CONTRIBUIÇÕES DO MATERIALISMO HISTÓRICO-DIALÉTICO PARA A ANÁLISE DA FORMAÇÃO CONTINUADA DO PROFESSOR ALFABETIZADOR

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202504291002


Kelce Rosa Coelho1
Weslene Martins da Silva Ferreira2


Resumo 

Este artigo objetiva analisar categorias do materialismo histórico-dialético constitutivas da formação humana e suas contribuições para pensar a formação continuada do professor alfabetizador. A partir da pesquisa bibliográfica, reconhece-se a categoria trabalho como central, por revelar a natureza da formação humana e a práxis como atividade humana transformadora e categoria constitutiva da educação. Busca em Karl Marx e Friedrich Engels, em análises marxistas e marxianas, a compreensão dessas categorias com vistas à educação transformadora, na perspectiva de que teoria e prática são interdependentes. Defende-se um projeto de formação continuada que considera as condições materiais objetivas dos professores com vistas à transformação da realidade social. 

Palavras-chaves: Formação; trabalho; práxis; materialismo histórico-dialético; alfabetização.

Abstract 

This article aims to analyze categories of historical-dialectical materialism that constitute human formation and their contributions to thinking about the continuing education of literacy teachers. Based on bibliographic research, the category of work is recognized as central, as it reveals the nature of human formation and praxis as a transformative human activity and a constitutive category of education. It seeks in Karl Marx and Friedrich Engels, in Marxist and Marxian analyses, the understanding of these categories with a view to transformative education, from the perspective that theory and practice are interdependent. It defends a continuing education project that considers the objective material conditions of teachers with a view to transforming social reality. 

Keywords: Education; work; praxis; historical-dialectical materialism; literacy.

1. Introdução

As obras de Karl Marx e Friedrich Engels, mesmo após mais de um século, continuam atuais e são referenciais para as análises das mais atuais produções científicas. Ainda que a educação não compareça como objeto central em suas produções, ela está presente em alguns de seus textos ao longo de suas grandiosas obras, tal como aponta Manacorda (2017) em seu livro Marx e a pedagogia moderna

A análise aqui proposta não se restringirá à leitura de trechos em Marx e Engels relativos à temática de educação e ensino, ainda que estes sejam de grande relevância. Quanto a isso, Saviani (2016, p. 71) afirma que “nem Marx e Engels, nem Lênin, Lukács ou Gramsci, assim como os mais recentes como Mészaros, dedicaram-se direta e especificamente à elaboração teórica no campo da educação”. No entanto, nas categorias de análise do método do materialismo histórico-dialético, encontram-se elementos constitutivos da educação como formação humana, o que possibilita uma rica investigação quanto à formação do professor alfabetizador nessa perspectiva.

Objetivar-se-á neste artigo analisar categorias do materialismo histórico-dialético constitutivas da formação humana e suas contribuições para pensar a formação continuada do professor alfabetizador, buscando no conjunto das obras de Marx e Engels e em análises marxistas e marxianas, a compreensão de algumas categorias desse método que podem colaborar na construção do pensamento para uma educação revolucionária e transformadora. Portanto, o objeto de estudo será tratado em seu movimento histórico, na realidade concreta, a qual não se dá a conhecer no imediato, mas a partir das múltiplas determinações, numa totalidade complexa. 

Nessa perspectiva, compreende-se que a formação de professores deve contribuir para que os sujeitos se tornem conscientes das relações de poder e das contradições constitutivas da sociedade capitalista. Sob essa ótica, torna-se imperativo que a formação continuada de professores transcenda as técnicas e conteúdos que perpetuam a ideologia dominante. Em vez disso, é fundamental que conceba a pesquisa como fonte para uma visão profunda da realidade social, política e econômica que envolve o processo educativo, permitindo aos professores conhecimentos necessários para uma práxis transformadora, que concebe que o processo educativo é intrínseco à luta por uma sociedade justa e igualitária.

2. O trabalho e a práxis como categorias centrais para a formação humana

Para discutir a formação do professor alfabetizador, é preciso compreendê-la a partir de sua dimensão humana, enquanto processo que perpassa pelo contexto sócio-histórico, consonante com os pressupostos do materialismo histórico-dialético, ou seja, na perspectiva de que o homem se forma na interação com a natureza e nas relações sociais. Nesse sentido, no que tange a natureza do homem em Marx, explicita Manacorda (2017, p. 20):

O homem não nasce homem: isto o sabem hoje tanto a fisiologia quanto a psicologia. Grande parte do que se transforma homem em homem forma-se durante a vida, ou melhor, durante o seu longo treinamento por tornar-se ele mesmo, em que se acumulam sensações, experiências e noções, formam habilidades […] fruto do exercício que se desenvolve nas relações sociais, graças às quais o homem chega a executar atos, tanto “humanos” quanto “não naturais, como falar e o trabalhar segundo um plano e um objetivo.

Marx e Engels, nas Teses de Feuerbach, especificamente na terceira, defendem a teoria materialista, afirmando que 

[…] os homens são produtos das circunstâncias e da educação, de que os homens modificados são, portanto, produtos de outras circunstâncias e de uma educação modificada, esquece que as circunstâncias são modificadas precisamente pelos homens e o que o próprio educador tem de ser educado. (MARX; ENGELS, 2007, p. 537).

Compreende-se assim que as ações humanas determinam e são determinadas por condicionantes históricos e culturais, logo, os homens se formam e são formados em um processo de transformação recíproca de si, do outro, do meio natural e histórico-social. 

Em busca da satisfação de suas necessidades, o homem produz os meios para satisfazê-las e não faz isso sozinho, e sim por meio de relações sociais complexas em condição de dependência. Por isso, de acordo com Resende (2016, p.1008), “a dependência é o fundamento da objetivação, do trabalho, da troca, da cooperação, da divisão do trabalho, complexificação das relações, da contradição, da consciência, da alienação”.

Portanto, na concepção marxista, o ser humano se forma no trabalho, que não se confunde aqui, como ressalta Frigotto (2015, p. 228), com “sinônimo de emprego, forma que ostenta nas relações sociais capitalistas, mas a atividade vital mediante a qual o ser humano produz e reproduz a sua vida”. De fato:

O trabalho é, antes de tudo, um processo entre o homem e a natureza, processo este em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza. Ele se confronta com a matéria natural como com uma potência natural [Naturmacht]. A fim de se apropriar da matéria natural de uma forma útil para sua própria vida, ele põe em movimento as forças naturais pertencentes a sua corporeidade: seus braços e pernas, cabeça e mãos. Agindo sobre a natureza externa e modificando-a por meio desse movimento, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. (MARX, 2015, p. 326-327).

Nessa mesma perspectiva marxiana, Della Fonte (2018, p.11) define que “trabalho é a transformação da natureza pelo ser humano; em função das necessidades, o ser humano se apropria de objetos da natureza e os transforma”, e faz isso na relação com o outro, produzindo o que se denomina de patrimônio cultural. Nesse sentido, o acesso aos bens culturalmente produzidos pela humanidade é condição para a humanização, para a formação humana.

Portanto, a categoria trabalho se apresenta como centralidade na obra de Marx, condição para a manutenção da vida e atividade consciente que pertence exclusivamente ao homem por sua capacidade de transpor para o mundo das ideias um projeto com vistas à sua efetivação real.

Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos favos de suas colmeias. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera. No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador e, portanto, idealmente. (MARX, 2015, p. 327).

De acordo com Saviani (2016, p.716), o que move a investigação de um objeto é qualquer problema que se apresente como relevante, o qual pode se revelar em diferentes circunstâncias. No enfrentamento das questões relativas à educação, é preciso compreender a natureza desta, pois é nela que se encontram “os critérios para efetuar a crítica teórica”. Para ilustrar o seu pensamento, o autor recorre ao procedimento adotado por Marx para a compreensão da essência humana, segundo os seus Manuscritos Econômico-Filosóficos, de 1844, nos quais chega à conclusão de que tal essência está na atividade do trabalho:

[…] o ser do homem, a sua existência, não é dada pela natureza, mas é produzida pelos próprios homens […]. Portanto, é pelo trabalho que os homens se produzem a si mesmos. Logo, o que o homem é, o é pelo trabalho. O trabalho é, pois, a essência humana. (SAVIANI, 2016, p. 716).

A partir de estudos sobre economia política, Marx constitui as bases de sua teoria social na relação com o movimento operário de sua época. Sua teoria social é intrínseca à realidade e o seu objeto de análise é apreendido em seu movimento histórico, algo que pode ser percebido em uma declaração de Marx referindo-se a Proudhon em sua obra A Miséria da Filosofia.

O que o Sr. Proudhon não soube ver é que os homens produzem também, conforme suas faculdades produtivas, as relações sociais nas quais produzem a seda e o tecido. E, ainda, não soube ver que os homens, que produzem as relações sociais segundo a produção material, criam também as ideias, as categorias, isto é, as expressões abstratas ideais destas mesmas relações sociais. Portanto, estas categorias são tão pouco eternas quanto as relações que expressam. São produtos históricos e transitórios. (MARX, 1985, p. 212).

Referindo-se a essa citação, Resende (2016, p.1003) afirma que Marx indica aqui “a determinação material da realidade, do conhecimento, do pensamento, da totalidade social”. E, complementa que “as relações concretas materiais e historicamente determinadas entre os homens determinam a totalidade da vida social”. Isso denota também a compreensão da transitoriedade do conhecimento, da teoria e da própria realidade. Resende (2016, p.1004) conclui então que “enquanto síntese da totalidade que articula na realidade concreta, a teoria é história, práxis social”.

Para Marx e Engels (2007), a práxis é intrínseca ao trabalho como atividade social consciente. É na produção, nas relações sociais, que o homem produz sua vida e desenvolve sua prática, que é material e também é carregada de subjetividades. A educação é um dos elementos constitutivos da práxis material.

Não têm história, nem desenvolvimento; mas os homens, ao desenvolverem sua produção e seu intercâmbio material, transformam também, com esta sua realidade, seu pensar e os produtos de seu pensar. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência. No primeiro modo de considerar as coisas, parte-se da consciência como do indivíduo vivo; no segundo, que corresponde à vida real, parte-se dos próprios indivíduos reais, vivos, e se considera a consciência apenas como sua consciência. (MARX; MARX; ENGELS, 2007, p.94).

Segundo Frigotto (2000, p.81), no processo de construção do conhecimento da realidade, o que é fundamental é utilizar a crítica e o conhecimento crítico para uma prática que transforme a realidade, no plano do conhecimento e no plano histórico-social, desprezando o conhecimento pelo conhecimento e a crítica pela crítica. Compreende que o conhecimento, na teoria materialista histórica, “se dá na e pela práxis”, […] unidade indissolúvel de duas dimensões distintas diversas no processo de conhecimento: a teoria e a ação”. 

Marx e Engels (2007), na tese II sobre Feuerbach, apresentam o seu critério de verdade a partir de sua formulação sobre a práxis:

A questão de saber se ao pensamento humano cabe alguma verdade objetiva [gegenständliche Wahrheit] não é uma questão da teoria, mas uma questão prática. Na prática tem o homem de provar a verdade, isto é, a realidade e o poder, a natureza citerior [Diesseitigkeit] de seu pensamento. A disputa acerca da realidade ou não da realidade de um pensamento que se isola da prática é uma questão puramente escolástica. (MARX; ENGELS, 2007, p.537).

O método em Marx tem base revolucionária, rompe com os pensamentos filosóficos anteriores de bases metafísicas, empiristas, positivistas e estruturalistas. O materialismo histórico-dialético parte do real aparente em busca de sua essência, e nesse movimento vai desvelando os interesses antagônicos, as suas contradições, e apresentando a luta de classes existente. Netto (2011, p. 42) mostra que a produção teórica em Marx será “tanto mais correta e verdadeira, quanto mais fiel for ao objeto”, acrescentando:

Como bom materialista, Marx distingue claramente o que é da ordem da realidade, do objeto, do que é da ordem do pensamento (o conhecimento operado pelo sujeito): começa-se “pelo real e pelo concreto”, que aparecem como dados; pela análise, um e outro elementos são abstraídos e, progressivamente, com o avanço da análise, chega-se a conceitos, a abstrações que remetem a determinações as mais simples. […] depois de alcançar aquelas “determinações mais simples”, “teríamos que voltar a fazer a viagem de modo inverso, até dar de novo com a população, mas desta vez não como uma representação caótica de um todo, porém como uma rica totalidade de determinações e relações diversas”. É esta “viagem de volta” que caracteriza, segundo Marx, o método adequado para a elaboração teórica. (NETTO, 2011, p. 42-43).

Gramsci (2001), em seus escritos nos Cadernos do Cárcere, compreende o trabalho como princípio educativo, concebendo-o de forma indissociável da educação escolar. Apoia-se em uma experiência pedagógica com ênfase na formação cultural do sujeito omnilateral, caracterizado por sua formação multidimensional. Para tal, faz-se necessária uma escola unitária, que rompa com a dicotomia teoria e prática e que possibilite que todos – operários e dirigentes – se assumam como “intelectuais orgânicos”, conscientes tanto de sua condição de classe, combatendo o trabalho alienado (o qual acentua a divisão de classes e mantém a hegemonia da classe dominante), quanto de que nenhuma atividade humana é neutra. Assim, entende-se que a prática educativa pode contribuir para a alienação, reprodução social ou para a emancipação, a depender dos objetivos a que se propõe. 

Conforme os fundamentos gramsciano, defende-se que é preciso fortalecer a luta de classes e combater as mazelas sociais com ênfase na formação científica e cultural, a fim de promover a emancipação dos sujeitos, considerando que a realidade, por ser historicamente determinada, é um processo em constante movimento e passível de transformação.

3. A formação do professor alfabetizador numa perspectiva materialista histórico-dialética

A pesquisa, com base do materialismo histórico-dialético,  é um elemento central na formação do professor uma vez que traz elementos para a análise crítica das estruturas e superestruturas que permeiam a educação, possibilitando a compreensão profunda da realidade social, política e econômica que envolve o processo educativo.

A partir da análise das categorias do método materialismo histórico dialético, considera-se fundamental integração entre teoria e prática na formação dos professores e no trabalho educativo, uma vez que, como apontam Silveira e Barbosa (2020), “na visão marxista afirma-se que a unidade entre teoria e prática só pode ser formulada quando se tem presente a prática como atividade objetiva e transformadora da realidade concreta, material e, portanto, prática social”.

Em consonância com as ideias aqui apresentadas, Freire (1996) discute seu conceito de formação, afirmando que esta é um ato permanente, na confluência da dialética entre sujeito formador e sujeito formado. Nessa relação, para o educador pernambucano, não existe o sujeito e o objeto, pois, se assim fosse concebido, correr-se-ia o risco de se formar o falso sujeito.

Se, na minha experiência de formação, que deve ser permanente, começo por aceitar que o formador é o sujeito, em relação a quem me considero objeto, que ele é o sujeito que me forma e eu, o objeto por ele formado, me considero como paciente que recebe os conhecimentos-conteúdos acumulados pelo sujeito que sabe e que são a mim transferidos. (FREIRE, 1996, p.25).

De fato, o pensamento freiriano advoga que, para que haja formação do sujeito, é preciso que desde o começo do processo fique claro que “quem forma se forma e re-forma ao formar e quem é formado forma-se e se forma ao ser formado” (FREIRE, 1996, p.25). 

Em um processo formativo pautado pela práxis, os educadores são sujeitos da sua formação e vivenciam a formação de maneira permanente, construindo seus conhecimentos, inovando, transformando a prática educativa, diferente do que ocorre quando se tem uma concepção de qualificação em perspectiva precedente.

Essa concepção de educação precedente polariza a vida em dois tempos: de aprender e fazer, de formação e de ação. Polariza a teoria e prática, o pensar e o fazer, o trabalho intelectual e o manual. Polariza e separa as minorias pensantes e as maiorias apenas ativas. Essa mesma concepção tem inspirado o pensar a formação e a qualificação de professores. (ARROYO,1999, p. 146)

Arroyo (1999), ao elaborar essa crítica, trouxe reflexões sobre questões inerentes ao “Ofício de Mestre”, visto que para ele não é possível a cada conjuntura mudar o papel social e cultural do professor, assim, considera que é preciso formar professores pensando em algumas dimensões permanentes desse ofício. Segundo esse autor, os profissionais “formados ou deformados” nas últimas décadas vêm se interessando, cada vez mais, por aprendizagens que os preparem para intervenções pontuais, para tarefas concretas, tornando-se tarefeiros. 

Penso que uma das tarefas urgentes das pesquisas e análises políticas e dos currículos de formação é superar a visão tradicional e avançar em outro olhar que leve as pesquisas, teorias, políticas e currículos na direção do que há de mais constante, mais permanente no velho e sempre novo ofício de educar, de humanizar de formar as mentes, os valores, os hábitos, as identidades, de produzir e aprender o conhecimento. Não é essa a função social e cultural da educação básica e de seus mestres? Não é esse o subsolo, tão denso quanto tenso, do qual situou o ofício de mestre, a função pedagógica? (ARROYO, 1999, p.153).

A partir desse referencial teórico, apoia-se em uma concepção de formação de professores alfabetizadores que de fato rompa com o tecnicismo tradicional e com a ideia de formação precedente. Também, a posição aqui defendida é contrária à formação do professor a partir da fundamentação da praxiologia da reflexão, como destacam Facci, Leonardo e Silva (2010, p.219) ao discorrerem sobre a pedagogia do professor reflexivo, de Donald Schon, pois acredita-se que a reflexão sobre a prática, por si só, não consegue “romper com uma prática profissional envolvida pela trama social complexa e contraditória”. 

Para superar as dificuldades vivenciadas na prática profissional, na qual a formação dos educadores está subsumida ao capital, não basta apenas refletir sobre a prática pedagógica, ou ainda formar professores com ênfase em competências, produzindo indivíduos flexíveis vinculados à lógica mercantilista. 

Facci, Leonardo e Silva (2010) refletem que é preciso considerar o conhecimento teórico-crítico produzidos pela humanidade, o contexto sócio-histórico e as relações estabelecidas na prática pedagógica, para não recair no que denominam de secundarização do ensino, esvaziamento e desvalorização do trabalho do professor. 

As autoras supracitadas destacam as contribuições da Psicologia Histórico-Cultural, da Pedagogia Histórico-Crítica e da produção teórica de Lev Vygotsky como elementos fundamentais para compreender o processo de ensino-aprendizagem. Para Vygotsky, segundo Facci, Leonardo e Silva (2010), a humanização se dá por meio do ensino, da apropriação que os indivíduos fazem da cultura, dos conhecimentos historicamente acumulados pela humanidade. Nessa perspectiva, o professor ensina de forma intencional e consciente o que o aluno ainda não consegue aprender sozinho, contribuindo para sua aprendizagem e desenvolvimento e instrumentalizando-o para compreender a realidade social de forma crítica. Assim, enfatizam que

A prática docente implica em criar possibilidades de que o aluno se apropria dos instrumentos psicológicos necessários para desenvolver os processos psicológicos superiores. Por meio da internalização dos instrumentos dados culturalmente, via mediação educativa, o homem passa ter acesso a produções culturais cada vez mais amplas e diversificadas. (FACCI; LEONARDO; SILVA, 2010, p.226).

É necessário formar professores conscientes da função social do seu trabalho dentro de uma sociedade de classes. Assim, pensa-se em uma formação continuada que possibilite ao professor alfabetizador refletir sobre o uso e a função social da língua, levando-o a se questionar sobre o sentido de seu trabalho: o que ensinar, para quem, para que e como? Goulart (2019, p.68-70) explana que na alfabetização a escolha dos objetos de estudo e de ensino deve produzir “sentido vivo, histórico e político”, ser interessante para o aluno e possibilitar o seu desenvolvimento. A autora faz crítica às concepções lineares e instrumentais, enfatizando que nestas a relação entre o sujeito e a linguagem foca na escrita como língua, nas atividades e nas técnicas, e o sujeito fica subsumido pelo método, fazendo com que a escrita perca o seu sentido e sua função social. Assim, ao simplificar o trabalho de alfabetizar, desvinculam-se as práticas de escrita do movimento histórico e cultural e se retira a complexidade da produção de textos escritos.

O trabalho alfabetizador, mobilizando atos cognitivos e criadores de sujeitos em interação, abre-se para o ensino-aprendizagem da escrita com sentido, humano e cultural. Não se trata de atualizar conhecimentos, mas de repensar o sentido político de estar na escola e de aprender a ler e a escrever. (GOULART, 2019, p.76).

Ao longo da história da educação brasileira, a alfabetização tem se constituído num problema social, tornando constante a busca por mudanças para esse quadro. No entanto, para Kramer (2001, p. 13), “essa busca tem gerado alternativas equivocadas”, ao se verificar a implementação de projetos e programas que visam inovar a prática, mas que, em suma, acabam por reproduzir ações pedagógicas tradicionais. Kramer justifica sua afirmação, a partir do seguinte questionamento:

Mas por que considero essas alternativas equivocadas? Porque pretendem trazer soluções rápidas e eficazes para os mais diversos contextos, soluções redentoras para o campo da educação, saídas mágicas, mirabolantes, de forte impacto social e fáceis ganhos eleitorais […] enquanto a fé nas mudanças concretas, objetivas, reais e possíveis vai se deteriorando. […] enquanto, a vida educativa contemporânea, cada vez mais se distancia daquilo que é efetivamente necessário para que todos tenham acesso à leitura e a escrita. (KRAMER, 2001, p.13).

A referida autora complementa que para assegurar a alfabetização, faz se necessário um projeto político, econômico e cultural sólido, calcado na democracia e na justiça social. Ressalta a ideia de uma política “cultural sólida e consistente”, com propostas para dentro e fora da escola. Entre as ações elencadas para dentro da escola, uma das apontadas por Kramer (2001) foi a formação permanente dos professores, enfatizando que são prioritárias “condições materiais objetivas” que possibilitam a eles se tornarem leitores dos textos e do mundo, intelectuais críticos no seu contexto específico, caso contrário, não será possível superar o analfabetismo.

Os avanços, portanto, estão para além de pacotes prontos de alfabetização, é preciso partir da realidade objetiva, das condições de trabalho do professor e da sua formação inicial e continuada. Mas não em uma perspectiva redentora, ao contrário, é preciso situar os sujeitos, professores e estudantes, em suas escolas concretas que integram a sociedade capitalista que expropria direitos fundamentais de professores e estudantes.

Considerações finais

Reconhece-se a relevância de tratar o objeto de pesquisa por meio de um método científico que o compreenda em seu movimento histórico, que analisa suas múltiplas determinações, partindo do aparente para a essência. Numa perspectiva revolucionária, o materialismo histórico-dialético permite uma análise concreta da realidade com vista à transformação social. 

No campo da formação de professores, a escolha por este método de análise denota as concepções de sociedade e de homem que se deseja formar. Em consequência, dá também os contornos da teoria e da prática nos processos formativos dos sujeitos que, por meio da atividade consciente – o trabalho –, transforma o meio e por ele é transformado numa relação dialética. Portanto, o conhecimento se revela a partir de uma realidade que é transitória, passível de mudanças. Assim compreendida, a formação humana se dá na e pela atividade, por meio das interações e pelo acesso aos elementos culturais. 

Nesse sentido, a educação, como atividade intencional de formação humana, revela seus objetivos, suas intenções no ato de ensinar: O quê? Para quem? Como? Para quê? Numa perspectiva materialista, tenciona-se à transformação social, à formação para a emancipação.

O núcleo conceitual aqui utilizado, portanto, apoia-se nos fundamentos do materialismo histórico-dialético e na teoria histórico-cultural. A formação dos sujeitos, dos professores alfabetizadores, é compreendida em sua totalidade, a partir da concepção de que por meio do trabalho se humaniza, se educa e se forma. A formação deste profissional encontra-se subsumida ao capital, apoiada em fundamentos neoliberais de flexibilização dos indivíduos, secundarização do ensino, esvaziamento e desvalorização do trabalho do professor. Faz-se necessário, então, um projeto de formação que revele as condições materiais objetivas, e a partir delas vislumbre possibilidades para avanços rumo à superação dessa condição.

Referências

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