A CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA NA EXECUÇÃO PENAL: REFLEXÕES CRÍTICAS

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202504071350


Marina Andrade de Sousa


Resumo

Este artigo analisa a relação entre pobreza e o sistema de execução penal no Brasil, destacando como as condições socioeconômicas influenciam o tratamento dispensado aos apenados e perpetuam a exclusão social. A partir de uma revisão crítica da legislação penal e da prática judiciária, busca-se demonstrar como o sistema penal se configura como um instrumento de reprodução de desigualdades e criminalização da pobreza.

Palavras-chave: Criminalização da Pobreza. Execução penal. Seletividade Penal.

Abstract

This article analyzes the relationship between poverty and the penal execution system in Brazil, highlighting how socioeconomic conditions influence the treatment of inmates and perpetuate social exclusion. Through a critical review of penal legislation and judicial practice, it seeks to demonstrate how the penal system is configured as an instrument for reproducing inequalities and criminalizing poverty..

Keywords: Criminalization of Poverty. Criminal Execution. Penal Selectivity.

Introdução

A execução penal no Brasil reflete um panorama de desigualdade estrutural que transcende o âmbito jurídico, inserindo-se em um contexto mais amplo de exclusão social e criminalização da pobreza. Este artigo se propõe a investigar como a condição de vulnerabilidade econômica impacta o cumprimento da pena e perpetua a marginalização.

1. A Criminologia Crítica e a Criminalização da Pobreza

 A criminologia crítica desempenha um papel essencial na análise da criminalização da pobreza. Esse campo do conhecimento questiona as funções tradicionais do sistema penal, argumentando que ele serve como um instrumento de controle social que reforça desigualdades estruturais. Sob essa perspectiva, a pobreza não é apenas um fator de vulnerabilidade, mas também uma condição frequentemente associada ao “perigo” ou à “delinquência” em discursos punitivistas.

Autor como o jurista italiano Alessandro Baratta, em sua obra “Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal (1982)”, enfatiza que o Direito Penal opera como um mecanismo de manutenção das desigualdades sociais, havendo um processo seletivo que penaliza desproporcionalmente as camadas mais pobres da sociedade. Um exemplo é a disparidade entre as penas de crimes patrimoniais e os crimes de elites.

É nesse contexto que o legislador criou a hipótese de extinção da punibilidade – pagamento do tributo – aos crimes de sonegação fiscal, aqueles que são comumente praticados por uma camada mais elitizada da sociedade. Contudo, não criou para os crimes contra o patrimônio. Percebe-se, portanto, como a seleção  de quem ficará ou não privado de liberdade, decorre desde a elaboração da norma penal pelo legislador.

Ademais, a criminalização da pobreza não se limita apenas na esfera penal, porém se manifestam em outras esferas da vida social. Wacquant reflete que o Estado moderno tende a tratar a pobreza não como um problema a ser resolvido, mas como uma ameaça a ser controlada. Essa abordagem perpetua a intersecção entre racismo e pobreza, criando um ciclo de exclusão, no qual negros e pardos enfrenteam violência estatal, tanto nas abordagens policiais ou no próprio sistema judiciário.

Outro importante autor, Eugenio Raúl Zaffaroni, em “Em Busca das Penas Perdidas”, descreve o sistema penal como um instrumento de controle das populações marginalizadas, funcionando como ferramenta de repressão seletiva que perpetua as desigualdades sociais.

Com isso, os condenados vulneráveis além de serem vítimas do desemprego em massa, trabalho precário, recuo de políticas sociais foram submetidos à lógica perversa do encarceramento. Nesse sentido, a força repressiva do Estado recae sobre a classe mais pobre, numa estratégia de conceder salvo conduto para perseguir tal grupo

Casos emblemáticos, como o “Caso Honorato vs Brasil” na Corte Interamericana de Direitos Humanos, ilustram essa realidade. No episódio, o Brasil foi condenado pelo uso desproporcional da força policial em uma operação que resultou na execução extrajudicial de 12 pessoas. Esse julgamento evidenciou a relação entre a repressão estatal e a criminalização da pobreza.

Dito isso, não poderíamos deixar de tratar o tema do perfilhamento racial e como isso reflete no direito penal e na seleção dos presos. O perfilamento racial nada mais é, de forma simples, o termo usado para se referir ao processo pelo qual as forças policiais utilizam de estereótipos, fundada na raça, cor, descendência, nacionalidade ao revés de critérios objetivos ao submeterem determinado grupo a revistas e investigações, resultando em discriminação.

Nesse viés,  no HC (HC) 208.240/SP, o Ministro Fachin concedeu o HC de ofício, por entender que o testemunho de policiais que abordaram o Paciente comprova o perfilamento racial, ao afirmarem que o abordaram por terem visto “indivíduo negro/de cor negra” em situação que acham típica de vendas de drogas, em dinâmica que o relator bem entende que não gera justa causa de abordagem policial por fundada suspeito (critério objetivo)..

No mesmo julgado, o douto ministro destacou que o perfilamento não gera necessariamente crime de racismo, por este exigir dolo, enquanto aquele usualmente ocorre por vieses que partem de estereótipos racistas que presumem que pessoas negras são criminosas, em situações na qual não se presumiram caso fossem brancas ou caso a infração ocorre em um bairro nobre.

Quanto ao perfilamento podemos citar um caso no âmbito da Jurisprudência internacional que tratou diretamente sobre perfilamento racial com a condenação do Estado Argentino. O caso mencionado trata-se do caso denominado “Acosta Martínez y outros vs Argentina, onde houve o reconhecimento e a condenação do Estado sul americano, em que ficou constado as abordagens e prisões de pessoas negras baseadas em “perfis raciais”, ensejando em diversas privações de liberdade arbitrária.

Portanto, é notória a estreita relação entre o encarceramento em massa e a criminalização da pobreza. Com essa reflexão crítica, a pergunta que se faz é: somente as pessoas negras encarceradas que praticam crimes ou somente elas são selecionadas e penalizadas ?

Segundo a pesquisa realizada pelo jornal “Gazeta do Povo”, em 14/02/2020, que de 657 mil presos, 438,7% são negros, ou seja, mais de 66% das pessoas. Ainda, verifica-se que apenas 11% são crimes contra a pessoa, sendo  284 mil presos( 36,7% do total)  são crimes contra o patrimônio.

O autor Wacquant em sua obra “Punir os pobres” permite aprofundar nas questões que giram em torno do encarceramento em massa no Brasil. Wacquant busca a solução do problema por meio um abordagem baseada em direitos humanos, tratando a questão da pobreza como uma questão de justiça social e não de ameaça a ser contida pelas forças Estatais.

Portanto, a reflexão crítica da criminalização da pobreza é de suma importância para compreender como o sistema penal, como um todo, é impactado pelas desigualdades sociais e como essas questões podem perpetuam ainda mais a exclusão social e marginalização da classe dominada.

2- A CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA E OS DESDOBRAMENTOS NA EXECUÇÃO PENAL.

O ordenamento jurídico prevê que em determinada situações expressas na lei, como crimes de baixa gravidade, o apenado poderá ser beneficiada pela substituição da  pena privativa de liberdade  por pena restritiva de direitos. Contudo, o artigo 44, § 4º, do Código Penal estabelece que “a pena restritiva de direitos se converte em privativa de liberdade quando ocorrer o descumprimento injustificado da restrição imposta”.  

Nesse sentido, o autor e jurista Guilherme de Souza Nucci conceitua a finalidade da restritiva de direitos da seguinte forma:

“São penas alternativas às privativas de liberdade, expressamente previstas em lei, tendo por fim evitar o encarceramento de determinados criminosos, autores de infrações penais consideradas mais leves, promovendo-lhes a recuperação por meio de restrições a certos direitos” (NUCCI, Souza Guilherme 803).

Ademais, menciona-se que as espécies de penas restritivas de direito estão elencadas no artigo 43 do Código penal, em seus incisos I a IV. Dentre elas, a prestação pecuniária (PEC) e a prestação de serviço à comunidade (PSC). Assim, a PEC consiste no pagamento em dinheiro à vítima, não podendo ser inferior a 1 (um) salário mínimo e nem superior a 360 (trezentos e sessenta) salários mínimos; Já a PSC, aplica-se a condenações superiores a 6 meses, em que o assistido cumprirá tarefas gratuitas devendo ser cumpridas em 1 hora por dia.

Em que pese, a função inicial tenha sido de beneficiar os sentenciados, por intermédio da substituição da pena de prisão, pode-se dizer que na prática da execução penal vê-se que a pena alternativa é pouco eficaz e apenas reforça a ideia da criminalização da pobreza. Isso porque, o legislador, mais uma vez, desprezou as condições sociais e econômicas dos apenados ao criar penas que previliegiam àqueles condenados mais abastados.

Dessa forma, para os indivíduos mais abastados, as penas pecuniárias representam um impacto mínimo, sendo rapidamente cumpridas sem afetar significativamente sua vida cotidiana. Esse descompasso aprofunda a desigualdade no sistema penal, mostrando como a aplicação das penas alternativas pode, paradoxalmente, beneficiar aqueles em melhores condições financeiras, enquanto penaliza desproporcionalmente os mais pobres

A título de exemplo, não rara às vezes, o sentenciado que está em regime fechado cumprindo a pena pelo crime B, recebe a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direito pelo crime A, ocorreu antes do crime B e é indagado se deseja cumprir a PEC. Contudo, o apenado não consegue arcar com os valores da PEC, seja por ser pobre ou por não ter familiar com condições econômicas de quitar o valor, gerando a revogação da medida alternativa e unificando as penas todas no fechado.

O exemplo tratado acima é um caso prático e corriqueiro na execução penal, que demonstra que àquele apenado pobre sofre as consequências da penalização de maneira desproporcional e mais gravosa.

É nesse viés que podemos também citar como a pobreza impacta no cumprimento da prestação de serviço à comunidade que exige o cumprimento das tarefas gratuitas impostas ao condenado na proporção de 1 hora por dia ou aos finais de domingo. Contudo, ao se observar o cenário dos custodiados no Brasil, verificará que, em sua maioria, não há qualquer formação acadêmica, quiçá técnica profissional. Dito isso, deparamos com uma realidade em que vários apenados realizam bicos para promover o sustento do lar, visto que, em sua maioria, não possuem qualificação profissional.

Com isso, exigir do sentenciado o trabalho aos finais de semana, seria privá-lo do sustento familiar, bem como do convívio com sua família, os quais sofriam também as consequências da pena. Por outro lado, um apenado em condições de pagar uma PEC jamais sofreria tal consequência.

A criminalização da pobreza na execução penal é evidenciada em diversas práticas e normas que, embora aparentemente neutras, penalizam desproporcionalmente pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconômica. Um exemplo emblemático é a dificuldade de progressão de regime para presos que não possuem recursos financeiros para arcar com determinadas obrigações legais, como o pagamento da pena de multa ou a progressão de regime mediante a reparação do dano.

Ressalta-se que apenas recentemente o Superior Tribuna de Justiça tratou do tema da extinção da punibilidade e pagamento de multa, no tema 931.  O TEMA 931 prevê que a ausência do pagamento da pena de multa constitui óbice a extinção da punibilidade do réu que já cumpriu a pena privativa de liberdade, ressalvado os casos de condenado hipossuficiente.

Nas palavras do Ministro Schietti Cruz, “Presume-se a pobreza do condenado que sai do sistema penitenciário – porque amparada na realidade visível, crua e escancarada – permitindo-se prova em sentido contrário”. Schietti apontou que a posição do Supremo sobre a necessidade de pagamento de multa estava voltada especialmente às pessoas condenadas por crimes contra a Administração Pública e colarinho-branco, cujas condições econômicas anteriores à condenação normalmente possibilitam o pagamento da sanção.

Por fim, o ministro, afirma que o cenário pode aprofundar ainda mais a desigualdade socioeconômica dos egressos do sistema prisional, principalmente, considerando o perfil do sistema penal brasileiro- majoritariamente jovem e negro. Dito isso, é inconcebível pensar que aquele condenado que cumpriu sua pena, mas não possui condições econômicas de quitar a pena de multa será impossibilitado de  ver se livre solto.

Outrossim, o artigo 126 da Lei de Execução Penal(lei 7.210/98) prevê a remição do trabalho/estudo; o  art. 132 da LEP  prevê a obrigatoriedade de atividade lícita para obtenção do livramento condicional; artigo 114 da LEP prevê que somente poderá ingressar no regime aberto o condenado que estiver trabalhando.

Observa-se dos dispositivos citados que os benefícios da execução da pena ( progressão, livramento condicional, remição por trabalho/estudo) dependem do apenado comprovar o trabalho. Todavia, o acesso as oportunidades é desigual, ainda mais, tratando-se de  ex detento, os quais enfrentam uma série de dificuldades para obter emprego.

Ademais, quando estamos falando de presos no Brasil, estamos tratando de um grupo em que, em sua maioria, não há formação acadêmica, quiçá profissional. Portanto, mais uma vez, estamos diante da criminalização da pobreza, visto que os apenados não conseguem obter o trabalho e são vistos impedidos de obter os benefícios da pena, o que prolonga o encarceramento e agrava a condição de exclusão.

Ainda,  destaca-se a possibilidade de encarceramento de indivíduos que, mesmo sendo liberados provisoriamente, não conseguem cumprir a medida cautelar de pagamento de fiança. Essa realidade evidencia de forma clara a criminalização da pobreza, uma vez que transforma a liberdade em um privilégio condicionado à capacidade financeira.

Esses exemplos ilustram como o sistema da execução penal opera seletivamente, punindo mais severamente os vulneráveis, perpetuando a desigualdade social e ferindo os direitos da pessoa humana, violando sua dignidade. Dessa forma, a execução da pena se transforma em um instrumento de marginalização  e exclusão da população pobre.

Dessa forma, indivíduos em situação de vulnerabilidade socioeconômica acabam sendo penalizados duplamente: além do processo judicial, são mantidos encarcerados simplesmente por não disporem de recursos financeiros. Essa situação expõe a desigualdade do sistema de execução  penal, favorecendo aqueles com maior poder aquisitivo, perpetuando a exclusão social e a marginalização dos mais pobres.

Em última análise, essas práticas reforçam a seletividade penal e aprofunda as desigualdades sociais, utilizando a pobreza como critério implícito quem permanece livrou e quem deve ser privado de sua liberdade.

3. Considerações Finais.

A criminalização da pobreza na execução penal é um reflexo das desigualdades estruturais que atravessam a sociedade brasileira. Superar esse fenômeno exige uma abordagem que integre as políticas públicas inclusivas com uma reforma no sistema de justiça penal. A atuação efetiva do Estado não pode se limitar à aplicação de penas, mas deve englobar esforços para romper o ciclo de exclusão social que alimenta o sistema penal. Assim, uma sociedade mais justa e igualitária poderá ser construída.

É necessário que seja criado políticas públicas de educação e capacitação profissional para os apenados, bem como sejam revistas as penas pecuniárias e medidas alternativas, a fim de torna-las mais eficazes, considerando as condições socioeconômicas. Além da importância do fortalecimento da Defensoria Pública, garantindo amplo acesso à justiça às camadas mais excluídas da sociedade. O legislador precisa repensar na legislação em um contexto brasileira de profunda desigualdade social que hoje assola o Brasil.

Refletir sobre o assunto nos faz perceber que o direito penal ele não pode ser instrumento de perpetuação das desigualdades ou exclusão social, mas deve garantir que cada apenado tenha sua pena cumprida de maneira justa e igualitária, materialmente, falando.

Referências

https://www.migalhas.com.br/coluna/direitos-humanos-em-pauta/383332/teoria-de-precedentes-e-teses-do-stf–o-caso-do-perfilamento-racial.

Fux pede vista em caso que discute racismo em abordagem policial

Cumprimento da pena sem pagar a multa não extingue punibilidade

https://www.geledes.org.br/acostamartinez.

https://www.gov.br/mdh/pt-br/ptassuntos/noticias/2024/marco/corte-idh-condena-estado-brasileiro-em-razao-de-violencia-policial-promovida-pela-pm-em-rodovia-de-sao-paulo

https://scielobrasil/www.scielo.br/ocontroledapobrezaoperadoatrasvésdo sistemapenal. (Lei de Execução Penal Lei. 7210)

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https://brasil.un.org/pt-br/105298-perfilamento-racial-debates-realizados-pela-onu-discutem-recorrência-de-casos-e-desafios.

www.gazetadopovo.com.br/republica/populacao-carceraria-triplica-brasil-2019/

https://www.jusbrasil.com.br/artigos/a-criminalizacao-da-pobreza-no-brasil-reflexoes-a-partir-da-obra-punir-os-pobres-de-loic-wacquant