O MITO COMO MANIFESTAÇÃO CULTURAL NA AMAZÔNIA: O MITO DO GUARANÁ E O MITO DO ANSELMO EM MAUÉS-AM

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202505081653


Carla Raiane de Souza Rangel
Ernesto Renan Melo de Freitas Pinto


Resumo

Este trabalho tem como objetivo refletir sobre a importância dos mitos na construção da identidade cultural do povo de Maués, com destaque para o mito do guaraná e a lenda de Anselmo. A partir da concepção de cultura como um processo de transmissão de saberes entre gerações, analisa-se como essas narrativas atuam na preservação da memória coletiva e das tradições saterê. O mito do guaraná, por exemplo, não apenas explica a origem de uma planta sagrada, mas também reforça a relação entre espiritualidade, natureza e economia local, sendo celebrado anualmente em festividade popular. A lenda de Anselmo, figura encantada que se transforma em Cobra Grande, revela como diferentes influências culturais — indígenas, africanas e cristãs — se fundem no imaginário amazônico. Ao longo do trabalho, destaca-se o papel dos relatos orais, festas e rituais como práticas fundamentais na valorização e continuidade da cultura mauesense.

Palavras-chave: cultura; mito do guaraná; Maués; identidade; oralidade.

Abstract

This paper aims to reflect on the importance of myths in the construction of the cultural identity of the people of Maués, with emphasis on the myth of the guaraná and the legend of Anselmo. Based on the concept of culture as a process of knowledge transmission across generations, the study analyzes how these narratives help preserve collective memory and Sateré traditions. The guaraná myth, for instance, not only explains the origin of a sacred plant, but also reinforces the connection between spirituality, nature, and the local economy, being celebrated annually in a traditional festival. The legend of Anselmo, a mythical figure who transforms into the Cobra Grande, shows how different cultural influences — Indigenous, African, and Christian — are blended in the Amazonian imaginary. Throughout the work, the role of oral storytelling, festivities, and rituals is highlighted as essential to the appreciation and continuity of Maués’ cultural heritage.

Keywords: culture; guaraná myth; Maués; identity; orality.

Introdução

A Amazônia, desde o período da colonização, foi palco do encontro e da mescla de diferentes povos e culturas, o que contribuiu de maneira significativa para a formação da nossa identidade cultural. A região abriga uma diversidade de concepções religiosas, que desempenham papel crucial na construção do pensamento religioso do homem amazônico. O catolicismo, o protestantismo, as religiões de matriz africana, além das crenças indígenas, foram determinantes para a configuração religiosa e cultural dos povos que habitam a Amazônia.

Um dos aspectos mais notáveis dessa mistura de elementos culturais é a correlação de crenças que coexistem sem, necessariamente, se contradizerem. É comum observarmos que, na região, muitos habitantes se identificam como católicos, mas, ao mesmo tempo, abraçam e perpetuam as histórias míticas locais. Enquanto nas grandes cidades essas narrativas podem ser tratadas como superstições, no interior, onde as histórias se desenrolam, elas ganham credibilidade e uma maior adesão, sendo vivenciadas de maneira mais profunda e pessoal.

Neste contexto, Maués, uma cidade situada nas margens do rio Maués-Açu, a 267 km de Manaus, capital do Amazonas, é o foco deste estudo. O município está próximo à Terra Indígena Andirá-Marau, habitada pelo povo Saterê-Mawé. Em Maués, duas narrativas míticas se destacam entre os habitantes: 1) o mito do guaraná, que explica a origem da planta que, atualmente, é fundamental para a economia local e é recontado anualmente durante a Festa do Guaraná; e 2) a lenda de Anselmo, um pescador que desapareceu misteriosamente após sair para pescar, deixando apenas sua canoa e roupas. A versão mais difundida entre os moradores é que Anselmo foi encantado e levado a viver no fundo do rio Maués-Açu. Em outra variação dessa lenda, Anselmo é descrito como um curandeiro que dominava as cobras.

Este artigo tem como objetivo analisar o mito e a lenda como manifestações culturais significativas para o povo mauesense. Serão exploradas as duas narrativas mencionadas – o mito do guaraná e a lenda de Anselmo – a partir de conceitos de cultura propostos por Edward Said e Roque de Barros Laraia, e de mitos, conforme Mírcea Eliade. Além disso, serão utilizados textos de Eduardo Galvão e Raymundo Maués para abordar a figura do “encantado”, e o mito do guaraná e a lenda de Anselmo, com base na obra de Nunes Pereira. A pesquisa será complementada por imagens da Festa do Guaraná e a História do Anselmo.

A metodologia adotada será qualitativa, com uma abordagem bibliográfica, utilizando artigos e textos teóricos que abordam os conceitos discutidos. Além disso, será realizada uma pesquisa etnográfica, com foco na escuta e no registro dos comportamentos culturais e do pensamento mítico e religioso da população de Maués, que culminarão na escrita da narrativa do Anselmo

A cultura como ponto de partida

Cada povo possui uma forma distinta de viver, com seus próprios hábitos, crenças, maneiras de pensar e concepções sobre o mundo. Roque de Barros Laraia inicia seu livro Cultura: um conceito antropológico (1986) com uma citação de Confúcio: “A natureza do homem é a mesma; são seus hábitos que o mantêm separado” (LARAIA, 1986, p. 10). O autor afirma que, desde a Antiguidade, diversas tentativas foram feitas para explicar as diferenças de comportamento que distinguem os povos. Algumas dessas tentativas, no entanto, revelaram-se extremamente problemáticas. Cada povo possui seu próprio estatuto cultural, responsável pela formação de seus costumes e pela maneira como se organiza em sociedade. Os estudiosos da Antiguidade, como filósofos e historiadores, procuraram analisar o comportamento das sociedades com base em duas constantes: a biológica e a geográfica

O determinismo biológico talvez tenha sido o pior deles. Baseada na ideia de que as diferenças biológicas eram determinantes para distinguir as raças, essa teoria serviu para disseminar preconceitos e inferiorizar outras raças. Um exemplo apontado por Laraia no livro é o fato de, segundo o determinismo biológico, poderem chamar os indígenas de preguiçosos, tratando isso como um aspecto cultural. No entanto, a leitura antropológica apresenta um outro viés, no qual não há correlação entre genética e comportamento cultural. 

O comportamento dos indivíduos depende de um aprendizado, de um processo que chamamos de endoculturação. Um menino e uma menina agem de forma diferente não em função de seus hormônios, mas em decorrência de uma educação diferenciada (LARAIA, 1986, p. 20).

O determinismo geográfico formula que as diferenças do ambiente físico seriam determinantes para condicionar a diversidade cultural. No entanto, essa ideia foi refutada, pois os antropólogos afirmavam que era possível existir uma diversidade cultural dentro de uma mesma região. Assim, na perspectiva apresentada por Laraia, nem o determinismo biológico nem o geográfico poderiam formular o conceito de cultura.

A cultura está muito mais relacionada, nesse sentido, a um complexo de símbolos presentes dentro de uma sociedade. Seria o conhecimento, a crença, a arte, a moral, as leis, os costumes ou qualquer hábito ou crença adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade (LARAIA, 1986, p. 25).

Podemos pensar, a partir dessa breve exposição de conceitos, que a cultura é o conjunto de mecanismos que dá sentido a uma sociedade. O homem, quando inserido em uma sociedade e socializado nela, provavelmente herdará o conhecimento que aquela sociedade vem construindo desde gerações mais antigas. A cultura é um processo acumulativo, herdado de gerações anteriores. Esse processo é conhecido dentro dos estudos antropológicos como endoculturação. Ao nascer dentro de uma determinada cultura e permanecer nela, o indivíduo passará o resto de sua vida aprendendo os processos relativos a ela. A sua forma de enxergar e conhecer o mundo estará associada a ela.

Algumas culturas são construídas através do encontro de elementos. Quando mais de um povo se junta e traz consigo uma bagagem cultural, é possível que esses elementos se encontrem, dando sentido a uma mesma cultura. É o caso do povo brasileiro, que é caracterizado pelo encontro do europeu, dos povos originários e dos africanos escravizados.

Os elementos culturais que se entrelaçaram no passado são importantes na experiência que temos no presente. Para Edward Said (2011), não há império algum que não tenha sido afetado pelos impérios do passado, principalmente dentro do nosso continente, que foi marcado pela chegada dos europeus, no episódio da colonização.

Com o imperialismo, os lugares mais remotos e distantes foram alcançados. Com a expansão do imperialismo europeu nos séculos XIX e XX, diversos continentes sofreram influências. Said afirma que esse domínio, realizado pela França e pela Grã-Bretanha, possibilitou um mundo inteiramente global, no sentido das comunicações eletrônicas. Além disso, territórios foram colonizados e controlados. No entanto, mesmo que o colonialismo não exista mais, sua influência cultural continua até hoje nos impérios

Podemos nos concentrar na ideia de que não somente territórios foram controlados, mas também as representações e imagens. Há uma certa disputa quando povos com ideias diferentes se encontram, e essas culturas acabam adotando os elementos estrangeiros, em vez de excluí-los. “Longe de serem algo unitário, monolítico ou autônomo, as culturas, na verdade, adotam elementos “estrangeiros”, alteridades e diferenças do que os excluem conscientemente” (SAID, 2011, p. 36).

Com isso, temos duas noções importantes: 1) os elementos culturais são formados através de um aprendizado, que vem sendo estabelecido desde gerações mais antigas até a nossa: a endoculturação; 2) o imperialismo contribuiu, de certa maneira, para que houvesse uma formação cultural, no sentido de entrelaçamento cultural.

O mito e os encantados da Amazônia

O mito é considerado uma narrativa sagrada que conta a história da criação do mundo. No entanto, também serve para relatar como os deuses criaram determinados elementos e, até mesmo, para ensinar certos valores aos mais jovens. Nesse sentido, possui também um caráter formativo.

Quando conversamos com pessoas que não têm conhecimento dessa definição, elas acabam atribuindo ao mito a ideia de mentira, fábula ou até mesmo ilusão. Porém, para as sociedades que ainda preservam o mito como uma explicação da realidade, essas histórias têm uma atribuição religiosa — religiosa no sentido de que narram todos os acontecimentos que deram origem à realidade, além de relatarem seus heróis, deuses e como eles interferiram diretamente no mundo, fazendo com que tudo seja do jeito que é.

O mito é compreendido como uma narrativa sagrada que relata a criação do mundo. Segundo Eliade (2010, p. 11), “o mito conta uma história sagrada; relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso das origens”. Além disso, o mito também cumpre a função de explicar como os deuses criaram determinados elementos da realidade e de transmitir valores às gerações mais jovens. Nesse sentido, possui igualmente um caráter formativo.

Entre aqueles que desconhecem essa definição, é comum que o mito seja associado à mentira, à fábula ou à ilusão. Contudo, para as sociedades que ainda preservam o mito como forma legítima de explicação da realidade, essas narrativas assumem um caráter religioso — entendido aqui como a capacidade de relatar os acontecimentos fundadores que deram origem ao mundo, bem como descrever heróis, deuses e suas intervenções diretas na configuração da realidade tal como é conhecida.

O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros termos, o mito narra como graças às façanhas dos entes sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente. (…) Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do “sobrenatural”) no mundo. (ELIADE, 2010, p.11)

Nessa acepção, o mito narra os atos dos entes sobrenaturais, mas também descreve sua intervenção no mundo no passado, transformando-o no que ele é hoje. Além disso, o mito possui um caráter sagrado, sendo, portanto, considerado verdadeiro. Não se limita à criação do mundo, mas também pode relatar como algo que não existia foi criado.

Ademais, quando o indivíduo de uma sociedade conhece o seu mito, a sua história de criação, ele também tem a possibilidade de retornar ao tempo primordial, aproximando-se dos entes sobrenaturais. Isso ocorre por meio dos ritos. Os ritos são uma recriação, uma retomada do tempo, um retorno à origem de algo, para que o indivíduo possa conhecer e participar daquele momento. Nesse sentido, o tempo mítico se distingue do tempo profano.

Um século antes, no século XVII, o catolicismo foi introduzido na Amazônia. Durante o período do século XVII ao século XIX, a Igreja Católica atuou de forma isolada, com pouca interferência protestante. Oliveira (2012, p. 24) afirma que, durante a colonização, os missionários adentravam as florestas com o objetivo de evangelizar os povos ribeirinhos. A maioria das comunidades localizava-se nas margens dos rios, e os missionários utilizavam os indígenas para guiá-los por igarapés e igapós, em canoas, a fim de levar a palavra de Deus.

Embora a população amazônica seja, na sua maioria, católica e siga as tradições do catolicismo, ela preserva, em sua visão de mundo, as crenças indígenas. Um exemplo apontado por Liliane é a relação entre Tupã, um ente sobrenatural tupi, e o Deus cristão, enquanto Jurupari foi associado ao diabo. Isso significa que, apesar das modificações provocadas pelo trabalho missionário, as crenças originais não desapareceram. Elas continuam vivas, “adaptando-se ao novo contexto social a partir de novas configurações religiosas” (OLIVEIRA, 2012, p. 28).

O catolicismo é apenas um dos aspectos religiosos da crença amazônica. Em seguida, os protestantes adentraram a região, trazendo literatura cristã e realizando missões com os povos ribeirinhos e indígenas. Cito o catolicismo como uma das figuras mais importantes para a construção e modificação do pensamento religioso amazônico.

Além disso, essa discussão serve como ponto de partida para entendermos como o pensamento do homem amazônico é entrelaçado por múltiplos símbolos. Inicialmente, os povos indígenas habitavam a Amazônia, cada um com sua própria visão de mundo. O catolicismo desempenhou um papel significativo na modificação das crenças desses povos indígenas e ribeirinhos. No entanto, os próprios moradores não abandonaram suas crenças. Pelo contrário, eles encontraram novas formas de relacionar aquilo que já conheciam com a crença que estava sendo transmitida.

O cenário amazônico é permeado por mitos e lendas dos povos que aqui habitam. A religiosidade do homem amazônico está intimamente ligada às influências indígenas. Eduardo Galvão, em Vida religiosa do caboclo da Amazônia (1953, p. 2), afirma que a Amazônia, mais do que qualquer outra região do país, possui a influência dos indígenas, tanto no traço físico quanto na cultura.

A formação religiosa do homem amazônico deriva de diversas concepções religiosas, como o catolicismo, o protestantismo e o judaísmo (em alguns centros). Além disso, nas áreas onde a presença africana foi mais significativa, é possível observar a influência religiosa dos negros. Contudo, na zona rural, essa influência tende a ser secundária, com maior predominância das crenças e práticas de origem ameríndia e ibérica.

O caboclo amazônico é católico. Recentemente, outras concepções religiosas se têm difundido pelo vale, tais como o espiritismo, o protestantismo e, em poucos centros, o judaísmo. Nos centros urbanos, onde foi maior a importação de escravos negros, transparecem influências africanas como a “casa de minas” (1), os cultos caboclos, certas práticas de feitiçaria, etc. Na zona rural, essa influência secundária é bastante atenuada, predominando crenças e práticas de origem ameríndia e ibérica (GALVÃO, 1953, p.2)

Eduardo Galvão realiza um estudo importante sobre os aspectos da vida religiosa do homem amazônico. Para ele, o homem amazônico é católico, e sua religiosidade se manifesta, sobretudo, no culto aos santos. Cada comunidade tem seu santo padroeiro, e as festas dedicadas a esses santos são momentos de reunião, geralmente durando o período de uma novena. Em algumas comunidades, existem capelas para a adoração desses santos. No entanto, os homens não se preocupam tanto com o além-túmulo; estão mais focados nas promessas feitas em vida para obter algum favor dos santos.

Entretanto, os santos não são as únicas entidades às quais o homem amazônico recorre como forma de buscar uma força superior. Eles servem como entidades domésticas, que protegem o indivíduo ou a comunidade, assegurando-lhes bem-estar (GALVÃO, 1953, p. 5). Além disso, o homem amazônico recorre a outras entidades sobrenaturais, que habitam a floresta ou o fundo dos rios. Essas crenças têm origem indígena, com denominações tupi-guarani, e se difundiram no período colonial.

Esse culto dos santos, a crença em sua interferência direta, não responde ao total das necessidades do ambiente local. O indivíduo e a comunidade recorrem a outras crenças e práticas que, reunidas às católicas, constituem a sua religião. O catolicismo é uma filosofia de vida que se sobrepõe a idéias locais, cuja origem é mas que dependem, sobretudo, de influências ameríndias, absorvidas na moderna cultura do cabocio amazônico. (GALVÃO, 1953, p. 4-5)

Influenciado pelo trabalho de Eduardo Galvão, Raymundo Heraldo Maués (2005), historiador e antropólogo, produziu um estudo intitulado Um aspecto da diversidade cultural do caboclo amazônico: a religião. Nesse artigo, Maués apresenta os resultados de uma pesquisa de campo realizada na região do Salgado, no estado do Pará. Ele investigava os hábitos e ideologias alimentares da população, assim como as doenças.

Ao visitar casa por casa, Maués obteve a resposta de que todos os moradores daquela região eram católicos. Eles demonstravam aversão ao protestantismo. Como sua pesquisa abordava doenças, ele procurou os médicos populares. Após passar um mês convivendo com a população, Maués descobriu a existência de pajés. A demora para essa descoberta deveu-se ao fato de que a pajelança foi fortemente reprimida na Amazônia durante o século XVIII. “Não obstante, acabei percebendo que não estavam erradas as pessoas em se declararem católicas, sem mencionar suas práticas xamânicas, já que estas, na verdade, estão incorporadas as crenças e práticas do catolicismo popular que praticam”. (Maués, 2005, p.260)

Segundo o autor, os santos são entidades que servem para proteger a população e estão situados “acima”, enquanto os encantados constituem uma outra forma de recorrer ao sagrado. Contudo, os encantados estariam situados “abaixo”, geralmente no fundo dos rios. Essa ideia está presente em toda a Amazônia, e não apenas na ilha onde foi realizada a investigação.

Os encantados são figuras integrantes do mundo das crenças amazônicas, fazendo parte da pajelança rural. Eles têm origem em concepções europeias, como as histórias de princesas e príncipes, presentes no mundo ocidental, mas também sofrem influência de concepções indígenas, relacionadas a lugares situados no fundo ou abaixo da superfície terrestre, além, claro, da influência africana, dos orixás (MAUÉS, 2012, p. 262).

Os encantados são pessoas que não morreram, diferenciando-se, assim, dos santos. Eles são indivíduos que passaram por um “encante”. Para que uma pessoa seja encantada, é necessário que algum ser que habite no fundo do rio se agrade dela e a encante. Existem três formas de manifestação: 1) os “bichos do fundo”, que habitam os rios e igarapés, geralmente se apresentando na forma de cobra, boto ou jacaré; 2) sob a forma humana, nos manguezais, que Maués denomina “Oiara”, aparecendo na forma de uma pessoa conhecida; 3) as “Caruanas”, que se mantêm invisíveis e incorporam-se na pessoa que possui o dom de nascença para ser xamã.

Os encantados são normalmente “invisíveis” aos olhos dos simples mortais; mas podem manifestar-se de formas diversas. A partir dessas formas distintas de manifestação, eles são pensados em três contextos, recebendo, por isso, denominações diferentes. São chamados de bichos do fundo quando se manifestam nos rios e igarapés, sob a forma de cobras, peixes, botos e jacarés. Nessa condição, eles são pensados como perigosos, pois podem provocar mau olhado ou flechada de bicho nas pessoas comuns. Caso se manifestem sob a forma humana, nos manguezais ou nas praias, são chamados de “oiaras”; neste caso, eles frequentemente aparecem como se fossem pessoas conhecidas, amigos ou parentes, e desejam levar as pessoas para o fundo. A terceira forma de manifestação é aquela em que eles, permanecendo invisíveis, incorporam-se nas pessoas, quer sejam aquelas que têm o dom “de nascença” para serem xamãs, quer sejam as de quem “se agradam”, quer sejam os próprios xamãs (pajés) já formados: neste caso, são chamados de caruanas, guias ou cavalheiros. Ao manifestar-se nos pajés, durante as sessões xamanísticas, os caruanas vêm para praticar o bem, sobretudo para curar doenças. (MAUÈS, 2005, p.265)

Nesse sentido, vamos nos concentrar nos encantados do rio, especificamente em um encantado: a cobra grande. A cobra grande é uma figura mítica amazônica, conhecida na literatura brasileira por meio do poema de Raul Bopp, A cobra Norato. Além disso, os rios da Amazônia estão recheados de histórias míticas nas quais a cobra grande desempenha um papel importante. Desde a infância, ouvimos diferentes histórias sobre a cobra grande. A esse respeito, Marilina Pinto (2008) afirma

Observamos que a protagonista da narrativa mostrada é a mesma, ou seja, a cobra-grande. Personagem recorrente na mitologia e no imaginário amazônico, este ser encantado transforma-se ora na canoa-cobra primordial do mito tukano, ora em Cobra Norato das lendas populares e da poesia modernista de Bopp (PINTO, 2008 p.09)

Em cada município do Amazonas, conta-se uma narrativa diferente sobre a cobra grande. Dois exemplos que apresento são o de Nova Olinda do Norte e o de Maués. Em Nova Olinda do Norte, muitos afirmavam que a cobra grande morava debaixo do rio madeira, caso a cobra se levantasse, o rio madeira morreria. Em Maués, a cobra grande é um pescador que passou por encante.

Caracterização e História de Maués-AM

Maués é um município brasileiro, localizado no interior do Estado do Amazonas, na região Norte. Segundo dados do IBGE1, a estimativa populacional era de 65.714 habitantes em 2024. Com uma área territorial de 39.991,07 km2 (2023), Maués ocupa a posição 15 entre os 62 municípios do Estado, e de 23 de 5570 entre todos os municípios. A cidade é próxima dos municípios de Boa Vista do Ramos, Barreirinha, Nova Olinda do Norte, Parintins e Itacoatiara. Banhada pelas águas dos rios Maués-Açu, Paraná do Urária e Apocuitua. 

A economia de Maués é marcada pela agricultura, a pesca e o extrativismo. Maués é a maior produtora de Guaraná (paullinia cupana) do Amazonas e uma das maiores produtoras do Brasil. Além da relação do mauesense com o cultivo da planta do guaraná, ele também é um símbolo da identidade cultural da população. Além do Guaraná, a pesca é um dos setores que abastece a mesa da população urbana quanto da população rural, principalmente os ribeirinhos. 

A Ambev2 tem uma forte relação com o município. Ela produz o Guaraná Antártica, que tem como logo o símbolo do guaraná. Além dessa produção, ela foi responsável pela idealização da Aliança Guaraná Maués (AGM), responsável em desenvolver projetos, em diversas áreas, que promovam a cultura do Guaraná, fortalecendo a identidade cultural e a relação entre o mauesense e o guaraná3

A cidade de Maués recebeu seu nome em decorrência do rio que banha a região, mas inicialmente era chamada de Luséa. A história de Maués remonta ao século XVIII, quando se iniciou o povoamento da região de Munducurânia, situada entre os rios Madeira e Amazonas. Os Mundurucus dificultavam o estabelecimento de uma população civilizada, criando desafios para o desenvolvimento da região. Percebendo essa situação, Lobo D’Almada, governador da província, buscou uma estratégia para integrar os Mundurucus ao convívio social dos brancos.

Para alcançar esse objetivo, ele se aproveitou de um conflito entre seus soldados e os Mundurucus. Durante o embate, ele ajudou dois indígenas feridos, auxiliando na cicatrização de suas lesões. Quando os indígenas estavam prontos para voltar à aldeia, D’Almada, de forma estratégica, presenteou-os, o que resultou na criação de três aldeias: Canatuma, Juruti e Luséa (atualmente Maués).

Em 1798, a cidade de Luséa foi oficialmente fundada por Luís Pereira da Cruz e José Rodrigues, e os indígenas da região passaram a se referir ao local como Uacituba. No entanto, a trajetória da cidade foi marcada por conflitos, como o ocorrido em 1832, entre soldados e indígenas. Em 1873, Luséa foi elevada à categoria de vila. Durante a Cabanagem, um movimento de resistência popular ocorrido no século XIX, a cidade de Luséa foi palco de intensos confrontos sangrentos entre os cabanos e os legalistas.

Em 1835, os cabanos conseguiram vitória na guerra, e Luséa tornou-se um importante abrigo para os insurgentes. Com a decretação da anistia, em 1840, estima-se que cerca de 800 cabanos depuseram suas armas. Em 1850, a criação da província do Amazonas consolidou a organização administrativa da região, com Luséa figurando entre os quatro municípios existentes na época, ao lado de Manaus, Barcelos e Tefé4.

A festa do Guaraná e O mito do Guaraná

O mito do guaraná é uma das narrativas orais que marcam a cultura do município de Maués. Esse mito conta a história da criação da planta do guaraná, cuja importância, como apresentado anteriormente, é fundamental para a economia local. Para celebrar a colheita do guaraná, os mausenses instituíram a “Festa do Guaraná”, evento anual realizado entre o final de novembro e o início de dezembro. A festa é organizada pela prefeitura, em parceria com a Ambev, e constitui uma das maiores celebrações da cidade, sendo aguardada com grande expectativa pela população. Além de celebrar a cultura do guaraná, a festa também elege a Rainha do Guaraná, que representa a beleza e a identidade da mulher mausense.

Antes do início da festividade, vários eventos preparatórios mobilizam a cidade. A Secretaria de Cultura envia convites para as famílias das jovens que concorrerão ao título de Rainha do Guaraná. As candidatas, com idades entre 18 e 24 anos, sem filhos e não casadas, representam os principais bairros de Maués: Eden, Senador, Donga Michiles, Santa Tereza, Santa Luzia, Ramalho Junior, Maresia, Centro e a comunidade Ilha de Vera Cruz.

Após o envio dos convites, as candidatas são apresentadas à população por meio de transmissões ao vivo, realizadas no espaço da própria prefeitura, a Fábrica de Ideia. Esse evento dá início à criação de grupos de torcedores para cada candidata, com ampla divulgação de suas imagens nas redes sociais e por meio dos status do WhatsApp.

Durante o período de apresentação das candidatas, elas participam de eventos e sessões fotográficas que exaltam o fruto do guaraná. Como a festa é realizada em parceria com a Ambev, é tradição que as candidatas façam um ensaio fotográfico de maiô preto na Fazenda Santa Helena, local de produção do Guaraná Antártica. Essas imagens destacam tanto o produto mais comercializado do guaraná, o Guaraná Antártica, quanto as colheitas do fruto.

Apresentação das Candidatas na Fazenda Santa Helena, casa do Guaraná Antártica

Fonte: Sidney Paparazzo, 2023

Durante a semana de coroação da Rainha do Guaraná, ocorre o tradicional Baile da Cereçaporanga, nomeado em homenagem à lenda da bela índia guerreira, representando o povo Sateré-Mawê. Nesse evento, as candidatas são apresentadas à população em trajes de gala. Além do baile, a festa também inclui a abertura oficial da Festa do Guaraná, marcada pelo tradicional desfile em carro aberto. Durante o desfile, as candidatas desfilam com roupas típicas pelas ruas da cidade, em cima de um carro, acenando para a população e demonstrando sua beleza, carisma e identidade cultural. Algumas pessoas acompanham o cortejo de carro ou moto, oferecendo seu apoio às candidatas.

Fotos do tradicional desfile em carro aberto em 1981

Fonte: Folha de Maués

A Festa do Guaraná é realizada ao longo de três dias e concentra-se na praia da Maresia, principal palco do evento. Durante os primeiros dias, no período da tarde, são promovidas atividades esportivas voltadas à integração da comunidade e ao incentivo à prática de esportes. À noite, ocorrem apresentações culturais, incluindo encenações dos mitos do guaraná e shows de artistas locais e nacionais. O ponto alto da celebração acontece na última noite, com a coroação da Rainha do Guaraná, momento mais aguardado pela população.

Um dos mitos do guaraná, documentado por Pereira (1953), apresenta uma das versões sobre a origem da planta sagrada. Nessa narrativa, três irmãos — Ocumaátó, Icuaman e Onhiamuaçabê — vivem em um contexto mítico. Onhiamuaçabê era guardiã de um local encantado onde havia plantado uma castanheira. Todos os animais da floresta desejavam viver com ela, encantados por seu saber e pela harmonia do lugar. Seus irmãos também valorizavam sua companhia, sobretudo por seu conhecimento medicinal das plantas.

Certo dia, uma serpente, desejando torná-la sua esposa, passou a deixar rastros de perfume pelo caminho como forma de atraí-la. Onhiamuaçabê se encantou pelo aroma e, ao segui-lo, foi tocada pela cobra em uma das pernas, engravidando dela. Ao descobrirem a gravidez, seus irmãos reagiram com fúria, recusando-se a aceitar a presença de uma criança. Apesar disso, Onhiamuaçabê deu à luz um menino que cresceu belo e forte. 

Quando o menino aprendeu a falar, passou a desejar os mesmos alimentos que agradavam aos seus tios. A mãe, então, explicou que havia cultivado uma castanheira em uma terra encantada, mas que fora expulsa do convívio com os irmãos. Para proteger esse local sagrado, Ocumaátó e Icuaman colocaram a Cotia, a Arara e o Periquito como guardiões da área.

Mesmo assim, o menino insistia em experimentar as castanhas. Sensibilizada, a mãe decidiu levá-lo até a castanheira. A Cotia, ao notar sinais de presença humana, percebeu uma fogueira e imediatamente alertou os irmãos, que, inicialmente, não acreditaram. Diante da insistência, decidiram reforçar a vigilância, convocando o macaquinho-da-boca-roxa para proteger a árvore.

Movido pela curiosidade e pelo desejo de provar as castanhas, o menino resolveu ir sozinho até o local. Ao se aproximar da castanheira, os guardiões, posicionados estrategicamente, surpreenderam-no e o atacaram, decapitando-o.

Sentindo a ausência do filho, a mãe foi em sua busca. Próxima à castanheira, ouviu gritos e correu, desesperada, até encontrá-lo sem vida. Dominada pela dor, retirou o olho esquerdo da criança e o plantou, originando o que se conhece como o falso guaraná. Em seguida, retirou o olho direito e o plantou, dando origem ao verdadeiro guaraná. Sobre o corpo do filho, profetizou:

– Tu, meu filho, tu serás a maior força da Natureza; tu farás o bem a todos os homens; tu serás grande; tu livrarás os homens de umas moléstias e os curarás de outras. Em seguida juntou todos os pedaços do corpo do filho. Mascou, mascou as folhas de uma planta mágica e lavou com sua saliva e o suco dessa planta o cadáver do filho e o enterrou. (Pereira, 1953, p. 124)

A sepultura do menino foi cercada por estacas, e a mãe designou um guardião para vigiá-la. Orientou que a alertassem caso se ouvisse qualquer ruído vindo da cova. Após algum tempo, o vigia informou que sons estranhos estavam emergindo do túmulo. Diante disso, a mãe iniciou uma série de maldições: primeiramente, amaldiçoou o Coatá; dias depois, o cachorro-do-mato; e, por fim, o porco queixada.

À medida que diferentes animais saíam da sepultura, a planta do guaraná crescia cada vez mais vigorosa. Por último, surgiu da cova o próprio menino — o primeiro Maué — que ressuscitara, marcando, assim, a origem mítica do povo e do fruto sagrado que se tornaria símbolo da identidade cultural da região.

Onhiámuáçabê agarrou-o, sentando-o nos joelhos. E pôs-lhe um dente na boca, feito de terra. (Por isso nós, os Maués, procedemos de cadáver e o nosso dente apodrece.) A mulher foi lavando tudo, tudo, devagarinho, os pés, a barriga, os braços, o peito, a cabeça do menino com o sumo das folhas da planta mágica, que mastigara. (PEREIRA, 1953, p. 124)

Esse mito tem uma importância dupla: a narrativa de explicação da planta do Guaraná e a explicação do surgimento do primeiro Maué. A outra versão sobre o Guaraná é a história de um casal apaixonado. Um casal que não poderia ter filhos, pede ajuda ao Deus Tupã, para que lhe concedesse uma criança. Tupã atendeu o pedido do casal, dando um menino, que era amado por toda a tribo. Enquanto isso, a Munducurânia era a mais próspera das tribos, eram prósperos nas guerras, na pesca, na caça. Tudo por causa do menino.

Um dia uma serpente picou o menino, afligindo a todos. Jurupari, deus da escuridão, que invejava o menino, resolveu se transformar em serpente e matá-lo. Tupã escureceu o céu e trovejou, fazendo com que os pais do meninos arrancassem seu olho, plantassem, para que de lá surgisse o Guaraná.

Apresentação do Mito do Guaraná na Festa do Guaraná de 2024

Fonte: Folha de Maués, 2024

A imagem acima retrata a encenação do mito do guaraná, uma narrativa sagrada para o povo Mawé, pois explica como algo que não existia passou a existir — no caso, a origem da planta do guaraná. Esse mito representa um saber ancestral fundamental para os Sateré-Mawé e é recontado anualmente durante a Festa do Guaraná, reforçando a identidade cultural dos mauesenses.

Durante a festividade, é comum a comercialização de artesanatos com símbolos que remetem ao fruto do guaraná. Além disso, derivados da planta, como o pó ou o bastão de guaraná, estão presentes na maioria dos comércios do município, evidenciando a forte relação entre tradição cultural e economia local.

A cultura, nesse contexto, compreende esse processo de transmissão de saberes e práticas entre gerações. O povo Sateré perpetua a história da criação do guaraná como forma de manter viva a memória de sua ancestralidade, e a cidade de Maués reafirma esse compromisso ao reencenar anualmente o mito por meio da Festa do Guaraná. Além do mito da origem do guaraná, os mauesenses também cultivam uma versão própria da lenda da cobra grande — uma narrativa oral amplamente presente no imaginário da população da região Norte do país. Em Maués, essa entidade mítica recebe o nome de Anselmo.

O mito do Anselmo

Anselmo Macedo dos Santos foi um homem que viveu durante a década de 1920. Era filho do boto Don Carlo Bararuá, um encantado já conhecido na época, e da lavadeira Iaiá Macedo. Dona Iaiá residia na Avenida Doutor Pereira Barreto, no centro de Maués — hoje urbanizada, mas à época ainda carente de infraestrutura. Como lavadeira, ela trabalhava às margens do rio Maués-Açu, lavando as roupas das famílias mais abastadas da cidade. Em uma de suas idas à praia, Iaiá foi encantada por Don Carlo, que a engravidou de Anselmo.

Diz-se que, aos sete meses de gestação, Anselmo chorou dentro do ventre da mãe. Ele nasceu à meia-noite, durante uma noite de temporal, já com dentes. Poucos meses depois, começou a engatinhar, deslizando pelo chão como uma cobra.

Anselmo teve duas profissões amplamente conhecidas pela população de Maués: pescador e benzedor. Por ser filho de um encantado, nasceu “sacaca” — ou seja, dotado de dons espirituais. Sabia costurar, benzer, manipular ervas e transitar pelo mundo místico. Utilizava um maracá em seus rituais, com o qual invocava os espíritos. Nas noites de luar, promovia corridas entre cobras, desafiando-as para ver qual chegava primeiro. Costumava andar com um cigarro no bolso, mas quando alguém lhe pedia um, ele surpreendia ao tirar uma cobra dali. Seu trabalho envolvia a ilusão e o encantamento com serpentes.

Moradores da Ilha de Vera Cruz — localizada em frente a Maués — cruzavam o rio para procurá-lo em busca de benzimentos, puxamentos, costuras e remédios naturais. Próxima a essa ilha está a chamada “Ilha das Conversas”, conhecida como o portal dos encantados: é de lá que os encantados partem e para onde retornam. Como Anselmo também nasceu encantado, seu destino seria regressar à encantaria.

Conta-se que uma boto fêmea apaixonou-se por Anselmo e o levou para viver no encante. Após esse encantamento, ele se transformou na Cobra Grande, assumindo a guarda espiritual da Ponta da Maresia. Retornando à encantaria sob a forma de serpente gigante, tornou-se protetor dos pescadores e das pessoas que atravessam o rio à noite para comercializar peixe e farinha. A Ilha das Conversas e a Praia da Maresia passaram, assim, a ser consideradas suas moradas sagradas

Segundo relatos orais colhidos junto à população local, Anselmo Macedo dos Santos desapareceu misteriosamente após sair para pescar no rio Maués-Açu. Conta-se que ele nunca retornou para casa e, posteriormente, suas roupas foram encontradas cuidadosamente dispostas sobre sua canoa. A versão mais difundida entre os moradores de Maués é a de que Anselmo teria sido encantado, sendo levado para morar no fundo do rio, junto aos demais seres encantados.

Considerações Finais

A cultura constitui um dos pilares fundamentais de qualquer sociedade. Sem ela, não há identidade coletiva possível. Cada povo possui sua forma própria de conceber o conhecimento, as artes, a culinária, as manifestações religiosas, entre outros aspectos. Esse processo não é determinado exclusivamente por fatores geográficos ou biológicos, mas resulta de uma longa trajetória de transmissão de saberes entre as gerações. Viver e crescer em sociedade leva o indivíduo a incorporar os hábitos, crenças e conhecimentos próprios daquele grupo.

Além disso, o contato entre diferentes culturas e impérios contribui para a reformulação e transformação dos saberes. Ao observar os fatos do presente, é possível identificar, no passado, as motivações que explicam muitas das configurações atuais. Grande parte do conhecimento vigente hoje tem raízes nas práticas e valores transmitidos ao longo da história.

Os mitos, por sua vez, são narrativas essenciais para compreender a formação cultural e religiosa de um povo. Elementos trazidos de outras regiões para a Amazônia colaboraram para moldar o imaginário coletivo de Maués, especificamente, dotando-o de crenças e mitos que estruturam o pensamento social local. O exemplo do mito do guaraná, representado anualmente em uma festa tradicional, revela a importância da identidade cultural e do seu fortalecimento. Trata-se também de uma narrativa com valor religioso, ao explicar a origem de uma planta sagrada que, atualmente, sustenta a economia do município.

Outro ponto relevante é a fusão de elementos culturais que alimentam as histórias transmitidas de geração em geração — de avós para netos, de pais para filhos, em rodas de conversa e demais espaços de sociabilidade. No caso das lendas locais, como a do Anselmo, observa-se um exemplo vívido dessa mescla cultural. A figura encantada de Anselmo, que habita o imaginário popular como Cobra Grande, só pôde ser concebida por meio da combinação de crenças indígenas, africanas e cristãs, resultando em um ser mítico que traduz a complexidade e a riqueza da cultura mauesense.

Referências

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