O USO DA ALIENAÇÃO PARENTAL NA JUSTIÇA BRASILEIRA: UM INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO OU DE SILENCIAMENTO DAS VÍTIMAS? UMA ANÁLISE A PARTIR DO LOCUS DO FEMINISMO JURÍDICO

THE USE OF PARENTAL ALIENATION IN THE BRAZILIAN JUSTICE SYSTEM: A TOOL FOR PROTECTION OR SILENCING VICTIMS? AN ANALYSIS FROM THE PERSPECTIVE OF LEGAL FEMINISM

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202504182239


Jade Lorrane Teixeira Primo Carvalho
Kalline Cristina Fernandes Carvalho
Nátale Vitória Vilas Boas Teixeira
Co-autora: Bárbara D’ angeles Alves Fagundes


RESUMO

O presente estudo analisa criticamente a aplicação do conceito de alienação parental em casos de violência doméstica, sob a perspectiva do feminismo jurídico. A pesquisa parte do pressuposto de que a Lei de Alienação Parental (Lei n. 12.318/2010) tem sido utilizada para deslegitimar denúncias de abuso e reforçar estereótipos de gênero, prejudicando mulheres e crianças em situações de vulnerabilidade. Através da análise jurisprudencial de casos emblemáticos, identifica-se uma tendência do Judiciário brasileiro em invalidar relatos de violência com base na presunção de manipulação materna. O estudo também discute a necessidade de reformas legislativas e de capacitação dos operadores do Direito para garantir a proteção efetiva das vítimas. Conclui-se que a aplicação acrítica da lei contribui para a perpetuação da desigualdade de gênero, demandando uma abordagem jurídica mais sensível às relações de poder que permeiam o Direito de Família.

Palavras-chave: Alienação parental, violência doméstica, feminismo jurídico, estereótipos de gênero, Direito de Família.

ABSTRACT

This study critically analyzes the application of the concept of parental alienation in cases of domestic violence from the perspective of legal feminism. It is based on the premise that the Parental Alienation Law (Law No. 12.318/2010) has been used to delegitimize abuse reports and reinforce gender stereotypes, harming women and children in vulnerable situations. Through a jurisprudential analysis of landmark cases, the research identifies a tendency within the Brazilian judiciary to invalidate reports of violence based on the presumption of maternal manipulation. The study also discusses the need for legislative reforms and legal professionals’ training to ensure effective protection for victims. It concludes that the uncritical application of the law contributes to the perpetuation of gender inequality, requiring a more sensitive legal approach to power relations within Family Law.

Keywords: Parental alienation, domestic violence, legal feminism, gender stereotypes, Family Law.

1 INTRODUÇÃO

A violência doméstica configura-se como uma das formas mais graves de violação de direitos fundamentais, afetando desproporcionalmente mulheres e crianças em diferentes contextos socioeconômicos. No Brasil, a promulgação da Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006) buscou enfrentá-la ao prever mecanismos de proteção e assistência às vítimas, bem como punições mais severas para agressores. Todavia, o percurso judicial nesses casos ainda encontra obstáculos, muitas vezes decorrentes da própria estrutura patriarcal que permeia o sistema jurídico, o qual tende a desconsiderar a complexidade das dinâmicas de violência e a reproduzir estereótipos de gênero. Além disso, a violência doméstica, historicamente invisibilizada e normalizada, reflete padrões culturais e institucionais que perpetuam a desigualdade de gênero, tornando a proteção efetiva das vítimas um desafio constante.

É nesse cenário que se insere o debate sobre alienação parental, institucionalizada pela Lei n. 12.318/2010. Concebida originalmente para proteger o direito de crianças e adolescentes à convivência familiar, a alienação parental tem sido, por vezes, alegada de forma indiscriminada, dificultando a análise adequada de denúncias legítimas de violência doméstica. Questões como a deslegitimação dos relatos de abuso, a rotulação da mulher como “manipuladora” ou “emocionalmente instável” e a aparente neutralidade do Judiciário frente às assimetrias de poder mostram como a aplicação acrítica dessa lei pode agravar a vulnerabilidade das vítimas. Além disso, o uso indevido da alegação de alienação parental pode resultar em decisões judiciais que retiram a guarda dos filhos de mães que tentam protegê-los, expondo crianças e adolescentes a situações de risco.

Diante de tal problemática, o presente estudo se propõe a investigar as implicações e os desafios jurídicos advindos da aplicação do conceito de alienação parental em casos de violência doméstica, à luz do feminismo jurídico. Essa abordagem crítica parte do reconhecimento de que as normas, doutrinas e decisões não são neutras, mas refletem relações sociais historicamente construídas, muitas vezes mantendo mulheres e crianças em situação de desvantagem. Assim, busca-se contribuir para o aprimoramento do Direito de Família, com vistas a torná-lo mais sensível às desigualdades estruturais de gênero. Além disso, ressalta-se a importância do papel do Estado na construção de políticas públicas e estratégias judiciais que garantam uma proteção efetiva às vítimas, assegurando que o direito à convivência familiar não se sobreponha ao direito fundamental à integridade física e psicológica.

Como problema de pesquisa, indaga-se: “Quais as implicações e os desafios jurídicos da aplicação do conceito de alienação parental em casos que envolvem histórico de violência doméstica, considerando o feminismo jurídico?” Tal questionamento justifica-se pela necessidade de expor as possíveis falhas do sistema jurídico, destacando como decisões judiciais podem perpetuar ciclos de violência e revitimizar mulheres. O objetivo geral, portanto, consiste em analisar criticamente a aplicação do conceito de alienação parental em contextos de violência doméstica, tendo como sustentáculo teórico o feminismo jurídico. Entre os objetivos específicos, destacam-se a investigação das origens e críticas ao conceito de alienação parental no contexto feminista, a compreensão do impacto da violência doméstica na convivência e guarda dos filhos e a avaliação de alternativas que o feminismo jurídico pode oferecer para combater desigualdades de gênero no Direito de Família.

Para atingir tais propósitos, o estudo organiza-se em quatro partes principais. No tópico 2, “O Estado da Arte da Relação entre Violência Doméstica e Alienaçāo Parental no Brasil: Um Estudo de Jurisprudência”, são apresentadas decisões judiciais paradigmáticas que evidenciam o modo como o Judiciário tem aplicado a Lei de Alienação Parental em concomitância com alegações de violência doméstica. No tópico 3, “Feminismo Jurídico e Suas Críticas à Alienação Parental”, discute-se a construção de estereótipos de gênero na aplicação da lei, considerando a perspectiva do feminismo jurídico como vetor de transformação social e de proteção às mulheres. Por fim, no tópico 4, “Conclusão”, sintetizam-se os achados e propõe-se o fortalecimento de uma cultura de feminismo jurídico no âmbito do Direito das Famílias, com vistas à efetiva garantia dos direitos fundamentais das vítimas de violência doméstica e de suas crianças.

Com esse arcabouço, espera-se lançar luz sobre as tensões e contradições entre a tutela da convivência familiar e a proteção das vítimas de violência, demonstrando a urgência de reformas legislativas e práticas judiciais mais sensíveis às questões de gênero. Além disso, almeja-se contribuir para o debate acadêmico e profissional acerca das intersecções entre violência doméstica, alienação parental e feminismo jurídico, indicando caminhos possíveis para a construção de um Direito de Família que priorize a dignidade humana e a equidade de gênero. A relevância do tema transcende a esfera jurídica, pois impacta diretamente a vida de milhares de mulheres e crianças que buscam no sistema de justiça um amparo seguro contra a violência. Assim, este estudo reforça a necessidade de um olhar mais atento para as decisões judiciais e para a estruturação de políticas públicas que evitem a perpetuação de injustiças e promovam a equidade de gênero no âmbito do Direito de Família.

2 O ESTADO DA ARTE DA RELAÇÃO ENTRE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E ALIENAÇÃO PARENTAL NO BRASIL: UM ESTUDO DE JURISPRUDÊNCIA

Este tópico tem por objetivo apresentar uma análise crítica e jurisprudencial sobre como o judiciário brasileiro tem abordado casos envolvendo alegações simultâneas de alienação parental e violência doméstica. Com base em decisões de tribunais superiores, como o Superior Tribunal de Justiça (STJ), e de tribunais estaduais, incluindo o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) e o Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA), busca-se identificar padrões decisórios que possam revelar tendências judiciais, a influência de estereótipos de gênero e as potenciais consequências das aplicações dessas decisões sobre as partes envolvidas, especialmente mulheres e crianças.

O primeiro julgado analisado refere-se ao caso decidido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo no Agravo de Instrumento nº 2070734-54.2014.8.26.0000, oriundo da Comarca de Guarulhos. Neste caso, a genitora pleiteou judicialmente a suspensão das visitas paternas sob a alegação de abuso sexual contra a filha menor. O tribunal, após a realização de exames periciais e avaliação psicossocial negativa para o abuso alegado, julgou improcedentes as alegações da mãe, qualificando-as como atos de alienação parental. O acórdão enfatizou a importância da intervenção judicial imediata para coibir atos considerados de alienação parental, argumentando sobre o potencial de prejuízo psicológico irreversível à criança caso tais alegações infundadas se perpetuem.

Destaca-se que a decisão judicial, ao desqualificar as alegações da mãe como “temerárias” e “sem fundamento”, expõe uma preocupação recorrente na jurisprudência brasileira com a utilização da alienação parental como ferramenta jurídica defensiva em processos de guarda. No entanto, sob a perspectiva crítica do feminismo jurídico, conforme será aprofundado adiante, decisões como essa merecem um olhar cuidadoso, especialmente pela possibilidade de reprodução de estereótipos de gênero, como o da mãe manipuladora ou emocionalmente instável, e pela potencial deslegitimação das denúncias de violência doméstica reais, criando um cenário onde vítimas possam sentir-se desencorajadas a buscar proteção judicial.

Outro julgado relevante para análise crítica é o Agravo Regimental no AREsp 1.964.098 – AM, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Neste caso, estão presentes simultaneamente alegações de alienação parental por parte do pai e acusações de abuso sexual praticado pelo pai contra o filho menor por parte da mãe. A decisão do tribunal se apoiou fortemente em avaliações técnicas e psicossociais que concluíram pela ausência de provas suficientes sobre o abuso sexual, prevalecendo a acusação de alienação parental contra a mãe. Este cenário reflete um padrão preocupante já apontado pelo feminismo jurídico, onde as denúncias feitas por mulheres sobre abusos reais podem ser desqualificadas ou minimizadas com base em interpretações que reforçam estereótipos de gênero, como a ideia da mulher emocionalmente instável, vingativa ou manipuladora, especialmente em contextos de disputas familiares.

O julgado, ao desconsiderar as alegações maternas sob a justificativa da ausência de elementos comprobatórios suficientes, expõe uma questão sensível da jurisprudência brasileira: o risco de que denúncias legítimas feitas por mulheres sejam desacreditadas ou mesmo utilizadas contra elas judicialmente. Sob a ótica feminista já abordada no presente estudo, isso não apenas perpetua desigualdades estruturais de gênero, mas também desencoraja a busca de proteção por parte das vítimas, afetando diretamente os direitos fundamentais das mulheres e crianças envolvidas.

Por fim, analisa-se a Apelação nº 0303792-31.2015.8.05.0103, julgada pelo Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (TJBA). Este julgado trata explicitamente de alegações de violência doméstica envolvendo agressões físicas reiteradas e uma alegação por parte da vítima (mãe) de que o depoimento do filho estava comprometido devido à alienação parental praticada pelo réu (pai). A decisão judicial desconsiderou o depoimento da vítima alegando insuficiência probatória e, assim, questionando a validade dos depoimentos testemunhais e periciais apresentados pela vítima. Um exemplo claro dessa desconfiança judicial é a decisão que desconsidera o depoimento da vítima sob a alegação genérica de insuficiência probatória, sem uma análise mais aprofundada da coerência e da gravidade das denúncias feitas. Esta abordagem crítica permite destacar a recorrente desconfiança do sistema judiciário em relação às denúncias feitas por mulheres vítimas de violência doméstica, fortalecendo ainda mais a tese de que decisões como essas podem reforçar estereótipos de gênero, reduzir a credibilidade das vítimas e perpetuar o ciclo de violência, desestimulando futuras denúncias e minando a proteção efetiva dos direitos das mulheres e crianças envolvidas.

Os casos judiciais aqui analisados oferecem um panorama significativo para a compreensão crítica de como a jurisprudência brasileira lida com situações que envolvem, simultaneamente, alegações de violência doméstica e de alienação parental. A análise sugere que, embora existam decisões que reconheçam a complexidade e a gravidade desses contextos, ainda se observam padrões decisórios que tendem a deslegitimar denúncias de violência, reforçando estereótipos de gênero. Nesse sentido, destaca-se a importância de um exame mais criterioso por parte do Poder Judiciário, pautado em avaliações técnicas e interdisciplinares, de modo a equilibrar a proteção às vítimas e a garantia do melhor interesse da criança. Essa perspectiva amplia a possibilidade de decisões mais sensíveis às assimetrias de poder presentes nas relações familiares, contribuindo para o aperfeiçoamento das práticas judiciais e para a tutela efetiva dos direitos fundamentais envolvidos.

3 FEMINISMO JURÍDICO E SUAS CRÍTICAS À ALIENAÇÃO PARENTAL

Pelo exposto e como se verá melhor amiúde, o tópico do feminismo jurídico no contexto de alienação parental é amplamente discutido, sendo um importante marco para abordar as desigualdades de gênero reproduzidas no direito. 

Como esclarece Boiteux (2023), a Lei de Alienação Parental (Lei Federal 12.318/10) tem sua origem no conceito de “síndrome de alienação parental”, criado pelo psiquiatra e perito judicial estadunidense Richard Gardner. Ele defendia a ideia de que algumas mães, movidas por ressentimento ou instabilidade emocional, induziriam falsamente seus filhos a acreditarem que foram vítimas de abuso por parte dos pais. No entanto, essa suposta síndrome nunca recebeu reconhecimento oficial de instituições médicas ou científicas respeitadas. Apesar disso, o conceito influenciou debates no Brasil, levando à formulação da lei, impulsionada por forte atuação de grupos privados no Congresso Nacional.

Assim, no desenvolvimento do tópico, buscaremos destacar como as normas e práticas jurídicas reforçam relações de poder patriarcais, ignorando o impacto desproporcional das alegações de alienação parental sobre as mulheres e suas funções familiares socialmente construídas. Essa abordagem crítica ajudará a contextualizar os efeitos dessas leis e práticas dentro de um sistema jurídico que ainda não supera a perspectiva masculina como padrão.

Como se extrai dos julgados analisados no tópico anterior, a violência doméstica, passo a passo, galgou caminhos para se subverter em novas formas de violência, deixando marcas profundas, mas, também, menor chance de identificação e punição pela justiça. A alienação parental começa de forma silenciosa, mesmo antes do “último golpe” que vitimou a genitora da criança por violência doméstica. É uma forma de violência que se estende no tempo, vagarosa, e vítima não somente a criança, mas a genitora, alvo principal da violência, sendo o menor apenas um dos caminhos de perpetuação da violência. 

Paione (2023, s.p) já alertou que “(…) no auge da violência o ideal é afastar também a prole deste homem violento, até que os ânimos se acalmem, seja feito tratamento e encaminhamento terapêutico para depois ficar restabelecida a visita, especialmente nos casos em que há medida protetiva em vigor.”

Ressalvados os casos em que poderia haver uma possível alienação parental, após falso relato de violência doméstica, o que temos na extensa e ferrenha maioria das vezes, é uma acusação real, em um ambiente real de violência, com um homem problemático – para dizer o mínimo – que oferece riscos não só a vítima atual, mas a toda coletividade. Bom, nesses casos, a resposta jurídica deve prezar pela efetiva proteção dos direitos fundamentais envolvidos, por isso mesmo que a Lei Maria da Penha, em seu art. 22, I e II, prevê que entre as medidas protetivas de urgência, teremos:

II. afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;

III. proibição de determinadas condutas, entre as quais:

a. aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;

b. contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;

c. frequentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;

IV. restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar

Como explica Paione (2023), se, por um lado, a convivência entre pais e filhos atende ao superior interesse do menor, por outro lado, os efeitos reflexos danosos da violência de gênero atinge o núcleo familiar da vítima, e, por conseguinte, se encaixa na esfera de proteção. Assim, fica claro que a cautela na intermediação das relações entre a criança e o pai agressor, é também mecanismo para coibir mais violências, em um contexto que já inspira cuidados. Esclarece Paione (2023, s.p):

Esse também é o espírito da lei 12.318/10 (Lei de Alienação Parental), que define como alienação parental o ato de dificultar o exercício à convivência entre genitor e prole. A referida lei, em seu artigo 3º, assevera que o ato de alienação parental fere direito fundamental da criança ou do adolescente, relativo à convivência familiar saudável, constituindo-se inclusive abuso moral contra o menor. Desse modo, considerando que o direito à visitação pode ser restringido ou suspenso, com fulcro na Lei Maria da Penha, temos que tal limitação somente pode ocorrer se constar expressamente da decisão que conceder medidas protetivas, e, após estudo psicossocial, conforme disposto no artigo 22, inciso IV, da lei 11.340/06, ou ao menos até cessar os atos de violência, lembrando, por fim, que a família deve ser tratada como um todo, vítima, agressor e filhos, até para que esta estória deixe de se repetir em futuras relações e gerações.

De outro ponto, Hummelgen (2018), realiza uma análise a partir do feminismo jurídico, problematizando o uso da Lei de Alienação Parental (Lei n. 12.318/2010), que tem sido utilizada para deslegitimar denúncias de violência doméstica e abuso sexual contra crianças e adolescentes, prejudicando mulheres que tentam proteger os seus filhos. 

O ponto chave desse entorno é a reprodução de estereótipos de gênero nos debates sobre alienação parental, em que se verificou uma inversão, em que as vítimas denunciavam os seus agressores judicialmente, e nos autos acabavam sendo acusadas de alienação, chegando inclusive a perder a guarda dos infantes para o agressor.

A comoção alcançou a ONU que apelou ao Governo Federal pelo fim da Lei de Alienação Parental, sob os fundamentos de afronta ao Estatuto da Criança e do Adolescente, tomando o plano nacional pela iniciativa de mães, com cartazes em manifestações pelas ruas de vários estados, com os dizeres “Lei da Alienação Parental anula o ECA e a Lei Maria da Penha” e “não posso denunciar maus-tratos contra o meu filho quando o agressor é o pai!” (Boiteux, 2023, s.p).

Retomando a ideia inicial do capítulo, o próprio surgimento da Lei de Alienação Parental se dá em resposta a um pleito motivado por uma forma de violência de gênero, que tem em sua origem uma forma de manipulação de fatos para transformar mães, vítimas de violência doméstica, como rés em processos pela guarda dos filhos menores, sob a alegação principal de que algumas mães, movidas por ressentimento ou instabilidade emocional, induziriam falsamente seus filhos a acreditarem que foram vítimas de abuso por parte dos pais. 

O que se verifica é que do ponto de vista do feminismo jurídico, o problema da Lei de Alienação Parental (LAP) está no fato de que ela tem sido usada para deslegitimar denúncias de violência doméstica e abuso sexual contra crianças. O feminismo critica a origem da lei, baseada em um conceito sem reconhecimento científico, criado por um psiquiatra que costumava defender homens acusados de abuso. Além disso, é evidente que a LAP reforça estereótipos de gênero, ao retratar mulheres como manipuladoras e emocionalmente instáveis, enquanto protege agressores. Na prática, a lei pode ser utilizada para afastar mães protetoras de seus filhos e enfraquecer a luta contra a violência de gênero.

A patologização das genitoras, em prol de que seja dado início a uma campanha de vingança, no mínimo, perpetrada por agressores convictos que, não temerosos pela ação do judiciário, encaminham acusações em que, além de revitimizar a genitora, passam a vitimizar a criança. Não há dúvidas de que a aplicação da LAP tem servido não só para desacreditar denúncias de mulheres contra violências e abusos sexuais às crianças, mas para perpetuar relações de opressão entre genitores e mães, mesmo após a ruptura do ciclo de violência doméstica (Boiteux, 2023).

Em resposta, o que se verifica, segundo Hummelgen (2018, p. 20), é a invisibilização da desigualdade de gênero que permeia a discussão pró e contra a Lei e a criminalização da alienação parental. Em verdade, o posicionamento de neutralidade do judiciário diante do cenário, é também outra forma de permear a desigualdade de gênero, ao aceitar a manutenção da LAP e de pôr em discussão a criminalização da alienação parental, como explica:

De forma generalizada, a desigualdade de gênero é invisibilizada pela teoria jurídica, porque não se pondera a questão como relevante, tomando o masculino e seus interesses, necessidades e experiências como padrão.35 Na questão da alienação parental, ainda que uma parcela sólida da doutrina defenda a aplicação da lei no Brasil (como trabalho em diante), essa invisibilidade é patente quando se desconsidera que a construção social do papel das mulheres como “mães” é significativa nas relações conjugais e parentais que se estabelecem e na apreensão jurídica dessa realidade. Nesse sentido, os estudos feministas do direito partem da crítica “de que norma, doutrina e decisão subestimam as reais relações de poder e identificam, na construção destes elementos, o ponto cego correspondente às mulheres.”36 Ao se pensar nas relações entre mulheres e homens e, propriamente, nas relações de gênero, a partir de uma perspectiva feminista, a intenção é contestar justamente a situação na qual se estabelece a dominação-exploração masculina – no contexto específico, atribuindo às mulheres a condição de “alienadora” e ignorando as realidades de violência e subjugação que podem existir para além da identificação da alienação parental. Afinal, apesar da noção de gênero37 não carregar, por si só, uma estrutura de desigualdade, ela dá significado às representações do masculino e do feminino construídas pela sociedade, que por sua vez se relacionam com as funções assumidas por cada sujeito nas relações familiares.

Assim, o feminismo jurídico vem para alimentar o exato contraponto da desigualdade de gênero, da neutralidade do judiciário, e da perpetuação da violência, ao se permitir representar e dar ouvido às vozes que repensam a figura da “mulher” nas estruturas sociais, evidenciando as diferentes formas de exclusão que as circundam, e suas vulnerabilidades, que sempre apontam pela tirania sexista e que criam diferenças substanciais na qualidade de vida (Hummelgen, 2018).

Como esclarece Leite (2024), o problema da neutralidade narrado vai além, pois perpetua situações alarmantes que estão ocorrendo sob a égide de uma lei que protege o agressor e vandaliza os direitos fundamentais da genitora e das crianças envolvidas. O relatório da ONU justamente informou isso, em que:

Os tribunais de família rejeitam regularmente as alegações de abuso sexual das crianças apresentadas pelas mães contra pais ou padrastos, desacreditando e punindo as mães, incluindo através da perda dos direitos de custódia dos seus filhos”, afirmaram os peritos da ONU em carta enviada ao governo brasileiro em 2022 pedindo a revogação da lei. (Leite, 2024, s.p)

Por fim, o que se tem é que as pesquisas sobre violência doméstica indicam que as vítimas frequentemente internalizam a culpa pelos abusos sofridos e enfrentam grande insegurança quanto aos riscos de romper com o parceiro. Muitas mulheres têm dificuldade em conceber sua identidade feminina de forma autônoma, o que contribui para a permanência em relacionamentos abusivos. Esse cenário dá origem ao chamado “ciclo da violência”, no qual, mesmo após denúncias, as vítimas acabam retornando ao convívio com os agressores devido a promessas de mudança que, na maioria dos casos, não se concretizam. (Hummelgen; Cangussú, 2021)

Nesse contexto, a alienação parental pode ser entendida como parte de um problema mais amplo. Mulheres que passaram anos sob violência contínua podem ter dificuldades em confiar no ex-companheiro após a separação, levando-as a querer restringir seu contato com os filhos. O objetivo dessa reflexão não é justificar práticas de alienação parental, mas destacar que a questão precisa ser analisada considerando a complexidade das dinâmicas de violência de gênero, algo que ainda não tem sido devidamente abordado. (Hummelgen; Cangussú, 2021).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa buscou analisar criticamente as implicações jurídicas e sociais da aplicação do conceito de alienação parental em casos de violência doméstica, à luz do feminismo jurídico. A partir da análise jurisprudencial e teórica realizada (tópico 2), bem como das críticas feministas à Lei de Alienação Parental (tópico 3), observou-se que o sistema judiciário brasileiro, ao adotar indiscriminadamente o conceito de alienação parental, frequentemente reforça padrões discriminatórios de gênero. Esses padrões se manifestam por meio da descrença sistemática nas denúncias feitas por mulheres e da inversão de papéis, em que a vítima se vê acusada de manipulação ou instabilidade emocional, perpetuando estereótipos patriarcais.

As decisões judiciais analisadas revelam a utilização recorrente da Lei de Alienação Parental (Lei n. 12.318/10) – baseada em um conceito questionável e sem pleno reconhecimento científico – como estratégia para deslegitimar denúncias de violência e abuso. Isso colabora para a perpetuação das desigualdades de gênero ao colocar em risco a segurança e os direitos fundamentais tanto das mulheres quanto das crianças envolvidas. A leitura neutra e a histórica dos conflitos familiares ignora a realidade estrutural da violência doméstica, transformando a proteção da convivência familiar em um valor absoluto, mesmo quando há evidências de abusos.

A abordagem do feminismo jurídico evidencia, ainda, a necessidade de se reconhecer que as leis e práticas judiciais não estão isentas de relações de poder, muitas vezes beneficiando agressores e silenciando vítimas. Nesse contexto, uma cultura de feminismo jurídico no Direito de Família demanda o rompimento com a aparente neutralidade do sistema, propondo metodologias de análise e interpretação que valorizem a proteção efetiva das vítimas, bem como a consideração de equipes multidisciplinares e estudos sociais aprofundados. Somente assim será possível evitar que a mãe seja penalizada ao buscar resguardo para si e para seus filhos em cenários de violência, subvertendo o que deveria ser um instrumento de defesa em um mecanismo de revitimização.

Diante desse quadro, torna-se presente uma mudança legislativa e jurisprudencial que promova diretrizes mais sensíveis à questão de gênero em casos que envolvem alienação parental e violência doméstica. Reformulações no texto legal, capacitação contínua dos operadores do direito e a adoção de protocolos específicos para analisar denúncias de violência são medidas urgentes para garantir uma abordagem mais protetiva às vítimas. Em paralelo, a implementação de uma perspectiva feminista nas decisões judiciais sobre guarda e convivência, que reconheça a complexidade das dinâmicas familiares e da violência de gênero, pode contribuir de modo significativo para a construção de um sistema jurídico mais equitativo e justo.

Por fim, é fundamental que estudos futuros aprofundem a análise sobre as sobreposições entre alienação parental e violência doméstica, investigando tanto os avanços quanto as lacunas na aplicação do feminismo jurídico ao Direito de Família. Somente com a continuidade do debate acadêmico, associada a mudanças práticas no Judiciário, será possível alcançar um cenário em que as mulheres deixem de ser punidas por denunciarem abusos e passem a ter a garantia de seus direitos fundamentais, assim como o de suas crianças. Dessa forma, consolida-se a perspectiva de que o direito deve servir como instrumento efetivo de emancipação e proteção, afastando as amarras de estereótipos e desigualdades ainda presentes em nossa sociedade.

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