REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cs10202505190855
Ana Lúcia Leopoldino de Andrade1
RESUMO
Neste artigo é analisada a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na ADO nº 26, e no MI nº 4733, que criminalizou a homotransfobia como crimes de racismo, enquadrando-a na lei nº 7.716/89 (Lei do Racismo). O objetivo geral é compreender os impactos desta decisão no sistema jurídico-penal brasileiro, a partir dos princípios da legalidade/reserva legal absoluta e proibição da analogia in malam partem. Para tanto, verificar-se-á o fenômeno do ativismo judicial e como o mesmo está presente no atual cenário brasileiro, além de trazer alguns pontos pertinentes à decisão da Corte Superior e os votos da relatoria e ministros. Por fim, é realizada uma análise conjunta da decisão do STF com a doutrina majoritária, a partir de uma revisão literária, que rege o direito penal nacional, de modo a compreender os contornos dos princípios da legalidade e da proibição da analogia in malam partem e os efeitos da decisão no cenário jurídico-penal. Concluindo-se, que a decisão do STF na ADO nº 26 e no MI nº 4733 está em desacordo com a ordem e a segurança jurídica, de modo que não houve a devida observância dos princípios da legalidade e da proibição a analogia in malam partem.
Palavras-chave: Criminalização. Homotransfobia. Legalidade. Analogia.
SUMMARY
This article analyzed the decision handed down by the Federal Supreme Court in ADO nº 26, and in MI nº 4733, which criminalized homotransphobia as crimes of racism, framing them in law nº 7,716/89 (Racism Law). The general objective was to understand the impacts of this decision on the Brazilian criminal legal system, based on the principles of legality/absolute legal reserve and prohibition of the in malam partem analogy. To this end, the phenomenon of judicial activism was verified and how it is present in the current Brazilian scenario, in addition to bringing some pertinent points from the Superior Court’s decision and the votes of the rapporteur and ministers. Finally, a joint analysis of the STF decision was carried out with the majority doctrine, based on a literary review, which governs national criminal law, in order to understand the contours of the principles of legality and the prohibition of the analogy in malam partem and the effects of the decision in the criminal legal scenario. In the end, it was concluded that the STF’s decision in ADO nº 26 and MI nº 4733 represented a disagreement with legal order and security, so that there was no due observance of the principles of legality and the prohibition of analogy in malam leave.
Keywords: Criminalization. Homotransphobia. Legality. Analogy.
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por finalidade analisar a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO nº 26), e no Mandado de Injunção (MI nº 4733), verificando se a criminalização da homotransfobia ocorreu conforme às exigências do princípio da legalidade.
O Supremo Tribunal Federal vem atuando de forma cada vez mais ativista, com a relativização do princípio da separação dos poderes, seja com a utilização da Constituição para casos não expressamente previstos em seu texto, seja resolvendo litígios em que houve omissão por parte do legislador.
Atualmente há uma grande preocupação com relação ao exercício jurisdicional da Corte Suprema, principalmente no que se refere a extrapolar os limites de sua prestação, invadindo a competência dos outros poderes estatais, ferindo o princípio da separação dos poderes.
No Brasil, recentemente foram proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, diversas decisões que evidenciam a era ativista vivenciada pela Corte brasileira, a exemplo do caso da decisão que criminalizou as condutas da homofobia e da transfobia, equiparando-as à Lei 7.716/89 (Lei do Racismo), que será objeto de estudo do presente artigo.
Com relação a decisão do Supremo Tribunal Federal de criminalizar a homotransfobia, equiparando-a ao crime de racismo é crucial analisar como essa manobra interpretativa impacta princípios basilares do direito penal e a própria estrutura democrática do país.
Inicialmente analisar-se-á o fenômeno do ativismo judicial e como o mesmo vem ganhando cada vez mais espaço no sistema jurídico brasileiro. Desde o seu surgimento, o ativismo judicial preconiza por um maior protagonismo do STF, sobretudo, nos casos em que o Poder Legislativo se encontra em mora com a sociedade, deixando de cumprir com sua função típica. Com isso, a Corte Suprema atua na legalização das garantias fundamentais.
Em sequência, será analisado o teor da ADO nº 26, bem como os votos dos ministros, que em sua maioria foram a favor da criminalização da homotransfobia como crimes de racismo. Nesta circunstância percebe-se um excesso na atuação do STF, que não observou princípios básicos do direito penal, tais como a reserva legal absoluta e proibição da analogia in malam partem.
Verificar-se-á, também, em uma análise mais específica e direcionada com base na doutrina majoritária, as implicações dos princípios da legalidade e proibição da analogia in malam partem na decisão do STF na ADO nº 26. Esta análise é realizada, também, com fundamento nos princípios da separação dos poderes e da segurança jurídica. Nessa perspectiva, o presente artigo, a partir das análises propostas, busca trazer contribuições para a pesquisa acadêmica e para a práxis jurídica, de modo a expandir os horizontes a respeito da atuação protagonista do STF em matéria penal e como isso pode comprometer a segurança jurídico-penal no país.
1 – ATIVISMO JUDICIAL E SUAS IMPLICAÇÕES JURÍDICO-SOCIAIS NO ÂMBITO DA DECISÃO DO STF.
A organização do Estado Brasileiro está fundamentada sob a égide do sistema de freios e contrapesos, o qual se concretiza na divisão dos poderes responsáveis pela organização e mantimento do Estado Democrático de Direito, a saber, pelos poderes executivo, legislativo e judiciário. O sistema de freios e contrapesos é um princípio fundamental na teoria política e constitucional que visa evitar a concentração de poder em um único órgão ou pessoa dentro de um governo.
Com o advento do estado moderno e com os ideais do Neoconstitucionalismo, pode-se observar uma maior interferência do Poder Judiciário em suas funções não típicas, de modo a interferir diretamente no sistema de freios e contrapesos. Conforme nos ensina Valle (2009, p. 23) o ativismo judicial se substancia a partir da atuação do Poder Judiciário além dos limites impostos pela Constituição, de modo a trazer um desequilíbrio ao Estado Democrático.
A Constituição Federal de 1988 foi incisiva ao determinar quais seriam as funções típicas e atípicas de cada um dos poderes. O Poder Legislativo tem como função típica fiscalizar os demais órgãos do Estado e legislar (leis complementares, federais, entre outras) e, atipicamente, exerce também funções de administrar (prover cargos de sua própria estrutura) e de julgar (como ocorre nos processos contra o Presidente da República, Vice Presidente e seus Ministros). O Poder Executivo, por sua vez, atua tipicamente na administração do Estado no âmbito internacional e atos de Chefia do governo e na administração no âmbito do território nacional, tais como fixar diretrizes políticas, iniciativa de projetos de leis, dentre outras. Por fim, tem-se o Poder Judiciário, o qual exerce a função típica de aplicar o direito aos casos concretos a fim de dirimir conflitos e, atipicamente, administrar seus órgãos internos e legislar através de resoluções, súmulas e súmulas vinculantes (MENDES, 2016, p. 988).
Diante desse cenário e principalmente com a gama de direitos positivados após as duas grandes guerras mundiais, a atuação do judiciário vem ganhando bastante notoriedade. Some-se a isso a inércia dos poderes executivo e legislativo, principalmente deste último, no tocante a positivação de direitos fundamentais previstos na Constituição Federal e que carecem de legislação infraconstitucional.
Com isso, o poder judiciário assume uma função de protagonista de forma que passa a atuar em funções típicas do poder legislativo, movimento este denominado de ativismo judicial. Cunha Jr. (2007, p.83) aponta que esta atuação ativista do poder judiciário é uma tentativa da Suprema Corte em dar máxima eficácia aos direitos fundamentais previstos na Carta Constitucional de 1988.
Embora traga inúmeros benefícios à sociedade, o ativismo judicial apresenta contraposições relevantes, principalmente no tocante ao princípio da segurança jurídica, pois abre possibilidades para o exercício da atividade política por parte dos juízes, os quais não possuem a devida legitimidade para a criação de normas. Além do mais há uma direta violação ao princípio da separação dos poderes, podendo causar uma ruptura à estrutura basilar do Estado Democrático de Direito.
2 – ANÁLISE DA ADO Nº 26 DO STF E SEUS CONTORNOS JURÍDICO-PENAIS
Nos últimos anos o protagonismo do STF, através do movimento do ativismo judicial, vem trazendo uma série de discussões no cenário jurídico brasileiro. Como visto anteriormente, cada vez mais a Corte Suprema vem exercendo um papel ativista na legitimação de direitos fundamentais de grupos socialmente vulneráveis.
Nesse viés, o STF, no ano de 2019, veio a proferir uma decisão que excedeu os limites de suas competências legislativas atípicas, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26 e do Mandado de Injunção nº 4733, a qual, por analogia, criminalizou a homofobia e transfobia como crimes de racismo, enquadrando-as à lei 7.716/89 (Lei do Racismo).
Em razão da alegação da omissão do Congresso Nacional em tutelar e garantir os direitos fundamentais da comunidade LGBTQIA+, que sofrem constantes preconceitos, atos discriminatórios e violências, a Associação de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transgêneros e Intersexos (ABGLT) e o Partido Popular Socialista (PPS) ajuizaram, respectivamente, o Mandado de Injunção (MI) nº 4733 e a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 26, que foi julgada em 13 de junho de 2019. A ADO nº 26 apresentou como principal fundamento o:
Enquadramento imediato das práticas de homofobia e de transfobia, mediante interpretação conforme (que não se confunde com exegese fundada em analogia “in malam partem”), no conceito de racismo previsto na Lei nº 7.716/89 […] – Impossibilidade jurídico-constitucional de o Supremo Tribunal Federal, mediante provimento jurisdicional, tipificar delitos e cominar sanções de direito penal, eis que referidos temas submetem-se à cláusula de reserva constitucional de lei em sentido formal (CF, art. 5o, inciso XXXIX) […] – O poder judiciário, em sua atividade hermenêutica, há de tornar efetiva a reação do Estado na prevenção e repressão aos atos de preconceito ou de discriminação praticados contra pessoas integrantes de grupos sociais vulneráveis – A questão da intolerância, notadamente quando dirigida contra a comunidade LGBTI+: a inadmissibilidade do discurso de ódio (Convenção Americana de Direitos Humanos, artigo 13, § 5º)
Alegando que a homofobia e transfobia constituíam espécies de racismo, pleiteou-se a mora do Congresso Nacional, e, também, que o STF, com fundamento na ordem constitucional, punir criminalmente a homofobia e transfobia caso o Congresso, no prazo estipulado pela Corte Suprema, não elaborasse a devida legislação criminal. Nesse cenário, a ADO fora ajuizada e o ministro Celso de Mello devidamente instituído como relator.
Como relator da Ação o ministro Celso de Mello (2019) deu início ao seu voto trazendo um resumo do pleito ajuizado pelo Partido Popular Socialista:
[…] requer-se que o Supremo Tribunal Federal, inovando na ordem positiva, tipifique, ainda que por decisão judicial, as condutas atentatórias aos direitos e liberdades fundamentais dos integrantes da comunidade LGBTI+, definindo, também, a respectiva cominação penal, superando-se, desse modo, embora em caráter absolutamente excepcional, o princípio segundo o qual “nullum crimen, nulla poena sine praevia lege.
Inicialmente o ministro foi incisivo ao reconhecer que, em se tratando de matéria penal, é indispensável à observância do princípio da reserva legal absoluta em sentido formal, de modo que somente o Congresso Nacional (Poder Legislativo no exercício de sua função típica) pode criar crimes e estipular as devidas penalidades. Entretanto, de forma contraditória, o Ministro (2019) pontuou que o Art. 5º da Constituição Federal de 1988, nos incisos XLI e XLII, impõe mandados de criminalização e, em razão da mora do Poder Legislativo, seria perfeitamente justificável a intervenção do Poder Judiciário na presente situação.
Nesse sentido, o ministro Celso de Mello (2019) proferiu seu voto reconhecendo a omissão do Poder Legislativo e considerando que tanto a homofobia quanto a transfobia representam extensões de racismo. Ao final do seu voto o ministro reforçou que, por não se tratar de uma tipificação penal por parte do Poder Judiciário, pois que já existe o crime de racismo, não há que se falar em analogia in malam partem.
Acompanhando o voto do ministro e relator Celso de Mello, os ministros Edson Fachin, Alexandre de Morais, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Gilmar Mendes e Carmem Lúcia (2019) votaram a favor da criminalização da homotransfobia como crimes de racismo, embasando seus votos na justificativa de que o texto da Constituição Federal é incisivo ao prever que a lei deverá punir todo e qualquer ato discriminatório e que atente contra os direitos e liberdades fundamentais (BRASIL, 2019).
De forma divergente ao voto do ministro relator e dos demais acima mencionados, o ministro Ricardo Lewandowski não acatou o pedido interposto pela ADO nº 26. Em seus argumentos o ministro apontou que, embora reconheça que o Poder Legislativo, através do Congresso Nacional, encontrava-se em mora, o processo que estava em julgamento versava sobre matéria penal, a qual é resguardada com fundamento no princípio da reserva legal absoluta e trata-se de atividade típica do legislador, não sendo possível ao STF a aplicação ou reconhecimento de crimes e aplicação de penas (BRASIL, 2019).
Seguindo a mesma concepção e argumentos do ministro Lewandowski, o ministro Marco Aurélio pontuou que o pleito em questão excedia os limites de atuação do STF em matéria legislativa, alegando que em sede de matéria penal deve prevalecer a reserva legal absoluta ao Poder Legislativo (BRASIL, 2019).
Com maioria dos votos, o STF decidiu reconhecer a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26, definindo os seguintes termos:
O Tribunal, por unanimidade, conheceu parcialmente da ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Por maioria e nessa extensão, julgou-a procedente, com eficácia geral e efeito vinculante, para: a) reconhecer o estado de mora inconstitucional do Congresso Nacional na implementação da prestação legislativa destinada a cumprir o mandado de incriminação a que se referem os incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição, para efeito de proteção penal aos integrantes do grupo LGBT; b) declarar, em consequência, a existência de omissão normativa inconstitucional do Poder Legislativo da União; c) cientificar o Congresso Nacional, para os fins e efeitos a que se refere o art. 103, § 2º, da Constituição c/c o art. 12-H, caput, da Lei no 9.868/99; d) dar interpretação conforme à Constituição, em face dos mandados constitucionais de incriminação inscritos nos incisos XLI e XLII do art. 5ºo da Carta Política, para enquadrar a homofobia e a transfobia, qualquer que seja a forma de sua manifestação, nos diversos tipos penais definidos na Lei no 7.716/89, até que sobrevenha legislação autônoma, editada pelo Congresso Nacional, seja por considerar-se, nos termos deste voto, que as práticas homotransfóbicas qualificam-se como espécies do gênero racismo, na dimensão de racismo social consagrada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento plenário do HC 82.424/RS (caso Ellwanger), na medida em que tais condutas importam em atos de segregação que inferiorizam membros integrantes do grupo LGBT, em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero, seja, ainda, porque tais comportamentos de homotransfobia ajustam-se ao conceito de atos de discriminação e de ofensa a direitos e liberdades fundamentais daqueles que compõem o grupo vulnerável em questão; e) declarar que os efeitos da interpretação conforme a que se refere a alínea “d” somente se aplicarão a partir da data em que se concluir o presente julgamento, nos termos do voto do Relator, vencidos os Ministros Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli (Presidente), que julgavam parcialmente procedente a ação, e o Ministro Marco Aurélio, que a julgava improcedente (BRASIL, 2019).
Portanto, a Corte Suprema, por maioria dos votos dos respectivos ministros, enquadrou as práticas de homofobia e transfobia como crimes de racismo, sendo consequentemente aplicadas as penalidades previstas na lei nº 7.716/89. Ainda que justificando o contrário, é possível visualizar que o STF excedeu os limites do ativismo judicial, ferindo veementemente os princípios da legalidade e da proibição a analogia in malam partem, além de afrontar o princípio da separação dos poderes, garantia resguardada constitucionalmente pela Carta Magna de 1988.
3 – ANÁLISE DO JULGAMENTO DA ADO Nº 26 E DO MI Nº 4733 À LUZ DOS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE E DA PROIBIÇÃO DA ANALOGIA IN MALAM PARTEM.
O ativismo judicial, conforme já conceituado, reforça o protagonismo da Suprema Corte Nacional em temas de grande sensibilidade e clamor social. No julgamento da ADO nº 26 e do MI nº 4733, ocorreu esse protagonismo, tendo em vista tratar-se de um tema de grande repercussão e relevância social. A época do julgamento houve, inclusive, uma série de mobilizações sociais por parte de grandes nomes do cenário artístico nacional e internacional clamando em nome da comunidade LGBTQIA+.
Nesse sentido cumpre ressaltar que o objetivo desta discussão não é invalidar ou questionar a luta dos movimentos sociais liderados por representantes da comunidade LGBTQIA+, tendo em vista tratar-se de questionamentos válidos e resguardados pela Constituição Federal de 1988. A discussão em tela versa sobre a insegurança jurídica que a decisão do STF ocasionou no âmbito jurídico-penal, tendo em vista que a Corte cruzou os limites constitucionais da separação dos poderes.
O protagonismo do Supremo no julgamento da ADO nº 26 e no MI nº 4733, desrespeitou completamente a dogmática jurídico-penal, excedendo os limites da separação dos poderes, conforme nos ensina Eros Grau (2018) ao lecionar que “os juízes devem, em cada caso, fazer o que devem fazer – não o que os outros esperam que eles façam”.
Grande parte dos ministros, no teor de seus votos, deixaram evidente sua preocupação com a mora do Poder Legislativo que resultava em grandes prejuízos para com a comunidade LGBTQIA+, com o crescente aumento nos números de mortes motivadas pela homotransfobia. Entretanto, no que se refere ao Direito Penal a atuação do Poder Judiciário deve estar estritamente respaldada nos princípios da legalidade e proibição da analogia in malam partem, de forma que sejam respeitadas as garantias fundamentais do jurisdicionado frente ao poder punitivo estatal.
No tocante ao princípio da reserva legal em matéria penal é importante o que nos ensina Luigi Ferrajoli (2002) que afirma que os juízes, em matéria penal, devem se submeter ao texto da lei, estando impedidos de exceder os limites punitivos com fundamento em sua interpretação, tendo em vista que a punibilidade do indivíduo deve estar formalmente prevista em norma penal. Ou seja, a punição, segundo Ferrajoli, apenas será cabível quando as ações estiverem taxativamente previstas em lei.
Mesmo assim, o voto dos ministros a favor da ADO nº 26 e do MI nº 4733 desconsiderou as bases formais do Direito Penal Brasileiro. Ressalte-se que, em seus votos, os ministros reconheceram que, em sede de matéria penal, deveriam prevalecer os princípios da legalidade e da proibição da analogia in malam partem. Mesmo assim, justificaram seus votos afirmando que o enquadramento da homotransfobia ao crime de racismo tratava-se de uma interpretação conforme à Constituição.
O princípio da legalidade é um dos pilares do direito penal. Ele estabelece que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude da lei. A decisão da Corte, embora movida pela urgência em proteger direitos fundamentais da comunidade LGBTQIA+, suscitou questionamentos sobre a competência do Judiciário para suprir a omissão legislativa. A ausência de uma lei específica que tipifique a homotransfobia levanta debates sobre a compatibilidade dessa decisão com o princípio da legalidade.
O princípio da legalidade tratando-se de matéria penal deve ser interpretado como uma legalidade estrita, de modo a fomentar a segurança jurídica da sociedade, não permitindo interpretações arbitrárias por parte do Poder judiciário, consoante nos ensina Bobbio (2002, p. 11). Segundo este mesmo raciocínio, Boschi (2014, p. 38) leciona que a lei deverá ser a fonte única e primária do direito penal, de forma que outras fontes auxiliares de interpretação, como a analogia, não podem prevalecer.
A aplicação da analogia, ao enquadrar a homotransfobia na Lei do Racismo, ampliou o alcance da norma penal. A analogia in malam partem, ou seja, a interpretação desfavorável ao réu, é controversa, o Supremo Tribunal Federal afirma que não realizou uma operação analógica no caso, mas sim utilizou de um modelo de decisão de caráter estritamente interpretativo, sem reconstruir, no plano exegético, a noção de racismo. Ocorre que, afastando a retórica, no plano da realidade, ao utilizar essa técnica para abarcar atos de homofobia e transfobia no conceito de racismo lido sob a perspectiva social, o Supremo ampliou o alcance da norma penal, sem a devida previsão legal. Essa atitude da Corte Suprema pode comprometer a segurança jurídica e abrir precedentes perigosos para outras situações.
Tal decisão também suscita reflexões no que se refere ao princípio da separação dos poderes. O judiciário ao suprir a inércia do legislativo, assume um papel atípico, o que gera debates sobre o ativismo jurídico. Embora a proteção dos direitos fundamentais seja louvável e essencial, é necessário ponderar os limites dessa atuação, a fim de preservar o equilíbrio entre os poderes do Estado Democrático de Direito.
Acertadamente Gustavo Badaró (2019) traz à tona a forma como o ministro relator Celso de Mello desviou o foco da situação, por tratar-se de uma ação de grande clamor social, pontuando que o ministro relator “realizou um verdadeiro truque de ilusionista: não é possível criar um tipo penal, mas é possível utilizar um tipo penal já existente, para considerar crime algo que nele não está descrito”.
Seguindo esse mesmo raciocínio Zaffaroni (2011, p. 160) afirma que em se tratando de direito penal deverá ser vedada toda e qualquer interpretação extensiva, tendo em vista que “a inclusão de hipóteses punitivas que não são toleradas pelo limite máximo da resistência semântica da letra da lei, porque isso seria analogia”.
A tentativa do STF em preencher uma lacuna presente na legislação penal fez com que a Corte incorrer expressamente na violação aos princípios da legalidade e da proibição da analogia in malam partem, tendo em vista que o texto legal da lei nº 7.716/89 não prevê punição penal para as condutas de homofobia e transfobia.
Nestes moldes, a decisão da Corte põe em questionamento a segurança jurídica-penal do Estado Democrático brasileiro, conforme pontua Cardinali (2018, p. 167)
(…) a eventual arrogação pelo STF da possibilidade de extensão da tutela penal, seja por meio de técnica interpretativa que, ao fim e ao cabo, gere analogia in malam partem, seja por meio da atividade legislativa atípica, representa um grave risco de paroxismo da jurisdição constitucional. Não é preciso uma argumentação ad terrorem para perceber que a possibilidade de o Judiciário prever novas hipóteses de punição criminal gera constrangimentos incontornáveis ao Estado Democrático de Direito.
O Direito Penal delimitado pela racionalidade de um Estado Democrático de Direito é um limite à intervenção estatal, e a partir de sua estrutura, do conceito material de crime, seus substratos e princípios fundamentais, não pode se prestar ao papel de justificar mais intervenção, pelo contrário, este ramo do direito é um edifício de contenção ao poder de punir e, como tal, apresenta parâmetros e regras de observância obrigatória para que então o Estado possa exercer legitimamente o “direito” de punir. O cerne da ilegitimidade da decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADO 26/DF e do MI 4733/DF reside na inobservância da racionalidade limitadora da intervenção penal no contexto do Estado Democrático de Direito.
A referida racionalidade limitadora é formada pela orientação principiológica do Direito Penal e por sua função de tutela de bens jurídicos, estes, por sua vez, operam como parâmetros críticos de incriminação, racionalidade presente não só no momento de criação da lei penal pelo legislador, mas também de observância obrigatória pelo aplicador do direito no momento de concretização da norma.
Não se discute o mérito do direito que se pretende tutelar, contudo, não se pode esquecer que o princípio da legalidade lança um olhar crítico e limitador do direito penal, ponto que foi desprezado no julgamento e que torna a decisão arbitrária sob a ótica da racionalidade de um Direito Penal que atue, como dito na preciosa lição de Franz von Liszt, como “Magna carta do delinquente”, ou seja, um Direito Penal que opera sobre a lógica de garantia do indivíduo frente ao poder coercitivo estatal, de modo que sua estrutura foi pensada e edificada para conter o arbítrio estatal, sendo limite ao Estado e garantia de liberdade ao cidadão.
A segurança jurídica, principalmente em matéria penal, é um tema bastante sensível em que pese o mantimento da ordem jurídica em um Estado Democrático de Direito. Ao exceder os limites de suas funções, o STF na decisão proferida na ADO nº 26 e no MI nº4733 abre precedentes para que matérias exclusivas da atividade legislativa sejam alvo do ativismo judicial, causando grande desordem ao princípio da separação dos poderes, corolário da ordem constitucional.
CONCLUSÃO
O avanço social ocasionado, principalmente, pela expansão de direitos fundamentais previstos em textos constitucionais, é bastante perceptível com o cenário instaurado no pós segunda guerra mundial. As Cortes Constitucionais, no Brasil representado pelo Supremo Tribunal Federal tem como função primária a concretização destas garantias fundamentais.
Entretanto, tamanha expansão fez com que aumentasse, também, a interferência do STF nos demais poderes do Estado, a qual por vezes tem-se mostrado um tanto excessiva e contra a própria ordem constitucional, no que se refere a afronta ao princípio da separação dos poderes. Observa-se que o principal mecanismo de excesso de interferência da Corte Suprema nos demais poderes ocorre por meio do fenômeno do ativismo judicial.
Por diversas vezes, principalmente na última década, o STF tem se mostrado protagonista do clamor social, fomentado um desequilíbrio à segurança jurídica e ultrajando o princípio da separação dos poderes. Conforme analisado neste artigo, o mais recente caso de ativismo judicial protagonizado pelo STF foi à polêmica decisão proferida pela maioria dos ministros na ADO nº 26 e no MI nº 4733, a qual criminalizou as práticas de homotransfobia como equiparadas ao crime de racismo. O ativismo judicial, embora possa ser uma ferramenta poderosa para promover mudanças sociais, deve ser exercido dentro dos limites constitucionais e em respeito aos princípios fundamentais do Estado de Direito.
O teor dos votos do ministro relator Celso de Mello e dos demais ministros que acompanharam seu voto deixou evidenciado que o STF cruzou a barreira da separação dos poderes, negligenciando veementemente os princípios da legalidade e da proibição da analogia in malam partem em sede de direito penal. A busca pela validação do clamor social, ainda que diante de uma causa tão nobre, como a da comunidade LGBTQIA+, que em razão de sua orientação sexual e/ou identidade de gênero, seja diariamente alvo de discriminação, preconceito, violência e crimes de ódio, motivados por condutas homotransfóbicas, fez com que a Suprema Corte brasileira causasse um perigoso desequilíbrio na ordem jurídico-penal do país.
A criminalização da homofobia e transfobia como crimes de racismo e seu enquadramento na lei nº 7.716/89 é matéria que deve ser tratada, com base no princípio da reserva legal absoluta, pelo Poder Legislativo e não por decisão jurídica do Poder Judiciário. Tamanha interferência na função típica de outro poder do estado poderá desencadear em uma crise do sistema jurídico nacional bem como propiciar um clima de incertezas e insegurança jurídica, afetando os pilares de um verdadeiro Estado Democrático de Direito.
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