismo ocidental é um tema recorrente, pois imposições externas frequentemente distorcem as realidades e experiências africanas.

 As vozes e experiências locais, frequentemente marginalizadas, devem ser incorporadas nas discussões acadêmicas e políticas sobre gênero na África. Podemos aplicar o mesmo à nossa sociedade, que, apesar de apresentar características distintas, compartilha conflitos resultantes das concepções de gênero definidas por uma sociedade patriarcal. Isso exige um sério compromisso com a descentralização dos discursos que têm dominado as narrativas de gênero, abrindo espaço para que as perspectivas africanas sobre gênero e sexualidade sejam ouvidas e valorizadas.

Assim, descolonizar o conceito de gênero significa desconstruir o conhecimento hegemônico ocidental e reconstruir o saber e as estratégias a partir das perspectivas sociais de cada povo. Essa reconfiguração é essencial para compreender a luta por igualdade e direitos de gênero, uma vez que a descolonização das perspectivas impacta diretamente as questões contemporâneas enfrentadas por nossa sociedade.

Finalmente, ao refletir sobre o futuro, é evidente que a luta por justiça de gênero na África ou em nossa sociedade não é apenas uma questão de igualdade formal, mas uma demanda por reconhecimento, validação e a capacidade de definir suas próprias narrativas. A jornada em direção a uma compreensão mais justa e inclusiva das questões de gênero é essencial para que esses debates sejam contínuos e respeitosos às vozes que emergem dos contextos locais.

6. Referências

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1 Adriana Maciel. Pesquisadora. Advogada. Pós-Graduada em Direito Público. adri_nmaciel@hotmail.com
2 Alexandre de Souza. Educador e Químico. Especialista em Química Orgânica. Ministro de Culto Religioso no Templo de Èsìn Òrìsà Ìbíle Ogbè Òsá. egbeogbesa@gmail.com
3 Fabio Lopes. Professor de Ensino Superior da Faculdade de Tecnologia de São Paulo (FATEC). Mestre em Ensino de Ciências e Matemática. Doutor em Biofotônica Aplicada às Ciências da Saúde. Fundador do Ateliê e Instituto Iyamopo. atelieiyamopo@gmail.com
4 Rosi Juncker. Graduada em Letras. Membro da diretoria do Colégio CAMP SBC e Gestora de Projetos na Associação Projeto Adote um Cidadão. rosijuncker@gmail.com