REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202503311242
Julio Cesar Pires Pereira
Orientador: Prof. Dr. Jaime José Zitkoski
Resumo
Este estudo tem o objetivo de demonstrar a compreensão por ocasião do Seminário sobre as contribuições de Anibal Quijano quanto às teorias de(s)coloniais, ministrado pela Profa. Dra. Neusa Chaves Batista da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), abordando textos sugeridos para leituras e análises dos quais destaco a seguir: no bloco 1, os textos considerados foram: Anibal Quijano e os principais aspectos e contexto de emergência das teorias de(s)coloniais – uma breve história dos estudos decoloniais de QUINTEIRO, FIGUEIRA e ELIZALDE (2019); e El pensamiento decolonial: desprendimiento y apertura – um manifesto de MIGNOLO (2007); o bloco 2 refere-se às noções de colonialismo, colonialidade do poder e globalização capitalista, valendo-se dos textos de Aníbal Quijano Estado-Nación, Ciudadanía y Democracia; Colonialidad del Poder, Eurocentrismo y América Latina e como textos de apoio “RAÇA”, “ETNIA”, Y “NACIÓN” en Mariátegui – questiones abiertas de e Colonialidade do poder e Classificação Social, parte integrante do livro de Boaventura de Souza Santos e Maria Paula Menezes sobre as “Epistemologias do Sul”. O bloco 3 focou como temática “As teorias de Aníbal Quijano e aplicações em estudos no campo da educação e das políticas públicas”, tendo, como base os textos de Wendell Ficher Teixeira Assis (“Do colonialismo à colonialidade: expropriação territorial na periferia do capitalismo”) e o texto de Luís Fernandes de Oliveira e Vera Maria Candau -“Pedagogia decolonial e educação antirracista e intercultural no Brasil”. Os textos de apoio para o estudo foram: “Comissões de Heteroidentificação racial para acesso em universidades federais”, da Professora e Socióloga Neusa Chaves Batista e de Hodo Apolinário Coutinho de Figueiredo, bem como “A construção de conhecimentos outro e a Lei 10.639/03: uma perspectiva decolonial”, de Débora Ribeiro, que integra uma série de textos sobre Educação, Estado e Diversidade: perspectivas e desafios de Maria Fernanda dos Santos Alencar, Marcelo Miranda e Maria Costa.
Palavras-chave: de(s)colonial; teorias decoloniais; colonialidade; globalização
Abstract
This study aims to demonstrate the understanding on the occasion of the Seminar on the contributions of Anibal Quijano regarding decolonial theories, taught by Professor Dr. Neusa Chaves Batista from the Federal University of Rio Grande do Sul (UFRGS), addressing texts suggested for reading and analysis, of which I highlight below: in block 1, the texts considered were: Anibal Quijano and the main aspects and context of emergence of decolonial theories – a brief history of decolonial studies by QUINTEIRO, FIGUEIRA and ELIZALDE (2019); and El pensamento decolonial: desprendimiento y apertura – um manifesto by MIGNOLO (2007); block 2 refers to the notions of colonialism, coloniality of power and capitalist globalization, using the texts of Aníbal Quijano Estado-Nação, Ciudadanía y Democracia; Coloniality of Power, Eurocentrism and Latin America and as supporting texts “RACE”, “ETHNICITY”, AND “NATION” in Mariátegui – open questions of and Coloniality of Power and Social Classification, an integral part of the book by Boaventura de Souza Santos and Maria Paula Menezes on “Epistemologies of the South”. Block 3 focused on the theme “The theories of Aníbal Quijano and applications in studies in the field of education and public policies”, based on the texts by Wendell Ficher Teixeira Assis (“From colonialism to coloniality: territorial expropriation on the periphery of capitalism”) and the text by Luís Fernandes de Oliveira and Vera Maria Candau – “Decolonial pedagogy and anti-racist and intercultural education in Brazil”. The supporting texts for the study were: “Commissions on Racial Heteroidentification for Access to Federal Universities”, by Professor and Sociologist Neusa Chaves Batista and Hodo Apolinário Coutinho de Figueiredo, as well as “The Construction of Other Knowledge and Law 10.639/03: a Decolonial Perspective”, by Débora Ribeiro, which is part of a series of texts on Education, State and Diversity: Perspectives and Challenges by Maria Fernanda dos Santos Alencar, Marcelo Miranda and Maria Costa.
Keywords: de(s)colonial; decolonial theories; coloniality; globalization
Introdução
O contexto latino americano e o brasileiro por suas especificidades históricas das relações sociais, econômicas, culturais e políticas têm merecido estudos acadêmicos sistemáticos e aprofundados, especialmente, quanto ao enfrentamento das epistemologias dominantes do norte global pela construção de alternativas emergentes do sul a partir de teorias de(s)coloniais. Pensar essa realidade como fenômeno social contribui para o entendimento e o enfrentamento das tentativas em processo de colonização da América, do colonialismo do poder e da gênese de uma perversa modernidade capitalista.
Anibal Quijano, apresentou contribuição significativa ao oferecer elementos novos de reflexão e problematização, principalmente, quanto às políticas públicas e, notadamente, aquelas citadas como as educacionais.
Nessa intenção, o Seminário “Teorias De(s)coloniais: contribuições de Anibal Quijano” oportunizou ideias expressivas para discussões conceituais e de aplicabilidades e experiências para trocas vivenciais em diversos espaços da coletividade.
Este artigo é um texto síntese desses três blocos e está organizado em três partes gerais: os principais aspectos e o contexto de emergência das teorias de(s)coloniais; noções de colonialismo, colonialidade do poder e globalização capitalista e, também, de aplicações nos campos da educação e das políticas públicas dessas teorias de Anibal Quijano.
1. A emergência das teorias de(s)coloniais
O contexto histórico das pesquisas de Aníbal Quijano articula-se, fundamentalmente, com as problemáticas histórico-sociais na América Latina, à luz da colonialidade e da modernidade em uma configuração da Modernidade/Colonialidade/Decolonialidade (MCD) apontada por Arturo Escobar.
“A colonialidade do poder” é um dos conceitos centrais na teoria de Aníbal Quijano, que distingue a colonização da colonialidade. Para o autor, a colonização refere-se ao domínio territorial e político das potências europeias sobre as Américas e outras regiões, enquanto a colonialidade se perpetua mesmo após o fim do colonialismo formal, por meio das hierarquias raciais, epistêmicas e econômicas impostas pela modernidade europeia. Nesse contexto, o pensamento decolonial busca desmontar essas estruturas de dominação e criar epistemologias alternativas, enquanto o descolonial enfatiza o rompimento com os legados do colonialismo na cultura, política e subjetividade. Ambos os conceitos estão interligados e fundamentam-se na necessidade de uma desobediência epistêmica à racionalidade eurocêntrica” (Quijano, 2000).
O uso dos conceitos do ‘decolonial’ e ‘descolonial’ por Quijano e outros autores faz analogia sobre os estudos pós-coloniais do “primeiro mundo” com forte influência do pós-modernismo e do pós-estruturalismo, que potencializa a produção intelectual da periferia, ou seja, nos países colonizados (periféricos), os estudos referem-se ao conjunto heterogêneo de contribuições teóricas e investigativas a propósito da colonialidade. Sobre o pensamento crítico-latino americano e sua recuperação, há um ponto de convergência que é a problematização da colonialidade em suas diferentes formas, não isentas de conflitos e contradições.
O que chama a atenção é a subalternização da maioria da população mundial que se estabelece a partir de dois eixos estruturais baseados no controle do trabalho e no controle da intersubjetividade: a designação do eurocentrismo/ocidentalismo como forma específica de produção de conhecimento e subjetividades. Segundo Quijano (2000)
A colonialidade do poder, indicada por Quijano, é a face oculta da modernidade, constituída pelo padrão de dominação global. A colonialidade não se limita ao período colonial, mas persiste nas estruturas econômicas, políticas e epistêmicas do mundo contemporâneo. Esse sistema impôs uma hierarquia racial, articulada ao capitalismo, que definiu as relações de poder e conhecimento, marginalizando saberes e populações não europeias. Assim, a modernidade e a colonialidade são faces de um mesmo processo histórico, no qual a dominação global se sustenta pela continuidade dessas estruturas coloniais” (Quijano, 2000).
Essa colonialidade do poder iniciou na colonização da América e configura o começo do capitalismo e o surgimento de um sistema inédito de dominação e de exploração social, surgindo, com eles, um novo modelo de conflito. Dois eixos centrais caracterizam esse colonialismo do poder, a dominação cultural com o eurocentrismo e o conformismo com a dominação do sistema de exploração social global. Segundo Quijano, como passa a ser demonstrado, o colonialismo do poder é a chave analítica que permite visualizar o espaço de confluência entre a modernidade e o capitalismo, bem como o campo formado por essa associação estrutural.
2. Colonialismo, colonialidade do poder e globalização capitalista
Há, no início do século XIX, um processo de descolonização parcial na América Latina, produzindo diversas estruturações sociais de matriz colonial. Neste sentido, os estudos decoloniais com base na colonialidade do poder propõem quatro abordagens principais: colonialidade do saber, do ser, da natureza e do gênero.
Na perspectiva de Quijano (2000) sobre o pensamento crítico latino-americano, pode-se apontar uma tendência transversal nos estudos decoloniais, particularmente interessada em revisitar obras do pensamento crítico do “sul”, esquecidas em sua época. A hierarquia étnicoracial dos povos latinos não se transformou com fim do colonialismo, mantendo os países periféricos ainda como subordinados.
“Nas tentativas de recuperar e reatualizar o pensamento crítico latino-americano, diversos intelectuais têm buscado resgatar epistemologias marginalizadas e repensar os fundamentos da modernidade a partir de uma perspectiva situada. Segundo Quijano (2000), a colonialidade do poder não apenas estruturou as relações de dominação global, mas também impôs um modelo epistemológico que desvalorizou os saberes não europeus. Nesse contexto, a proposta de um pensamento decolonial visa reconstruir o conhecimento desde o Sul Global, questionando as imposições eurocêntricas e reivindicando a diversidade epistêmica como um elemento central para a emancipação social e política (QUIJANO, 2000).”
Arturo Escobar (2004) refere-se a “Proyecto latino/latino-americano modernidad/colonialidad” e destaca os quefazeres da pesquisa apresentando a decolonialidad e a descolonización como categorias no giro da colonialidade. O Grupo Modernidade/Colonialidade é integrado por nomes consagrados do pensamento latinoamericano e internacional, como Aníbal Quijano e Immanuel Wallerstein, que potencializam a formação de uma rede de estudos e pesquisa para eventos voltados a discutir a decolonialidade. No ano 2000 foi lançado o livro La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales, decorrente da reunião organizada por Edgardo Lander, em Caracas, na Venezuela, com pensadores como Mignolo, Escobar, Quijano, Dussel e Coronil. Outros eventos distribuíram-se pelo mundo, como Congresso Internacional Transmodernidade, história do capitalismo e colonialidade: diálogo da pós-disciplinaridade, realizado em Binghamton, com a presença de Henrique Dussel, um dos fundadores da Filosofia da Libertação. Evento também importante foi o Diálogo das Teorias Pós-coloniais da Ásia, África e América Latina. Santiago Castro Gomes e Oscar Guardiola organizaram um novo grupo na Colômbia, consolidando estudos sobre as geopolíticas do conhecimento e da colonialidade do poder na América Latina.
As categorias ‘decolonialidade’ e ‘colonialidade’ do poder são conceitos discutidos pelo grupo modernidade e colonialidade. Para Mignolo (2001), com relação ao conceito de descolonialidade, ainda há muitas reflexões acerca do mundo descolonizado e pós-colonial, com o fim de estado-nações periféricos.
Segundo o conceito de descolonialidade, não se vive em um mundo totalmente descolonizado ou pós-colonial, pois as estruturas coloniais ainda persistem nas relações de poder, conhecimento e ser. A colonialidade continua operando mesmo após o fim formal do colonialismo, mantendo estados periféricos em uma posição subordinada no sistema global (Mignolo, 2011).
A guerra fria acabou com o colonialismo da modernidade dando início à colonialidade global. Com o capitalismo questiona-se o mito da descolonização e a tese da pós-modernidade, conduzindo a um mundo desvinculado da colonialidade.
O sistema mundo revela neste enfoque a divisão do trabalho e as lutas geopolíticas constitutivas nos processos de acumulação capitalista em escala mundial, as ideologias globais e o conceito de geocultura dentro do paradigma marxista de infraestrutura e a literatura hegemônica pós-colonial, compartilhando críticas ao desenvolvimentismo, a formas eurocêntricas, à desigualdade de gênero, às hierarquias raciais e aos processos culturais/ideológicos, subordinadores dos países periféricos ao sistema capitalista.
Segundo Quijano (2000) e Mignolo (2001), há uma ideia europeia e norte-americana de superioridade no desenvolvimento do conhecimento do social e tecnológico diante do resto do mundo. São discursos sexistas e racistas inerentes ao capitalismo histórico. O dualismo cartesiano mente/corpo é a base para divisão das ciências naturais e sociais das humanidades. Assim, os teóricos do sistema-mundo têm dificuldades para pensar a cultura, enquanto os teóricos pós-coloniais anglo-saxões têm dificuldades de conceituar os processos político-econômicos.
A noção fundamental da colonialidade do poder é a de que o mundo periférico não foi completamente descolonizado. Houve duas descolonizações: a primeira refere-se à independência formal das colônias, enquanto a segunda, denominada decolonialidade, é um processo de ressignificação em longo prazo, que busca desmantelar as estruturas epistêmicas e políticas herdadas do colonialismo. Há, portanto, a necessidade de um diálogo com formas não ocidentais de conhecimento, que compreendem o mundo em sua totalidade, considerando a inter-relação entre todas as formas de vida e os novos paradigmas das teorias da complexidade (Quijano, 2000; Mignolo, 2017; Walsh, 2009).
Além do paradigma da dependência, os teóricos latino-americanos da Escola da Dependência, à custa das determinações culturais e ideológicas, privilegiavam as relações econômicas e políticas nos processos sociais. A cultura, como instrumento no processo de acumulação capitalista.
As categorias de gênero e raça, muitas vezes, são reduzidas aos interesses econômicos da burguesia, que utiliza essas distinções para manter e reforçar as estruturas de poder e dominação. As relações de gênero e raça não são apenas construções sociais, mas são também parte de um sistema global capitalista que explora e subordina as classes trabalhadoras, especialmente as mulheres e os povos racializados, com o objetivo de garantir a continuidade da acumulação de capital e da hierarquia social (Lorde, 1984; Quijano, 2000).
Quijano e a sua colonialidade do poder busca integrar as múltiplas hierarquias do capitalismo histórico como parte do mesmo processo histórico estrutural heterogêneo, onde o centro da colonialidade está no padrão de poder colonial que constitui a complexidade dos processos de acumulação capitalista. A noção de colonialidade vincula o processo de colonização das américas e constituição da economia-mundo capitalista como parte do mesmo processo histórico iniciado no século XVI.
“A construção da hierarquia racial e étnica global foi simultânea e contemporânea à constituição de uma divisão internacional do trabalho, organizada nas relações centro-periférica em escala mundial. Segundo Quijano (2000), o acúmulo de capital está profundamente entrelaçado com discursos sexistas, homofóbicos, eurocêntricos e raciais do patriarcado europeu. Para ele, a relação entre os povos ocidentais e não ocidentais sempre esteve misturada com o poder colonial, a divisão internacional do trabalho e os processos de acumulação capitalista. Essas relações estruturais constituem a base da colonialidade do poder, que continua a definir a organização global e as desigualdades contemporâneas” (Quijano, 2000).
A crítica às formas eurocêntricas de conhecimento é componente básico do grupo modernidade e colonialidade, pois essas formas se consideram superiores diante a colonialidade do poder, silenciando e excluindo os conhecimentos subalternos, representantes de uma etapa mítica, inferior, pré-moderna e pré-científica do conhecimento humano. O conhecimento verdadeiro seria o da elite científica e filosófica da Europa, com a ideia de colocar a diferença colonial no centro do processo de construção do conhecimento. Importa a resistência semiótica, capaz de ressignificar as formas hegemônicas de conhecimento, sob o ponto de vista da racionalidade post-eurocêntrica das subjetividades subalternas.
O grupo modernidade/colonialidade propõe uma reestruturação, descolonização ou post-ocidentalização das ciências sociais, diante da estratégia de domínio econômico, político e de conhecimento da ideia eurocentrista. Nota-se que a ciência social contemporânea não encontrou uma forma de incorporar o conhecimento subalterno aos processos de produção do conhecimento e, dessa forma, não haverá decolonização do conhecimento nem utopia social por parte do ocidente colonizador, tampouco espaço de fala e escuta dos sujeitos subalternos, devido à cumplicidade das ciências sociais com a colonialidade do poder. Mais do que uma opção teórica, o paradigma da decolonialidade necessita impor-se, ética e politicamente, às ciências sociais latino-americanas.
A teoria crítica e decolonização foi o tema de uma reunião do grupo modernidade/colonialidade, com Walter Mignolo e Arturo Escobar, ampliando-se reflexões em torno da geopolítica do conhecimento e do saber, através da diferença colonial e imperial e do pensamento de Horkheimer e da Escola de Frankfurt. Como resultado, a modernidade/colonialidade é uma categoria analítica da matriz colonial de poder e a decolonialidade amplia os objetivos do projeto.
Os projetos decoloniais são constitutivos da decolonialidade, onde a salvação e o progresso configuram-se como parte de uma retórica da modernidade que, por sua vez, ideologicamente não se questiona, pois se apoia numa economia capitalista. O pensamento decolonial é, portanto, o pensamento que se abre e se desprende da racionalidade moderna, que muitas vezes legitima a dominação e a exploração ao ocultar as estruturas de poder subjacentes à modernidade e ao capitalismo. A decolonialidade propõe uma crítica radical a essas formas de conhecimento e poder, e busca alternativas epistêmicas e sociais que rompem com os legados coloniais (Mignolo, 2009; Walsh, 2001).
Segundo a tese de Mignolo, o pensamento descolonial emergiu na fundação da modernidade/colonialidade nas Américas, com o pensamento indígena e afro-caribenho, tendo continuidade pela Ásia e África, mas não de acordo com o pensamento decolonial da América e, sim, em contrapartida à reorganização da modernidade e colonialidade no império francês e britânico. Desde o fim da guerra fria, o pensamento decolonial traça a sua própria genealogia. Esse pensamento decolonial se diferencia da teoria e estudos pós-coloniais, que se baseiam no pós-estruturalismo francês.
A presença de Mahatma Gandhi em diferentes partes do mundo na continuidade da construção da genealogia do pensamento decolonial e a continuação do imperialismo da Europa Ocidental na América e do Imperialismo Britânico é uma genealogia que se estrutura no espaço planetário da expansão colonial/imperial, ao contrário da modernidade europeia. Por tudo isso, o giro decolonial e o sistema mundo-moderno relaciona-se a três ideologias imperiais: o conservadorismo, o liberalismo e o marxismo, onde a teologia reina sob o horizonte epistêmico e a genealogia do pensamento decolonial é pluriversal e não universal.
3. As questões do Estado-nação, da cidadania, da democracia e colonialidade do poder
Abordados os principais aspectos e o contexto da emergência das teorias de(s)coloniais, passa-se à abordagem das discussões sobre o Estado-nação, a cidadania e a democracia, salientando que a vertente dominante da política mundial insiste em dizer que a democracia e a cidadania na atualidade são mais atuantes e têm uma validade global maior do que em qualquer outro tempo da história. Isso se deve à diminuição do número de governantes não eleitos pelo mundo. De fato, por toda a Europa e América hoje não há países com governos não eleitos. O que de fato ocorre é que governos não eleitos democraticamente perdem força perante a comunidade internacional, permitindo deduzir que democracia é universal ou é o período da democracia liberal universal.
Os termos ‘Estado-Nação’ se confundem ou se fundem, mas, fundamentalmente, compreendem três requisitos principais: território, população e governo. O primeiro é a delimitação geográfica na qual a população se encontra assentada, incluindo o espaço aéreo, marítimo e terrestre. O segundo é um grupo de pessoas que vivem numa determinada área geográfica. O terceiro é a autoridade que dirige, controla e administra suas instituições, consistindo na condução política geral ou exercício do poder executivo do Estado. Portanto, é necessário que esses três elementos – território, população e governo – estejam juntos para que exista o Estado-nação. Este conceito de Estado-nação, enquanto organização política moderna, nasceu em 1648, após o feudalismo, que centralizava o poder em uma única pessoa, e a guerra dos 30 anos, que consolidou a ideia de soberania territorial (Anderson, 1983; Tilly, 1992).
Cidadania é uma condição pessoal na qual só é válido quando a mesma seja membro de um território, nação e país, o que implica em uma série de direitos e deveres.
Democracia é a junção dos termos demos-povo e kráteo-mandar. Por conseguinte, democracia significa governo do povo ou governo eleito pelo povo. Democracia tem como base dois princípios fundamentais: a liberdade e a igualdade de todas as pessoas. Essas pessoas têm o poder de decidir pelo que lhes interessa. As democracias atuais são representativas, onde uma pessoa é eleita pelo voto da maioria do povo e a elas representa. Uma das funções da democracia é proteger a vontade e a liberdade das pessoas, como a liberdade de expressão.
Vale pensar sobre a europeização das Américas e a globalização como um novo padrão mundial do poder do capitalismo colonial/moderno e eurocêntrico. Um dos eixos fundamentais desse padrão está na classificação social da população mundial sobre a ideia de raça, uma construção que expressa a dominação colonial e que permeia as dimensões do poder mundial e sua racionalidade eurocêntrica com origem e caráter colonial. A articulação do controle do trabalho em torno do capital e do mercado mundial é outro eixo importante desse padrão de poder.
A América se constituiu em um novo padrão de poder no espaço/tempo a partir dos dois eixos ou processos históricos já descritos, principalmente a ideia de superioridade da raça entre conquistadores e conquistados, por associar questões sociais e de trabalho entre a população como instrumentos de classificação social.
A ideia de raça foi um modo de outorgar legitimidade às relações de dominação impostas pela conquista e pela expansão do colonialismo europeu sobre o resto do mundo. Isso levou à elaboração de uma perspectiva eurocêntrica de conhecimento e, com isso, a ideia de raça como naturalização das relações coloniais de dominação entre europeu e não europeus, legitimando práticas de relações de superioridade/inferioridade entre dominados e dominantes, situando povos conquistados e dominados em uma posição de inferioridade, tanto culturais como mentais. A raça se converteu de modo básico no primeiro critério para distribuição da população mundial na estrutura de poder da nova sociedade. Esta ideia de raça é um invento que não tem nada a ver com a estrutura biológica humana (Quijano, 2000; Mignolo, 2009)..
O capitalismo surgiu como nova estrutura de controle do trabalho, cujas formas de controlar e explorar o trabalho, a produção e a distribuição de produtos foram articuladas em torno da relação capital e do mercado mundial. Dentro do processo de constituição da América, permaneceu a escravidão e a servicitude dentro desses contextos da nova estrutura, organizada para produzir mercadorias para o mercado mundial e ao capital, configurando-se em um novo padrão global de controle do trabalho e do padrão global de poder.
O capitalismo mundial revestiu-se em uma nova estrutura histórica das relações de produção. Na medida em que a estrutura do controle de trabalho, de recursos e produtos consistia na articulação conjunta das respectivas formas estabelecidas, há na história, pela primeira vez, um padrão global de controle do trabalho e seus produtos.
“Apesar de independentes, raça e divisão do trabalho se reforçam mutuamente dentro das novas identidades históricas globais, associadas às suas funções e lugares na nova estrutura global de controle do trabalho. Houve uma imposição de uma nova divisão racial de trabalho, onde os negros foram transformados em escravos, enquanto os espanhóis e portugueses, como raça dominante, recebiam salários, mas somente os nobres podiam exercer postos altos e médios na administração colonial, tanto civil quanto militar. Esse processo de racialização do trabalho reforçou as hierarquias de poder e perpetuou as desigualdades estruturais dentro da nova ordem mundial imposta pelo colonialismo europeu” (Quijano, 2000; Mignolo, 2009).
No século XVIII, na América espanhola, mestiços espanhóis e mulheres índias, num estrato social estendido e importante da sociedade colonialista, começaram a participar dos mesmos ofícios e atividades dos ibéricos que não eram nobres. A distribuição do trabalho por raça no capitalismo colonial/moderno se manteve ao longo do tempo por todo o período colonial e a expansão mundial de dominação colonial por parte dos brancos do século XVIII em diante impôs o mesmo critério de classificação social à população mundial em escala global, acentuando a produção de novas identidades históricas e sociais: amarelos, brancos, índios, negros e mestiços. Assim, combinaram a divisão racista do trabalho e das formas de exploração do capitalismo colonial com essas novas identidades sociais.
As disputas pelo mercado comercial mundial se tornaram mais vantajosas para os comerciantes “brancos” da América colonizada, pois tinham o privilégio da produção gratuita de ouro, prata e outras mercadorias, pela mão de obra de índios, negros e mestiços e posição geográfica em relação ao Atlântico por onde passaria o transporte dessa produção. O processo de urbanização próximo às zonas litorâneas do Atlântico aumentou, movido pela expansão do comércio entre os grupos dominantes, formando um comércio regional graças ao fluxo de metais preciosos procedentes da América.
“Emergiu uma nova identidade geocultural, mais especificamente a Europa Ocidental, como sede central de controle do mercado mundial, convertendo-a no século XIX na principal base do processo de mercantilização das forças de trabalho e no centro do desenvolvimento da relação capital-salário, como uma forma de controle do trabalho, seus recursos e sua produção. Contudo, essa mercantilização não se manifestava como remuneração justa para as forças de trabalho, mas sim como uma cadeia de transferência de valor e benefícios para quem controlava, nesse caso, a Europa Ocidental. Enquanto isso, em outras regiões não europeias, o trabalho assalariado se concentrava exclusivamente na população branca, perpetuando uma divisão racial e econômica global” (Quijano, 2000; Mignolo, 2009).
Desde o começo da América, os europeus associaram o trabalho não pago às raças dominadas e, assim, consideradas raças inferiores. Houve um vasto genocídio entre os povos colonizados, índios, não só pela forma violenta com que chegavam os invasores europeus, mas, principalmente por forçarem os índios a trabalharem até a morte. A classificação racial da população com as novas identidades raciais dos colonizados nãos pagos ou não assalariados desenvolveu nos europeus ou brancos a percepção de que o trabalho pago era privilégio dos brancos, implicando nos colonizados a inferioridade racial, pois não eram dignos do pagamento de salário. Como explicar o menor salário pago as ditas raças inferiores por igual trabalho executado por um branco nos principais centros capitalistas, se não pelo modo de classificação social racista da população mundial ou separação pela colonialidade do poder capitalista mundial?
O novo padrão de poder mundial perante o trabalho se constituiu articulando as formas históricas de controle do trabalho, sua relação capital-trabalho assalariada e o seu domínio, fundado nas formas de trabalho não pagos às raças colonizadas, originalmente, índios, negros e mestiços da América; depois pelas demais raças colonizadas, os amarelos e os oliváceos.
Para descrever a configuração mundial do capitalismo pós-Segunda Guerra Mundial, Raul Prebisch desenhou a célebre imagem “centro-periferia”, como núcleo principal do caráter histórico do padrão de controle do trabalho, seus recursos e produtos formando a parte central do novo padrão mundial do poder constituído a partir da América. O capitalismo foi, desde o início, colonial/moderno e eurocentrado.
Na condição de centro do capitalismo mundial, a Europa não somente teria o controle do mercado mundial, como pode impor o seu domínio colonial sobre as regiões e populações do planeta, implicando uma re-identificação histórica, pois lhe foram atribuídas novas identidades geoculturais desde a Europa. No Oriente, apesar das formas e nível de desenvolvimento político e cultural, mais especificamente o intelectual do Ocidente, surgiu com dignidade suficiente para ser o “outro”, mesmo sendo comparado aos índios e negros.
Para estabelecer um capitalismo mundial, a incorporação de tão diversas e heterogêneas histórias culturais a um único mundo dominado pela Europa significou uma configuração cultural e intelectual intersubjetiva, articulando as formas de controle do trabalho em torno do capital, determinando uma só ordem cultural global em torno da hegemonia europeia ou ocidental e concentrando o controle das formas de subjetividade, da cultura, do conhecimento e da produção do conhecimento. Nessa trajetória civilizatória, a Europa pretendeu serem os mais avançados da espécie humana, mais modernos da humanidade na história. Ao mesmo tempo, atribuíam ao resto da espécie humana pertencer a uma categoria inferior. Imaginaram serem os únicos portadores exclusivos da modernidade e exclusivos criadores e protagonistas dela (Mignolo, 2009; Quijano, 2000).
Os europeus foram capazes de difundir e estabelecer em uma perspectiva histórica, um novo universo de relações intersubjetivas de dominação com as demais regiões e populações do mundo, atribuindo-lhes novas identidades geoculturais: em primeiro lugar, expropriaram as populações colonizadas; em segundo, reprimiram tanto quanto puderam de forma violenta os índios da América condenando-os à subcultura campesina, iletrada, reprimindo as formas de produção do conhecimento e os despojando de sua herança intelectual objetivada e, em terceiro lugar, forçaram os colonizados a aprender a cultura dos dominadores em tudo o que fosse útil para reprodução da dominação, inclusive religiosa.
O eurocentrismo tem pilares com base no capitalismo, na ideia de modernidade do europeu ocidental das relações sociais. Quijano tem uma leitura sobre capital diferente de outros autores, que defendem a ideia de que o capital se iniciou no final do século XVIII e início do século XIX, com a manufatura e as relações de produção que trouxeram uma classe dominante diferente historicamente.
Para Quijano, o capital é uma forma de mercantilizar as forças de trabalho, ou seja, tornar a força de trabalho uma mercadoria com origem nos séculos XII e XIII. Como estrutura de poder, o capital necessitou de uma articulação de dominação com outros povos. Então, a América escravizada como base da exportação de matéria prima foi uma necessidade do capitalismo para se concretizar como estruturas de poder dominante.
O europeu sente-se como ser civilizado e racional, aquele que parte do estado de natureza com uma evolução para chegar a um estado na sociedade que deixa de ser primitivo. Neste período não categorização de raça, do ser negro ou branco, os grupos sociais se categorizavam com outros nomes, por questões culturais como astecas, maias, incas, tupinambás, tupiniquins dentre outros. Estes foram tirados da sua condição social para se tornarem índios, negros e categorizados conforme o trabalho ou sua função na estrutura de poder mundial e na estrutura do trabalho, na estrutura de colonização do poder mundial. Neste sentido, esses seres humanos deixaram de produzir história, pois somente os brancos, em uma categorização a partir da colonização da América, como seres racionais, eram os que deixaram algo na história. Eurocentrismo é, portanto, o modo concreto de se produzir conhecimento em uma perspectiva de elaboração intelectual desse processo de modernidade com característica do padrão mundial de poder: colonial/moderno, capitalista e eurocentrado (Mignolo, 2009; Quijano, 2000).
Na questão de gênero, as mulheres eram tratadas com desprezo nessa estrutura social, nos preceitos de raça e trabalhos impostos pelos europeus na América. Esta é uma das formas da construção da colonialidade do poder.
Acrescente-se que Quijano propõe um debate científico-social contemporâneo sobre as formas de trabalho e de controle do trabalho e a mercantilização das forças do trabalho incompatíveis com o capitalismo.
Na América, a escravidão foi estabelecida como mercadoria para o mercado mundial, servindo aos propósitos e necessidades do capitalismo. Com base na mercantilização, o capitalismo teve sua origem entre os séculos XI e XII, nas regiões meridionais das penínsulas Ibérica ou Itálica e no mundo islâmico, sendo, portanto, mais antigo do que na América. Foi nesse contexto que o capitalismo consolidou sua predominância mundial, com a exploração do trabalho escravo como um pilar fundamental na expansão e no fortalecimento da economia global (Marx, 1867; Quijano, 2000).
A história é distinta. De um lado, os ibéricos conquistaram e colonizaram a América. Encontraram distintos povos, cada um com sua história, linguagem, produtos culturais, memória e identidade, renomeados como “índios”, não importando se eram Astecas, Mayas, Incas, Chimús ou Aymaras. Essa nova identidade era racial, colonial e negativa. Depois, trouxeram forçadamente da África, pessoas como escravas, denominadas de “negros”, sem respeitar se eram Ashantis, Yorubas, Zulús, Congos ou Bacongos. Duas implicações mais relevantes nessa história do poder colonial: todos esses povos foram despojados de suas identidades históricas e as suas novas identidades racial e colonial eram negativadas, tirando-lhes o seu lugar na história da produção cultural da humanidade.
O padrão de poder da colonialidade implicou uma nova perspectiva de conhecimento, primitiva, não europeia e, portanto, inferior. Essa nova identidade geocultural moderna e mundial ocorreu na América. Os europeus se persuadiram a si mesmos, pois a América emergiu, assim como a Europa, como as duas primeiras novas identidades geoculturais do mundo moderno, econômica e culturalmente.
A América, por suas riquezas minerais, e a Europa como colonizadora e exploradora, haviam se produzido a si mesmas como civilização. Nesse processo, duas questões fundamentais são colocadas sob a perspectiva eurocêntrica do conhecimento: primeiro, o processo pelo qual uma entidade se transforma de maneira contínua, homogênea e completa em uma ideia de mudança histórica, permitindo que outra entidade ocupe esse espaço. Em segundo lugar, o conceito de que cada unidade se torna diferenciada, seja na sociedade, economia, modo de produção, raça ou civilização, sendo que, no caso de grupos humanos, essa unidade é tratada como uma identidade homogênea (Mignolo, 2009; Quijano, 2000).
Isso abre a questão das relações entre o corpo e o não-corpo na perspectiva eurocêntrica, tanto na forma eurocêntrica da produção de conhecimento, quanto pela experiência que há na relação próxima nas questões de raça e de gênero. A ideia da diferenciação entre o “corpo” e o “não-corpo” na experiência humana é virtualmente universal na história da humanidade, comum a todas as “culturas” ou “civilizações” historicamente conhecidas, principalmente na ideia cristã da primazia da alma sobre o corpo.
“Pela duração do colonialismo e da colonialidade, a europeização ou modernidade se explica por esse tempo duradouro na hegemonia mundial. A perspectiva eurocêntrica de conhecimento para a América Latina se reflete de maneira distorcida, pela imposição das tantas características históricas europeias, tanto materiais quanto intersubjetivas. O Estado-nação moderno na América Latina representa um exemplo trágico de uma série de erros cometidos no que diz respeito à chamada ‘questão nacional’, onde a tentativa de adaptação a um modelo europeu falhou em considerar a realidade e as especificidades locais, perpetuando desigualdades e distorções estruturais” (Quijano, 2000; Mignolo, 2009).
Nação e Estado são velhos fenômenos de uma experiência específica de uma sociedade nacionalizada e politicamente organizada como Estado-nação com instituições modernas de cidadania e democracia política, dentro dos limites do capitalismo, com a democratização do controle do trabalho, recursos de produção e do controle na geração e gestão das instituições políticas.
No Estado-nação, toda sociedade é uma estrutura de poder, que articula formas de existência social diversas em uma sociedade única. Toda a estrutura de poder é parcial e imposta em detrimento de outros. Consequentemente, todo Estado-nação possível é uma estrutura de poder e produto de poder, configurando disputas pelo controle das forças de trabalho, seus produtos e recursos, da intersubjetividade e do conhecimento.
Na Europa, a configuração do Estado-nação começou a emergência de alguns núcleos políticos que conquistaram seu espaço de dominação e se impuseram sobre os povos, num processo de colonização, ou seja, povo estrangeiro, como a Espanha se impondo sobre a América, expulsando grupos e fazendo limpeza étnica, o primeiro caso no período moderno.
“Na América hispânica e britânica, existem diferenças e fatores básicos equivalentes. A ocupação britânica-americana foi violenta, mas antes da Revolução Americana de Independência, os índios não foram completamente colonizados e foram reconhecidos como nações independentes, com as quais praticaram relações comerciais internacionais e estabeleceram alianças militares durante as guerras entre os colonialistas ingleses e franceses. Os índios não faziam parte da população incorporada ao espaço de dominação colonial britânico-americana. Com a formação do novo Estado-nação, os Estados Unidos da América do Norte, os índios foram excluídos, suas terras foram tomadas e eles quase exterminados” (Blaut, 1993).
O processo de criação dos Estados Unidos configurou um Estado-nação. Num primeiro momento, mesmo com a relação colonial de dominação entre brancos e negros e do extermínio colonialista da população índia, os brancos eram maioria representativa do Estadonação. Os territórios conquistados dos índios resultaram na abundância de oferta de recursos básicos de produção, a terra.
A situação dos países do Cone Sul da América é semelhante à dos Estados Unidos, com os índios em sua maioria não integrados à sociedade colonial. Durante o período colonial, a população negra era minoria em países como Argentina, Chile e Uruguai. Algo diferente ocorreu na América do Sul. A migração massiva de europeus do leste, sul e centro no século XIX, não encontrou uma sociedade com estrutura, história e identidade suficientemente estáveis. O processo de homogeneização dos membros da sociedade na perspectiva eurocêntrica, como característica e condição do Estado-nação modernos, foi levado a cabo nos países do Cone Sul pela eliminação massiva de índios, negros e mestiços. Como consequência, as democracias alcançadas e o Estado-nação não poderiam ser firmes e estáveis.
Nos países latino-americanos, a trajetória eurocêntrica em direção ao Estado-nação provou ser inconclusa. Em todos esses países, na organização dos novos estados, foi negada qualquer participação em decisões sobre a organização social e política. Nesses países, desde a independência, principalmente os de grande área territorial, pouco mais de 90% da população eram negros, índios e mestiços, porém quem assumiu o controle foram os brancos, minoria, mas ditando as regras nas decisões sobre a organização social e política.
No caso do Brasil, os negros eram apenas escravos e a maioria dos índios era formada por povos da Amazônia, sendo, dessa forma, estrangeiros para o novo Estado.
Em algumas sociedades ibero-americanas, a minoria branca no controle de estados independentes e sociedades coloniais não poderiam ter tido significado ou qualquer interesse social em comum com os índios e negros e mestiços. Seus interesses sociais eram explicitamente antagônicos em relação aos servos índios e escravos negros, pois os seus privilégios eram, justamente, feitos de dominação/exploração desse povo (Quijano, 2000; Mignolo, 2009).
O processo de independência dos Estados da América Latina sem a descolonização da sociedade não poderia ser – e não foi – um processo de desenvolvimento dos Estados-nação moderno, mas uma rearticulação da colonialidade de poder em novas bases institucionais. A dependência dos capitalistas não veio da subordinação nacional. Pelo contrário, foi consequência da comunidade de interesse racial. Durante a crise econômica mundial dos anos 1930, a burguesia com o capital mais comercial da América Latina (Argentina, Brasil, México, Chile, Uruguai e Colômbia) foi forçada a produzir localmente os bens usados para consumo e ostentação, antes importados.
“Acerca dos problemas do Estado-nação, distinguem-se quatro trajetórias históricas e linhas ideológicas na América Latina. O primeiro processo é o de uma descolonização e democratização limitada, mas real, por meio de revoluções radicais, como no México e na Bolívia. O segundo é um processo de homogeneização colonial (racial), ocorrido no Cone Sul (Chile, Uruguai, Argentina), por meio de genocídios massivos da população aborígene. O terceiro é uma tentativa frustrada de homogeneização cultural por meio do genocídio cultural de índios, negros e mestiços, como no México, Peru, Equador, Guatemala-América Central e Bolívia. O quarto é a imposição de uma ideologia de “democracia racial”, que mascara a verdadeira discriminação e dominação colonial dos negros, como ocorre no Brasil, Colômbia e Venezuela. Nesse contexto, a cidadania da população de origem africana nesses países é constantemente desconsiderada, embora as tensões e conflitos raciais não sejam tão violentos como na África do Sul ou no sul dos Estados Unidos” (Dussel, 2000).
O que essas verificações indicam é que há um elemento que impede o desenvolvimento e a nacionalização da sociedade e do Estado, à medida que impede a sua democratização. Nenhum exemplo histórico de Estados-nação modernos pode ser encontrado que não o resultado dessa democratização social e política.
A colonialidade do poder instaurada sobre a ideia de raça deve ser admitida como fator básico na questão nacional. O problema é, porém, que, na América Latina, a perspectiva eurocêntrica foi adotada pelos grupos dominantes como seu e os levou a impor o modelo europeu de formação do Estado-nação para estruturas de poder organizadas em torno das relações coloniais.
No século XX, a esmagadora maioria da esquerda latino-americana, aderindo ao materialismo histórico, tem debatido dois tipos das revoluções: burguesa-democrática e socialista. Esse descompasso na perspectiva de conhecimento é o debate e a prática de projetos revolucionários. A revolução socialista, por outro lado, é concebida como a erradicação da burguesia do controle do Estado pela classe trabalhadora; a classe trabalhadora à frente de uma coalizão de classes explorada e dominada para impor o controle estatal dos meios de produção e construir a nova sociedade a partir do Estado. O capital como uma relação social de produção é dominante e, consequentemente, é a burguesia dominante na sociedade e no Estado.
O materialismo histórico na América Latina no século XX se desenvolveu em um contexto de profundas desigualdades sociais e políticas, impulsionadas pela exploração colonial e pelos sistemas de dominação imperialistas. Pensadores latinoamericanos como Carlos Mariátegui e, posteriormente, intelectuais da Teoria da Dependência, buscaram aplicar as premissas do materialismo histórico de Marx para compreender as especificidades da realidade latino-americana, levando em consideração a colonialidade, a questão agrária e as desigualdades estruturais. A adaptação do materialismo histórico na América Latina não foi uma simples aplicação das teorias europeias, mas uma reinterpretação das condições sociais, econômicas e culturais do continente (Mariátegui, 1928; Cardoso & Faletto, 1979).
Na América, o capital existiu apenas como o eixo dominante da articulação conjunta das formas historicamente conhecidas de controle e exploração do trabalho, único padrão de poder historicamente-estruturalmente heterogêneo, com relações descontínuas e conflituosas entre seus componentes. A classificação das pessoas não se realiza apenas em um campo de poder, mas em todas as áreas. Dominação é requisito de exploração, e raça é o instrumento de dominação associado à exploração, como classificador universal no padrão mundial atual do poder capitalista.
Em termos da questão nacional, por meio do processo de democratização da sociedade é que é possível a construção de um Estado-nação moderno, incluindo a cidadania e a representação política. A necessária redistribuição de poder, na qual a descolonização da sociedade é pressuposto e ponto de partida, está sendo agora arrasada no processo de reconcentração do controle do poder no capitalismo mundial e com a gestão da colonialidade do poder. Consequentemente, é hora de aprender a libertação do espelho eurocêntrico, necessariamente distorcido.
4. Aplicações das teorias de Anibal Quijano na educação e políticas públicas
A abordagem de estudos sobre aplicações das teorias de Quijano quanto à educação e às políticas públicas valeram-se, fundamentalmente, do texto “Pedagogia decolonial e educação antirracista e intercultural no Brasil”, com excertos do texto de apoio “Comissões de Heteroidentificação racial para acesso em universidades federais”. A análise dessa problemática da educação intercultural latino-americana situa-se a partir do conhecimento do “Multiculturalismo, Direitos Humanos e Educação: a tensão entre igualdade e diferença”.
“As relações entre educação e diferenças culturais no contexto latino-americano e do Brasil têm sido objeto de reflexões e problematizações. Interferindo nas políticas públicas e ações de governo, os estudos sobre relações étnico-raciais vêm se projetando no espaço acadêmico e nos movimentos sociais. O grupo ‘Modernidade/Colonialidade’ tem discutido e contribuído para as questões étnicoraciais no campo educacional, avaliando as confluências entre propostas da pedagogia decolonial e intercultural e das políticas públicas de reformulação curricular no país. Esses debates buscam questionar a hegemonia eurocêntrica na educação e propor alternativas que valorizem os saberes dos povos historicamente marginalizados” (Walsh, 2009; Quijano, 2000; Mignolo, 2017).
O trabalho “Mundos e conhecimentos de outro modo”, apresentado por Arturo Escobar, no terceiro Congresso Internacional de Latino-americanistas, em Amsterdã, fez referência ao grupo de pesquisa “Modernidade/Colonialidade”. Formado predominantemente por intelectuais da América Latina, apresenta caráter heterogêneo e transdisciplinar e tem como postulado principal “a colonialidade como constitutiva da modernidade, e não derivada”, segundo Mignolo (2005, p.75).
Ressaltam-se dois conceitos distintos sobre colonialismo e colonialidade, segundo Quijano (2007, p. 93). “Colonialismo referindo um padrão de dominação e exploração, historicamente mais antigo, e colonialidade dentro desse colonialismo imposto pela intersubjetividade, de modo enraizado e prolongado”(Quijano, 2007). Para Torres (2007, p. 131), “o colonialismo denota relação política e econômica, a soberania de um povo no poder de outro povo ou nação”. Diferente dessa ideia, a colonialidade relaciona um padrão de poder que emergiu como resultado do colonialismo moderno. Apesar de o colonialismo preceder a colonialidade, a colonialidade sobrevive ao colonialismo. Portanto, o colonialismo é mais do que uma imposição política, militar, jurídica ou administrativa, que, na forma de colonialidade, chega às raízes mais profundas de um povo e sobrevive apesar da descolonização ou da emancipação das colônias.
Os autores do grupo “Modernidade/Colonialidade” consideram as estruturas subjetivas, os imaginários e a colonização epistemológica como ainda fortemente presentes, mesmo que o colonialismo tradicional tenha chegado ao fim. Devido a essa situação, Quijano (2005) propõe o conceito de “Colonialidade do poder”. Essa colonialidade do poder reprime os modos de produção de conhecimento, os saberes, o mundo simbólico, as imagens do colonizado e impõe novos, construindo subjetividade do subalternizado, tornando a colonialidade um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial do poder capitalista.
“O conceito de raça é uma construção social que surgiu no contexto da modernidade colonial para justificar a exploração e dominação das populações não europeias. A raça não tem base biológica ou científica, mas foi historicamente utilizada para classificar e hierarquizar os seres humanos, com o objetivo de legitimar o sistema colonial e suas desigualdades. As classificações raciais são, portanto, resultados de um processo social e histórico, e não características naturais dos indivíduos, refletindo relações de poder e dominação” (Harris, 1993; Quijano, 2000).
No desenvolvimento do capitalismo moderno do século XIX, o conceito de raça advém do século XVI, onde se cria a união entre cor e raça, considerada por Quijano como uma abstração, inferiorização de grupos humanos não europeus. Há repressão de outras formas de produção do conhecimento não-europeias, denominada por Quijano como colonialidade do saber, negando o legado intelectual e histórico de povos indígenas e africanos, considerados de outra raça, reduzindo-os como categorias primitivas e irracionais.
Sob o ponto vista da geopolítica do conhecimento, o poder, o saber e as dimensões da cultura definem a lógica do pensamento da Europa, imposta pela colonialidade do poder. Para Mignolo (2005), a geopolítica linguística despreza as línguas nativas e é no conceito de colonialidade do ser onde mais se explicita a força do colonizador, obrigando o colonizado a se questionar: – quem eu sou? Faz-se, assim, do colonizado, a quinta-essência do mal.
A colonialidade do ser é pensada como a negação de um estatuto humano para africanos e indígenas na história da modernidade colonial. Mignolo (2003) indica que o discurso da história do pensamento europeu tem dois lados: o da história da modernidade europeia e o da história silenciada da colonialidade europeia. A primeira, uma história de autoafirmação e de celebração dos sucessos intelectuais e epistêmicos; a segunda, uma história de negações e de rejeição de outras formas de racionalidade e história.
A relação entre colonialidade e modernidade é intrínseca, pois a modernidade, longe de ser uma ruptura com o colonialismo, na verdade, se constrói sobre as estruturas coloniais. A colonialidade do poder, conceito desenvolvido por Aníbal Quijano, revela que a modernidade europeia e suas instituições, como o Estado-nação, o capitalismo e a ciência, foram fundadas a partir da exploração e dominação das populações não europeias. Assim, a modernidade não pode ser entendida como uma fase histórica desvinculada da colonialidade, mas como um processo que perpetuam a subordinação das culturas e povos colonizados, principalmente por meio da imposição de um saber e poder eurocêntricos (Quijano, 2000; Mignolo, 2009).
Nas relações entre colonialidade e modernidade, as reflexões são ampliadas. As diferentes formas de produção do conhecimento entre intelectuais, na academia e nos movimentos sociais, colocam em evidência a questão geopolítica do conhecimento, entendo-o como a estratégia da modernidade europeia, que afirmou suas teorias, seus conhecimentos e seus paradigmas como verdades universais e invisibilizou e silenciou os sujeitos que produzem conhecimentos “outros”. Por esse ângulo, a perspectiva de que a modernidade não é um fenômeno europeu, mas um fenômeno global, com distintas localidades e temporalidades e a radicalização e a universalização da modernidade europeia em todo o planeta.
A diferença colonial é outro conceito introduzido por Mignolo, pensado a partir das ruínas, das experiências e das margens criadas pela colonialidade do poder na estruturação do mundo moderno/colonial, como forma de reconhecer conhecimentos “outros” em um horizonte epistêmico transmoderno, construído a partir de formas de ser, pensar e conhecer em diálogo com a modernidade europeia. A construção de um pensamento crítico “outro”, parte das experiências e histórias marcadas pela colonialidade. O eixo que se busca é a conexão de formas críticas de pensamento produzidas a partir da América Latina, na perspectiva da decolonialidade da existência, do conhecimento e do poder.
Catherine Walsh reflete sobre os processos educacionais a partir de conceitos como: pensamento-outro, decolonialidade e pensamento crítico de fronteira. Tendo como referência os movimentos sociais indígenas equatorianos e dos afro-equatorianos, afirma que a decolonialidade implica partir da desumanização e considerar as lutas dos povos historicamente subalternizados pela existência, para a construção de outros modos de viver, de poder e de saber. Decolonialidade é, desse modo, visibilizar as lutas contra a colonialidade a partir das pessoas, das suas práticas sociais, epistêmicas e políticas.
Sobre interculturalidade, no campo educacional e da pedagogia decolonial, Catherine Walsh (2001, p.10-11) propõe alguns significados:
- Um processo dinâmico e permanente de relação, comunicação e aprendizagem entre culturas em condições de respeito, legitimidade mútua, simetria e igualdade. – Um intercâmbio que se constrói entre pessoas, conhecimentos, saberes e práticas culturalmente diferentes, buscando desenvolver um novo sentido entre elas na sua diferença.
- Um espaço de negociação e de tradução onde as desigualdades sociais, econômicas e políticas, e as relações e os conflitos de poder da sociedade não são mantidos ocultos e sim reconhecidos e confrontados.
- Uma tarefa social e política que interpela ao conjunto da sociedade, que parte de práticas e ações sociais concretas e conscientes e tenta criar modos de responsabilidade e solidariedade. – Uma meta a alcançar (WALSH, 2001).
Essa interculturalidade é compreendida como um conceito ou termo novo para mencionar o simples contato entre o ocidente e outras civilizações, inserido numa configuração conceitual que propõe um giro epistêmico capaz de produzir novos conhecimentos e outra compreensão simbólica do mundo, sem perder de vista a colonialidade do poder, do saber e do ser. Para a autora, a interculturalidade se situa na perspectiva da transformação estrutural e sócio histórica, além da inclusão de novos temas nos currículos e metodologias pedagógicas, expressando criticidade às formulações teóricas multiculturais.
Catherine Walsh (2001) discute sobre os conceitos de decolonialidade e descolonialidade:
O pensamento decolonial emerge como uma necessidade de ruptura com a colonialidade do saber, do ser e do poder, que continuam a estruturar as relações sociais, políticas e epistêmicas na modernidade. Diferente da simples descolonização, que se refere ao processo formal de independência dos países colonizados, a decolonialidade propõe uma reconfiguração profunda do conhecimento e das práticas culturais, desafiando as imposições eurocêntricas e abrindo espaço para epistemologias subalternas. Assim, pensar decolonialmente significa reexaminar criticamente os discursos dominantes e promover alternativas que reconheçam a diversidade e a pluralidade dos saberes(Walsh, 2001, p. 10-11).
Essas terminologias ‘interculturalidade’ e ‘multiculturalismo’ são utilizadas nas políticas públicas educacionais no Brasil e na América para cumprir demandas de discursos subalternos do padrão epistêmico eurocêntrico e colonial hegemônico. Wasch propõe a interculturalidade crítica, a partir das pessoas que sofreram uma experiência histórica de submissão e subalternização, pensada da ideia de uma prática política contraposta à geopolítica hegemônica monocultural e monorracional do conhecimento. A autora elabora a noção de pedagogia decolonial, ou seja, uma práxis baseada numa insurgência educativa propositiva, em que o termo insurgir representa a criação e a construção de novas condições sociais, políticas, culturais e de pensamento.
O reconhecimento dessa pluralidade étnica da sociedade brasileira e a garantia do ensino das contribuições das diferentes etnias na formação do povo brasileiro ocorreram na Constituição Federal de 1988, artigos nº 215 e nº 242, quando o conceito de afrodescendência ganhou força enquanto fator de mobilização social e categoria histórica definidora de um pertencimento étnico. Houve avanços nas discussões no campo das ações afirmativas, como as políticas de cotas raciais nas universidades, dando maior visibilidade aos temas de interesse afrodescendentes no universo das pesquisas acadêmicas em várias áreas do conhecimento.
Em 2003, a Lei nº 10.639 estabeleceu o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nas escolas de ensino fundamental e médio, provocando a realização de diversos fóruns estaduais e nacionais para debaterem-se o ensino da História da África e dos negros no Brasil, promovidos pelo Ministério da Educação e o empenho de diversos educadores e dos movimentos negros. O que se observou, no entorno dos debates da Lei 10.639/03, foram semelhanças com as reflexões sobre a colonialidade do poder, do saber e do ser e a possibilidade de novas construções teóricas para a emergência da diferença colonial no Brasil e de uma proposta de interculturalidade crítica e de uma pedagogia decolonial.
No Brasil, a ideia de raça é historicamente construída a partir de um processo de racialização que subordina as pessoas negras dentro de uma hierarquia social marcada pela desigualdade. O conceito de ‘raça’ no contexto brasileiro é muitas vezes associado a um fenômeno social e cultural, mais do que biológico, o que implica em uma construção social e histórica das diferenças raciais. A categoria de ‘negro’ no Brasil reflete a marginalização e a exclusão social imposta pelas estruturas de poder, em um país que, embora tenha abolido a escravidão formalmente, ainda mantém profundas desigualdades raciais (Nogueira, 2008; Silva, 2017).
A ideia de raça, porém, segue sendo fator de discriminação e inferiorização da população de pessoas negras no Brasil, onde os valores da modernidade, marcados por modelos identitários eurocentristas, dão um papel de subalternidade racial embasados nesse modelo de sociedades capitalistas modernas, de exclusão e colonialidade. Em torno das discussões e debates da questão racial negra no Brasil, a proposta de uma pedagogia decolonial e de interculturalidade crítica requer a superação tanto de padrões epistemológicos hegemônicos no seio da intelectualidade brasileira, quanto à afirmação de novos espaços de enunciação epistêmica nos movimentos sociais.
“O conceito de racismo epistêmico refere-se à marginalização e invisibilização dos saberes produzidos por comunidades racializadas, sendo esses sistematicamente desvalorizados em comparação com o conhecimento europeu dominante. Esse tipo de racismo se manifesta tanto na exclusão de sujeitos não brancos das esferas acadêmicas quanto na construção de um conhecimento que nega ou distorce as realidades e epistemologias desses grupos. O racismo epistêmico está intimamente ligado à colonialidade do saber, onde as estruturas de poder impõem uma hierarquia de conhecimento, favorecendo as produções das culturas hegemônicas e desqualificando as formas de saber das populações subalternizadas” (Mignolo, 2009; Santos, 2010).
O racismo epistêmico considera os conhecimentos não-ocidentais como inferiores, porém, já não é possível negar a existência de histórias e epistemes fora dos marcos conceituais e historiográficos do ocidente. A proposta do grupo Modernidade/Colonialidade, de desenvolver uma reflexão sobre o ensino de história a partir da perspectiva “outra”, requer operar uma mudança de paradigma como precondição para o reexame da interpretação da história brasileira, implicando, também, a construção de uma base epistemológica “outra” para se pensar os currículos propostos pela nova legislação, ou seja, novos espaços epistemológicos, interculturais, críticos e uma pedagogia decolonial.
5. Considerações finais
A contribuição de Aníbal Quijano é inegável no campo das teorias de(s)coloniais. Trata-se de um aprendizado essencial para o campo acadêmico, tanto como proposta epistemológica quanto para a construção de possibilidades e alternativas a epistemologias dominantes globais emanadas do norte. São discussões que servem de reforço para as análises dos processos colonizadores da América, estimulando que se pense a realidade latino americana em torno do colonialismo do poder, da gênese da modernidade capitalista e da ideia de raça.
Para tudo isso, emerge a necessidade da revisão e construção de políticas públicas e educacionais permeáveis às especificidades históricas das relações dos povos nos diferentes contextos, em especial, quanto às questões sociais, culturais, econômicas e políticas. O sociólogo peruano ressalta o colonialismo, a colonialidade do poder e a globalização capitalista para que se processem discussões mais atentas e elaboradas que sistematizem enfrentamentos mais efetivos e eficazes com aplicações adequadas, principalmente, nos campos da educação e das políticas públicas.
A colonialidade do poder, o eurocentrismo, a dependência histórico-estrutural são problemas relevantes como tantos outros, que exigem posições de tomada da consciência latino americana e reações contra a expropriação territorial dos povos, principalmente na periferia do capitalismo. Para tanto, Quijano é personagem central entre os autores, os quais deveriam ser presenças necessárias nos currículos e atividades pedagógicas como expressões da criticidade, de formulações multiculturais e da interculturalidade não como discursos vazios e descompromissados como as atuais políticas públicas e educacionais do Brasil.
Uma interculturalidade crítica, sem submissões e subalternização à geopolítica hegemônica do conhecimento, poderá respeitar a noção de uma pedagogia decolonial como práxis respeitadora das pluralidades e baseada na prática educativa que seja propositiva e criadora de novas condições sociais, políticas e culturais para as ações e o pensamento. Tanto quanto alguns dos avanços experimentados em tempos recentes, como as ações afirmativas e cotas nas universidades brasileiras, por exemplo, atente-se para os riscos de recuos por intenções governamentais pouco democráticas, de afronta à cidadania, de exclusão e colonialidade.
Incentivem-se discussões, debates e propostas para superação desses padrões epistemológicos ainda hegemônicos nas sociedades, como a brasileira, para que se alcancem novos espaços, conceitos, formas de pensar e agir com garantias de enunciação epistêmica e em prol dos movimentos sociais e para a cidadania.
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