PERDA DO MANDATO PARLAMENTAR POR CONDENAÇÃO PENAL TRANSITADA EM JULGADO: OSCILAÇÃO DO STF E CONFLITO ENTRE PODERES

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202505141338


Renato Meneses Oliveira Campos1


Resumo: O presente artigo analisa o complexo debate constitucional acerca da perda de mandato parlamentar em decorrência de condenação criminal com trânsito em julgado, tema que tem gerado acentuadas tensões entre o Poder Legislativo e o Poder Judiciário no Brasil. A controvérsia decorre da interpretação dos §§2º e 3º do art. 55 da Constituição Federal, que tratam, respectivamente, da necessidade de deliberação da Casa Legislativa e da possibilidade de perda automática do mandato em razão da suspensão dos direitos políticos. A estudo revisita os principais julgados do Supremo Tribunal Federal, como as Ações Penais 470/MG, 396/RO, 694/MT e 996/DF, revelando a oscilação da jurisprudência e suas consequências institucionais. Também analisa o recente caso envolvendo o deputado Alexandre Ramagem, que reabriu o debate sobre a sustação de processos penais e os limites das prerrogativas parlamentares. A partir de abordagem qualitativa, o artigo propõe a harmonização interpretativa entre os dispositivos constitucionais e a consolidação de critérios que respeitem a separação dos poderes, promovam segurança jurídica e garantam o pleno funcionamento do Estado Democrático de Direito.

Palavras-chave: Mandato parlamentar. Supremo Tribunal Federal. Condenação criminal. Jurisprudência constitucional. Separação dos poderes

1. Introdução

A perda de mandato parlamentar em decorrência de condenação criminal com trânsito em julgado representa um dos temas mais controversos da ordem constitucional brasileira, situando-se no delicado ponto de tensão entre os poderes Legislativo e Judiciário. Essa controvérsia decorre, sobretudo, da ambiguidade existente nos §§2º e 3º do artigo 55 da Constituição Federal de 19882, que estabelecem procedimentos distintos para a cassação de mandato parlamentar, a depender da fundamentação jurídica que a justifique.

O §2º atribui ao Plenário da respectiva Casa Legislativa a competência para deliberar sobre a perda de mandato nos casos de condenação criminal definitiva, enquanto o §3º estabelece que, havendo suspensão dos direitos políticos — como previsto no art. 15, III, da mesma Constituição3 — a perda do mandato será automaticamente declarada pela Mesa Diretora. 

Essa sobreposição normativa gera margens para interpretações divergentes e compromete a segurança jurídica, os limites institucionais e a própria harmonia entre os Poderes da República.

Essa problemática torna-se ainda mais relevante diante das decisões recentes do Supremo Tribunal Federal, cujas Turmas vêm adotando entendimentos distintos. Em algumas ocasiões, o Tribunal reconhece a perda automática do mandato como decorrência direta da sentença penal condenatória; em outras, afirma a necessidade de juízo político por parte do Legislativo. Julgados emblemáticos como as Ações Penais 470/MG, 396/RO, 694/MT e 996/DF evidenciam a oscilação jurisprudencial da Corte e reforçam o caráter atual e urgente da discussão.

Diante desse cenário, este artigo tem por objetivo analisar criticamente a interpretação e aplicação dos dispositivos constitucionais pertinentes, à luz da evolução jurisprudencial do STF. Ao propor esse exame, busca-se oferecer subsídios à reflexão jurídica e institucional sobre a aplicação dos §§ 2º e 3º do art. 55 da Constituição Federal, com o intuito de fomentar uma leitura mais estável e coerente desses dispositivos. 

A análise pretende contribuir para o debate acadêmico acerca dos limites entre os poderes, da legitimidade das decisões judiciais e da exigência de segurança jurídica nos processos de cessação de mandatos parlamentares, com vistas à preservação do equilíbrio democrático e da estabilidade institucional.

2. O Estatuto dos Congressistas e as Imunidades Parlamentares

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, ao organizar os Poderes da União, dedica os artigos 53 a 56 ao regime jurídico aplicável aos membros do Congresso Nacional. Esses dispositivos, conhecidos como Estatuto dos Congressistas, regulam as prerrogativas, deveres e vedações dos deputados federais e senadores da República, permitindo-lhes exercer suas funções com independência e liberdade, em consonância com o princípio da separação dos poderes (PAULO; ALEXANDRINO, 2012).

Dentre essas prerrogativas, ganham relevo as imunidades parlamentares, institutos essenciais ao funcionamento harmônico e independente do Poder Legislativo. Elas não configuram privilégios pessoais, mas sim garantias institucionais que protegem a função legislativa contra abusos e interferências indevidas dos demais Poderes, especialmente no contexto de uma democracia representativa (MORAES, 2014). 

Tais imunidades se subdividem em material e formal, ambas com fundamentos constitucionais sólidos e larga previsão nas tradições democráticas ocidentais.

2.1 Histórico das Imunidades Parlamentares

As origens das imunidades parlamentares são controversas. Parte da doutrina as vincula ao direito medieval inglês, como privilégios conferidos à nobreza representada no Parlamento. Outra corrente as relaciona à Revolução Francesa, como instrumentos de proteção à liberdade de expressão e independência política dos representantes populares (PIOVESAN; GONÇALVES, 2003).

No direito romano, figuras como os tribunos da plebe já gozavam de inviolabilidade legal. Posteriormente, documentos como o Bill of Rights inglês de 1688 consolidaram os princípios de freedom of speech (liberdade de palavra) e freedom from arrest (imunidade à prisão arbitrária). A Constituição norte-americana de 1787 também consagrou tais garantias, restringindo-as à atuação estrita do parlamentar (BULOS, 2007).

No Brasil, as imunidades parlamentares foram previstas desde a Constituição Imperial de 1824, sendo aprimoradas nas Constituições republicanas subsequentes, com variações em sua abrangência e eficácia. A Constituição de 1988, em sua redação originária, consolidou os dois tipos de imunidade, sendo que a Emenda Constitucional nº 35/2001 trouxe alterações relevantes, especialmente quanto à sustação de processos (MORAES, 2014; CARVALHO, 2008).

2.2 Imunidade Material

A imunidade material está disciplinada no caput do artigo 53 da Constituição Federal, que dispõe: “Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos.” Trata-se de cláusula de irresponsabilidade funcional que garante ao parlamentar plena liberdade de expressão no exercício do mandato, vedando responsabilização judicial ou disciplinar por manifestações proferidas no âmbito da atividade legislativa (MORAES, 2014).

Segundo a doutrina majoritária, essa imunidade exclui a própria tipicidade penal de condutas que, em outras circunstâncias, configurariam crimes contra a honra, como calúnia, difamação ou injúria (PAULO; ALEXANDRINO, 2012). Nesse sentido, José Afonso da Silva afirma que a inviolabilidade parlamentar “afasta, para a hipótese, a incidência da norma penal” (DA SILVA, 2014, p. 540).

Contudo, essa proteção aplica-se apenas aos atos praticados no exercício do mandato e que tenham nexo funcional com a atividade legislativa. Palavras e manifestações alheias ao desempenho do cargo, como aquelas em contexto eleitoral ou em redes sociais, não estão abrangidas pela imunidade. Tampouco se aplica aos suplentes, salvo quando no exercício efetivo do mandato.

Essa prerrogativa se justifica na necessidade de garantir a autonomia do Legislativo, mas não exclui o controle social e a liberdade de crítica dos cidadãos, especialmente quando voltada a figuras públicas. 

Nesse sentido, a doutrina italiana, por meio da teoria denominada zona di iluminabilità4, reconhece que quanto maior a exposição pública, mais ampla deve ser a tolerância à crítica (NUVOLONE apud VIEIRA, 2014).

2.3 Imunidade Formal

Já a imunidade formal, ou processual, refere-se às restrições à prisão e ao andamento de processos judiciais contra congressistas. Conforme o artigo 53, §2º, da Constituição, desde a diplomação, os parlamentares não podem ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Mesmo nesse caso, os autos devem ser encaminhados à respectiva Casa Legislativa, que decidirá sobre a manutenção da prisão (BRASIL, 1988).

Embora a norma constitucional não faça distinção entre tipos de prisão, o STF entende que a imunidade formal não impede a execução de pena privativa de liberdade após condenação definitiva, desde que o parlamentar ainda detenha o cargo, mas sem sustação da sentença (PAULO; ALEXANDRINO, 2012).

A sustação do processo penal é a outra vertente da imunidade formal. A partir da Emenda Constitucional nº 35/2001, a Casa Legislativa pode, por iniciativa de partido político nela representado, sustar o andamento de ação penal até a decisão final, mas apenas se o crime tiver sido cometido após a diplomação. Para fatos anteriores, essa prerrogativa não se aplica (MORAES, 2014).

Por fim, vale lembrar que os membros do Congresso Nacional são processados e julgados exclusivamente pelo Supremo Tribunal Federal nas infrações penais comuns, conforme a prerrogativa de foro por função, que reforça a singularidade processual dos representantes eleitos.

3. Análise da Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal 

A interpretação sobre a perda de mandato parlamentar decorrente de condenação criminal com trânsito em julgado tem sido objeto de significativas oscilações na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF). O núcleo da controvérsia reside na aplicação dos §§2º e 3º do art. 55 da Constituição Federal, e na tensão entre a necessária deliberação política da Casa Legislativa e a possibilidade de perda automática do mandato em razão da suspensão dos direitos políticos.

3.1 Ação Penal 470/MG – Caso “Mensalão”

Em 2012, no julgamento da Ação Penal 470, conhecida como “mensalão”, o Plenário do STF entendeu que a condenação criminal com trânsito em julgado implicava, automaticamente, a perda do mandato parlamentar, independentemente de manifestação da respectiva Casa Legislativa. O voto condutor defendeu que a preservação do mandato parlamentar de condenados por crimes graves comprometeria os princípios da moralidade administrativa e da probidade no exercício da função pública.

Na ocasião, o entendimento da maioria foi de que o §3º do art. 55 da Constituição prevaleceria sobre o §2º, quando o fundamento da perda de mandato fosse a suspensão dos direitos políticos em decorrência da condenação penal. Assim, a cassação se daria de forma automática e deveria ser apenas declarada pela Mesa Diretora da Casa Legislativa.

3.2 Ação Penal 396/RO – Caso Natan Donadon

Entretanto, o julgamento da Ação Penal 396, em 2013, trouxe à tona a fragilidade do entendimento firmado no “mensalão”. Nessa ação, o deputado Natan Donadon foi condenado por crimes de peculato e formação de quadrilha. Após o trânsito em julgado, a Câmara dos Deputados se recusou a declarar a perda do mandato, mesmo diante da sentença condenatória.

Diante da omissão legislativa, o ministro Luís Roberto Barroso, em medida liminar no Mandado de Segurança 32.603, determinou a perda do mandato com base no art. 55, §3º, da Constituição. A decisão provocou intensos debates sobre a interferência do Judiciário em competências típicas do Legislativo, e marcou uma reviravolta no entendimento anteriormente consolidado pelo Plenário.

3.3 Ação Penal 694/MT – Caso Paulo Feijó

Em 2017, no julgamento da Ação Penal 694/MT, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal retomou o entendimento de que a perda de mandato parlamentar pode ocorrer de forma automática em determinadas hipóteses, sem a necessidade de deliberação do Plenário da Casa Legislativa. O caso envolveu o deputado federal Paulo Feijó (PR-RJ), condenado a mais de 12 anos de reclusão, em regime fechado, pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

A relatoria ficou a cargo da ministra Rosa Weber, e a decisão da Turma foi unânime quanto à imposição dos efeitos da condenação, entre eles a perda do mandato e a interdição para o exercício de cargos públicos. O fundamento adotado foi o art. 55, inciso III, da Constituição Federal, que estabelece a cassação automática do mandato nos casos de ausência injustificada a um terço das sessões legislativas ordinárias. 

No entendimento da Corte, a condenação a pena privativa de liberdade em regime fechado, por tempo superior a 120 dias, inviabiliza o exercício da função parlamentar, o que equivale, na prática, ao abandono de mandato por ausência prolongada.

O ministro Luís Roberto Barroso, revisor da ação penal, reforçou que o regime fechado impede a compatibilidade entre o cumprimento da pena e a atividade parlamentar, diferentemente do que ocorre nos regimes aberto ou semiaberto, onde poderia haver autorização para trabalho externo. Por esse motivo, sustentou que a perda do mandato deveria ser declarada diretamente pela Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, sem necessidade de manifestação do Plenário, conforme previsão expressa do §3º do artigo 55 da Constituição.

Esse julgamento reafirmou uma interpretação funcional e pragmática do dispositivo constitucional, associando a perda do mandato não apenas à sanção penal, mas à impossibilidade fática de desempenho do cargo eletivo diante da restrição de liberdade imposta.

3.4 Ação Penal 996/DF – Caso Nelson Meurer

Já no julgamento da AP 996/DF, em 2018, que envolveu o deputado Nelson Meurer, a 2ª Turma do STF voltou a reafirmar a necessidade de manifestação do Poder Legislativo. O parlamentar foi condenado pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. 

Por maioria, o colegiado entendeu que a perda do mandato não poderia ser imposta automaticamente, devendo o STF apenas comunicar a decisão à Mesa Diretora da Câmara, a quem caberia decidir sobre a cassação, nos termos do art. 55, VI e §2º da Constituição Federal.

O voto do relator, ministro Edson Fachin, destacou que a Constituição é expressa ao atribuir às Casas Legislativas a competência para deliberar sobre a perda do mandato nos casos de condenação penal, e que eventual intervenção judicial violaria o princípio da separação dos poderes.

4. Considerações Finais sobre a Jurisprudência do STF

A análise dos principais julgados revela uma jurisprudência instável, marcada por divergências internas no próprio STF. Enquanto a 1ª Turma tem adotado posições que reconhecem hipóteses de perda automática do mandato, a 2ª Turma tende a prestigiar a deliberação política do Legislativo.

Essa divergência não apenas gera insegurança jurídica, como também compromete a legitimidade das decisões judiciais e legislativas, além de expor tensões institucionais entre os Poderes. 

O cenário atual clama por uma uniformização interpretativa, seja por meio de decisão definitiva do Plenário do STF, seja mediante reforma constitucional que esclareça, de forma inequívoca, os limites e procedimentos aplicáveis à perda de mandato parlamentar por condenação criminal.

5. O conflito entre o legislativo e o judiciário: evolução e desdobramentos atuais

A tensão entre o Poder Legislativo e o Poder Judiciário no Brasil, especialmente no que tange à perda de mandato parlamentar em decorrência de condenação criminal com trânsito em julgado, tem sido uma constante na história recente do país. Este embate institucional ganhou notoriedade em dezembro de 2012, durante o julgamento da Ação Penal 470 (conhecida como “Mensalão”), quando o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a perda do mandato de deputados condenados seria automática, sem necessidade de deliberação da respectiva Casa Legislativa.

Na ocasião, o então presidente da Câmara dos Deputados, Marco Maia, manifestou-se contrariamente à decisão do STF, alegando que tal entendimento representava uma ingerência nas prerrogativas do Legislativo:

É muito ruim num sistema democrático, onde nós temos Poderes que são autônomos e independentes, que um Poder tente interferir na prerrogativa de outro Poder. […] Da mesma forma, o Poder Legislativo não gostaria que outros Poderes se intrometessem em questões que são suas prerrogativas. (MAIA, 2012).

Em resposta, o Ministro Celso de Mello, em seu voto no Plenário do STF, enfatizou a obrigatoriedade do cumprimento das decisões judiciais transitadas em julgado, independentemente de discordâncias institucionais:

[…] autoridades legislativas ou administrativas, quaisquer que sejam, não têm o poder, sob pena de usurpação das atribuições cometidas ao Judiciário, de se insurgir quando já esgotados todos os meios de impugnação recursal, para não cumprir o conteúdo intrínseco dos atos jurisdicionais. (BRASIL, AP 470/MG, 2012).

Esse episódio evidenciou a fragilidade do equilíbrio entre os Poderes, especialmente no que se refere à interpretação dos §§2º e 3º do art. 55 da Constituição Federal, que tratam da perda de mandato parlamentar. A controvérsia reside na definição de qual Poder detém a competência final para declarar a perda do mandato: o Judiciário, ao proferir a condenação, ou o Legislativo, ao deliberar sobre a cassação.

A Constituição Federal de 1988, ao estabelecer no art. 2º que “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”, buscou evitar conflitos institucionais. Contudo, a ausência de clareza quanto à aplicação dos dispositivos constitucionais relacionados à perda de mandato tem gerado insegurança jurídica e decisões conflitantes.

O sistema de freios e contrapesos (checks and balances), consolidado na doutrina americana, prevê mecanismos legítimos de interferência recíproca entre os Poderes, visando à manutenção da harmonia e do equilíbrio institucional. No contexto brasileiro, a deliberação da Casa Legislativa sobre a perda de mandato pode ser interpretada como um desses mecanismos, funcionando como um contrapeso às decisões judiciais.

Em 2025, um novo episódio reacendeu o debate sobre os limites da atuação do Judiciário frente às prerrogativas do Poder Legislativo. O caso envolveu a Ação Penal 2.668, na qual a Câmara dos Deputados, por meio da Resolução nº 18/2025, deliberou pela sustação integral do processo penal contra o deputado federal Alexandre Ramagem, com fundamento na imunidade processual prevista no §3º do art. 53 da Constituição Federal. 

Entretanto, ao julgar a matéria, o ministro Alexandre de Moraes reconheceu apenas parcialmente os efeitos da resolução, limitando a suspensão da ação penal aos delitos supostamente cometidos após a diplomação do parlamentar, afastando a aplicação da sustação quanto aos demais crimes, praticados antes do mandato.

A decisão provocou forte reação no meio político, com lideranças partidárias acusando o Supremo Tribunal Federal de restringir indevidamente um ato soberano do Legislativo, o que reacendeu a tensão institucional em torno da separação dos Poderes e dos limites da imunidade parlamentar. 

O caso Ramagem evidencia que, mesmo após mais de uma década do julgamento da AP 470/MG, as tensões entre os Poderes persistem, especialmente quando envolvem a interpretação de dispositivos constitucionais ambíguos. A necessidade de uma delimitação clara das competências de cada Poder é fundamental para assegurar a estabilidade institucional e a efetividade do Estado Democrático de Direito.

6. Conclusão.

A perda de mandato parlamentar em razão de condenação criminal com trânsito em julgado constitui uma das temáticas mais sensíveis da ordem constitucional brasileira, por envolver simultaneamente princípios fundamentais como a separação dos poderes, a moralidade administrativa, a segurança jurídica e a soberania popular. A dualidade interpretativa presente nos §§2º e 3º do art. 55 da Constituição Federal, ao prever tanto a deliberação política quanto a declaração automática da perda do mandato, tem sido fonte contínua de controvérsias institucionais.

A análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal revelou uma trajetória marcada por oscilações significativas. Julgados como a Ação Penal 470 (mensalão), a AP 396/RO (Donadon), a AP 694/MT (Paulo Feijó) e a AP 996/DF (Nelson Meurer) evidenciam que o STF ora adota a tese da perda automática do mandato, ora reafirma a necessidade de deliberação parlamentar. Tal instabilidade compromete a previsibilidade das decisões judiciais e alimenta conflitos entre os Poderes, como exemplificado pelos episódios de resistência institucional da Câmara dos Deputados.

A recente crise em torno da atuação do STF no caso do deputado Alexandre Ramagem, em 2025, demonstra que os impasses entre Legislativo e Judiciário permanecem atuais e complexos, exigindo maior clareza normativa e respeito aos limites institucionais recíprocos. 

Nesse cenário de desafios constitucionais renovados, é particularmente relevante evocar a contribuição doutrinária de José Afonso da Silva, que no último dia 30 de abril de 2025, completou cem anos de vida dedicados ao pensamento jurídico brasileiro. Sua obra continua a iluminar questões centrais do constitucionalismo democrático. Segundo o autor, a harmonia entre os poderes verifica-se primeiramente pelas normas de cortesia no trato recíproco e no respeito às prerrogativas e faculdades a que mutuamente todos têm direito (DA SILVA, 2014, p. 111).

A verdadeira estabilidade republicana não reside na eliminação de conflitos, mas na maturidade institucional para administrá-los com respeito mútuo, deferência constitucional e compromisso com o pacto federativo. Ao valorizar a convivência equilibrada entre os Poderes, José Afonso da Silva reafirma, com autoridade, os fundamentos de uma democracia sólida e funcional

Diante disso, conclui-se que a superação da ambiguidade constitucional requer, idealmente, uma atuação conjunta: de um lado, a consolidação de jurisprudência uniforme pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal; de outro, eventual aperfeiçoamento legislativo ou reforma constitucional que elimine dúvidas interpretativas e assegure um procedimento claro, legítimo e democrático para a cessação de mandatos parlamentares em decorrência de condenação penal.

Preservar a estabilidade institucional e a confiança nas instituições republicanas exige respeito ao devido processo constitucional, ao papel de cada Poder da República e à supremacia do interesse público. Qualquer solução que desconsidere esses pilares comprometerá não apenas o mandato individual de um parlamentar, mas a integridade do próprio Estado Democrático de Direito.


2BRASIL. Constituição (1988). Art. 55, §§ 2º e 3º:
§ 2º – Nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.
§ 3º – Nos casos dos incisos III a V, a perda será declarada pela Mesa da Casa respectiva, de ofício ou mediante provocação de qualquer de seus membros, ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.
3 BRASIL. Constituição (1988). Art. 15, inciso III:
É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de:
III – condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos.
4 Oportuno sublinhar que, quanto mais alta é a posição pública da pessoa e do ente, mais larga deve ser a zona de ‘iluminabilià’: uma notícia atinente à vida privada de um homem público pode se revestir de interesse social, ao passo que o mesmo pode não ser verdade em um homem do povo. (NUVOLONE apud VIEIRA, 2014, p. 26).

REFERÊNCIAS

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VIEIRA, Júlia Cândido. Imunidade parlamentar material: a prerrogativa constitucional que é limitada. 2014. 33f. Monografia (Conclusão do curso) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Faculdade Mineira de Direito, Belo Horizonte.


1Procurador do Município de São Bernardo do Campo. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/Minas.