THE CONCEPTUAL CONSTRUCTION OF THE LEGAL SYSTEM BASED ON ALCHOURRÓN AND BULYGIN: BETWEEN NORMATIVE COHERENCE AND THE INCLUSION OF ENUNCIATES
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/pa10202505111241
César Bisol1
Resumo
A presente pesquisa tem como objetivo investigar a construção conceitual do sistema jurídico a partir das contribuições teóricas de Alchourrón e Bulygin, analisando a tensão entre coerência normativa e a inclusão de enunciados não coercitivos dentro do sistema jurídico. A partir das abordagens desses autores, o estudo busca compreender como um sistema jurídico pode ser concebido como coerente e eficaz, sem se restringir apenas às normas coercitivas, mas permitindo a inclusão de enunciados de diferentes naturezas, como normas de competência e regras técnicas. Para isso, foi realizada uma análise crítica da teoria do direito proposta por Alchourrón e Bulygin, que propõem uma visão mais ampla do sistema jurídico, incluindo a pluralidade normativa, sem comprometer a sua função reguladora. A pesquisa também aborda os desafios que surgem ao tentar equilibrar a inclusão de diferentes tipos de enunciados e a manutenção da coerência do sistema jurídico, discutindo as vantagens e limitações dessa perspectiva. Conclui-se que, para uma compreensão mais completa e realista do direito, é necessário adotar um modelo jurídico flexível, que integre uma diversidade de normas, mantendo, ao mesmo tempo, a coesão e a eficácia necessárias para a regulação da conduta humana. Esse modelo contribui para uma visão mais abrangente e multifacetada do direito, refletindo sua complexidade enquanto fenômeno social.
Palavras-chave: sistema jurídico. coerência normativa. enunciados não coercitivos.
1 INTRODUÇÃO
A teoria jurídica contemporânea enfrenta a complexidade de definir com precisão o que constitui um “sistema jurídico” e como ele deve ser compreendido, dado o caráter dinâmico e multifacetado do direito. Desde as abordagens mais restritivas, que focam em enunciados coercitivos, até as mais amplas, que consideram um espectro mais vasto de enunciados normativos, diversas correntes teóricas buscam responder a essa questão. O debate entre autores como Kelsen, Austin, Hart, Von Wright, entre outros, reflete as diferentes formas de interpretar a normatividade do direito e suas implicações para a definição de sistemas jurídicos. Essas abordagens envolvem uma discussão profunda sobre a natureza dos enunciados que constituem o direito, sua relação com a coerção e com as normas de conduta, e como tais enunciados se articulam dentro de um sistema mais amplo.
No centro dessa reflexão, surgem diferentes proposições sobre o que constitui um sistema jurídico. Por exemplo, uma definição mais restritiva, como a de Kelsen e Austin, vê o sistema jurídico como um conjunto de enunciados coercitivos, ou seja, afirmações que impõem obrigações com a possibilidade de punição em caso de descumprimento. Contudo, essa perspectiva tem sido criticada por sua incapacidade de abranger todos os aspectos normativos do direito, especialmente aqueles que não envolvem coerção direta, mas que são igualmente essenciais para a estrutura jurídica, como as normas de competência ou as regras técnicas.
Uma definição mais inclusiva, como a proposta por Hart, busca expandir a compreensão do sistema jurídico, incluindo não apenas enunciados coercitivos, mas também prescritivos e normativos. Essa definição reconhece que o direito não é apenas um conjunto de normas punitivas, mas também um conjunto de normas que regulam a conduta dos indivíduos e organizam as relações sociais de maneira mais ampla. Além disso, Hart propõe que o sistema jurídico não deve ser visto de forma rígida, mas como um conjunto dinâmico, capaz de acomodar diferentes tipos de enunciados, incluindo aqueles que não envolvem coerção direta, mas que têm uma função normativa importante.
A crítica de Caffera e Mariño a essas abordagens sugere que uma definição de sistema jurídico deve ser capaz de integrar diferentes tipos de enunciados, sem cair na armadilha do reducionismo. Eles destacam a necessidade de considerar enunciados que vão além da mera prescrição de sanções coercitivas, incluindo enunciados normativos determinativos e conceptuais, que são fundamentais para o funcionamento do direito. Para esses autores, a definição de um sistema jurídico deve ser mais flexível e abrangente, permitindo a inclusão de diferentes tipos de normas, sem que isso signifique diluir o conceito de sistema jurídico.
Ao longo das discussões sobre a definição de sistemas jurídicos, emerge a proposta de uma abordagem mais flexível, como a apresentada por Von Wright, que distingue diferentes tipos de enunciados normativos, incluindo enunciados de conduta, regras técnicas e normas determinativas. Essa visão permite uma maior compreensão do direito como um sistema plural, no qual diferentes tipos de enunciados desempenham funções complementares. O sistema jurídico, então, não seria um conjunto homogêneo de normas, mas uma rede interconectada de enunciados que orientam a conduta, regulam relações e definem competências, sem depender exclusivamente de coerção.
O ponto crucial desse debate é como classificar e integrar esses enunciados dentro de um sistema jurídico. Em especial, a proposta de um sistema como S3 (ao longo do texto denominamos a proposta S3 fazendo referência a uma tentativa de superar as críticas ao modelo mais restritivo, como o de S2, que se concentra apenas em enunciados prescritivos (normas que prescrevem comportamentos e podem incluir coação). O modelo S3 busca abranger uma gama mais ampla de enunciados dentro de um sistema jurídico, incluindo enunciados normativos com diferentes funções, como normas de competência ou regras técnicas, e não apenas aquelas com coação), que integra as críticas de Hart e incorpora as visões de Caffera, Mariño e Von Wright, oferece uma maneira de compreender o direito como um sistema normativo que abrange enunciados heterogêneos, sem cair no reducionismo. Para S3, o sistema jurídico é composto por normas de conduta, normas de competência e até mesmo normas técnicas, e essa diversidade de enunciados não compromete a coesão do sistema. Pelo contrário, ela enriquece a compreensão do direito como um fenômeno multifacetado.
No entanto, ainda existem desafios para a definição de um sistema jurídico adequado. Um dos problemas centrais está na categorização de enunciados normativos, especialmente em relação às normas jurídicas que não envolvem coerção, como as normas de competência e regras técnicas. A questão é até que ponto esses enunciados podem ser considerados parte do sistema jurídico sem diluir a ideia de que o direito deve ser um instrumento de regulação da conduta humana, com a capacidade de influenciar as ações dos indivíduos de forma eficaz. O debate sobre o que constitui um “sistema jurídico” não se limita à classificação dos enunciados, mas também à função que esses enunciados desempenham na organização e no controle social.
Além disso, a crítica de Caffera e Mariño aponta a necessidade de reconsiderar a definição de “norma jurídica”. Se um sistema jurídico pode incluir enunciados que não são estritamente normativos, mas ainda assim desempenham um papel importante na organização do sistema, como as normas de competência ou as regras técnicas, isso exige uma reavaliação das fronteiras do direito. A proposta de ampliar a definição de norma jurídica, incluindo tanto enunciados normativos quanto não normativos, é uma tentativa de superar as limitações de visões mais rígidas, sem perder de vista a função reguladora do direito.
Em contrapartida, ao considerar um sistema como S3, que permite a integração de enunciados não coercitivos, mas igualmente normativos, a teoria jurídica pode avançar na direção de uma compreensão mais ampla e precisa do que é um sistema jurídico. Isso permite que o direito seja visto não apenas como um conjunto de regras coercitivas, mas também como um sistema que regula de forma abrangente a conduta humana, incluindo normas que não se limitam a prescrever sanções, mas que também organizam a estrutura do poder e as relações sociais. Essa abordagem oferece uma alternativa mais inclusiva e flexível para a definição do sistema jurídico.
A pesquisa que se propõe a investigar essa questão busca, portanto, entender como diferentes definições de “sistema jurídico” podem ser aplicadas para abarcar a complexidade do fenômeno jurídico. O problema de pesquisa central é: como um sistema jurídico pode ser definido de forma a incluir a diversidade de enunciados normativos presentes nas práticas jurídicas, sem perder a coesão necessária para que o direito seja eficaz em sua função de regular a conduta humana? Essa questão exige uma reflexão profunda sobre os diferentes tipos de enunciados que compõem o direito e sobre como eles interagem dentro de um sistema normativo mais amplo.
O objetivo desta pesquisa é, assim, analisar as diferentes propostas teóricas sobre a definição de sistema jurídico, com ênfase na contribuição de autores como Kelsen, Austin, Hart, Caffera, Mariño, Von Wright e outros, para chegar a uma definição mais robusta e abrangente. Em particular, a pesquisa visa avaliar como a inclusão de enunciados normativos não coercitivos pode enriquecer a compreensão do direito, sem comprometer sua eficácia. Com isso, espera-se oferecer uma contribuição significativa para a teoria do direito, especialmente no que diz respeito à construção de um conceito mais flexível e inclusivo de sistema jurídico.
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA OU REVISÃO DA LITERATURA
O sistema jurídico como um conjunto de enunciados heterogêneos
A definição de “sistema jurídico” apresentada por Alchourrón e Bulygin indica que ele pode ser composto por qualquer tipo de enunciado, desde que pertença a um conjunto tal que algum de seus elementos prescreva uma sanção coercitiva.
De forma evidente, essa aceitação de que qualquer enunciado pode integrar o sistema jurídico decorre do próprio conteúdo da definição. Contudo, é importante destacar que essa concepção também se complementa com as duas estratégias metodológicas adotadas por Alchourrón e Bulygin: a incorporação das ferramentas formais da lógica e a definição de “norma jurídica” de modo indissociável do conceito de “sistema jurídico”.
A incorporação das ferramentas formais da lógica caracteriza o sistema normativo por suas consequências, o que implica não haver exigências quanto ao conteúdo dos enunciados. Paralelamente, ao caracterizar a norma jurídica como qualquer enunciado que pertença a um sistema jurídico, reserva-se para um momento posterior a distinção dos possíveis tipos de enunciados que integram o fenômeno, já que (conforme a definição) o enunciado apenas precisa estar acompanhado de outro que prescreva uma sanção coercitiva para ser qualificado como norma jurídica. Por essa razão, também o método que parte do “todo” para a “parte” não obriga (nesse contexto) a estabelecer as características de seus elementos.
Esse aspecto da definição está em consonância com as teses de Hart e Von Wright, que, (alguns anos antes da publicação de “Normative Systems” de Georg Henrik von Wright, publicado em 1971) já haviam destacado uma relação ao direito, e ainda outro ponto seria a relação às normas, bem como, a necessidade de construir uma teoria que explicasse a diversidade de enunciados presentes nos sistemas jurídicos e a diversidade de normas existentes nos sistemas normativos, respectivamente (Hart, 1961; Von Wright, 1963).
Um dos méritos de Hart é ter evidenciado a impossibilidade de reduzir os elementos do sistema jurídico apenas às normas que estabelecem uma sanção coercitiva. Nesse ponto ele afirma que tais sistemas comportam uma ampla variedade de enunciados ou, como afirma o autor, um conjunto de diferentes tipos de regras, entre as quais as normas que preveem sanções coercitivas são apenas um subtipo excepcional. Recordemos aqui que Kelsen e, antes dele, Austin, haviam reduzido o direito ao conjunto de normas com sanções coercitivas.
Já em Von Wright, fica evidente a limitação da linguagem prescritiva para dar conta das normas, bem como a existência de outros tipos de regras, como as determinativas ou técnicas, consideradas tipos básicos (Von Wright, 1963).
Essa necessidade apontada por Hart e Von Wright constitui uma razão determinante para que Alchourrón e Bulygin definam sistema jurídico como qualquer conjunto de enunciados.
Entretanto, em 1996, os autores uruguaios Caffera e Mariño evidenciaram as implicações dessa concepção ao observarem que, sob a definição de Alchourrón e Bulygin, a classe universal de enunciados também poderia ser considerada um sistema jurídico e, portanto, qualquer enunciado deveria ser tomado como norma jurídica (Caffera e Mariño, 2011).
Residi aqui p ponto inicial de nossa analise, partindo da crítica que sustenta que se norma jurídica é todo enunciado pertencente a um sistema jurídico, e este, por sua vez, é definido como um sistema que inclui ao menos uma norma que prescreva uma sanção coercitiva; como a classe universal de enunciados contém todos os enunciados que prescrevem sanções coercitivas, conclui-se não apenas que essa classe universal é um sistema jurídico, mas também que qualquer enunciado poderia ser considerado norma jurídica.
É importante, então, ressaltar que esses dois problemas indicados pela crítica dos autores uruguaios configuram uma dificuldade material de adequação, destacando dois pontos: primeiro, não apenas da definição de “sistema jurídico”, e o segundo ponto diz respeito as definições de “sistema normativo”, “norma” e “norma jurídica”, dada a inter-relação desses conceitos.
Desses dois pontos, vale lembrar que tentou-se responder a essa objeção de diversas formas, mas nenhuma proposta foi amplamente aceita, a passo que Jorge L. Rodriguez afirmar que a crítica uruguaia constitui um indício de que nenhuma caracterização do direito no plano estático é satisfatória, uma vez que demonstra que mesmo uma teoria tão sofisticada como a de Alchourrón e Bulygin se mostra inviável (Rodriguez, 2011, p. 152).
Enfrentar essa crítica, portanto, configura uma questão central para manter de pé os pilares fundamentais da definição estática de “sistema jurídico”. Os próprios Alchourrón e Bulygin assinalaram que: “Isso impede definir ordem jurídica como qualquer conjunto de enunciados que contenha normas sancionatórias e obriga a limitar a noção de ordem jurídica mediante estipulações adicionais” (Alchourrón e Bulygin, 1996, p. 133).
Nessa citação vislumbra-se uma pista para o equacionamento do problema: é necessário encontrar estipulações adicionais. Contudo, como é evidente, qualquer estipulação adicional representa uma restrição à heterogeneidade dos enunciados.
Consequentemente, o desafio reside em dissolver a tensão entre a formulação de estipulações adicionais (para limitar os problemas de adequação presentes nas definições de “sistema jurídico” e “sistema normativo” dadas por Alchourrón e Bulygin) e, ao mesmo tempo, preservar a ideia de um conjunto heterogêneo de enunciados que respeite as críticas formuladas por Hart e Von Wright.
Para isso, torna-se imprescindível estabelecer com clareza, previamente, o significado da crítica de Hart ao reducionismo, a proposta de Alchourrón e Bulygin nesse contexto, a diferença entre suas posições e a de Hart, a concepção de Von Wright sobre as normas, bem como a crítica uruguaia e suas tentativas de solução. Com base em todas essas considerações, será possível chegar a uma conclusão que defina não apenas quais características podem ser adicionadas ao conceito de enunciado em um sistema jurídico, determinando quais tipos de sistemas jurídicos podem ser reconstruídos a partir dessa estipulação adicional, mas, sobretudo, qual dessas possibilidades melhores se ajusta à parcela da realidade que se pretende descrever como fenômeno jurídico.
A crítica de Hart ao reducionismo
A partir da obra de Hart (1961), sustenta-se que uma teoria jurídica que tenha a sanção coercitiva como essência da juridicidade se insere em uma concepção monista ou reducionista, pois compreende todas as normas jurídicas sob um mesmo esquema uniforme. Um exemplo clássico desse reducionismo é a teoria de Kelsen, para quem a sanção imposta pela força em caso de resistência representa a característica essencial da norma jurídica. Assim, o direito seria concebido como o conjunto de normas que envolvem sanções coercitivas (Kelsen 1960, p. 46–62). Entretanto, esse também é o caso da teoria de Austin, cuja concepção de “ordens respaldadas por ameaças” aproxima-se da visão de Kelsen.
O problema central desse modelo é sua incapacidade de explicar satisfatoriamente diversos enunciados que integram o sistema jurídico, mas que não contêm sanções coercitivas. Kelsen, ao tentar responder às críticas de Hart, apresentou duas propostas. A primeira é a teoria da norma incompleta (Kelsen 1949, p. 170), segundo a qual os enunciados não coercitivos devem ser entendidos como fragmentos de normas, devendo ser integrados a outros enunciados para formar uma norma completa. Todavia, essa proposta encontra dificuldades em estabelecer critérios de identidade normativa, uma vez que se torna extremamente complexo determinar se um determinado enunciado, isoladamente ou em conjunto, constitui uma norma completa. Como observam Alchourrón e Bulygin (1971, p. 88), tal concepção acaba por distorcer o próprio conceito de norma, algo evidenciado pela incapacidade de Kelsen em apresentar exemplos concretos de normas completas.
A segunda proposta é a teoria da norma não independente (Kelsen 1960, p. 67–70), que diferencia normas com coação “consideradas independentes” das demais, denominadas não independentes. Kelsen fornece cinco exemplos deste último tipo: (i) normas que prescrevem condutas sem impor sanções, (ii) normas permissivas, (iii) normas que autorizam a criação de outras normas, (iv) normas derogatórias e (v) normas interpretativas. Para o autor, tais normas possuem uma conexão essencial com aquelas que estabelecem sanções coercitivas, embora essa conexão não resolva o problema de se definir o que é uma norma jurídica de maneira abrangente.
Sobre isso tudo, Hart entende que a postura de Kelsen, ao considerar normas como fragmentos, leva à conclusão de que não existe uma norma que proíba o homicídio em si, mas apenas uma norma que instrui os funcionários a aplicar determinadas sanções sob certas condições a quem comete homicídio (Hart 1961, p. 45). Nesse sentido, normas que conferem poderes (como as normas de competência) integram o antecedente de uma regra dirigida aos funcionários, aos quais se impõe a aplicação de sanções caso determinadas condições estejam presentes.
Além disso, Hart observa que versões distintas da teoria reducionista tentam reduzir a diversidade das regras jurídicas a uma única forma, considerando a sanção como elemento central. No entanto, tais tentativas fracassam ao se demonstrar que é perfeitamente possível conceber o direito sem sanções (Hart 1961, p. 48).
Com base nisso, Hart dedica três capítulos de sua obra O conceito de direito para mostrar as limitações do modelo das ordens coercitivas. Ele destaca que esse modelo, presente nas teorias de Kelsen e Austin, presume três características que não se aplicam universalmente às normas jurídicas.
Em primeiro lugar, nem todas as normas impõem obrigações sob ameaça de sanção. Há normas que não se encaixam nesse padrão, como aquelas que conferem poderes para realizar casamentos, firmar contratos ou testar, bem como normas que outorgam competências a funcionários em vez de lhes impor ordens. Em segundo lugar, o modelo assume que todas as normas são legisladas, o que não corresponde à realidade, visto que muitas normas jurídicas surgem do costume e não resultam de atos conscientes de criação normativa. Em terceiro lugar, esse modelo também pressupõe que todas as normas sancionadas refletem a vontade do legislador, o que não se confirma, pois muitas vezes nem os próprios legisladores têm plena consciência das ordens que promulgaram.
Essas três objeções evidenciam que o modelo de “ordem respaldada por ameaça”, embora simples e uniforme, revela deficiências significativas. Por essa razão, Hart conclui:
Para defender a teoria de tais objeções se têm adotado uma variedade de recursos. A ideia originalmente simples de um mal ameaçado ou ‘sanção’ foi estendida até incluir a nulidade de uma transação jurídica; a noção de regra jurídica foi restringida até excluir as regras que conferem potestades, como se elas fossem meros fragmentos de normas; dentro da pessoa natural simples do legislador cujas sanções são auto-obrigatórias se descobriram duas pessoas; a noção de ordem foi estendida a partir de uma expressão verbal até chegar a uma expressão ‘tácita’ da vontade, que consiste na não interferência com ordens dadas por subordinados. A despeito do caráter engenhoso desses recursos, o modelo das ordens respaldadas por ameaças mais obscurece do que esclarece; o esforço para reduzir a variedade de normas jurídicas a essa única forma simples termina por impor sobre elas uma uniformidade espúria (Hart 1961, p. 61).
Desse modo, Hart apresenta uma crítica contundente ao modelo reducionista de Kelsen, defendendo a necessidade de um modelo alternativo, não reducionista, que seja capaz de compreender a heterogeneidade normativa dos sistemas jurídicos. A existência de normas que conferem faculdades, mesmo sem sanções coercitivas, comprova que tais normas constituem um elemento central do direito.
O não-reducionismo de Alchourrón e Bulygin
Sob a crítica de Hart, predominante na década de 1960 e ainda vigente na atualidade, por volta do ano 1971 Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin consideram, em primeiro lugar, que é acertada a afirmação do professor de Oxford e, em segundo lugar, que a crise dessas teorias monistas parece indicar que a juridicidade não é uma propriedade que possa ser encontrada nas normas jurídicas consideradas isoladamente.
Com relação à primeira observação, Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin apontaram que o direito:
(…) deve dar conta do fato da diversidade de enunciados que costumam figurar nos códigos, leis, decretos, constituições e demais textos legais. Um exame superficial mostra que nem todos os enunciados que figuram nesses textos são normativos (no sentido de que expressem normas de conduta que prescrevam ações ou atividades), e os que o são nem sempre estabelecem sanções. De fato, apenas alguns artigos do Código Penal (em sua parte especial) se ajustam diretamente ao esquema kelseniano. Todo ou quase todo o restante das disposições jurídicas não responde prima facie ao esquema canônico e deve ser objeto de uma reconstrução. (Alchourrón e Eugenio Bulygin, 1971, p. 95-96).
Observe-se que Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin não apenas sustentam que nos textos legais opera-se um exame superficial e esse exame revela enunciados que não contêm coação, mas ainda, afirmam a existência de enunciados que diretamente não são normativos porque não regulam condutas. Contudo, não estamos afirmando que Hart considere os demais enunciados do direito como não normativos.
Além disso, e ainda que essa divergência seja analisada mais adiante, o outro ponto positivo a destacar é que, para Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin, a consequência da afirmação de Hart é que a estratégia de buscar uma qualidade comum a todas as normas jurídicas para então definir “sistema jurídico” como um conjunto de normas com tais características estaria fadada ao fracasso.
Diante desse estado de coisas, os autores de Sistema de Normas expressam que:
(…) nosso propósito é proceder exatamente ao contrário: dar uma definição de sistema jurídico e, em seguida, caracterizar como jurídicas as normas que fazem parte desse sistema. Em outras palavras, em vez de definir o todo (sistema) em função de suas partes (normas), definiremos as partes em função do todo. (Alchourrón e Eugenio Bulygin, 1971, p. 94).
Com base nisso, pode-se estabelecer que “norma jurídica” é todo enunciado que faz parte de um sistema, evitando a exigência de que cada um desses enunciados contenha uma sanção coercitiva.
Esse fato representa um deslocamento na forma de analisar a disciplina, passando-se a pensar em uma teoria explicativa (com o rigor formal necessário a uma ciência) que expresse o fenômeno sem recorrer, como postulado axiomático, ao conteúdo coercitivo dos enunciados, o qual tantas dificuldades apresentava.
É por isso que na obra Sistema de Normas adquire uma relevância tão singular na jusfilosofia contemporânea. Isso porque se a Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen produziu uma ruptura na história da filosofia jurídica ao formular a famosa “pirâmide” dependente da norma fundamental, o texto de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin provocou uma inflexão de igual magnitude ao tentar definir os conceitos elementares da disciplina a partir da noção de sistema.
Dito isso e realizada essa operação, ou seja, distinguido o conceito de sistema como um conjunto de enunciados entre os quais ao menos um deles tem, em suas consequências, uma sanção coercitiva, Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin se encontram em condições de tentar identificar quais elementos pertencem a esse conjunto. No entanto, não o fazem de maneira extensiva, pois, justamente, caracterizar todos e cada um dos enunciados que pertencem ao sistema pareceria restringir a heterogeneidade dos tipos de enunciados que podem integrá-lo, já que qualquer enunciado pode pertencer ao sistema jurídico. Apesar disso, e embora por razões de amplitude não aprofundem a análise, é relevante destacar quais são os enunciados que, a título exemplificativo, participam dos sistemas jurídicos segundo Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin.
Como apontado na introdução do artigo, para Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin, nos sistemas jurídicos existem, além dos enunciados que correlacionam casos com soluções (e que constituem o típico exemplo de normas), enunciados que correlacionam casos com casos (que são postulados de significação ou definições) e enunciados que correlacionam soluções como soluções (que podem ser normas propriamente ditas ou postulados de significação). Observe-se que, ao afirmarem isso, sustentam uma estrutura “ponte” da norma, pois, se adotassem uma concepção insular, teriam que afirmar que existem soluções que correlacionam casos com ações.
Os enunciados que correlacionam casos com soluções são os exemplos típicos de normas de conduta. Exemplo disso é “quem matar alguém será preso”, que relaciona o caso “matar alguém” com a solução “obrigatoriedade de prisão”. Os enunciados que relacionam casos com casos são distintos. Por exemplo, o enunciado que diz que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida” (exemplo disso é o art. 2º do Código Civil brasileiro) define o conceito de início da personalidade civil em termos da propriedade de nascer com vida. Em outras palavras, correlaciona o caso caracterizado pela propriedade de que a personalidade civil se inicie com o caso caracterizado pela propriedade de ter nascido com vida.
É importante destacar que, na terminologia de Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin, esse enunciado não é uma norma de conduta, pois não estabelece nenhuma obrigação, proibição ou permissão. Ou seja, não correlaciona um caso com uma solução e, portanto, não tem consequências normativas nem pode ser qualificado deonticamente, o que está de acordo com a tese de que um exame superficial demonstra não apenas a existência de enunciados sem coação, mas também de enunciados não normativos.
Com base nessa análise, Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin distinguiram dois grupos de enunciados: normas propriamente ditas e postulados de significação2. Isso parece estar em consonância com a posição de Ross em 1968 (três anos antes da publicação de Sistemas Normativos), que Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin expõem no artigo, Sobre as normas de competência, no qual se distingue entre regras regulativas e constitutivas. Diz especificamente Bulygin: “a distinção entre regras regulativas e constitutivas tornou-se popular devido às obras de J. R. Searle. Tenho a impressão de que Ross aponta na mesma direção de Searle” (Alchourrón e Bulygin, 1991, p. 492).
Contudo, deve-se notar que, logo após essa afirmação, os coautores de Sistemas Normativos incorporam a classificação de Von Wright em Norma e Ação que identifica não dois, mas três tipos de enunciados: a) prescrições ou regulações, b) regras determinativas e c) normas técnicas ou diretivas (Von Wright, 1963a).
De acordo com essa caracterização, chamam as regras a) de normas de conduta, porque obrigam, proíbem ou permitem; as regras b) de regras conceituais, porque definem conceitos, são constitutivas no sentido dado por Ross e Searle, e definem modelos de conduta que não existem fora dessas regras; e as regras c) são denominadas de forma similar ao professor finlandês, como normas técnicas ou diretivas, que se referem aos meios que devem ser utilizados para alcançar um fim.
Concluem então que essas regras são excludentes entre si e, omitindo-se de se pronunciar sobre as regras técnicas, afirmam que a diferença entre sanção e nulidade demonstrada por Hart evidencia “pelo menos” dois tipos de regras — conceituais e de conduta (Alchourrón e Bulygin, 1991, p. 492 e seguintes).
Como se vê, as “regras conceituais” em “Sobre as normas de competência” são as que em Sistemas Normativos, são denominados “postulados de significação”, enquanto as “regras de conduta” são denominadas “normas propriamente ditas”.
A questão que permanece em aberto, portanto, é se Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin consideram que apenas as regras de conduta e as conceituais integram os sistemas jurídicos (como afirmam em Sistemas Normativos e em grande parte do texto Sobre as normas de competência) ou se consideram também as regras técnicas como parte do direito.
Essa questão parece resolvida quando, em outro artigo denominado Definições e normas (Alchourrón e Bulygin, 1991, p. 439) afirmam que as regras técnicas são inferidas das definições como regras em primeira pessoa, pois dessa forma as regras técnicas não pertencem ao sistema jurídico.
Deve-se notar o paradoxo dessa afirmação quando, conforme se tem assinalado, o objetivo dos autores é ser o mais amplo possível na determinação de quais enunciados pertencem ao sistema. Isso pode ser claramente observado no texto Definições e normas, onde os próprios Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin expressam:
Mais do que refutar a tese normativista, interessava-nos mostrar que as definições são distintas das normas e que o direito é um conjunto de coisas muito mais heterogêneo do que se costuma acreditar (Alchourrón e Bulygin, 1991, p. 463).
Temos, então, um objetivo: dar conta da diversidade de enunciados que compõem os sistemas jurídicos. Uma classificação feita a título exemplificativo entre postulados de significação e normas de conduta, similar à de Ross, três anos antes de Sistemas Normativos, mas também uma proposta que implica a incorporação das normas conforme Von Wright. Contudo, para Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin, as regras técnicas não fazem parte do direito, a não ser como derivações realizadas pelos súditos a partir das regras conceituais.
A questão central é que, para Carlos Alchourrón e Eugenio Bulygin, o direito é um conjunto qualquer de enunciados, entre os quais ao menos um é uma regra de conduta (prescritiva) que contém uma sanção coercitiva. No sistema jurídico, encontramos dois tipos principais de normas (prescritivas e determinativas), sendo as regras técnicas derivações que, na forma de normas autônomas, os súditos realizam a partir das regras determinativas do sistema.
Sobre a diferença entre o não-reducionismo de Hart e o não-reducionismo de Alchourrón e Bulygin
Neste ponto, é crucial destacar as diferenças, que embora sutis, são relevantes, entre o não-reducionismo de Hart e o não-reducionismo de Alchourrón e Bulygin, pois essa distinção nos permite defender a posição de Hart sobre a necessidade de considerar enunciados heterogêneos no direito, sem precisar afirmar simultaneamente, como fazem Alchourrón e Bulygin, que tais enunciados podem ser de qualquer tipo, ou seja, sem ter que sustentar que existem enunciados não normativos nos sistemas jurídicos.
Existem duas diferenças centrais que estão interligadas argumentativamente. a) Em primeiro lugar, enquanto para Hart o reducionismo (que Alchourrón e Bulygin chamam de monismo em sua teoria de normas jurídicas) está relacionado ao desejo de uniformidade da teoria jurídica na “ordem respaldada por ameaça” (Austin)3 ou na norma que contém uma coação (Kelsen)4, para Alchourrón e Bulygin, o reducionismo está vinculado ao desejo de uniformidade baseado na prescrição. b) Em segundo lugar, essa afirmação leva Hart a reconhecer a existência de “outras normas” além da “ordem respaldada por ameaça”, como a “norma que confere poderes”, enquanto para Alchourrón e Bulygin, isso implica a existência de “enunciados não normativos” no sistema jurídico.
Cabe ressaltar que é importante observar essa distinção não apenas para mostrar as diferenças entre os pensamentos de Hart e de Alchourrón e Bulygin, mas também porque Alchourrón e Bulygin utilizam os argumentos de Hart para sustentar ambas as proposições, ou seja, que o reducionismo é baseado na prescrição e que as normas que conferem poderes não constituem normas de conduta, embora essas conclusões não decorram diretamente das afirmações do professor de Oxford.
No que diz respeito às diferenças sobre o que Hart e Alchourrón e Bulygin entendem por “reducionismo”, é de suma importância ter em mente que, para Alchourrón e Bulygin, os filósofos reducionistas consideram que as normas de competência são genuínas normas de conduta, ou seja, normas que prescrevem que algo deve ou pode ser (ou ser feito). Existem duas abordagens para essas teorias: uma que entende que essas normas obrigam (exemplo, conforme Kelsen, Ross (1958) e Cornides) e outra que sustenta que essas normas permitem como nas teorias de Von Wright, Kanger e Lindahl.5
Em contrapartida, os “não-reducionistas” defendem que as normas de competência não prescrevem que algo deva ou possa ser feito, ou seja, afirmam que as normas de competência não são normas de conduta. Nesse sentido, eles afirmam: “Entre outros autores que consideram que as normas de competência não são redutíveis a outro tipo de normas figuram Hart (1961) e Ross (1968). Ambos disseram coisas importantes sobre a natureza dessas normas, mas tenho a impressão de que não extraíram todas as conclusões de suas afirmações acerca das diferenças entre normas de conduta e normas de competência” (Alchourrón e Bulygin, 1991, p. 490).
No entanto, é importante notar que, para o professor de Oxford, a questão central do direito não é se a norma de competência é ou não uma prescrição, mas sim: “Em que diferem, então, o direito e a obrigação jurídica das ordens respaldadas por sanções, e como estão relacionados a elas?” (Hart, 1961, p. 8). O objetivo de Hart é encontrar, dentro do direito, outras obrigações, no sentido de outras regras, outras formas de regular a conduta que não sejam ordens respaldadas por ameaças e não, por outro lado, procurar outros enunciados que não sejam normas de conduta.
Como é evidente que prescrição é um tipo de prescrição com caráter coercitivo, o reducionismo que Alchourrón e Bulygin criticam é sutilmente diferente do que Hart critica. O professor de Oxford critica um modelo que expressa um desejo de uniformidade que (embora “agradável e nada desonroso”) pode distorcer o direito “quando a ordem respaldada por ameaça é o traço unificador”; Alchourrón e Bulygin, por sua vez, criticam o desejo de uniformidade “quando a prescrição, enquanto norma de conduta, é o traço unificador”.
Para Hart, o modelo das ordens respaldadas por ameaças mais obscurece do que esclarece; buscar uniformidade neste ponto é um erro, pois a característica distintiva do direito reside na fusão de diferentes tipos de regras. No entanto, Alchourrón e Bulygin consideram que sua crítica ao reducionismo possui o mesmo teor que a de Hart.
Observemos um parágrafo em que essa confusão se torna evidente. Os coautores de Sistemas normativos afirmam:
Hart insiste que as normas de competência (ou regras que conferem poderes, segundo sua terminologia) não podem ser reduzidas ao esquema geral de ordens respaldadas por ameaças (Austin), ou normas que impõem sanções (Kelsen), ou, de forma mais geral, a normas que impõem deveres. Afirma Hart que ‘as regras que conferem poderes são concebidas, referidas e usadas na vida social de modo diferente das regras que impõem deveres, e são valorizadas por razões diferentes. Que outras provas poderiam ser oferecidas para demonstrar sua diferença de caráter?’ (Bulygin; Mendonça, 2005, p. 59).
O que importa dizer, mais uma vez é desatacar o ponto de que uma coisa é afirmar que as normas de competência não podem ser reduzidas a normas que impõem coações, e outra bem diferente é sustentar que as normas de competência não podem ser reduzidas, “de forma mais geral”, a normas que impõem deveres.
Hart começa o parágrafo citado por Alchourrón e Bulygin da seguinte forma: “A forma menos extrema da teoria deixaria intactas as normas jurídicas penais e todas as outras que impõem deveres, pois estas já se conformam ao modelo simples das ordens coercitivas” (Hart, 1961, p. 51).
Como se vê, para Hart, as normas que impõem deveres se conformam ao modelo simples das ordens coercitivas, mas não, “de forma mais geral”, a normas que impõem deveres no sentido que Alchourrón e Bulygin atribuem a esse termo (normas prescritivas). A atribuição que Alchourrón e Bulygin fazem a Hart é sutilmente equivocada e se baseia no fato de que Hart, ao criticar o modelo das ordens respaldadas por ameaças, critica lateralmente o prescritivismo. No entanto, Hart não está se referindo ao gênero (prescrição), mas à espécie (prescrição coercitiva)6.
Como já foi apontado, ao ler a obra de Hart, especificamente o livro O Conceito de Direito ou o próprio capítulo de onde Alchourrón e Bulygin extraem a citação (Deformação como preço da uniformidade), percebe-se que Hart está se referindo à ordem respaldada por ameaça (prescrições coercitivas), e não a deveres como meras prescrições7.
Seguindo essa distinção, para Alchourrón e Bulygin, uma teoria é reducionista apenas se aceita a uniformidade do direito sob a regra prescritiva. Contudo, é importante lembrar que, para Alchourrón e Bulygin, as prescrições são as únicas normas em sentido estrito, pois são as únicas que buscam motivar condutas.
Isso nos leva diretamente à segunda diferença: a questão de que Alchourrón e Bulygin concluem que uma postura não-reducionista implica reconhecer a existência de enunciados não normativos nos sistemas jurídicos. Hart, que adota uma postura não-reducionista (embora de forma sutilmente distinta), não necessariamente endossa tal posição. Senão vejamos:
Para os coautores de Sistemas Normativos, as teorias “não-reducionistas” consistem não apenas na rejeição de qualquer concepção que implique atribuir um caráter prescritivo a todas as normas, mas também na recusa de aceitar qualquer concepção que atribua às normas de competência (ou a qualquer tipo de enunciado não prescritivo) o caráter de norma, enquanto enunciados que regulam as condutas humanas.
Eles deixam isso claro no seguinte trecho, ao afirmar: “Um exame superficial mostra que nem todos os enunciados que figuram em tais textos são normativos (no sentido de expressarem normas de conduta que prescrevem ações ou atividades), e os que o são nem sempre estabelecem sanções”. Isso também se aplica quando analisam as normas de competência. Especificamente, afirmam: “não há acordo entre os filósofos do direito sobre a natureza das normas de competência. Alguns deles consideram que essas normas são genuínas normas de conduta, isto é, normas que prescrevem que algo deve ou pode ser (ou ser feito)” (Alchourrón e Bulygin, 1991, p. 487); portanto, aqueles que consideram que as normas de competência não prescrevem, sustentam que essas não são normas de conduta.
O cerne da questão reside na diferença de entendimento entre Hart e Alchourrón e Bulygin em relação às normas de competência. Para Hart, as normas de competência são aquelas que conferem a indivíduos ou grupos o poder de criar outras normas jurídicas, ou seja, essas normas não se referem diretamente à conduta, mas são fundamentais para garantir o funcionamento do sistema jurídico. 8
Assim, Hart argumenta que essas normas, embora não sejam de conduta, são indispensáveis para a estrutura jurídica, pois permitem a criação de novas regras jurídicas que integram o sistema, sem perder sua distinção em relação às normas que regulam a conduta humana. A perspectiva de Hart vai além da simples análise das normas de competência, pois ele as vê como parte essencial do direito, e não como um apêndice ou uma classe inferior de normas.9
Por outro lado, dos autores de Sistemas Normativos, ao adotar uma visão diferente, consideram que as normas de competência não são, propriamente, normas de conduta, mas sim enunciados não normativos. Para Alchourrón e Bulygin, essas normas não regulam diretamente a ação humana, mas apenas especificam as condições sob as quais outras normas podem ser criadas ou modificadas. Assim, para eles, essas normas não têm a carga prescritiva típica das normas de conduta.
A principal crítica de Alchourrón e Bulygin ao reducionismo reside no fato de que ele tende a homogeneizar o direito, tratando normas com naturezas distintas (como as normas de competência e as normas de conduta) da mesma forma. Isso, na visão de Alchourrón e Bulygin, é um erro, pois não reconhece as distinções fundamentais entre os diferentes tipos de enunciados que compõem o sistema jurídico.
Ademais, a crítica dos autores citados, ao reducionismo se baseia na ideia de que a tentativa de uniformizar o direito, tratando normas tão distintas de maneira semelhante, não faz justiça à diversidade interna do sistema jurídico. Ao contrário, Hart defende um não-reducionismo que reconhece a complexidade do direito, um sistema composto por diferentes tipos de normas que devem ser analisadas em sua especificidade. Para Hart, as normas de competência são necessárias para o funcionamento do sistema jurídico, mas devem ser tratadas de forma distinta das normas de conduta, que têm uma natureza prescritiva10. Em outras palavras, Hart critica a tentativa de tratar todas as normas do direito como se fossem da mesma natureza, defendendo que o direito é, por natureza, diversificado e complexo.
Essas diferenças entre as abordagens de Hart e Alchourrón e Bulygin, embora sutis, são essenciais para entender a natureza de suas teorias jurídicas. Com efeito, Hart propõe uma teoria inclusiva do direito, que leva em consideração a diversidade de normas e sua interdependência, enquanto Alchourrón e Bulygin, com sua visão mais restritiva, focam na segmentação das normas, enfatizando a distinção entre normas de conduta e enunciados não normativos, como as normas de competência. Essas visões contrastantes revelam os diferentes caminhos que cada autor segue para entender a estrutura normativa do direito.
A classificação heterogênea de Von Wright
Dando continuidade à linha de raciocínio de Hart, encontramos a proposta de von Wright, mas com uma abordagem distinta. Enquanto Hart investiga os sistemas jurídicos, von Wright concentra-se na análise de sistemas normativos. A diferença fundamental entre os dois reside no foco da análise: Hart busca compreender o que há de normativo para além de um tipo específico de prescrição (a sanção coercitiva) enquanto o professor finlandês explora o que há de normativo para além da prescrição como um todo.
Dessa forma, o ponto central da teoria de von Wright é demonstrar os problemas do reducionismo prescritivista, o que está em sintonia com a postura adotada por Alchourrón e Bulygin. No entanto, von Wright não afirma, como Alchourrón e Bulygin, que os outros enunciados normativos que não são prescritivos não devem ser considerados normas de conduta. Em vez disso, ele demonstra que as categorias descrição-prescrição são insuficientes para distinguir o mundo normativo do mundo não normativo, pois certos tipos de normas não se enquadram nem como descrições nem como prescrições (Von Wright, 1963a, p. 22).
A distinção entre prescrição e descrição se refere a dois usos ou funções da linguagem: o uso descritivo e o uso prescritivo. Enquanto as proposições correspondem ao uso descritivo, as normas com sanção coercitiva exemplificam claramente o uso prescritivo. A função dos enunciados descritivos é informar, enquanto os enunciados prescritivos têm a finalidade de orientar a conduta. Um exemplo claro dessa distinção é a diferença entre as afirmações “Ligue o celular!” e “O celular está ligado!”. A primeira não visa descrever o mundo de forma verdadeira ou falsa, mas sim induzir uma mudança na realidade, enquanto a segunda proposição simplesmente descreve um fato que pode ser verdadeiro ou falso.
Da mesma forma, uma norma que proíbe atravessar o semáforo vermelho não implica que seja verdadeiro que as pessoas que a seguem realmente não atravessem o semáforo vermelho; ela não descreve a situação de fato, mas expressa o que deve ser feito em determinadas circunstâncias. No entanto, afirmar que a prescrição não pode ser considerada verdadeira ou falsa não significa que a proposição seja desprovida de sentido. Pelo contrário, a compreendemos como um enunciado que nos transmite um conteúdo, que não pode ser julgado como verdadeiro ou falso em termos de fatos, mas que nos orienta sobre a modalidade social com que determinada ação é vista por um sistema normativo.
Todavia, disso tudo, cumpre salientar que para von Wright o termo “norma” abrange um campo semântico mais amplo do que a dicotomia prescritivo/descritivo sugere. Ou seja, existem diversas coisas que são chamadas de normas, incluindo normas prescritivas, que surgem de um uso diretivo da linguagem, mas também normas resultantes de outros usos do linguajar. Esse ponto de discussão pode ser denominado o problema das “fronteiras do fenômeno normativo” (. González Lagier, 1994, p. 242).
Como von Wright explica:
O campo semântico de ‘norma’ não é apenas heterogêneo, mas também tem fronteiras vagas, o que tornaria provavelmente fútil tentar criar uma teoria geral das normas que englobasse todo esse campo. A teoria das normas deve, portanto, ter um alcance de certa forma restrito. (Von Wright, 1963a, p. 21).
No desenvolvimento de sua teoria11, ele distingue três tipos básicos de normas (normas prescritivas, determinativas e técnicas) e três tipos mistos (normas ideais, morais e costumes), e aponta que o uso do termo “lei” quando se refere às “leis da natureza” deve ser excluído da discussão sobre normas, pois essas “leis” pertencem a um campo completamente descritivo, sem conexão com o fenômeno normativo (von Wright, 1963a, p. 22 e 23).
Portanto, o uso prescritivo não é suficiente para englobar todo o vasto campo do fenômeno normativo, sendo que um limite para esse fenômeno é o uso totalmente descritivo. A partir dessa abordagem, von Wright analisa a normatividade de maneira mais ampla, reconhecendo que as normas determinativas não são nem descritivas nem prescritivas, e que outras normas, como as técnicas, são o resultado de uma combinação entre os elementos descritivos e prescritivos.
Além disso, von Wright afirma que as três categorias principais de normas resultam de diferentes combinações de atos de fala, que podem ser classificados como declarativos, diretivos e diretivo-instrutivos, cada um com sua própria função de ajuste entre o mundo e as palavras. No entanto, é importante destacar que, embora o professor finlandês se concentre nas normas prescritivas e sua relação com a ação, ele também reconhece que as normas podem ser expressões de outros tipos de ação, como aquelas que determinam o que deve, pode ou não ser feito. Essas normas têm o objetivo de influenciar a conduta, e não de simplesmente informar, como ocorre nas descrições.
Em resumo, von Wright não limita as normas de conduta às normas prescritivas, mas aponta para uma variedade de enunciados normativos, todos com a função de regular a ação de maneira diferente das descrições. Essas distinções são essenciais para entender a complexidade do fenômeno normativo, que não pode ser reduzido a um simples jogo entre prescrição e descrição.
A Crítica dos autores uruguaios
Os autores uruguaios Carlos Caffera e Ricardo Mariño argumentaram que a concepção estática do sistema jurídico proposta por Alchourrón e Bulygin, ao definir a norma jurídica com base na sua pertença a uma classe que contém, simultaneamente, alguma outra propriedade, leva a situações paradoxais independentemente do conteúdo da norma. Isso ocorre porque sempre existe uma classe universal que engloba todos os elementos do “universo do discurso”.
Essa classe universal é composta por todos os enunciados possíveis. Assim, entre esses enunciados, encontram-se aqueles que prescrevem uma sanção coercitiva. Como resultado, essa classe universal pode ser considerada um sistema jurídico, e todos os enunciados pertencentes a ela devem ser tratados como normas jurídicas. Dessa forma, chegamos à conclusão paradoxal de que todo enunciado seria, por definição, uma norma jurídica.
Neste cenário, as expressões “enunciado” e “norma jurídica” se tornam equivalentes. Portanto, afirmar que um enunciado é uma norma jurídica não é mais do que afirmar que um enunciado é, de fato, um enunciado, o que configura uma tautologia.
Outra maneira de apresentar a mesma objeção é observando que qualquer enunciado poderia ser classificado como norma jurídica, uma vez que, para qualquer enunciado dado, seria possível construir uma classe que o contenha e que, simultaneamente, inclua um enunciado prescritivo com sanção coercitiva.
Uma das regras fundamentais para a definição de conceitos é que a definição não deve ser circular. No entanto, os autores uruguaios destacam que a definição estática de “sistema jurídico” de Alchourrón e Bulygin é, de fato, circular.
Essas críticas podem ser estendidas à definição de “sistema normativo”, pois já foi mencionado que um sistema normativo é definido como um conjunto de enunciados cujas consequências incluem enunciados que correlacionam casos com soluções. Portanto, como a classe universal de enunciados também contém enunciados que correlacionam casos com soluções, ela pode ser considerada como um sistema normativo, o que implica que qualquer enunciado pode ser classificado como norma.12
De acordo com a filosofia da ciência, no contexto da linguagem natural, os substantivos são conceitos classificatórios. Assim, os conceitos de “sistema normativo”, “sistema jurídico”, “norma” ou “norma jurídica”, expressos por substantivos, correspondem a conceitos classificatórios. Por exemplo, o conceito de “sistema normativo” ou “sistema jurídico” serve para distinguir esses sistemas de outros tipos dentro da classe dos sistemas, assim como o conceito de “norma” ou “norma jurídica” serve para distinguir enunciados jurídicos ou normativos daqueles que não são, dentro da classe dos enunciados.
Para que essa divisão seja útil, é necessário que ela cumpra critérios de adequação. Isso significa que o conceito, além de ser formalmente correto, deve ser materialmente adequado (Moreso, 1995, p. 364).
Em relação aos requisitos que uma classificação formalmente correta deve atender, os conceitos precisam ser mutuamente delimitados com precisão, e cada objeto dentro do domínio deve ser classificado em uma das classes determinadas pelos conceitos.
A crítica uruguaia evidencia problemas formais de correção na definição de “sistema jurídico”, pois, com essa definição, não é possível distinguir entre enunciados e enunciados normativos, o que impede a delimitação da classe dos enunciados normativos da classe dos enunciados em geral.
No que diz respeito à adequação material, à medida que nos afastamos das classes naturais, encontramos conceitos que dependem cada vez mais da nossa interpretação do mundo e das estruturas que criamos para compreendê-lo (classes artificiais). Isso não significa que possamos ignorar a realidade, pois todo conceito, em última análise, remete à realidade. No entanto, à medida que avançamos para conceitos que dependem mais das nossas interpretações e convenções, as condições de adequação material estabelecidas pela realidade tendem a enfraquecer. É o caso dos substantivos “sistema normativo”, “sistema jurídico” e “norma jurídica”, que não dependem de uma classe natural, como, por exemplo, “seres humanos” ou “frutas”, mas sim de uma estrutura construída para compreender melhor o mundo, como “sistemas” ou “normas”.
Dessa forma, a definição proposta por Alchourrón e Bulygin nos permite afirmar que até mesmo a classe universal de enunciados pode ser considerada um sistema jurídico ou normativo, e qualquer enunciado pode ser classificado como uma norma jurídica.
A crítica uruguaia aponta a falta de capacidade preditiva e explicativa dessa concepção, pois ela não permite formular as distinções classificatórias necessárias. Isso configura um problema de adequação material, uma vez que, embora os critérios materiais de adequação dos conceitos científicos devessem respeitar os fins de nossa observação da realidade, o “sistema jurídico” definido dessa maneira nos leva a situações em que a classe universal de enunciados se distancia enormemente da convenção sobre o que realmente constitui um sistema jurídico. Da mesma forma, a definição de “norma jurídica” acaba permitindo que até mesmo enunciados “exclamativos” ou “descritivos” possam ser considerados pertencentes ao direito.
Tentando resolver o problema
Giovanni Ratti acredita que o obstáculo levantado pela crítica uruguaia pode ser superado com um conjunto plausível de critérios que permitam identificar todos os enunciados, e apenas os enunciados, que integram os sistemas jurídicos. Se essa proposta for viável, um sistema jurídico seria composto por um conjunto de enunciados que atendem a esses critérios, entre os quais deve haver pelo menos uma norma coercitiva.
Na verdade, Caffera e Mariño não perceberam que, na caracterização de Sistemas Normativos (normas secundárias), existem critérios de reconhecimento que permitem distinguir entre os objetos que pertencem ao domínio jurídico e os que ficam fora dele. Estes critérios são os seguintes:
a) Todos os enunciados pertencentes ao conjunto C (ex.: uma constituição) são válidos. b) Se existir um enunciado válido que autorize uma autoridade normativa ‘x’ a formular o enunciado ‘p’, e ‘x’ tenha formulado ‘p’, então ‘p’ é válido. c) Todos os enunciados que são consequência (ou seja, inferidos) de enunciados válidos também são válidos. (Alchourrón e Bulygin, 1971, p. 113).
Esses critérios constituem um conjunto de teoria jurídica que os juristas usam para identificar as normas que compõem determinado sistema jurídico, e isso é claramente expresso em Sistemas Normativos, quando os autores estabelecem, de maneira simplificada, critérios de admissão de normas a um sistema jurídico.
Rodríguez, por sua vez, corretamente observa que o simples fato de os juristas utilizarem certos critérios para identificar as normas que compõem um sistema jurídico não é diretamente relevante para o nosso problema, pois o importante é construir esses critérios de forma conceitual. No entanto, mesmo considerando os critérios de identificação como uma ferramenta teórica para reconstruir as concepções de fontes usadas pelos juristas, Rodríguez demonstra que esses critérios não incorporam uma regra de fechamento. Além disso, a aceitação do critério de legalidade e dedutibilidade não acrescenta nada à definição original; o único efeito desses critérios é uma identificação extensiva de algumas normas (Rodríguez, 2011, p. 148-151).
Dessa forma, a solução proposta por Ratti não se consolidou, e a tentativa de solução de Rodríguez também não pode ser considerada aceitável. No que se refere à caracterização da norma jurídica, a proposta é que esta possa ser entendida de maneira simples como qualquer enunciado pertencente a algum sistema de um ordenamento jurídico. Entretanto, um “sistema jurídico” não deve ser definido meramente como um conjunto de enunciados contendo pelo menos uma norma coativa.
A definição do conceito de “sistema jurídico” deve ser ajustada a um gênero próximo que o delimite. Nesse contexto, ao considerar que o gênero próximo do “sistema jurídico” é o “ordenamento jurídico” (quando visto dinamicamente), evita-se a circularidade, resolvendo o problema identificado pelos autores uruguaios (Rodriguez, 2011, p. 156).
Rodríguez, ao reformular o conceito de ordenamento jurídico, o define como:
(…) uma sequência de conjuntos de enunciados, onde cada conjunto da sequência é o produto de um ato normativo de promulgação ou revogação em relação ao conjunto anterior, cumprido conforme as diretrizes de legalidade estabelecidas pelas normas do conjunto antecedente. Esse ordenamento se origina em um conjunto inicial de enunciados identificados de maneira extensiva, contendo ao menos uma norma que confere competência para a criação de atos de modificação normativa, e onde ao menos um dos conjuntos da sequência contém uma norma coativa”. (Rodriguez, 2011, p. 156).
No entanto, como o próprio autor admite, essa definição não resolve completamente o problema central, pois submete uma definição estática de “sistema jurídico” a uma definição dinâmica de “ordenamento jurídico”. Por esse motivo, nem a solução de Ratti, nem a de Rodríguez, são viáveis. A primeira falha por não oferecer critérios abstratos, enquanto a segunda envolve a dificuldade de expressar uma concepção estática do direito. (Caffera e Mariño, 2011, p. 123).
A crítica central que os autores uruguaios fazem ao conceito de “sistema jurídico” está relacionada ao fato de que, sob uma definição tão ampla, qualquer enunciado poderia ser considerado uma norma jurídica. A proposta de Rodríguez não resolve esse problema, pois ainda permite a inclusão de enunciados representativos ou exclamativos dentro do conceito de sistema jurídico, o que leva a uma falta de adequação material na definição, uma vez que não se pode distinguir claramente entre enunciados normativos e não normativos13.
Por sua vez, a teoria proposta por Alchourrón e Bulygin implica que, ao definir o “direito” começando pelo “sistema jurídico” como um todo, os enunciados normativos do sistema são caracterizados de maneira que permite uma abordagem dedutiva. Isso se distancia do método tradicional, que busca definir o direito a partir das normas jurídicas individuais. Como apontam os autores, “o procedimento habitual é definir o sistema jurídico a partir da norma jurídica, ou seja, primeiro define-se a norma jurídica, caracterizando sua essência ou natureza, e depois define-se o sistema jurídico como o conjunto das normas jurídicas”. (Alchourrón e Bulygin, 1971, p. 94). Essa abordagem, como exemplificado em Kelsen, coloca a norma jurídica no centro da definição do sistema jurídico.
Entretanto, é importante notar que o método de Alchourrón e Bulygin não está necessariamente vinculado a uma postura não reductivista, como a de Kelsen, pois a abordagem dedutiva pode ser compatível com diferentes concepções sobre a estrutura do direito. Assim, enquanto a teoria dos dois autores citados, pode seguir um modelo monista, também é possível adotar uma postura mais heterogênea, em que as normas não são todas uniformes e podem ser classificadas de maneira diversa dentro do sistema jurídico.
A proposta de Alchourrón e Bulygin leva à necessidade de distinguir entre diferentes tipos de enunciados dentro de um sistema jurídico, o que implica na criação de categorias mais complexas, como enunciados com coação, enunciados prescritivos, normas de competência, entre outras. No entanto, a crítica uruguaia levanta o problema de que uma definição excessivamente ampla de “sistema jurídico” leva à inclusão de enunciados que não são, de fato, normas jurídicas, como enunciados representativos ou exclamativos, o que acaba por diluir a concepção do direito como um sistema normativo coerente.
Por fim, a dificuldade de classificar todos os enunciados possíveis é destacada, sendo que John Searle oferece uma classificação dos atos ilocucionários que originam diferentes tipos de enunciados normativos. Segundo Searle, esses atos incluem direções, declarações, atos comissivos, representações e expressões, cada um resultando em um tipo distinto de enunciado normativo. A inclusão de enunciados representativos e expressivos, no entanto, pode ser problemática, pois, como argumenta Von Wright, enunciados como as leis da natureza ou expressões emocionais não devem ser considerados normas jurídicas.
Em resumo, a crítica uruguaia destaca que a definição de “sistema jurídico” proposta por Alchourrón e Bulygin, ao abranger todos os tipos de enunciados, leva a uma concepção inadequada do direito, que não distingue de maneira clara entre enunciados normativos e não normativos, gerando uma falta de adequação material na definição de “sistema jurídico”.
Com isso, estamos em condições de diferenciar uma série de divisões relevantes entre a proposição de enunciados com coação feita por Kelsen e Austin, como paradigma do direito, e o simples enunciado sugerido por Alchourrón e Bulygin como elemento central da definição de um sistema heterogêneo. Podemos classificar desde o enunciado mais restritivo até o mais amplo, entre um sistema composto por enunciados com coação, enunciados prescritivos, enunciados normativos ou “simples” enunciados. Com essa classificação, é possível formular quatro modelos de sistemas jurídicos, dependendo de onde se estabelece a linha divisória entre “sistema” e “entorno”, conforme detalhado a seguir.
1- Um sistema jurídico é um conjunto de declarações que possuem caráter coercitivo.
2- Um sistema jurídico é um conjunto de declarações prescritivas, onde pelo menos uma delas envolve uma coação.
3- Um sistema jurídico é um conjunto de declarações normativas, sendo que pelo menos uma delas envolve uma coação.
4- Um sistema jurídico é um conjunto de declarações, onde pelo menos uma delas é uma declaração normativa que envolve uma coação.
Além do método proposto para S1, Hart demonstrou que reconstruir um sistema jurídico com essas características constitui uma representação incompleta das “normas” que representam o fenômeno. No entanto, a crítica de Caffera e Marino evidenciou que uma reconstrução como a de S4 expressa uma representação que possui os problemas recentemente mencionados. Entretanto, tanto S2 quanto S3, ao incorporar a crítica de Hart por representarem mais do que os enunciados coercitivos, eliminam o problema apontado pelos autores uruguaios no aspecto em que representam menos do que “simples” enunciados.
Dissemos que o objetivo é dissolver a tensão entre estabelecer estipulações adicionais para limitar os problemas de adequação na definição de sistema e continuar representando um conjunto heterogêneo de enunciados; sem dúvida, S3 tem maior capacidade do que S2 para responder à questão. Tanto S2 quanto S3 podem adotar as definições de Tarski de sistema dedutivo em geral, ou seja, como um conjunto de enunciados que contém todas as suas consequências, e de sistema axiomático em particular, isto é, como a totalidade das consequências de um conjunto finito de enunciados. Ambos os sistemas incorporam todos os aspectos da renovação metodológica de Alchourrón e Bulygin (a incorporação de uma linguagem formal e o ênfase no conceito de sistema), mas apenas S3 aceita as regras técnicas e determinativas, objetivo que é alcançado com a interpretação de que as normas que conferem faculdades são regras determinativas (mas, no entanto, sustenta que são, assim como as regras técnicas, normas de conduta). Também cumpre a proposta de Von Wright sobre a diversidade de enunciados normativos fora da prescrição.
A classe universal de enunciados que S3 representa, isto é, o conjunto universal de enunciados normativos (como normas de conduta), reconstrói um sistema normativo, e isso é absolutamente coerente com o que queremos representar quando falamos de “sistema jurídico” conforme a crítica de Hart ao reducionismo, pois precisamos dar conta de enunciados prescritivos, alguns com coação, mas também de enunciados determinativos, como as normas de competência. No entanto, a classe universal de enunciados que pertence a S2 reconstrói sistemas normativos exclusivamente prescritivos, tornando a definição de “sistema jurídico” mais restritiva, o que impede a consideração de outros enunciados normativos. Neste aspecto, é claramente conveniente rejeitar uma reconstrução S2 e apoiar a proposta expressa em S3.
É importante notar que, uma vez que as normas conceituais e técnicas deixam de ser consideradas enunciados não normativos, como fazem Alchourrón e Bulygin, S3 reproduz fielmente tanto a classificação de normas para sistemas jurídicos em Sistemas Normativos (normas propriamente ditas e postulados de significação) quanto a classificação de Bulygin de Von Wright conforme a obra Norma e Ação (regras conceituais, normas de conduta e regras técnicas).
Com essas considerações, é possível compreender que, embora a classe universal de enunciados normativos também seja um sistema jurídico e, portanto, todo enunciado normativo possa ser reconstruído como um enunciado jurídico, isso não causa nenhum inconveniente. Pelo contrário, contribui para alcançar o objetivo de Hart, que marca a necessidade de reconstruir um sistema que explique, em nossa interpretação, todos os enunciados normativos existentes fora da prescrição com coação nos sistemas jurídicos.
Isso permite, finalmente, apoiar o critério de adequação proposto por Hart na crítica ao reducionismo, aceitando outros enunciados heterogêneos que também observamos no fenômeno (como as regras técnicas ou determinativas). Quero dizer com isso que o critério de adequação material que buscamos na definição de “sistema jurídico” é perfeitamente cumprido pela proposta de um sistema como S3, pois permite dar conta de enunciados heterogêneos sem admitir enunciados representativos ou exclamativos que claramente nada têm a ver com um sistema que visa influenciar a conduta futura dos súditos por seus elementos.
Ao mesmo tempo, deve-se considerar que S3 implica não apenas modificar o conceito de “sistema jurídico”, mas também o de “sistema normativo”, que passa a significar um conjunto de enunciados entre os quais existem consequências normativas, para um conjunto de enunciados normativos no qual cada um deles tem consequências normativas, o que elimina a crítica uruguaia, pois claramente a classe universal de enunciados não é mais um sistema normativo.
Paralelamente, tínhamos o problema de que qualquer enunciado poderia ser considerado norma jurídica ou norma se fosse reconstruído em um sistema que tenha pelo menos um enunciado com coação ou um enunciado normativo, respectivamente. A questão relativa aos enunciados estritamente normativos é resolvida, pois, conforme um sistema S3, uma norma é sempre um enunciado que pertence a um sistema normativo, mas, ao mesmo tempo, cada um desses enunciados contém consequências normativas.
O problema parece persistir em relação às normas jurídicas, porque qualquer enunciado normativo que pertença a um sistema jurídico pode ser considerado uma norma jurídica, mesmo que não contenha uma sanção coercitiva. No final de seu trabalho, os próprios Caffera e Mariño expressam que uma forma de superação poderia ser avançar na aceitação da diversidade de enunciados que compõem os sistemas jurídicos. Essa opção – afirmam – implicaria aceitar a definição de “norma jurídica” como todo enunciado que prescreve uma sanção coercitiva e, por outro lado, manter que os sistemas jurídicos podem conter enunciados que não são normas jurídicas, evitando expandir a definição de “norma jurídica” a tal ponto que isso nos obrigasse a incorrer nos paradoxos mencionados. Eles dizem especificamente: “Isso não impediria, por outro lado, continuar considerando como sistema jurídico todo sistema que contenha pelo menos um enunciado prescritivo de sanções” (Caffera e Mariño, 2011, p. 127).
Dessa forma, podemos classificar dentro do sistema jurídico a categoria de “norma jurídica” como todo enunciado que prescreve uma sanção coercitiva e, ao mesmo tempo, sustentar a existência de outros enunciados que não são normas jurídicas, mas são enunciados normativos, por serem normativos em geral. O sistema jurídico conteria normas jurídicas (“por direito próprio”) e normas que não são jurídicas no sentido estrito, mas que consideramos como tal por pertencem ao sistema jurídico (“por adoção”).
Se for assim, sob S3, também não surgiriam os problemas de adequação formal, pois a definição de norma ficaria subordinada à de sistema e, portanto, um enunciado normativo/não jurídico é um enunciado que pertence a um sistema normativo que não é jurídico, e um enunciado jurídico é um enunciado que pertence a um sistema jurídico, seja este jurídico por direito próprio ou por adoção.
Assim, S3 apresenta as seguintes vantagens em relação à definição de sistema de Alchourrón e Bulygin:
a) Ao caracterizar o sistema normativo como um todo composto por partes, afirmando que os enunciados que o constituem são enunciados normativos (distinguíveis conforme os três tipos básicos de Von Wright e seus tipos mistos), acolhe um conjunto heterogêneo de enunciados sem cair no excesso apontado pela crítica uruguaia;
b) Se o sistema normativo é um conjunto de normas, não há espaço para enunciados completamente descritivos, o que parece razoável, já que do direito não se espera uma ciência descritiva como a química ou a física, mas sim um sistema que tem como objetivo influenciar a conduta futura dos súbditos, o que também se aplica a outros enunciados, como os exclamativos, que em nenhum caso fazem parte da ciência do direito.
Por outro lado, a nova definição mantém, assim como a de Alchourrón e Bulygin, as seguintes virtudes:
c) Nada é dito sobre o número de enunciados que formam a base do sistema;
d) Tampouco se prejulga sobre o status ontológico das normas, sendo que a única afirmação é que os enunciados normativos resultam de um uso da linguagem normativa, ou seja, de um uso da linguagem que tem como uma de suas condições uma direção de ajuste, que implica influenciar a conduta humana.
3 METODOLOGIA
A presente pesquisa é de natureza teórico-conceitual, caracterizando-se como uma investigação de cunho qualitativo e exploratório. Seu objetivo principal foi analisar criticamente as diferentes concepções sobre o conceito de sistema jurídico, com ênfase nas abordagens de autores clássicos e contemporâneos, como Kelsen, Austin, Hart, Von Wright, Caffera e Mariño, visando propor uma concepção mais abrangente e flexível do sistema jurídico, a partir da formulação teórica denominada S3.
O procedimento metodológico adotado baseou-se em pesquisa bibliográfica, com levantamento, seleção e análise crítica de obras fundamentais da filosofia e teoria do direito. As fontes primárias consistiram em livros e artigos acadêmicos que tratam especificamente da teoria dos sistemas jurídicos, da normatividade jurídica e das diferentes classificações de enunciados normativos. A seleção do material foi realizada a partir da relevância das obras para a compreensão da problemática proposta, priorizando autores cuja contribuição é amplamente reconhecida na literatura jurídica.
O universo da pesquisa abrangeu o campo teórico da filosofia do direito, delimitando-se aos debates contemporâneos acerca da estrutura, da coerência e da pluralidade do sistema jurídico. A amostragem, de natureza intencional e não probabilística, incluiu os principais teóricos que oferecem distintas perspectivas sobre a constituição do sistema jurídico, escolhidos em função de sua relevância para o tema investigado.
Os instrumentos de coleta de dados consistiram na leitura crítica e analítica dos textos selecionados, com a extração de conceitos-chave, argumentos centrais e críticas relevantes às diferentes concepções de sistema jurídico. A análise dos dados foi realizada por meio de procedimento hermenêutico, buscando interpretar, comparar e avaliar criticamente as abordagens teóricas estudadas, a fim de construir um quadro analítico que permitisse fundamentar a proposta final.
O percurso metodológico seguiu as seguintes etapas: (i) delimitação do problema de pesquisa; (ii) levantamento e seleção das fontes bibliográficas; (iii) análise crítica das concepções teóricas sobre o sistema jurídico; (iv) identificação das vantagens e limitações de cada abordagem; (v) construção de uma proposta de concepção plural do sistema jurídico (S3), que busca integrar normas coercitivas e não coercitivas de maneira coerente.
Por fim, os resultados da pesquisa foram sistematizados de forma a evidenciar que a compreensão do sistema jurídico como um conjunto flexível e multifacetado de normas e enunciados permite uma visão mais realista e abrangente do fenômeno jurídico, respeitando sua complexidade e sua função de regulação da conduta social.
4 CONCLUSÃO/CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa aqui proposta, ao longo de seu desenvolvimento, procurou traçar um caminho rigoroso que envolvesse a análise das diferentes abordagens teóricas sobre o conceito de sistema jurídico, com ênfase nas críticas e contribuições de autores como Kelsen, Austin, Hart, Von Wright, Caffera e Mariño. Desde o início, a preocupação foi entender o que constitui, de fato, um sistema jurídico, e como diferentes tipos de enunciados normativos interagem e se organizam dentro de uma estrutura jurídica mais ampla.
A introdução apresentou o problema central da pesquisa: como o direito, com sua complexidade e pluralidade de normas, pode ser considerado um sistema coerente, capaz de regular a conduta humana de maneira eficaz, sem reduzir-se a um conjunto estrito de normas coercitivas?
Essa problemática foi crucial para o desenvolvimento da pesquisa, pois levou à análise das diversas visões que entendem o sistema jurídico como um conjunto de normas mais restrito e coercitivo (como na visão de Kelsen e Austin), versus aquelas que propõem uma concepção mais abrangente e plural, como a de Hart e Von Wright. A discussão também envolveu as críticas de Caffera e Mariño, que apontam a necessidade de incluir enunciados não coercitivos dentro da definição de sistema jurídico, sem, contudo, diluir a ideia de que o direito tem a função de influir na conduta humana de maneira eficaz.
O caminho traçado pela pesquisa também se dedicou a identificar as limitações e as vantagens das diferentes abordagens. Enquanto as visões mais restritivas oferecem uma compreensão mais clara e concreta do sistema jurídico, elas falham em englobar toda a complexidade do direito, especialmente ao desconsiderar normas que não envolvem sanções diretas, mas que são igualmente essenciais para a estrutura jurídica, como as normas de competência e as regras técnicas. Por outro lado, abordagens mais inclusivas, como a de Hart e Von Wright, proporcionam uma visão mais completa do direito, mas também enfrentam o desafio de manter a coesão do sistema jurídico sem perder a clareza conceitual.
A partir dessa reflexão, a pesquisa foi conduzida no sentido de avaliar se é possível, e até mesmo desejável, integrar uma gama mais ampla de enunciados normativos dentro da definição de sistema jurídico, sem comprometer a coerência e a eficácia do direito. Nesse sentido, a definição proposta por S3, que abarca diferentes tipos de enunciados, inclusive não coercitivos, parece ser uma solução plausível, pois permite uma abordagem mais plural e flexível do direito, sem abrir mão de sua função normativa e de regulação da conduta humana. A partir de S3, o direito não seria mais visto apenas como um conjunto homogêneo de regras coercitivas, mas como um sistema multifacetado que inclui normas de conduta, normas de competência, regras técnicas e até enunciados que não envolvem diretamente sanções.
A problemática central da pesquisa, que se referia à dificuldade de definir um sistema jurídico que fosse ao mesmo tempo inclusivo e coerente, foi fundamental para orientar a análise das diferentes teorias e propostas. Ao longo do estudo, ficou claro que a concepção de S3, ao integrar diferentes tipos de normas, proporciona uma visão mais abrangente e realista do direito, refletindo sua verdadeira complexidade. Isso não significa, contudo, que se deve abandonar a ideia de coerência do sistema jurídico. Pelo contrário, é possível afirmar que a diversidade de enunciados dentro do direito, quando bem articulada, contribui para uma maior robustez e eficácia do sistema como um todo.
A conclusão que se pode tirar dessa pesquisa é que o conceito de sistema jurídico, para ser efetivamente capaz de regular a conduta humana de maneira eficiente, deve ser entendido de forma flexível e dinâmica, permitindo a inclusão de diferentes tipos de enunciados normativos, sem comprometer sua função essencial de normatização e regulação social. Dessa forma, a proposta de um sistema jurídico mais plural, como o sugerido por S3, surge como uma possível solução para os desafios apresentados pelas abordagens mais rígidas. Ela oferece uma síntese entre a diversidade de normas e a necessidade de coesão, sem perder de vista a função reguladora e transformadora do direito.
Essa conclusão, ao integrar diferentes perspectivas teóricas e críticas, aponta para uma visão mais abrangente e holística do direito, que pode enriquecer a compreensão do papel do sistema jurídico na sociedade. Em última análise, a pesquisa contribui para uma reinterpretação da normatividade jurídica, ampliando o conceito de sistema jurídico para além das normas coercitivas, e abrindo caminho para um entendimento mais complexo e multifacetado do direito. Isso reflete, filosoficamente, uma compreensão do direito como um fenômeno social que não pode ser reduzido a um conjunto simplificado de normas punitivas, mas que deve ser reconhecido em toda a sua complexidade e capacidade de influir na conduta humana de forma mais ampla e significativa.
2 É relevante, a esse respeito, a análise dos tipos normativos realizada por Atienza e Ruiz Manero em Las piezas del derecho (Atienza e Ruiz Manero, 1996), que criticaram essa classificação. Em particular, Ruiz Manero resumiu da seguinte forma: “Alchourrón e Bulygin sustentaram que todos os enunciados jurídicos relevantes podem ser reduzidos a duas categorias: regras de conduta ou normas regulativas, por um lado, e definições ou regras conceituais, por outro. Pois bem: em relação às normas regulativas, nossas críticas residiam basicamente em destacar que o modelo de correlação entre caso (entendido como conjunto finito de propriedades) e solução normativa (entendida como modelização deôntica de uma ação) dá conta apenas de um subtipo de normas regulativas (o que chamávamos de regras de ação) e deixa de lado outros tipos de normas regulativas que se afastam do modelo proposto, seja pelo lado do antecedente (…), seja pelo lado do consequente (…). Em relação às definições ou regras conceituais, nossa crítica apontava que, sob este rótulo, na obra de Alchourrón e Bulygin encontram-se assimilados três tipos de enunciados jurídicos que apresentam características suficientemente diferenciadas para exigir, ou pelo menos aconselhar, um tratamento separado: as definições, as regras que conferem poderes e o que chamávamos de regras puramente constitutivas” (Ruiz Manero, 2007, p. 75-76).
3 Na verdade, boa parte do livro se ocupa das deficiências de um modelo simples de sistema jurídico, construído segundo as linhas da teoria imperativista de Austin. (Hart, 1961, p. xii)
4 Quando Austin se limita a sugerir as maneiras de responder às críticas, nós as desenvolvemos (em parte segundo as linhas seguidas por teóricos posteriores, como Kelsen) para garantir que a doutrina que consideraremos e criticaremos seja enunciada em sua forma mais forte. (Hart, 1961, p. 23).
5 Análoga à tese reducionista, pois considera que todas as normas são prescrições deonticamente caracterizadas que regulam a conduta humana, Alchourrón e Bulygin reconstroem a tese normativista para estudar o caráter das definições em Definiciones y normas. Eles o fazem da seguinte forma: “As definições do legislador obrigam todos os que utilizam e aplicam as normas jurídicas a usarem essas definições, ou seja, a entender as expressões correspondentes no sentido que o legislador lhes atribui, para usá-las com esse sentido. Em consequência, trata-se de uma classe especial de normas que só diferem de outras normas no fato de que a conduta prescrita é uma conduta verbal ou linguística, mas ainda assim uma conduta. Se por ‘norma’ se entende uma expressão que ordena, proíbe ou permite uma conduta, então as definições legais são normas” (Alchourrón; Bulygin, 1991, p. 440).
6 COSTA, V. C. R. da S.; MENDES E SILVA, G. A. O que Hart ainda tem a nos oferecer? O pensamento jurídico hartiano entre a crítica da moralidade e a construção de um novo positivismo. Ministério Público do Estado de Minas Gerais, [S. l.], n. 28, 2017. Disponível em: https://dejure.mpmg.mp.br/dejure/article/view/174. Acesso em: 27 abr. 2025.
do Estado de Minas Gerais, [S. l.], n. 28, 2017. Disponível em: https://dejure.mpmg.mp.br/dejure/article/view/174. Acesso em: 27 abr. 2025.
do Estado de Minas Gerais, [S. l.], n. 28, 2017. Disponível em:
7 Hart afirma que “é patente que nem todas as normas ordenam fazer ou não fazer algo”. (Hart, 1961, p. 33), ou seja, nem todas as normas obrigam a fazer ou proíbem fazer.
8 Esta posição é a que se induz do texto Sobre las normas de competencia (Alchourrón; Bulygin, 1991, p. 485-498) em conjunto com Definiciones y normas (Alchourrón; Bulygin, 1991, p. 439-464).
9 Hart expressa: “As regras jurídicas que definem a maneira de realizar contratos, celebrar casamentos ou outorgar testamentos válidos, não exigem que as pessoas ajam de modos determinados, que queiram ou não. Tais normas não impõem deveres ou obrigações. Em vez disso, elas oferecem aos indivíduos facilidades para realizar seus desejos, conferindo-lhes poderes para criar, por meio de certos procedimentos específicos e sob determinadas condições, estruturas de faculdades e deveres dentro do quadro coercitivo do direito. O poder assim conferido aos indivíduos para dar forma a suas relações jurídicas com os outros, por meio de contratos, testamentos, casamentos, etc., é uma das grandes contribuições do direito à vida social; e é uma característica que fica obscurecida se se representar todo o direito como uma questão de ordens respaldadas por ameaças”. (Hart, 1961, p. 35).
10 Por exemplo, nesta citação, quando Hart afirma que: “(…) outras regras, como aquelas que prescrevem o procedimento, as formalidades e as condições para a celebração de casamentos, outorga de testamentos ou realização de contratos, indicam o que as pessoas devem fazer para levar a cabo seus desejos”. (Hart, 1961, p. 11).
11 Apenas para guiar o leitor, conduzindo para o foco desta pesquisa, vale destacar que em termos específicos, von Wright denomina “importantes” as normas que, nesta pesquisa, são denominadas “básicas” e as chamadas “mixtas” correspondem às que são denominadas “menores”.
12 Essa crítica pode ser ilustrada de maneira prática observando situações do cotidiano jurídico. Imagine-se, por exemplo, um processo judicial em que qualquer afirmação feita (seja por advogados, testemunhas ou mesmo partes) fosse automaticamente considerada uma norma jurídica apenas por integrar o universo de enunciados do direito. Assim, expressões como “o réu não se lembra dos fatos” ou “a vítima relatou estar assustada” passariam a ter o mesmo status de normas jurídicas como “é proibido matar”. A consequência seria que simples descrições de fatos ou declarações subjetivas se confundiriam com verdadeiras prescrições jurídicas, tornando indistinguíveis os enunciados que impõem obrigações daqueles que apenas narram acontecimentos. Nesse cenário, a expressão “norma jurídica” se tornaria redundante, pois equivaleria simplesmente a dizer que qualquer enunciado é, por si só, uma norma, esvaziando o conceito jurídico de sua função classificatória e normativa.
13 Uma outra interpretação crítica proposta por José Juan Moreso ilustra essa questão com um exemplo histórico: ele descreve a situação de Luis Jiménez de Asúa, um importante professor de Direito Penal, que, após se exilar na Argentina, foi eleito Presidente das Cortes da II República Espanhola. No contexto da II República, ainda que o sistema jurídico estivesse fora de vigor, era possível considerar a continuidade de tal sistema como uma ficção jurídica, sendo este um “sistema jurídico possível” (Moreso, 2015, p. 119). No entanto, Moreso argumenta que a crítica uruguaia, que defende a necessidade de distinguir entre enunciados normativos e outros tipos de enunciados, não é resolvida por esse exemplo, pois ele não aborda adequadamente a questão da “adequação material” da definição de “sistema jurídico”, pois continua a englobar outros tipos de enunciados como normas jurídicas.
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1 Possui graduação em Direito pela Faculdade da Serra Gaúcha (2013). Advogado inscrito na Ordem dos Advogados sob o n 99012-RS. Especialista em Direito de Família e Sucessões e Mestre no Programa de Pós -Graduação em Filosofia na Universidade de Caxias do Sul, Mestre