O USO INDISCRIMINADO DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA E OS SEUS IMPACTOS PARA A ECONOMIA E EMPRESAS

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202503241850


André Marques Martins


RESUMO 

Este trabalho buscou analisar o instituto da desconsideração da personalidade jurídica e os efeitos negativos decorrentes de sua aplicação indiscriminada sobre a economia e o ambiente empresarial brasileiro. O tema foi abordado sob uma perspectiva jurídica e econômica, com o objetivo principal de identificar as consequências práticas decorrentes da utilização abusiva dessa medida excepcional, a qual possibilita a responsabilização patrimonial dos sócios por obrigações originalmente assumidas pelas sociedades empresariais. Como justificativa, ressaltou-se a relevância da personalidade jurídica para o empreendedorismo e para o ambiente de negócios nacional, considerando que sua relativização sem critérios claros compromete a segurança jurídica e desestimula o investimento. A metodologia adotada foi a revisão bibliográfica, com enfoque na análise das legislações pertinentes e das principais decisões jurisprudenciais do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), além da consulta à doutrina especializada. Os resultados indicam que a aplicação excessiva e desproporcional da desconsideração impacta diretamente o desenvolvimento econômico, elevando a percepção de risco dos investidores, encarecendo o acesso ao crédito e provocando a redução da atividade empresarial. Concluiu-se, portanto, pela necessidade urgente de observância rigorosa dos critérios legais para evitar que a medida, inicialmente protetiva, acabe comprometendo justamente a estabilidade e a sustentabilidade econômica que deveria preservar. 

Palavras-chave: Desconsideração da Personalidade Jurídica; Segurança Jurídica; Impactos Econômicos. 

1. INTRODUÇÃO 

A personalidade jurídica constitui uma das mais importantes ferramentas jurídicas modernas, surgindo com o objetivo de estimular o empreendedorismo ao assegurar aos sócios e administradores proteção patrimonial diante dos riscos empresariais, tendo em vista que tal proteção permite que as empresas atuem no mercado com autonomia, assumindo obrigações e adquirindo direitos sem colocar diretamente em risco o patrimônio pessoal daqueles que as compõem.  

A evolução das sociedades comerciais reforçou a importância dessa autonomia patrimonial como instrumento fundamental para o desenvolvimento econômico, garantindo segurança e previsibilidade nas relações jurídicas e empresariais, contudo, apesar da importância da personalidade jurídica para o dinamismo das relações econômicas, o ordenamento jurídico brasileiro prevê situações excepcionais em que essa autonomia pode ser afastada, possibilitando que os sócios sejam responsabilizados pessoalmente pelos débitos sociais da empresa.  

Esse mecanismo, desconsideração da personalidade jurídica, objetiva prevenir e punir abusos, fraudes e outras práticas ilícitas cometidas sob o escudo societário, assegurando maior proteção aos credores e à sociedade em geral, todavia, a aplicação desse instituto requer extrema cautela, pois seu uso indiscriminado pode resultar em graves consequências econômicas e jurídicas, prejudicando a confiança dos investidores e empreendedores. 

Nesse contexto, embora a legislação brasileira, especialmente o Código Civil e o Código de Processo Civil, tenha estabelecido parâmetros objetivos para a desconsideração da personalidade jurídica, observa-se na prática judiciária uma utilização muitas vezes excessiva e inconsistente deste instituto. A ausência de uniformidade nas decisões judiciais e o emprego inadequado dos requisitos previstos em lei têm gerado preocupações quanto à segurança jurídica e ao ambiente econômico brasileiro, podendo levar à retração de investimentos e ao comprometimento do desenvolvimento empresarial sustentável.  

Assim sendo, questiona-se: de que forma o uso indiscriminado da desconsideração da personalidade jurídica impacta negativamente o ambiente econômico e empresarial brasileiro? 

Diante desse problema, o presente artigo tem como objetivo geral analisar criticamente os fundamentos jurídicos, as consequências econômicas e os limites jurisprudenciais e doutrinários relacionados à aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no Brasil. Especificamente, busca-se identificar os principais critérios estabelecidos pela legislação para a aplicação da desconsideração; analisar os impactos econômicos decorrentes do uso indevido deste instituto nas relações empresariais; e examinar como a jurisprudência e a doutrina têm delimitado seus contornos para evitar abusos e promover maior segurança jurídica. 

A justificativa deste estudo reside na relevância da personalidade jurídica como princípio fundamental para o desenvolvimento econômico, cujo enfraquecimento pela banalização da desconsideração tem consequências potencialmente devastadoras para o ambiente empresarial. A compreensão detalhada dos fundamentos e dos limites impostos pela legislação e pela jurisprudência auxilia não apenas operadores do Direito, mas também investidores e empresários, proporcionando maior clareza e segurança nas relações comerciais. 

Quanto à metodologia, o presente artigo foi desenvolvido por meio de revisão bibliográfica, fundamentada na análise de literatura especializada sobre o tema, incluindo livros, artigos científicos e jurisprudência relevante dos tribunais superiores e inferiores.  

2. FUNDAMENTOS JURÍDICOS DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA 

A personalidade jurídica é um conceito central no Direito moderno, surgindo como uma ferramenta jurídica destinada a proporcionar segurança às relações comerciais, estimulando o empreendedorismo ao preservar o patrimônio pessoal dos sócios diante das obrigações empresariais (Pozzolo; Swiech; Pedrosa, 2021) e, com o desenvolvimento das sociedades modernas, a pessoa jurídica passou a ser reconhecida como um sujeito autônomo, distinto dos indivíduos que a compõem, podendo adquirir direitos e assumir obrigações de forma independente. 

Para que a personalidade jurídica seja regularmente constituída, é necessário observar uma série de requisitos legais, os quais incluem a vontade humana criadora, o cumprimento das condições impostas por lei e uma finalidade específica e lícita, bem como o registro formal do ato constitutivo (Venosa, 2013; Tomazette, 2017), elementos, esses, que garantem que a empresa possa atuar validamente no mercado, assumindo responsabilidade patrimonial limitada em relação aos seus sócios. 

Apesar dessa autonomia patrimonial, o Direito admite, em situações excepcionais, que seja afastada a separação entre a pessoa jurídica e seus integrantes, possibilitando a responsabilização pessoal dos sócios pelas dívidas da empresa, fenômeno este denominado “desconsideração da personalidade jurídica” (Finotti et al., 2024), tratando-se, portanto, de um instituto excepcional, aplicado com o objetivo de prevenir abusos ou fraudes praticados sob a proteção da estrutura societária. 

No Brasil, o Código Civil, em seu artigo 501, regula a desconsideração da personalidade jurídica segundo a Teoria Maior, determinando que esta somente poderá ocorrer quando houver abuso caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, devendo tais requisitos serem devidamente comprovados para legitimar o ato judicial.

Já o Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 282, adota a chamada Teoria Menor, ou Teoria do Risco da Atividade Empresarial, permitindo a desconsideração de forma menos rigorosa, bastando para isso a insolvência da empresa, visando garantir uma maior proteção ao consumidor, que é considerado parte vulnerável nas relações econômicas (Gonçalves; Mantuani Neto, 2023). 

Além do Código Civil e do Código de Defesa do Consumidor, o Código de Processo Civil brasileiro trouxe importante inovação ao regular o procedimento para desconsideração da personalidade jurídica por meio do incidente específico previsto no artigo 133 e seguintes, garantindo a observância ao contraditório e à ampla defesa durante o processo, o que reforça a segurança jurídica das relações societárias. 

O incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto no CPC é aplicável também na esfera trabalhista, conforme estabelecido pelo artigo 855-A da Consolidação das Leis do Trabalho3, introduzido pela Reforma Trabalhista de 2017, embora a aplicação prática dessa norma ainda encontre desafios em razão da multiplicidade de decisões judiciais que adotam tanto a Teoria Maior quanto a Teoria Menor (Gonçalves; Mantuani Neto, 2023). 

Destaca-se que no contexto falimentar, a desconsideração da personalidade jurídica requer especial atenção, uma vez que, se aplicada sem os devidos cuidados, pode provocar efeitos devastadores não apenas para os sócios diretamente envolvidos, mas também para sociedades coligadas ou subsidiárias, potencialmente resultando em uma reação em cadeia de insolvências (Finotti et al., 2024). 

Nesse sentido, a doutrina tem enfatizado que a desconsideração da personalidade jurídica deve obedecer a requisitos objetivos, a fim de evitar abusos e garantir que os sócios ou sociedades vinculadas sejam responsabilizados apenas nas hipóteses em que fique comprovada a prática de atos ilícitos ou fraudulentos, preservando-se, assim, o princípio da preservação da empresa. 

Pode-se dizer que o atual cenário normativo brasileiro revela a necessidade de equilíbrio entre os princípios constitucionais da livre iniciativa e da função social da empresa, o que implica uma cuidadosa ponderação no momento da aplicação prática do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, especialmente diante das divergências entre as teorias existentes e os diferentes regimes jurídicos aplicáveis às diversas áreas do Direito (Gonçalves; Mantuani Neto, 2023; Pozzolo; Swiech; Pedrosa, 2021). 

Portanto, conclui-se que a desconsideração da personalidade jurídica é um instituto excepcional que, embora essencial para combater fraudes e abusos cometidos sob o manto societário, exige uma aplicação rigorosa e criteriosa dos seus requisitos legais, assim, a observância das condições previstas em lei, como o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial, é determinante para a legitimidade e segurança jurídica do procedimento, sendo imperioso o respeito ao contraditório e à ampla defesa, sob pena de comprometer a própria finalidade protetiva que o instituto visa assegurar. 

Nesse contexto, torna-se imperativo analisar as consequências econômicas decorrentes da aplicação indiscriminada desse instituto, pois quando aplicado sem o devido rigor técnico-jurídico, pode gerar insegurança para empreendedores e investidores, afetando diretamente o desempenho das empresas no mercado, nesse sentido, o próximo capítulo aborda precisamente os impactos econômicos provocados pelo uso excessivo da desconsideração da personalidade jurídica, destacando como essa prática pode refletir negativamente sobre a economia e o desenvolvimento empresarial, influenciando tanto a sustentabilidade dos negócios quanto a confiança na atividade econômica.

3. AS CONSEQUÊNCIAS ECONÔMICAS DO USO INDISCRIMINADO DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA 

Como visto, o instituto da desconsideração da personalidade jurídica tem como objetivo principal afastar a autonomia patrimonial da empresa, permitindo que, em situações excepcionais de abuso de direito ou fraude, os sócios respondam com seu patrimônio pessoal pelas obrigações assumidas pela sociedade empresária, ou seja, objetiva-se evitar que a personalidade jurídica seja utilizada como instrumento para prática de ilícitos, garantindo-se a segurança jurídica das relações comerciais. 

Apesar da relevância do instituto, sua aplicação indiscriminada pode acarretar impactos negativos significativos no contexto econômico e empresarial, visto que a autonomia patrimonial é considerada um dos principais atrativos para investimentos empresariais, promovendo um ambiente seguro para a realização de negócios e, consequentemente, para o desenvolvimento econômico, assim, a utilização desproporcional desse instituto compromete o interesse dos empreendedores e investidores no país. 

Nesse sentido, Fábio Ulhoa Coelho (2021) destaca que a separação patrimonial é essencial para garantir a estabilidade das sociedades empresárias, permitindo que seus sócios assumam riscos calculados sem comprometer integralmente seu patrimônio pessoal em caso de insucesso econômico. O uso abusivo da desconsideração da personalidade jurídica desestimula o empreendedorismo, pois gera insegurança jurídica no mercado. 

Cabe ressaltar que a existência da personalidade jurídica é fator decisivo na escolha dos investidores quanto à realização de novos negócios, principalmente em contextos de risco elevado, tendo em vista a possibilidade de limitação das perdas financeiras ao patrimônio da sociedade empresária, desse modo, qualquer ameaça indiscriminada à autonomia patrimonial gera um desestímulo ao empreendedorismo, reduzindo a atratividade de investimentos, especialmente em setores sensíveis ou de grande volatilidade econômica (Ignachitti Gomes; Albergaria Neto, 2022). 

Além disso, é relevante observar que, quando ocorre o uso excessivo ou equivocado do instituto da desconsideração, existe um significativo aumento na percepção de risco por parte dos investidores, refletindo diretamente na elevação dos custos operacionais das empresas, já que estas passam a enfrentar dificuldades para acessar créditos ou captar recursos financeiros em condições favoráveis (Finotti et al., 2024), o que dificulta a expansão das empresas e prejudica a capacidade de inovação e competitividade no mercado. 

Sendo assim, a aplicação da teoria da desconsideração em contextos como o falimentar requer especial atenção, tendo em vista que decisões sem critérios objetivos podem causar prejuízos severos não apenas aos sócios diretamente envolvidos, mas também a sociedades coligadas ou subsidiárias, provocando insolvências em cadeia e potencializando crises econômicas locais. 

Ainda sobre essa questão, Vasconcelos Finotti et al. (2024) ressaltam que a desconsideração da personalidade jurídica, se mal empregada, pode prolongar indevidamente situações de falência, comprometendo inclusive empresas que inicialmente não estariam diretamente relacionadas às práticas fraudulentas ou abusivas investigadas. Tal situação gera prejuízos econômicos significativos, ampliando as consequências negativas da falência. 

Complementarmente, Nogueira Neto (2022) sustenta que a utilização frequente e indiscriminada da desconsideração da personalidade jurídica pelos tribunais brasileiros, mesmo após alterações legislativas recentes como a Lei nº 14.112/2020, demonstra uma tendência preocupante de fragilização da autonomia patrimonial das empresas, com impactos severos sobre o ambiente econômico nacional. 

Ainda nesse contexto, decisões judiciais pouco criteriosas ao aplicar a desconsideração da personalidade jurídica podem causar efeitos colaterais como a desvalorização da imagem das empresas atingidas, implicando em danos reputacionais muitas vezes irreversíveis, mesmo que posteriormente tais decisões sejam revertidas em instâncias superiores o que, consequentemente, podem levar à redução do volume de negócios e até mesmo à inviabilização econômica de empresas que inicialmente estavam em condições financeiras estáveis (Finotti et al., 2024). 

Nesse aspecto, é importante considerar que o princípio da livre iniciativa, previsto constitucionalmente no artigo 170 da Constituição Federal4, fica diretamente comprometido quando a separação patrimonial é banalizada por interpretações judiciais pouco criteriosas, afetando negativamente a segurança jurídica e, consequentemente, o desempenho econômico das empresas. 

É possível dizer que a Lei nº 13.874/2019, conhecida como Lei da Liberdade Econômica, buscou precisamente evitar esse tipo de situação, estabelecendo critérios objetivos para aplicação do instituto, como desvio de finalidade e confusão patrimonial comprovados, visando reduzir margens interpretativas amplas e fortalecer a segurança jurídica nas relações empresariais (Brasil, 2019). 

No entanto, como ressaltam Ignachitti Gomes e Albergaria Neto (2022), apesar dessas inovações, as alterações legislativas promovidas pela Lei nº 13.874/2019 ainda não resolveram completamente os problemas práticos relativos ao uso abusivo desse instituto, persistindo lacunas interpretativas que mantêm a insegurança jurídica no cenário econômico brasileiro. 

Faz-se importante registrar que, apesar da tentativa legislativa de limitar excessos por meio da Lei nº 13.874/2019, estudos recentes indicam que os tribunais brasileiros ainda não têm seguido de maneira uniforme as diretrizes impostas pela nova legislação, permanecendo divergências interpretativas sobre a extensão e as condições de aplicação desse instituto (Ignachitti Gomes; Albergaria Neto, 2022), sendo assim, tal divergência gera instabilidade jurídica que prejudica diretamente o desenvolvimento das relações econômicas nacionais e internacionais. 

Nesse prisma, é fundamental que haja um aperfeiçoamento contínuo dos mecanismos legislativos e jurisprudenciais, com a criação de parâmetros ainda mais claros e objetivos, para assegurar que a desconsideração da personalidade jurídica cumpra sua função protetiva sem prejudicar indevidamente o ambiente econômico e empresarial brasileiro, tendo em vista que apenas assim será possível conciliar a prevenção eficaz de fraudes e abusos com a necessidade de promover um ambiente favorável ao investimento produtivo e ao crescimento econômico sustentável. 

Isso porque observa-se uma clara necessidade de equilíbrio e cautela na aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, uma vez que decisões arbitrárias ou fundamentadas em critérios frágeis podem causar desconfiança no mercado, levando à retração de investimentos, diminuição da atividade empresarial e impacto negativo na economia em geral (Auad; Catalani; Lima, 2021). 

4. LIMITES JURISPRUDENCIAIS E DOUTRINÁRIOS À DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA 

Discute-se, no direito brasileiro, os limites à aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, medida excepcional que permite alcançar os bens de sócios ou administradores em casos de abuso comprovado dessa autonomia patrimonial, tendo em vista que a teoria da desconsideração, consagrada no artigo 50 do Código Civil, foi concebida para coibir fraudes e abusos por meio do levantamento do véu corporativo.  

No entanto, o uso indiscriminado desse instituto tem gerado preocupação na doutrina e na jurisprudência quanto à segurança jurídica, pois a banalização da sua aplicação pode trazer descrédito ao instituto e impactos negativos ao ambiente de negócios, assim, busca-se critérios objetivos para balizar sua incidência, de modo a proteger a confiança dos empreendedores na separação patrimonial da pessoa jurídica e evitar prejuízos indevidos à economia em geral.  

Nesse contexto, impõe-se analisar precedentes do Supremo Tribunal Federal (STF), do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e de tribunais inferiores que estabeleceram diretrizes sobre a adequada utilização da desconsideração da personalidade jurídica, enfatizando a excepcionalidade da medida e a necessidade de prova concreta de desvio de finalidade ou confusão patrimonial para sua decretação.  

A legislação brasileira adota, como regra geral, a teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica, exigindo a comprovação de abuso do ente societário para autorizar a sua desconsideração (Código Civil, art. 50) que, desde a promulgação de sua redação original, sempre se exigiu a presença de desvio de finalidade (utilização da pessoa jurídica para lesar credores ou para fins ilícitos) ou confusão patrimonial (mistura indevida de patrimônios da sociedade e dos sócios) como pressupostos objetivos do instituto (COELHO, 2021).  

Ou seja, trata-se de medida de caráter excepcional, de modo que a autonomia patrimonial da pessoa jurídica deve ser a regra, e seu afastamento constitui exceção justificada apenas diante de uso abusivo da personalidade.  

O STF, em sintonia com esses princípios, já reconheceu que a retirada da proteção da personalidade jurídica somente se legitima nos casos previstos em lei e mediante fundamentação conforme destacado no julgamento do Mandado de Segurança nº 32.494/DF (Brasil, 2013): 

A aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica tem por objetivo coibir o uso indevido da pessoa jurídica, levada a efeito mediante a utilização da pessoa jurídica contrária a sua função social e aos princípios consagrados pelo ordenamento jurídico, afastando, assim, a autonomia patrimonial para chegar à responsabilização dos sócios da pessoa jurídica e/ou para coibir os efeitos de fraude ou ilicitude comprovada. […] A desconsideração da personalidade jurídica constitui meio, embora de caráter extraordinário, destinado a coibir o abuso de direito e a inibir a prática de fraude mediante indevida manipulação do instituto da personalidade civil. […] A aplicação dessa doutrina permite a superação pontual, transitória e episódica ‘da eficácia do ato constitutivo da pessoa jurídica’, desde que se torne possível ‘verificar que ela foi utilizada como instrumento para a realização de fraude ou abuso de direito. [Brasil, Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar no Mandado de Segurança n.º 32494 DF. 2ª Turma, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em: 11, nov. 2023] 

O STJ consolidou entendimentos importantes sobre os critérios para a desconsideração, reforçando a necessidade de objetividade na sua aplicação já que, em diversos julgados, assinalou-se que não basta a mera dificuldade de recebimento de crédito ou o simples encerramento irregular das atividades da empresa devedora para autorizar a desconsideração – é indispensável a evidência de ato abusivo dos sócios (Brasil, 2015): 

2. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica (disregard of legal entity doctrine) incorporada ao nosso ordenamento jurídico tem por escopo alcançar o patrimônio dos sócios-administradores que se utilizam da autonomia patrimonial da pessoa jurídica para fins ilícitos, abusivos ou fraudulentos, nos termos do que dispõe o art. 50 do CC: comprovação do abuso da personalidade jurídica, mediante desvio de finalidade ou de confusão patrimonial, em detrimento do interesse da própria sociedade e/ou com prejuízos a terceiros. Precedentes. 3. A mera demonstração de insolvência da pessoa jurídica ou de dissolução irregular da empresa sem a devida baixa na junta comercial, por si sós, não ensejam a desconsideração da personalidade jurídica. Precedentes. 4. Tendo por incontroversa a base fática apresentada pelo Tribunal de origem – inexistência de prova de encerramento irregular das atividades empresariais e de algum dos requisitos do art. 50 do CC -, este Tribunal Superior não esbarra no óbice da Súmula 7/STJ por analisar a alegação de violação do art. 50 do CC. Precedente. [Brasil, Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n.º 550.419/RS. 4ª Turma, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em: 28, abr. 2015] 

Destaca-se também o precedente em que o STJ enfatizou que as instâncias ordinárias devem demonstrar de forma motivada a ocorrência do desvio de finalidade ou da confusão patrimonial, sem os quais a medida torna-se incabível (Brasil, 2010).  

CIVIL E PROCESSUAL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO MONITÓRIA. CONVERSÃO. EXECUÇÃO. PERSONALIDADE JURÍDICA. DESCONSIDERAÇÃO. REQUISITOS. AUSÊNCIA. CONHECIMENTO E PROVIMENTO. I. Nos termos do Código Civil, para haver a desconsideração da personalidade jurídica, as instâncias ordinárias devem, fundamentadamente, concluir pela ocorrência do desvio de sua finalidade ou confusão patrimonial desta com a de seus sócios, requisitos objetivos sem os quais a medida torna-se incabível. II. Recurso especial conhecido e provido. [Brasil, STJ. Recurso Especial n.º 1.098.712/RS. 4ª Turma, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, julgado em: 17, jun. 2010] 

Essa orientação visa evitar decisões arbitrárias que violem a separação entre o patrimônio da sociedade e o de seus integrantes, garantindo que somente nas hipóteses de abuso comprovado se autorize a execução no patrimônio pessoal dos sócios.  Ademais, o STJ adota expressamente a teoria maior subjetiva e objetiva do artigo 50 do CC, afastando analogias com a teoria menor prevista em legislações especiais, de modo a preservar a previsibilidade nas relações empresariais. 

Vários julgados do STJ reafirmam a excepcionalidade da desconsideração e rechaçam a sua banalização. Em recurso especial representativo, entendeu-se que a mera insolvência da pessoa jurídica ou seu fechamento irregular, por si sós, não autorizam a desconsideração, ausente prova de abuso e, de mesmo modo, decidiu-se que o simples fato de a empresa não possuir bens penhoráveis e ter encerrado atividades sem baixa formal não configura, isoladamente, fraude ou desvio de finalidade aptos a romper a autonomia patrimonial5

Nesses casos, o credor deve buscar outros meios de satisfação do crédito, não podendo o Judiciário atropelar o princípio da separação patrimonial sem evidências concretas de que a pessoa jurídica foi usada como instrumento de fraude6. Tais precedentes têm caráter pedagógico, sinalizando às instâncias inferiores que a aplicação indiscriminada do disregard é vedada e que a desconsideração deve servir apenas como mecanismo de repressão a desvios graves, sob pena de punir indevidamente o insucesso normal de uma atividade empresarial lícita (Coelho, 2021).  

O STJ, interpretando o CPC/2015 (artigos 133 a 137), assentou que mesmo na fase de cumprimento de sentença ou execução é imprescindível instaurar o incidente quando não há pedido de desconsideração já formulado na petição inicial, garantindo assim ampla defesa. Esse formalismo procedimental é uma salvaguarda importante da segurança jurídica: impede que se surpreenda o sócio com a execução direta de seus bens sem que tenha havido clara delimitação dos abusos atribuídos e sem prova efetiva, coibindo o uso automático e irrefletido da desconsideração (Gomes, 2024).  

Em suma, a disciplina do incidente no CPC reforça os critérios objetivos e a fundamentação exigidos para a medida, alinhando-se ao entendimento dos tribunais superiores de que a decisão deve ser rigorosamente motivada (ponto para citação direta de decisão sobre o IDPJ, por exemplo STJ, REsp 1.800.032/SP)7.  

A preocupação com a segurança jurídica e os impactos econômicos também se reflete em mudanças legislativas recentes, como exemplo, tem-se a Lei nº 13.874/2019, conhecida como Lei da Liberdade Econômica, a qual alterou o artigo 50 do Código Civil para positivar definições de desvio de finalidade e confusão patrimonial, além de acrescentar disposições que vedam a desconsideração apenas com base em grupo econômico ou na expansão da atividade (Brasil, 2019).  

Segundo a nova redação, desvio de finalidade é o uso da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores ou praticar ilícitos, enquanto confusão patrimonial caracteriza-se pela ausência de separação de fato entre os patrimônios (art. 50, §§1º e 2º, CC). Ainda, explicitou-se que a mera existência de grupo econômico, sem o preenchimento dos requisitos de abuso, não autoriza a desconsideração (art. 50, §4º, CC).  

Tais alterações buscaram cristalizar critérios objetivos que já vinham se formando na jurisprudência, fechando brechas para interpretações expansivas e subjetivas que geravam insegurança jurídica, assim, a intenção do legislador foi limitar a interferência estatal desnecessária sobre a livre iniciativa, assegurando aos empreendedores que somente o mau uso deliberado da pessoa jurídica poderá justificar a perda da limitação de responsabilidade, e não vicissitudes ordinárias dos negócios (Auad; Catalani; Lima, 2021). 

O STF, guardião dos princípios constitucionais, tem ressaltado a importância do equilíbrio entre a liberdade econômica e a efetividade da responsabilidade patrimonial. Embora não haja uma súmula vinculante específica do STF sobre desconsideração, o Tribunal já enfrentou o tema ao examinar dispositivos legais como o artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor e normas ambientais, que preveem hipóteses de desconsideração mais flexíveis (teoria menor) (Chimelli, 2023).  

Em tais análises, a Corte Suprema considerou válida a mitigação da regra da separação patrimonial em prol de direitos difusos ou do consumidor, porém sem afastar a necessidade de algum elemento de abuso ou de abuso de direito. Do ponto de vista constitucional, a desconsideração da personalidade jurídica deve ser aplicada de forma compatível com os princípios da livre iniciativa e da função social da empresa, evitando tanto a impunidade de fraudes quanto a inibição da atividade econômica legítima.  

O STF, em decisões como a já analisada MC no MS 32.494/DF, reconheceu inclusive modalidades expansivas da desconsideração em contextos administrativos, mas sempre sublinhando tratar-se de medida excepcional que requer justificativa plausível (Brasil, 2013). Assim, embora atue sobretudo no controle de constitucionalidade das leis pertinentes, o Supremo contribui para fixar balizas gerais: nem abuso de direito pode ser tolerado sob o manto da pessoa jurídica, nem a limitação de responsabilidade, crucial para o empreendedorismo, pode ser relativizada sem critérios claros e objetivos.  

Frisa-se que a jurisprudência dos tribunais estaduais e regionais em regra alinha-se às diretrizes fixadas pelos tribunais superiores, reforçando a necessidade de cautela na desconsideração, ou seja, diversos acórdãos de Tribunais de Justiça enfatizam que a desconsideração deve ser deferida apenas em caráter excepcional, quando preenchidos os requisitos do art. 50 do CC, conforme a orientação da teoria maior, ad exemplum, decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal asseverou que a preservação da autonomia patrimonial é a regra, devendo a medida ser tomada somente diante de efetivo desvio de finalidade ou confusão patrimonial demonstrados nos autos8.  

A justiça do trabalho historicamente aplicou a desconsideração com maior flexibilidade (teoria menor), visando proteger créditos trabalhistas de natureza alimentar, no entanto, mesmo nesse âmbito, tem-se observado gradativo rigor no exame dos requisitos, especialmente após as alterações legislativas de 2019. Assim, alguns doutrinadores têm sinalizado que a mera ausência de bens da empresa ou o encerramento irregular não bastam, exigindo-se indícios de fraude, abuso ou confusão patrimonial também na seara laboral, em respeito ao artigo 50 do Código Civil (Auad; Catalani; Lima, 2021).  

Essa harmonização interpares entre ramos do Judiciário busca conciliar a tutela efetiva dos credores trabalhistas com a segurança jurídica dos sócios que agiram de boa-fé. Ressalta-se, inclusive, que a Instrução Normativa nº 39/2016 do TST passou a disciplinar o incidente de desconsideração no processo do trabalho, reforçando garantias processuais semelhantes às previstas no CPC/2015 (Yunes, 2023). Ainda que a justiça laboral mantenha peculiaridades, o movimento jurisprudencial aponta para a convergência quanto ao núcleo dos critérios de abuso, evitando-se que a desconsideração se torne um atalho automático em prejuízo da distinção patrimonial e da estabilidade das relações empresariais. 

Como demonstrado no capítulo anterior, a doutrina reforça a necessidade de limites claros para a desconsideração da personalidade jurídica, sob pena de se instaurar um quadro de insegurança jurídica nocivo ao desenvolvimento econômico, nesse sentido, Fábio Ulhoa Coelho (2021) adverte que a aplicação correta da teoria da desconsideração deve focar na repressão de atos ilícitos praticados sob o escudo da pessoa jurídica, sem inviabilizar a própria existência da sociedade ou punir o risco empresarial ordinário. 

Para o autor, a desconsideração é um instrumento de coibição do mau uso da personalidade, pressupondo necessariamente o desvirtuamento doloso de sua finalidade; em contrapartida, a utilização regular da empresa, ainda que resulte em insolvência ou insucesso, não justifica a medida extrema (Coelho, 2021).  

Outros juristas destacam o princípio da segurança jurídica como norteador: Moulis (2010) pontua que os cidadãos – inclusive empresários e investidores – devem poder prever as consequências jurídicas de seus atos, confiando que obrigações contraídas no âmbito de uma pessoa jurídica não migrarão inesperadamente para o seu patrimônio pessoal sem justa causa. Sob essa ótica, interpretações amplas do instituto, que variem conforme o julgador, ferem a previsibilidade e podem desestimular investimentos e a tomada de riscos legítimos nos negócios, assim, o consenso doutrinário é no sentido de prestigiar critérios objetivos e restritivos, conferindo maior estabilidade ao ambiente jurídico-econômico e fortalecendo a credibilidade do instituto da personalidade jurídica.  

Observa-se também preocupação com os impactos macroeconômicos de decisões excessivamente permissivas na desconsideração da personalidade jurídica. Uma aplicação banalizada tende a aumentar o custo Brasil, pois os agentes econômicos passam a precificar em seus contratos e investimentos o risco de terem sua responsabilidade patrimonial ampliada imprevisivelmente (Gomes; Albergaria Neto, 2022). 

Estudos ressaltam que a blindagem patrimonial oferecida pela personalidade jurídica é um incentivo fundamental ao empreendedorismo – sem ela, muitos negócios deixariam de ser iniciados, ou os sócios exigiriam retornos muito maiores para compensar a insegurança (Auad; Catalani; Lima, 2021), por outro lado, a inexistência de limites claros pode levar a abusos por parte de maus empresários, gerando descrédito não só do instituto da pessoa jurídica, mas também do próprio Poder Judiciário se este for visto como inclinando-se a favorecer devedores contumazes ou, no polo oposto, a sacrificar sociedades inteiras por dívidas pontuais.  

Portanto, a análise de precedentes do STF, STJ e tribunais inferiores revela um entendimento convergente no sentido de que a desconsideração da personalidade jurídica não pode ser trivializada, sob pena de abalar os alicerces da segurança jurídica e da confiança nas regras do jogo econômico, assim, sublinha-se que a regra geral continua sendo a separação patrimonial entre sócios e sociedade, e somente situações excepcionais de abuso comprovado legitimam a superação dessa barreira protetiva.  

Os tribunais superiores têm fixado diretrizes objetivas: exigência de desvio de finalidade ou confusão patrimonial demonstrados; caráter subsidiário da medida, que deve ser a ultima ratio na busca por satisfação de obrigações; e observância de garantias processuais mediante o incidente de desconsideração, para evitar decisões surpresa. Tais parâmetros vêm sendo acolhidos pela jurisprudência pátria, reforçados pela legislação recente, em especial a Lei da Liberdade Econômica, de forma a equilibrar a proteção de terceiros lesados com a manutenção de um ambiente jurídico estável e propício aos negócios.  

A delimitação dos contornos da desconsideração, com critérios claros e aplicação responsável, busca assegurar que esse instrumento continue eficaz no combate a fraudes, porém sem inibir a atividade empresarial lícita nem comprometer a confiança dos agentes econômicos. Em suma, prevalece o entendimento de que a desconsideração da personalidade jurídica é uma medida excepcional, fundamentada e criteriosa, cuja banalização não encontra amparo no ordenamento, conforme reiteradamente afirmado pelos tribunais. 

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Diante das fundamentações apresentadas, pode-se dizer que a desconsideração da personalidade jurídica é um instituto excepcional, previsto na legislação brasileira para garantir que a autonomia patrimonial das empresas não seja utilizada para a prática de atos fraudulentos ou abusivos, protegendo credores e o mercado de condutas ilícitas, nesse sentido, observou-se que os fundamentos jurídicos desse instituto estão pautados, sobretudo, na Teoria Maior, prevista no Código Civil, a qual exige a comprovação clara de desvio de finalidade ou confusão patrimonial, e na Teoria Menor, adotada pelo Código de Defesa do Consumidor, visando resguardar consumidores em situação de vulnerabilidade, assim, percebe-se que o legislador buscou equilibrar a proteção dos direitos de credores e consumidores com a segurança jurídica necessária às relações comerciais e empresariais. 

Além disso, constatou-se que, apesar das exigências legais e dos critérios estabelecidos pela jurisprudência dos tribunais superiores, especialmente pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça, o instituto vem sendo aplicado de maneira excessiva e indiscriminada em algumas decisões judiciais. Esse fato revela uma tendência preocupante de banalização da desconsideração da personalidade jurídica, que acaba por gerar insegurança jurídica, comprometendo o princípio constitucional da livre iniciativa e interferindo diretamente no ambiente econômico nacional. 

Verificou-se também que as consequências econômicas desse uso abusivo são significativas e complexas, especialmente porque desestimulam o empreendedorismo e reduzem a atratividade dos investimentos, tanto nacionais quanto internacionais, demonstrando-se que a ameaça constante de responsabilização pessoal dos sócios por dívidas empresariais decorrentes de mera insolvência ou dificuldades financeiras, sem comprovação de fraude ou abuso, amplia a percepção de risco do mercado, cenário, esse, que eleva os custos operacionais, dificulta o acesso das empresas ao crédito e limita severamente a capacidade de inovação e expansão das sociedades empresárias. 

No tocante às análises jurisprudenciais, destacou-se que tanto o STF quanto o STJ têm consolidado importantes precedentes que estabelecem limites claros à aplicação da desconsideração da personalidade jurídica. Observou-se que, em diversos julgados, essas cortes superiores enfatizam o caráter excepcional e subsidiário da medida, exigindo motivação adequada e comprovação dos pressupostos legais estabelecidos. Decisões como o Mandado de Segurança nº 32.494/DF (STF, 2013) e o Recurso Especial nº 1.098.712/RS (STJ, 2010) refletem precisamente essa orientação restritiva, indicando um caminho seguro para preservar o instituto em sua função legítima, coibindo sua utilização indiscriminada por instâncias inferiores. 

Ademais, as recentes alterações legislativas introduzidas pela Lei nº 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica) reforçaram ainda mais a necessidade de critérios objetivos e claros para aplicação da desconsideração da personalidade jurídica. Essas mudanças tiveram como intuito explícito afastar interpretações amplas e subjetivas que ampliavam indevidamente as hipóteses de responsabilização patrimonial dos sócios, com isso, o legislador buscou diminuir a inseguridade jurídica enfrentada por empreendedores e investidores, fornecendo balizas mais objetivas para sua aplicação, o que, espera-se, reflita positivamente na estabilidade e no crescimento econômico do país. 

Sendo assim, constatou-se que a aplicação indiscriminada da desconsideração da personalidade jurídica tem provocado impactos negativos ao ambiente econômico e empresarial brasileiro, na medida em que gera incertezas, afasta investimentos e impõe aos empresários uma percepção exagerada e injustificada de risco financeiro e patrimonial. Essa prática indevida desvirtua a função original do instituto, que deveria ser empregado apenas em situações claras e comprovadas de fraude ou abuso, e não como um mecanismo simplificado para a satisfação de créditos ou recuperação de perdas ordinárias, logo, revela-se essencial que tanto a jurisprudência quanto o próprio legislador mantenham rígida vigilância sobre os requisitos legais para assegurar que o instituto permaneça como medida excepcional, preservando a previsibilidade e segurança necessárias à atividade econômica. 

Portanto, conclui-se que a preservação de limites claros e rigorosamente aplicados para a desconsideração da personalidade jurídica é condição indispensável para o fortalecimento da segurança jurídica, do empreendedorismo e da estabilidade econômica no país. Destaca-se a importância de um esforço constante dos tribunais e dos legisladores na definição precisa desses limites, garantindo que este mecanismo permaneça restrito às situações previstas em lei e plenamente justificadas por provas concretas. Somente assim, o instituto cumprirá sua finalidade de combater fraudes e abusos sem prejudicar indevidamente empresas e sócios que atuam legitimamente no mercado brasileiro. 


1Art. 50, Caput, CC/02: “Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso”.

2Art. 28. Caput, CDC: “O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração”.

3Art. 855-A, Caput, CLT: “Aplica-se ao processo do trabalho o incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto nos arts. 133 a 137 da Lei no 13.105, de 16 de março de 2015 – Código de Processo Civil”

4Art. 170, Caput, CF/88: “ ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: […]”.

5Vide ementa proferida em Agravo Interno no Recurso Especial n.º 1.812.292/RO, julgado pela 4ª turma do STJ, na relatoria de Luis Felipe Salomão, julgado em: 18, mai. 2020: “1. A desconsideração da personalidade jurídica é medida de caráter excepcional que somente pode ser decretada após a análise, no caso concreto, da existência de vícios que configurem abuso de direito, caracterizado por desvio de finalidade ou confusão patrimonial, requisitos que não se presumem em casos de dissolução irregular ou de insolvência. Precedentes. 2. A inexistência ou não localização de bens da pessoa jurídica não é condição para a instauração do procedimento que objetiva a desconsideração, por não ser sequer requisito para aquela declaração, já que imprescindível a demonstração específica da prática objetiva de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial. 3. Agravo interno não provido”.

6Vide ementa proferida em Agravo Interno no Agravo Interno no Agravo em recurso Especial n.º 1.778.746/SP, julgado pela 3ª Turma do STJ, na relatoria de Nancy Andrighi, julgado em: 02, mai. 2022: “1. A orientação do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que não se pode desconsiderar a personalidade jurídica de sociedade empresária devedora para alcançar o patrimônio dos seus sócios com base apenas no seu encerramento irregular e na ausência de bens penhoráveis. 2. Não incide a multa descrita no art. 1.021, § 4º, do CPC/2015 quando não
comprovada a manifesta inadmissibilidade ou improcedência do pedido. 3. Agravo interno desprovido”.

7Vide ementa proferida em Recurso Especial n.º 1.800.032 – MT, julgado pela 1ª Turma do STJ, na relatoria de Marco Buzzi, julgado em 28, ago. 2020: “1. O produtor rural, cuja inscrição é facultativa, ao optar pelo assentamento de sua atividade junto ao Registro Público de Empresas Mercantis, passa a ser considerado legalmente empresário, alterando a partir deste ato seu status perante o ordenamento jurídico. Logo, sua inscrição deve ser considerada como constitutiva e não meramente declaratória. 2. O registro do empresário rural na junta comercial tem feição constitutiva e não declaratória, inviabilizando que os efeitos da recuperação judicial alcancem os créditos constituídos antes da mencionada inscrição, nos exatos termos do art. 971 do Código Civil. 3. A situação fática e jurídica do devedor ao assumir obrigações não pode ser considerada elemento irrelevante, posto que define, entre outros fatores, os contornos nos quais será operada a exigibilidade dos compromissos eventualmente inadimplidos, constituindo-se em verdadeiro registro permanente, memória paramétrica do quanto foi legal e validamente pactuado, circunstância central a ser considerada pelo Poder Judiciário, sob pena deste último disseminar insegurança jurídica e protagonizar solução, para a lide, diversa daquela preconizada nas leis e nos próprios ajustes firmados pelas partes, mormente quando chamado a intervir nas relações socioeconômicas. 4. A distinção de regimes e efeitos jurídicos para os negócios jurídicos é própria e comum em nosso sistema legal, motivo pelo qual é adequado o trato diferenciado de débitos pactuados em tempo e circunstâncias diversos (art.422 do CC/02)”.

8Vide trecho do acórdão proferido no Agravo Interno n.º 1369154, julgado pela 3ª Turma do TJDF, na relatoria de Roberto Freitas, julgado em 31, ago. 2021: “1. A aplicação da desconsideração da personalidade jurídica deve ser excepcional, sendo a regra a preservação da autonomia patrimonial, devendo ser deferida quando presentes os requisitos do Art. 50 do Código Civil. 2. O ordenamento jurídico adotou a teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica a qual exige prova do desvio de finalidade da sociedade ou a confusão patrimonial entre o patrimônio dos sócios e o da sociedade empresária.”

REFERÊNCIAS 

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