PERCURSOS HISTÓRICOS DO SUICÍDIO NO PENSAMENTO OCIDENTAL

HISTORICAL TRAJECTORIES OF SUICIDE IN WESTERN THOUGHT

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cs10202504302320


Yasmin Zafonatto Vidal1


RESUMO

O suicídio é um fenômeno que acompanha a humanidade desde os seus primórdios, o que torna essencial compreendê-lo sob uma perspectiva histórica. Este estudo tem como objetivo apresentar um panorama histórico focado na visão ocidental, atravessando as divisões cronológicas do período da Antiguidade até a Contemporaneidade. Para isso, foi adotada a metodologia de análise bibliográfica, com base em fontes relevantes que abordam a temática. O suicídio é aqui compreendido como um sintoma do sofrimento individual em contexto social; por isso, examinar suas interpretações ao longo dos séculos é fundamental para uma compreensão mais holística e integrada do fenômeno.

Palavras-chave: Suicídio; História do suicídio; Aspectos culturais do suicídio.

ABSTRACT

Suicide is a phenomenon that has accompanied humanity since its earliest beginnings, which makes it essential to understand it from a historical perspective. This study aims to provide a historical overview focused on the Western perspective, spanning the chronological divisions from Antiquity to the Contemporary period. A bibliographic analysis methodology was employed, drawing from key sources that address the topic. Suicide is understood here as a symptom of individual suffering within a social context; thus, examining its interpretations over the centuries is fundamental for a more holistic and integrated understanding of the phenomenon.

Keywords: Suicide; History of suicide; Cultural aspects of suicide.

1. INTRODUÇÃO

Em uma perspectiva global, o suicídio configura-se como uma das mais complexas e urgentes questões de saúde pública. De acordo com o relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS), Suicide worldwide in 2019: global health estimates (2021), aproximadamente 703 mil pessoas tiram a própria vida anualmente. Esse dado revela a gravidade do problema e demanda uma análise que ultrapasse os limites das estatísticas, contemplando também suas dimensões filosóficas, religiosas, morais, sociais e culturais.

A compreensão do suicídio exige uma abordagem histórica, conforme sugere Heródoto, no século V a.C., ao afirmar que a análise do passado permite entender o presente e antecipar o futuro. A prática do suicídio insere-se plenamente nessa lógica, pois representa mais do que um simples dado demográfico ou episódio individual. Trata-se de um fenômeno que atravessa épocas e sociedades, refletindo valores, conflitos e estruturas sociais. Segundo Minois (2018), o suicídio constitui um acontecimento profundamente enraizado nas tradições culturais e morais das civilizações, com impactos significativos nas organizações sociais.

Diante desse panorama, este artigo propõe uma análise histórica das concepções de suicídio, observando as principais transformações de sentido atribuídas ao ato ao longo dos séculos. O foco recai sobre os aspectos filosóficos, religiosos e socioculturais, sem aprofundar abordagens clínicas ou estatísticas regionais. A delimitação visa contribuir para uma leitura mais ampla e crítica do fenômeno, a partir da evolução de seus significados sociais.

A problemática central consiste em compreender de que forma o suicídio foi interpretado, aceito, condenado ou ressignificado em diferentes contextos históricos, e como essas interpretações ainda influenciam as práticas e percepções contemporâneas. Para alcançar os objetivos propostos, adotou-se uma metodologia de análise histórico-conceitual com base em bibliografia especializada, composta por fontes clássicas e contemporâneas.

2. APANHADO HISTÓRICO

2.1 IDADE ANTIGA

O suicídio é um fenômeno que acompanha a humanidade desde seus primórdios. Tem-se informações acerca da visão de sociedades que serviram de base para saberes que permeiam toda história da sociedade ocidental.

Segundo o pensamento grego apresentado pelas escolas filosóficas, não há uma posição única. Enquanto os epicuristas, cínicos e estoicos defendem que a vida só merece ser mantida quando está alinhada com a razão, com a dignidade humana e é capaz de proporcionar mais satisfação do que sofrimento. Caso contrário, insistir em preservá-la seria um ato insensato. Essa perspectiva revela uma valorização ética da existência, onde viver não é apenas sobreviver, mas viver com sentido e equilíbrio racional (Minois, 2018, p.53).
Para Diógenes Laércio (2007), os pitagóricos opunham-se ao suicídio porque consideravam a morte voluntaria uma transgressão contra a ordem natural do cosmos, pois a alma seria imortal e tirar a vida representaria uma violação do ciclo natural da existência que garantiria uma espécie de purificação.

Os maiores pensadores da Grécia antiga também se posicionaram sobre o tema. Para Platão a oposição ao suicídio era de ordem filosófica e espiritual, de maneira a seguir um viés semelhante ao de Pitágoras. Segundo Platão, “não devemos nos livrar de nós mesmos até que Deus nos envie alguma necessidade” (Platão, 2002, p. 62).

Já na visão aristotélica, tem-se uma oposição embasada na moralidade e dever social, posto que o suicídio seria uma injustiça contra o Estado, já que o sujeito que tira a própria vida deserta de suas responsabilidades de ser político e social que vive na pólis, conforme discorre o filósofo em Ética a Nicômaco  (Aristóteles, 1973).

Entre a antiga sociedade hebréia, pelos registros do Antigo Testamento, as morte voluntárias são diversas e não recebem condenações físicas ou repreensivas morais. Um exemplo disso é o pós batalha perdida para os filisteus, onde Saul ferido, tira a vida com sua espada (1 Sm 31:5), ou ainda, a morte de Sansão, que num ato de sacrificio e vingança, derruba o templo dos filisteus sobre si e seus inimigos (Jz 16:30). Os textos não apontam qualquer admoestação.

Flávio Josefo, importante historiador da Idade Antiga, conta também alguns casos de suicídio de judeus. A posição dessa sociedade parece pouco definida. (Minois, 2018). Os cristãos, que compartilham do Antigo Testamento, por sua vez, demonstram no Novo Testamento um apreço pelos mártires da fé, mas também não apontam nenhuma condenação direta aos suicidas. A posição cristã sobre a morte voluntária assume uma política condenatória a partir do Concílio de Cartago em 398 (Minois, 2018). 

A sociedade Romana, dentre as civilizações ocidentais é a mais favorável ao suicídio. Na obra de Yolande Grisé, O suicídio na Roma Antiga, há o registro de 314 morte voluntárias entre os séculos V a.C. e II a.C (Valcan, 2016). Ainda assim, não há uma posição unanime visto que as regras sociopolíticas não se aplicavam a todos indivíduos da mesma forma. Por exemplo, o cidadão comum não recebe qualquer proibição pois tirar a vida é um ato relativo à liberdade individual, no entanto os soldados e os escravos atentaram contra a propriedade privada, por isso havia sanções aos que não conseguiam concretizar a morte auto infringida (Valcan, 2016).

Agostinho, na sua obra mais conhecida, publicada em 426, 50 anos antes do fim da Idade Antiga que ocorre com a queda do Império Romano, La Cité de Dieu I, estabelece a máxima “[…] ninguém tem o direito de se entregar à morte de maneira espontânea com o pretexto de escapar dos tormentos passageiros […]” (Minois, 2018, p. 31), pois a vida seria um dom sagrado de Deus.

2.2 IDADE MÉDIA

Um dos maiores teólogos da Idade Média, Tomás de Aquino, ao escrever sua Suma Teológica, fundamenta três razões para proibição do suicídio: por ser um atentado contra natureza, sociedade e Deus. Seus escritos sintetizam o pensamento cristão medieval, que teve o suicídio como ilícito, irracional e, sobretudo, pecaminoso (Aquino, 2001).

A condenação do suicídio embasa na moral cristã predominante no período pode ser percebida pelas diversas vexações que os corpos suicidas e as famílias sofriam. Três práticas expressam com clareza tal aversão: o sepultamento em solo não sagrado, por vezes fora dos muros da cidade; a profanação dos cadáveres, que iam de arrastar os corpos pelas ruas com a finalidade de humilhar, pendura-los para demonstrar a desonra do ato e ainda mutilações póstumas; e por fim, o confisco dos bens pela Igreja, levando as famílias ao desamparo, pois as mesmas também eram excluídas dos meios de convívio social (Schmitt, 1977). Para Minois:

O desespero se impõe como um dos pecados mais graves porque contesta o papel fundamental da Igreja no perdão dos erros por meio da absolvição, uma Igreja que afirma, portanto, seu papel de intermediária universal e obrigatória entre Deus e os homens (Minois, 2018, p. 35).

Por volta de 1265 surge a suposição de que os que cogitam a própria morte estariam com um desequilíbrio mental que foi chamado de “melancolia”. Tratava-se de um tipo de loucura e esses suicidas segundo o compendio jurídico de Jean Boutillier, de 1395, não deviam ser vistos como criminosos sujeitos à força ou condenação jurídica (Minois, 2018).

Nas palavras de Minois 

Ao explicar o suicídio pela ação do diabo ou pela loucura, a Idade Média o transforma em um ato totalmente irracional. (…) A Idade Média às vezes perdoa o suicídio, mas é para condena-lo mais, ao atribui-lo ao diabo ou a uma mente descontrolada. Não existe suicídio normal”. (Minois, 2018, p.49).

Ou seja, a sociedade medieval era incapaz de supor o suicídio como uma vontade humana legítima, tratava-se de um mal de origem espiritual e mental.

2.3 RENASCIMENTO

O Renascimento, ainda que não possa ser lido como um período histórico, representou uma transição entre as idades Média e Moderna e foi palco de muitos debates importantes ao se falar de suicídio. A concepção de suicídio começou a ser revista a partir de uma perspectiva mais filosófica e humanista, porém sem abandonar totalmente as condenações religiosas vindas da Idade Média. 

Durante o Renascimento se revalorizou as fontes clássicas, nas quais o suicídio, em certos contextos, era interpretado como um ato de coragem, honra ou liberdade. Filósofos como Sêneca e Cícero voltaram a ser lidos e comentados, influenciando uma nova visão, mais racional e menos demonizada do ato. Michel de Montaigne, por exemplo, em seus Ensaios, pondera sobre a morte voluntária como uma escolha possível diante do sofrimento extremo, afastando-se da condenação teológica absoluta ao considerar o suicídio um tema digno de reflexão ética (Montaigne, 2004). Ainda assim, o discurso oficial da Igreja Católica continuava a considerá-lo pecado mortal, e as legislações civis mantinham punições aos suicidas e suas famílias, o que demonstra que a mudança de mentalidade foi lenta e parcial (Minois, 2018; Grisé, 1987). A literatura e o teatro também passaram a representar o suicídio com maior ambiguidade, como nas tragédias de Shakespeare, onde o ato ganha contornos psicológicos e morais mais complexos. Assim, o Renascimento marca um ponto de inflexão importante: não uma aceitação plena do suicídio, mas a abertura para que ele fosse pensado fora do estrito campo da heresia.

2.4 IDADE MODERNA  

Da tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos (1453) à Revolução Francesa (1789) o pensamento renascimentista foi bastante presente e os escritos referentes a morte de si, tornam-se mais frequentes e os debates mais acirrados entre a fé e a razão.

Pierre Charron, um teólogo respeitado, escreve que o suicídio é uma decisão aceitável quando for longamente refletida e motivada, segundo sua obra Livros de sabedoria, de 1601. O livro foi, em 1605 colocado na lista de proibidos pela Igreja, o Index. Essa situação demonstra que os debates ocorreram até mesmo entre os clérigos (Minois, 2018).

A melancolia de Boutilier volta a ser visada. Robert Burton escreve em 1621 o tratado A anatomia da melancolia, em que transforma o suicídio em uma consequência de uma doença mental. Ele descreve a melancolia como uma doença que muda a fisionomia, causa prostração e cansaço de viver, logo, o suicídio assume então o papel que será discutido séculos à frente (Minois, 2018).

O professor universitário e doutor John Donne escreveu Biathanatos que foi publicado somente em 1647. Não teve um grande alcance na época, mas nele o autor, de forma ousada, aponta que o suicídio não pode ser contrário a natureza, a razão e a lei divina.  (Minois, 2018) 

Para os filósofos contemporâneos Bacon, Hobbes e Descartes o suicídio era mal visto. Respectivamente, para Bacon, havia apenas algumas situações pontuais que justificariam esse tipo de morte, como é o caso do sofrimento extremo (Bacon, 1909); Para Hobbes, a partir de O Leviatã, sabe-se que a preservação da vida é uma lei natural infringida pelo suicida, assim como uma quebra do contrato social (Hobees, 1974); Descartes apesar de não tratar diretamente do assunto, cria que buscar a morte seria irracional e contrário a Deus, que a deu como dom (Descartes, 1973).

A morte de si é tema nas artes literárias e teatrais, com destaque às peças de Shakespeare, que ficaram imortalizadas e versam sobre o suicídio a ponto de vê-lo como uma reação humana possível, ainda que dolorosa, diante dos dilemas existenciais, do sofrimento e das normas impostas pela sociedade. 

Outra questão que merece ser destacada está na palavra. O termo “suicídio” aparece por volta de 1700 para substituir “morte de si mesmo’ (Minois, 2018), o que indica o como a sociedade da época acreditava ser importante diferenciar, inclusive gramaticalmente, do homicídio e das mortes naturais.

É imprescindível discorrer a respeito do Iluminismo, um movimento de pensadores que refletiu a vida sob o viés da racionalidade. Alguns dos autores mais importantes da época em questão escreveram suas visões sobre o tema do suicídio. Voltaire, em Dicionário Filosófico, critica o conservadorismo da Igreja e sugere que o suicídio pode ser racional. Denis Diderot, em Enciclopédia, traz que esse tipo de morte é uma questão moral, mas não pode ser afastado da máxima de ser um ato humano legítimo, posição contrária à de Immanuel Kant argumenta em sua Fundamentação da Metafísica dos Costumes, que enxerga tal ato como imoral e violador da racionalidade.  Dois outros escritores que possuem visões opostas foram o escocês Hume, que defendeu de forma pioneira no ensaio Do Suicídio que a decisão sobre viver ou não seria, se não causasse mal a outros, uma escolha individual e moral, enquanto Adam Smith, o chamado pai da doutrina liberal, defendeu em Teoria dos sentimentos morais que ao cometer suicídio o sujeito rompia a harmonia social e demonstrava falta de senso de dever com os demais.

Segundo Georges Minois, em sua obra sobre a história do suicídio, o desenvolvimento do capitalismo, com a Revolução Industrial, é apontado como um dos fatores de destaque para o aumento dos índices de suicídio, devido às incertezas trazidas pelas ideias de individualismo e concorrência. O autor ainda aponta que o suicídio passou a ser tema visto nas mídias: “O Times de de 27 de fevereiro de 1786 anuncia um desses debates sobre o tema: Será o suicídio um ato de coragem?”; (…) Em 1789, o mesmo jornal declara que o suicídio é “agora um tema comum nas conversas de todas as categorias sociais”. (Minois, 2018, p. 261)

Com essa visibilidade da opinião pública, os governos passam a adotar medidas desesperadas para proibir, punir e encobrir os suicídios. Em contrapartida, a partir de 1780, o tema de descriminalização do suicídio atinge todos os círculos sociais e muitos governos começam a compreender que essa morte auto infringida pode ser um sintoma de falhas estatais em promover o bem-estar (Minois, 2018). Assim a Idade Moderna finda com um crescente reconhecimento de que o suicídio não é apenas uma questão moral, criminal ou patológica, mas um fenômeno complexo, que pode exprimir as limitações do Estado em garantir as condições de dignidade.

2.5 IDADE CONTEMPORÂNEA 

No final do século XVIII passa-se a considerar que o número de suicídios está relacionado ao nível de bem-estar social, o que preocupou os governantes e deu início a um processo de silenciamento a respeito do assunto. Os séculos anteriores, que caminharam para chegar ao início de uma visão menos preconceituosa, inclusive lutando pelo fim das condenações e vexações dos corpos, aos poucos foram perdendo sua influência. Em 1829, na França, estabeleceu-se que os jornais não deveriam mais noticiar suicídios (Minois, 2018).

O pós Revolução Francesa e a Revolução Industrial foram períodos marcados pela mudança intensa, com novas formas de compreender a vida, posto que as antigas ordens sociopolíticas colapsaram e deu-se início a uma vida urbana individual e instável. Nesse contexto alguns sociólogos tem grande relevância ao abordar o suicídio.

Para Durkheim, em sua obra clássica O Suicídio (1897), o ato é entendido como um fenômeno social, influenciado por rompimento de laços comunitários, migrações massivas para centros urbanos e a especialização crescente do trabalho. Diante disso o sociólogo discorre sobre o que chama de “suicídio anômico”, típicos de momentos de instabilidade. Uma particularidade do suicídio encontra-se na sua, segundo Durkheim (2019, p. 90), natureza eminentemente contagiosa: Essa contagiosidade se faz sentir sobretudo nos indivíduos cuja constituição os torna mais facilmente acessíveis a todas as sugestões em geral e às ideias de suicídio em particular; pois além de serem levados a reproduzir tudo o que os impressiona, eles tendem, principalmente, a repetir um ato ao qual já tem certa propensão. O sociólogo, na mesma obra, cita um caso ocorrido em 1772, em que 15 homens doentes se enforcaram sucessivamente em um mesmo gancho em um hospital. Dois anos mais tarde, o escritor alemão Goethe lança a novela Os Sofrimentos do Jovem Werther: nela o protagonista tira a vida com uma arma de fogo após uma desilusão amorosa. Após a publicação, a Europa enfrentou uma onda de suicídios fazendo uso do mesmo meio, o que levou à proibição da obra em vários locais e também o surgimento do termo “Efeito Werther”, para denominar essa imitação coletiva.

No século XIX, a medicina atua com um olhar punitivista que culpabiliza a melancolia e a “propensão ao suicídio”, classificando os indivíduos com tais inclinações como portadores de uma patologia. A partir de 1790, esse olhar começa a tomar forma com os trabalhos de médicos como Philippe Pinel, que rompe com a ideia de que o suicídio seria uma questão exclusivamente moral ou penal e passa a compreender o suicídio como sintoma de distúrbios mentais, especialmente a melancolia. Para Pinel, a alienação mental era a chave para entender o suicídio, e essa nova abordagem abriria espaço para o surgimento da psiquiatria. Essa perspectiva foi aprofundada por seu discípulo, Jean-Étienne Esquirol, que, no início do século XIX, afirmava categoricamente que “todo suicida é mentalmente alienado” (Esquirol, 1838).

Apesar da aparência humanitária, essa medicalização do suicídio frequentemente resultava em práticas de confinamento em instituições psiquiátricas. O foco não estava necessariamente no cuidado ou busca por cura, mas no isolamento e correção dos desvios de comportamento, invisibilizando esses sujeitos como atores sociais.  

Ao longo do século XX, o suicídio foi observado sob alguns vieses, especialmente no campo da filosofia e da psicologia. Sigmund Freud, em seu ensaio Luto e Melancolia (1917), apontou o suicídio como expressão de um conflito inconsciente em que o ego se volta contra si mesmo, além de entender que a melancolia seria um terreno fértil para a autodestruição. Nessa época, Alfred Adler, fundador da psicologia individual, relacionava o suicídio a um forte sentimento de inferioridade e à falta de sentimento de pertencimento social, ambos aspectos necessários à saúde psíquica (Adler, 1927). Na filosofia, Albert Camus, em O mito de Sísifo (1942), afirma que o suicídio é o único problema filosófico verdadeiramente sério, por resultar da constatação do absurdo da existência e ainda assim a escolha consciente de viver, como uma espécie de voto de “rebeldia” (Camus, 2018). Jean-Paul Sartre, de outro modo, via o suicídio como uma manifestação extrema de liberdade humana, sendo ao mesmo tempo uma possibilidade de autodeterminação e um desvio frente à responsabilidade existencial atrelada à liberdade (Sartre, 2002). Assim, essas diferentes leituras evidenciam a complexidade do fenômeno do suicídio, que atravessa os campos da subjetividade, da moral, da liberdade e da condição humana.

Atualmente o suicídio ainda é amplamente considerado um tabu, o que dificulta debates abertos e reflexivos sobre o tema, especialmente nos locais públicos e educacionais. Essa barreira está ligada ao medo do contágio e à estigmatização do sofrimento psíquico, principalmente. Ainda assim, alguns nomes mais atuais merecem destaque.

Para o psicólogo e tanatologista Edwin Shneidman (1918-2009), autor de Definition of Suicide e The Suicidal Mind, considerado o pai da suicidologia, o fenômeno do suicídio é multidimensional, pois em seu enfrentamento diário na vida concreta envolve as áreas psiquiátrica, psicológica, sociológica, cultural, ecológica e médica (Andrade, 2021). Entre outros estudos, o de Abrutyn e Mueller intitulado Reconsidering Durkheim’s assessment of the suicide problem: How social networks impact suicidal ideation and suicide attempts apresenta uma análise longitudinal sobre os dados de suicídios para verificar a tese do contágio social deste fenômeno (Andrade, 2021). Em Sociological autopsy: an integrated approach to the study of suicide in men os autores propuseram a metodologia de “Autópsia Social” para estudar suicídios individuais, integrando aspectos qualitativos e quantitativos (Andrade, 2021). A temática está longe de ter as abordagens e investigações saturadas, é oportuno aprofundar o debate e abrir espaço para novas perspectivas que articulem ciência, sociedade e cuidado numa abordagem integrada.

3. CONCLUSÃO

A trajetória histórica do suicídio revela a complexidade e a diversidade do significado desse fenômeno ao longo dos séculos. Desde a antiguidade, com as divisões entre as escolas filosóficas gregas e a prática romana, passando pela forte condenação moral e religiosa da Idade Média, até os debates do Iluminismo e as perspectivas sociológicas e clínicas contemporâneas, fica claro que a maneira como as sociedades entendem e respondem ao suicídio está profundamente enraizada em seus valores culturais, morais, políticos e espirituais. 

Posto isso, o suicídio não pode ser compreendido como um ato de caráter individual ou algo isolado, é preciso vê-lo como um fenômeno histórico e social. Ao estudar as mudanças que ocorreram dos discursos religiosos e paradigmas de fé até os ensaios sociológicos e estudo em saúde, fica evidente que esse tipo de morte é uma resposta ao sofrimento humano. É essencial partir de uma perspectiva multidisciplinar e sensível às realidades socioculturais de cada época. 

Entender o suicídio de uma perspectiva histórica não é apenas um exercício acadêmico, mas um passo necessário para desenvolver políticas públicas, práticas clínicas e estratégias de prevenção mais compassivas, eficazes e informadas. Afinal, respeitar a complexidade do tema é necessário para promover uma escuta mais humana e uma aceitação mais ética diante do sofrimento alheio.

4. REFERÊNCIAS

ADLER, Alfred. O sentido da vida. Tradução de Maria Luiza Appy. São Paulo: Cultrix, 2001.

ANDRADE, Leonardo Henrique Cardoso de. O suicídio: ensaios críticos sobre a sociedade contemporânea. 2021. 122 f. Tese (Doutorado em Ciências Humanas e Sociais) – Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca, 2021. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/entities/publication/c076dcfb-5236-434a-99a2-16bbc9192abe. Acesso em: 21 abr. 2025.

AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Tradução de Alexandre Corrêa. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2001. Parte II-II, questão 64, artigo 5.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. 4. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Os Pensadores).

BACON, Francis. Essays. In: The Harvard Classics, Vol. 3. New York: P.F. Collier & Son, 1909. Ensaio: “Of Death”. Disponível em: https://www.bartleby.com/3/1/2.html. Acesso em: 16 abr. 2025.

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. São Paulo: Record, 2018. 

DESCARTES, René. Meditações Metafísicas. Tradução de Guido Antonio de Almeida. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Os Pensadores). Disponível em: https://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/descartesmed.pdf. Acesso em: 16 abr. 2025.

DIÓGENES LAÉRCIO. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Tradução de Luiz João Baraúna. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2007.

DIDEROT, Denis. Enciclopédia ou Dicionário Razoado das Ciências, das Artes e dos Ofícios. Vol. 1: Discurso Preliminar e outros textos. Tradução de Marcos Bagno. Disponível em: https://archive.org/details/Enciclopedia-Diderot. Acesso em: 16 abr. 2025.

DURKHEIM, Émile. O suicídio: estudo de sociologia. 3. ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2019.

ESQUIROL, Jean-Étienne Dominique. Das doenças mentais consideradas sob as perspectivas médica, higiênica e médico-legal. Tradução de Maria Vera Pompêo de Camargo Pacheco. In: PACHECO, M. V. P. de C. 

Esquirol e o surgimento da psiquiatria contemporânea. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. 6, n. 2, p. 152-157, 2003. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rlpf/a/wdZ8NCsDnBst4Nq3jZjgBMb/. Acesso em: 21 abr. 2025.

FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: Obras completas – Volume 12: “Totem e tabu”, “Contribuições à história do movimento psicanalítico”, “O interesse pela psicanálise”, entre outros textos (1913-1914). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

GRISÉ, Yolande. Le suicide dans la Rome antique. Laval Théologique et Philosophique, v. 43, n. 3, p. 417-419, 1987. Disponível em: https://www.erudit.org/fr/revues/ltp/1987-v43-n3-ltp2129/400353ar/. Acesso em: 26 abr. 2025.

​HOBBES, Thomas. O Leviatã: ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção Os Pensadores). Disponível em: https://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/leviata.pdf. Acesso em: 16 abr. 2025.

HUME, David. Do suicídio. Tradução de Lívia Guimarães. In: Os Filósofos e o Suicídio. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2008. Disponível em: https://conte.prof.ufsc.br/hume-em-traducoes.pdf. Acesso em: 16 abr. 2025.

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo: Companhia Editora Nacional. Disponível em: https://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/marcos/hdh_kant_metafisica_costumes.pdf. Acesso em: 16 abr. 2025.

MINOIS, Georges. História do suicídio: a sociedade ocidental diante da morte voluntária. São Paulo: Editora UNESP, 2018.

MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

PINEL, Philippe. Tratado médico-filosófico sobre a alienação mental ou a mania. Tradução de Maria Vera Pompeo de Camargo Pacheco; revisão técnica de Mário Eduardo Costa Pereira. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007. Disponível em: https://archive.org/details/tratadomedicofil0000pine. Acesso em: 21 abr. 2025.

PLATÃO. Fédon. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2002.

SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: Ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução de Paulo Perdigão. Petrópolis: Vozes, 2002.

SCHMITT, Jean-Claude. Le suicide au Moyen Âge. In: SOCIÉTÉ DES HISTORIENS MÉDIÉVISTES DE L’ENSEIGNEMENT SUPÉRIEUR PUBLIC. La mort au Moyen Âge: actes du 6e congrès, Strasbourg, 1975. Strasbourg: Istra, 1977. p. 49-52. Disponível em: https://www.persee.fr/doc/shmes_1261-9078_1975_act_6_1_1066. Acesso em: 16 abr. 2025.

SMITH, Adam. A Teoria dos Sentimentos Morais. Tradução de Lya Luft. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2015. Disponível em: https://www.pdfdrive.to/dl/teoria-dos-sentimentos-morais. Acesso em: 16 abr. 2025.

VALCAN, Ciprian. O suicida ou a era do niilismo. Tradução de Mateus Araújo Silva. São Paulo: Zazie Edições, 2016. Disponível em: https://zazie.com.br/wp-content/uploads/2024/06/PBE_Ciprian-Valcan_O-suicida-ou-a-era-do-niilismo_Zazie-Edicoes_2016.pdf. Acesso em: 16 abr. 2025.

VOLTAIRE. Dicionário Filosófico. Tradução de Nélson Jahr Garcia. Disponível em: https://www.academia.edu/4403151/dicionario_filosofico_voltaire. Acesso em: 16 abr. 2025.

WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). Suicide worldwide in 2019: global health estimates. Geneva: 2021. Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/341728/9789240026643-eng.pdf. Acesso em: 20 abr. 2025.


1Pós-graduanda em Saúde Mental com Ênfase em Dependência Química e em Gestão em Saúde Pública pela Faculdade Souza; Bacharel em Enfermagem pela UFCSPA.