REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202502281255
Sandro Christovam Bearare1
RESUMO
A classificação das armas de fogo é um tema de grande relevância técnica e normativa, pois envolve critérios que impactam diretamente a regulamentação e o controle desses dispositivos. Este estudo tem como objetivo analisar criticamente as inconsistências na classificação de armas no Brasil. Para isso, utilizou-se uma abordagem qualitativa, baseada na revisão de literatura, na legislação comparada e na análise documental de normas nacionais e internacionais. Os resultados indicam que a ausência de padronização na categorização das armas no Brasil compromete a nomenclatura oficial, a fiscalização e a identificação precisa desses artefatos, dificultando o registro, o controle e a segurança pública. A comparação com regulamentações internacionais, como as adotadas pela União Europeia, pelos Estados Unidos e pela ONU, demonstra que a implementação de critérios técnicos objetivos e sistemas normatizados de identificação e classificação melhora significativamente a eficiência e a segurança do processo. No entanto, o Brasil ainda carece de uma estrutura normativa alinhada a essas diretrizes globais.
Palavras Chave: Classificação de armas de fogo. Regulamentação. Normatização.
INTRODUÇÃO
A classificação de armas de fogo trata-se da expressão empregada para descrever as características gerais sob diversos aspectos, como: aplicação, dimensão, tipo, operação, fabricante, acabamento, calibre, número identificador, capacidade de carregamento, entre outros, com o propósito de catalogar e atribuir especificidades para a identificação exclusiva de uma arma.
É um assunto de alta complexidade, cujo consenso é ausente e cuja abordagem é frequentemente inconsistente, a classificação das armas no Brasil levanta inúmeras incertezas relacionadas à aplicação dos conceitos em diferentes esferas, sejam elas reguladoras ou voltadas à fabricação.
A escolha do tema busca evidenciar a desconexão entre o avanço técnico das armas e a evolução normativa, propondo uma análise crítica e comparativa que amplie a compreensão sobre o tema. Além disso, ele incorpora uma perspectiva internacional ao explorar classificações e definições utilizadas em outros países, favorecendo uma abordagem mais abrangente e relevante
No Brasil, a revogação do Decreto nº 3.665/00 – que consolidava 85 definições específicas sobre nomenclatura e classificação de armamentos – intensificou esse cenário de incertezas, deixando uma significativa lacuna legal. Como alternativa, a Cartilha de Armamento e Tiro da Polícia Federal foi elevada ao posto de principal referência no país, embora seu enfoque se limite a orientações para o exame de capacidade técnica, sem o devido amparo legislativo abrangente.
Diante dessa conjuntura, o presente artigo busca não apenas esclarecer a complexidade da classificação de armas de fogo, mas também propor uma análise crítica que integre perspectivas técnicas, históricas e normativas, buscando através de análise e sugestões globais uma nova normativa. Além de explorar as múltiplas categorias e definições de armamentos, o artigo procura evidenciar as desconexões presentes na abordagem legal brasileira, sugerindo alternativas pautadas em modelos de classificação empregados em outros países. Para tanto, são utilizados exemplos históricos, comparações internacionais e um olhar detalhado sobre definições divergentes, contribuindo com uma reflexão sistemática e coerente acerca do tema.
Ao preencher essa lacuna, o estudo objetiva trazer maior compreensão e fundamentação para legislações e regulamentações futuras, apresentando um panorama que conecte a evolução das armas de fogo à necessidade de regulamentações e normativas claras e uniformes.
1. A EVOLUÇÃO DAS ARMAS: DOS PRIMÓRDIOS AO CONTEXTO BRASILEIRO
A história das armas é inseparável da própria história da humanidade, refletindo não apenas avanços técnicos, mas também transformações sociais, políticas e culturais. Desde os primórdios, quando instrumentos de pedra e madeira serviam como extensões da força humana, até os complexos sistemas de fogo modernos, cada etapa desse percurso revela como a necessidade de defesa, domínio e sobrevivência impulsionou a inovação. No contexto brasileiro, essa trajetória ganha contornos únicos, marcados pela herança colonial e pela busca por autonomia tecnológica.
Na pré-história, as armas de arremesso simples, como lanças e pedras, eram fundamentais para a caça e a defesa. Com o tempo, o desenvolvimento de mecanismos mecânicos, como arcos e bestas (séculos XII-XIII), ampliou o alcance e a eficácia, permitindo ataques à distância. Contudo, foi a descoberta da pólvora, na China do século IX, que revolucionou definitivamente a guerra. Na Europa medieval, essa tecnologia chegou por rotas comerciais e, no século XV, os alemães introduziram o raiamento — sulcos internos no cano que melhoravam a precisão. Apesar de sua invenção precoce, o raiamento só se tornou amplamente relevante no século XIX, quando estudos balísticos científicos otimizaram seu uso.
Paralelamente, os sistemas de ignição evoluíram de métodos arcaicos para soluções mais confiáveis. No século XV, a mecha — um pavio aceso que acionava a pólvora em mosquetes — era vulnerável à umidade e ao vento. No século XVI, a roda de fogo, que gerava faíscas por fricção, trouxe mais confiabilidade, mas seu custo elevado limitava seu uso. Foi a pederneira, no século XVII, que se popularizou, combinando simplicidade e eficiência, e dominou os campos de batalha até o século XIX.
O século XIX marcou a transição para a produção em massa, impulsionada pela Revolução Industrial. Em 1820, o sistema de percussão substituiu a pederneira, utilizando cápsulas explosivas para iniciar a ignição. Esse avanço permitiu maior segurança e velocidade de recarga, culminando na patente do cartucho metálico com pino, por Casimir Lefaucheux, em 1836. Esse invento padronizou a munição e pavimentou o caminho para armas portáteis eficientes.
Nesse período, revólveres e pistolas tornaram-se símbolos de uma nova era. Samuel Colt, em 1836, popularizou o revólver de cilindro giratório, enquanto Hugo Borchardt (1893) e John Moses Browning (com a lendária M1900) revolucionaram as pistolas semiautomáticas, utilizando o recuo dos gases para automatizar disparos. Essas inovações não apenas mudaram a guerra, mas também influenciaram a cultura, transformando armas em ícones de poder e autonomia individual.
O século XX, marcado por conflitos em escala global, acelerou a inovação bélica. Na Primeira Guerra Mundial, metralhadoras como a Maxim redefiniram a guerra de trincheiras, enquanto a Segunda Guerra consolidou o fuzil de assalto como padrão. O alemão Sturmgewehr 44 (1944), precursor direto, inspirou o soviético AK-47 (1947), que se tornou o fuzil mais produzido da história, símbolo de resistência e guerrilha.
A automação tornou-se prioridade: sistemas como o recuo de gases (usado no M1 Garand) e cartuchos intermediários (como o 7.62x39mm do AK-47) equilibraram potência e controle. Paralelamente, a M1911, pistola semiautomática de Browning, estabeleceu-se como padrão militar por décadas, evidenciando a busca por ergonomia e confiabilidade.
Enquanto o mundo avançava, o Brasil trilhava um caminho singular. No período colonial, a Casa do Trem de Artilharia (1711), no Rio de Janeiro, foi a primeira iniciativa de manutenção bélica, seguida pelo Arsenal de Marinha (1763), que supria a frota portuguesa. No século XX, empresas como a Amadeo Rossi (1889) e a Forjas Taurus (1937) modernizaram a produção, incorporando tecnologia alemã e americana. A criação da Imbel (1975) coroou esse esforço, desenvolvendo o Fuzil IA2, adotado pelas Forças Armadas, e posicionando o país como exportador de armas leves.
Desta forma, a evolução das armas não é mera sucessão de inventos, mas um espelho das ambições e contradições humanas. Se, por um lado, o raiamento e a automação salvaram vidas em contextos defensivos, por outro, armas como o AK-47 alimentaram conflitos prolongados. No Brasil, a indústria bélica reflete tanto a herança colonial quanto a busca por soberania — uma dualidade que ainda desafia políticas públicas e regulamentações.
Ao entender essa trajetória, percebe-se que a classificação técnica das armas, tema central deste estudo, não é um exercício meramente descritivo, mas uma ferramenta para classificar de uma forma abrangente e técnica, todas ao menos, a grande maioria, as espécies de arma de fogo.
Assim, compreender a evolução das armas é essencial para embasar discussões normativas e desenvolver diretrizes regulatórias mais eficazes, onde apresenta-se as recomendações para a classificação das armas de fogo.
2. CLASSIFICAÇÃO DAS ARMAS DE FOGO
As armas de fogo, desenvolvidas e aprimoradas ao longo da história, desempenham um papel fundamental em diversos contextos, desde o uso militar e policial até aplicações civis e esportivas. Para compreendê-las plenamente, é essencial analisá-las sob diferentes critérios de classificação, incluindo aspectos mecânicos e de fabricação. Esses critérios abrangem o sistema de funcionamento e acionamento, o tipo de alma do cano, o método de carregamento, o sistema de iniciação e a finalidade de emprego. Cada uma dessas características influencia diretamente a organização estrutural, legal e técnica do tema.
Diante desse panorama, este artigo apresenta uma proposta abrangente para a classificação das armas de fogo, fundamentada na diversidade de seus sistemas e aplicações, contribuindo para um entendimento mais preciso e estruturado sobre o assunto.
2.1 Sugestões para o sistema de funcionamento
Quanto ao sistema de funcionamento das armas de fogo, elas podem ser de: tiro unitário, repetição, semiautomático, automático ou misto.
O sistema de tiro unitário é a forma mais simples de funcionamento. Nessa categoria, cada disparo exige intervenção direta do operador para recarregar a arma. Diferentemente de outros sistemas, armas de tiro unitário não possuem carregadores ou cartuchos armazenados em seu corpo. Essa simplicidade estrutural torna tais armas adequadas para situações que requerem precisão e controle, sendo comuns em práticas de caça ou tiro esportivo. Elas podem apresentar configurações de cano único, permitindo disparos isolados, ou múltiplos, aumentando a versatilidade.
As armas de repetição representam um avanço em relação ao tiro unitário, pois, apesar de ainda dependerem da ação do operador para recarregar, possuem mecanismos internos que facilitam esse processo. Há um espaço específico para armazenamento de cartuchos ou acoplamento de carregadores, o que torna a recarga mais prática e rápida. Quatro tipos principais de mecanismos caracterizam este sistema: a) Repetição mecânica: Operação simples e manual do mecanismo, b) Repetição por alavanca (Lever Action): Sistema acionado pelo movimento de uma alavanca, bastante popular em fuzis clássicos. c) Repetição por ferrolho (Bolt Action): Oferece maior precisão, sendo muito utilizado em rifles de longo alcance. d) Repetição por bombeamento (Pump Action): Sistema de deslizamento de uma peça na parte frontal da arma, típico de espingardas.
As armas semiautomáticas apresentam maior eficiência e sofisticação, realizando automaticamente todas as etapas do ciclo de disparo, exceto o acionamento do gatilho. Isso significa que, após cada tiro, a arma é recarregada sem necessidade de intervenção manual, permitindo disparos consecutivos com maior rapidez. Esse sistema é amplamente utilizado tanto em contextos militares quanto civis, devido à sua praticidade e capacidade de resposta rápida.
O funcionamento automático é similar ao semiautomático, porém com uma diferença crucial: ele automatiza também o acionamento do gatilho, possibilitando disparos contínuos enquanto o gatilho estiver pressionado. Essa característica faz das armas automáticas ferramentas extremamente poderosas, usadas em situações que requerem fogo rápido e intenso, como operações militares e combate a crimes organizados.
O sistema misto combina características de dois ou mais sistemas de funcionamento, oferecendo versatilidade ao operador. É comum em fuzis de assalto e submetralhadoras, que permitem a seleção entre modos de tiro semiautomático e automático. Essa funcionalidade permite que o operador adapte o uso da arma às necessidades da situação, equilibrando eficiência e controle.
A compreensão dessas diferenças é essencial não apenas para o uso responsável, mas também para o debate sobre regulamentação e segurança no contexto contemporâneo. A classificação das armas de fogo com base no sistema de funcionamento reflete a diversidade e a inovação presentes no desenvolvimento dessas ferramentas, desde os modelos simples de tiro unitário até os sistemas mistos altamente sofisticados, cada tipo atende a propósitos específicos, sendo moldado pelas exigências práticas e tecnológicas de seu tempo.
2.2 Quanto ao sistema de acionamento
A classificação das armas de fogo pelo sistema de acionamento é uma abordagem essencial para compreender as variações e inovações presentes nesses dispositivos.
A classificação do sistema de acionamento pode ser feita em quatro categorias principais: ação simples, ação dupla, dupla ação e híbrido, cada uma com características específicas, que reflete diferentes aplicações e demandas, influenciando diretamente a funcionalidade e o uso seguro das armas. Essa diversidade ressalta a importância de compreender plenamente os mecanismos de acionamento, seja no contexto da segurança pública, do uso esportivo ou do mercado civil. A evolução constante desses sistemas demonstra o compromisso com a eficiência, adaptabilidade e, sobretudo, a segurança no uso das armas de fogo.
No sistema de ação simples, o funcionamento é direto e depende de uma intervenção prévia do operador. A tecla do gatilho tem a função exclusiva de liberar o mecanismo de disparo, que precisa ser previamente armado. Esse tipo de sistema é comum em armas que privilegiam simplicidade e controle, garantindo maior precisão em cada disparo individual. A ação simples é amplamente utilizada em armas destinadas a práticas esportivas e situações que demandam alta exatidão.
Já a ação dupla representa um avanço significativo em relação ao sistema de ação simples. Nesse caso, a tecla do gatilho desempenha duas funções em um único movimento: armar e liberar o mecanismo de disparo. Tal característica confere maior praticidade e agilidade, sendo muito valorizada em contextos que exigem rapidez de reação. Exemplos de armas com esse sistema incluem revólveres como o Taurus 85 e pistolas como a Sig Sauer P226 MK25. A capacidade de realizar ambas as etapas de forma integrada torna o sistema de ação dupla uma escolha popular em armas de porte pessoal e uso policial.
Dupla ação é a denominação do sistema de acionamento de uma arma que possui ambos os sistemas definidos anteriormente, ou seja, se o mecanismo de disparo estiver armado, a tecla do gatilho tem a capacidade de liberá-lo ou, caso o mecanismo de disparo esteja desarmado, a tecla do gatilho poderá acioná-lo e liberá-lo em um único movimento.Exemplos de armas com dupla ação: Revólveres Taurus 85, Taurus RT 357 H e Taurus 454, Pistolas Taurus PT 58, Taurus PT 24/7 PRO, Sig Sauer P226 MK25 e Beretta M9. As pistolas de dupla ação podem realizar disparos tanto em ação simples quanto em ação dupla
No caso do sistema híbrido, também conhecido como pré-armado, este combina elementos das ações simples e dupla, oferecendo uma solução intermediária. Nesse caso, é necessário um pequeno curso de compressão da mola antes da liberação do mecanismo de disparo, o que proporciona um equilíbrio entre rapidez e controle. Essa configuração é encontrada em modelos renomados, como a linha SR da Sturm, Ruger & Co., Inc., e a Glock, conhecida por sua eficiência e confiabilidade. O sistema híbrido reflete a busca por versatilidade, atendendo tanto a demandas operacionais quanto às necessidades de segurança do operador.
Independentemente do tipo de sistema de acionamento, é importante compreender os componentes que compõem o mecanismo de disparo. Este é formado por peças e partes interconectadas, como a tecla do gatilho, mola real, desconectores, tirantes, hastes e liberadores. O processo envolve dois momentos principais: armar o mecanismo e liberá-lo, permitindo que a percussão ocorra na unidade iniciadora do cartucho. Esses detalhes evidenciam a precisão mecânica necessária para o funcionamento seguro e eficiente de uma arma de fogo.
2.3 Quanto aos tipos de carregamento
Um dos fatores fundamentais que definem seu funcionamento das armas de fogo e aplicabilidade é o tipo de carregamento, que pode ser classificado como: antecarga ou retrocarga. Cada sistema possui características distintas, refletindo o avanço tecnológico e as necessidades práticas de cada época.
O sistema de carregamento por antecarga é o mais antigo e remonta ao período dos mosquetes e espingardas tradicionais. Nesse método, o cartucho ou seus componentes são inseridos pela boca do cano da arma. Simples e funcional em sua época, este sistema exigia habilidade manual e tempo para recarregar, o que limitava sua eficiência em situações de combate. Embora tenha caído em desuso com o advento de tecnologias mais avançadas, a antecarga ainda é utilizada em armas específicas, como morteiros e RPGs (Rocket Propelled Grenades), demonstrando que sua aplicação ainda encontra relevância em cenários especializados.
Mais moderno e eficiente, o carregamento por retrocarga introduziu uma mudança significativa na maneira como as armas de fogo são operadas. Nesse sistema, os cartuchos são inseridos na parte posterior do cano, facilitando o processo de recarga e permitindo maior velocidade e praticidade. A retrocarga pode ser dividida em duas categorias principais: manual e automática.
Já na retrocarga manual, o operador deve remover manualmente o cartucho deflagrado e inserir um novo na câmara da arma. É amplamente utilizado em armas de tiro unitário e de repetição, pois proporciona maior controle durante o processo de recarga, sendo comum em rifles e espingardas de repetição.
A retrocarga automática trata-se de uma evolução da retrocarga manual, este sistema emprega a expansão dos gases gerados no disparo para automatizar o processo. A retirada do cartucho deflagrado e a inserção de um novo são realizadas automaticamente, tornando o ciclo de disparo mais eficiente. Armas semiautomáticas, automáticas e mistas se beneficiam desse sistema. Dentro da retrocarga automática, existem cinco subtipos de funcionamento:
No caso da Ação por Recuo Fixo (ou direto, a expansão dos gases empurra a culatra para trás, movimentando o ferrolho enquanto o cano permanece fixo. Conhecido como blowback em muitos países, este mecanismo é típico em armas de menor potência.
No Recuo Curto, o cano e o ferrolho recuam juntos por uma pequena distância, mas o cano interrompe seu movimento enquanto o ferrolho continua promovendo maior controle durante o disparo.
Já o Recuo Longo, é similar ao recuo curto, mas com uma diferença: o cano e o ferrolho recuam juntos por uma distância equivalente ao comprimento do cartucho, proporcionando um ciclo de operação mais longo.
Na Ação Direta dos Gases (Gas Impingement) os gases da explosão agem diretamente no conjunto do ferrolho, empurrando-o para trás para realizar a recarga. Este sistema é popular em armas militares pela sua simplicidade.
Na Ação Indireta dos Gases (Gas-Piston Operation) os gases acionam um pistão, que por sua vez movimenta o ferrolho. Esse mecanismo é conhecido por sua confiabilidade, especialmente em condições adversas.
Os sistemas de carregamento de armas de fogo representam uma das principais inovações no desenvolvimento dessas ferramentas. Desde a simplicidade das armas de antecarga até a complexidade das retrocargas automáticas, cada modelo reflete as necessidades e avanços de sua época.
2.4 Quanto ao cano
A classificação das armas de fogo com base no acabamento interno de seus canos é uma abordagem relevante e complexa, que reflete diretamente no desempenho e na aplicabilidade dessas ferramentas. O cano, parte fundamental da arma, pode apresentar dois tipos principais de acabamentos internos: alma lisa e alma raiada. Cada configuração é projetada para atender diferentes finalidades e padrões de utilização.
O cano de alma lisa é caracterizado por sua superfície interna lisa e polida. Esse tipo de cano é geralmente empregado em armas destinadas à caça, devido à sua eficiência no disparo de cartuchos contendo múltiplos projéteis. A ausência de ranhuras helicoidais favorece o uso de projéteis que se dispersam ao sair do cano, ampliando o alcance de impacto em alvos em movimento. Embora seja menos utilizado em armas modernas voltadas para precisão, o cano de alma lisa permanece relevante em contextos que exigem ampla dispersão dos disparos.
Por outro lado, o cano de alma raiada possui estrias internas conhecidas como raias, que são ranhuras helicoidais paralelas ao longo do cano. Essas raias forçam o projétil a girar em movimento de rotação, gerando maior estabilidade no ar, além de melhorar significativamente a precisão e o alcance do tiro. Essa característica torna o cano de alma raiada amplamente utilizado em armas que requerem precisão, como pistolas e rifles.
Os raiamentos podem ser classificados em diferentes formatos:
- Concêntricos Convencionais: Formados por cheios e raias, comuns em armas de fabricantes como Taurus, CBC e Imbel.
- Concêntricos Poligonais: Apresentam montes e vales, sendo uma escolha típica de marcas como Glock e Heckler & Koch, com foco na durabilidade e eficiência.
- Outros Formatos Raros: Incluem concêntrico sulcado, concêntrico híbrido, estrias de serra e raiamento hexagonal, este último utilizado em canhões que empregavam munições francesas La Hitte.
Além da diferença básica entre alma lisa e alma raiada, diversos fatores técnicos influenciam o desempenho do cano:
- Número de Raias: Varia de 2 a 16, sendo que armas modernas de porte e portáteis geralmente apresentam de 5 a 8 raias. Esse número impacta diretamente a estabilidade do projétil.
- Sentido das Raias: Algumas teorias sugerem que o sentido das raias pode afetar a qualidade do disparo, dependendo da empunhadura e da preferência do atirador, embora a influência do efeito Coriolis em armas de porte seja negligenciável devido ao curto tempo de voo dos projéteis.
- Inovações como o Glock Marksman Barrel (GMB): Modelo que apresenta sulcos mais pronunciados e coroa retraída, buscando melhorar a precisão, embora ainda careça de validação científica robusta.
Outro fator relevante é a durabilidade do cano, que varia conforme o tipo de liga metálica, o acabamento, o formato dos projéteis utilizados, a frequência dos disparos, as condições ambientais e a manutenção preventiva da arma.
A classificação das armas de fogo quanto ao tipo de cano demonstra a complexidade e a importância dessa peça na funcionalidade da arma. Seja por meio de canos de alma lisa, voltados para eficiência em dispersão, ou de alma raiada, que promovem estabilidade e precisão, cada tipo de acabamento interno atende a diferentes necessidades e contextos de uso. A evolução dos formatos de raiamento e as inovações tecnológicas, como o Glock Marksman Barrel, refletem o esforço constante da indústria armamentista em aprimorar o desempenho e a segurança.
2.5 Quanto ao sistema de iniciação
O sistema de iniciação em armas de fogo é um componente essencial para o funcionamento destas, sendo responsável por fornecer a energia inicial necessária para deflagrar o propelente e impulsionar o projétil. Ao longo dos séculos, os métodos de iniciação evoluíram significativamente, acompanhando os avanços tecnológicos e as demandas por maior eficiência, segurança e rapidez.
Os sistemas de iniciação, inicialmente denominados de percussão extrínseca, caracterizam-se pela localização externa do agente iniciador. Estes sistemas evoluíram de forma progressiva:
- Iniciação por Mecha (Matchlock): Desenvolvido no século XV, este sistema utilizava um metal em forma de “S” (serpentina) para conduzir uma mecha incandescente a um reservatório de pólvora, conhecido como caçoleta. Embora revolucionário para a época, apresentava lentidão e vulnerabilidade a fatores externos, como vento e umidade.
- Atrito por Roda (Wheel Lock): Introduzido no século XVI, este sistema utilizava uma roda que, ao girar, gerava faíscas por fricção com uma pedra de pirita, iniciando a deflagração. Apesar de mais confiável que o método anterior, a complexidade do mecanismo encarecia sua produção.
- Atrito por Pederneira (Flint Lock): Uma evolução do sistema por roda, este método empregava uma pedra de pederneira para gerar faíscas. Mais rápido, simples e confiável, tornou-se amplamente difundido e dominou a tecnologia armamentista por um longo período.
Com o advento do sistema de percussão intrínseca, em que o agente iniciador é integrado ao cartucho, a confiabilidade e eficiência das armas de fogo aumentaram consideravelmente. Essa abordagem pode ser subdividida:
- Percussão Direta: O cão ou martelo da arma atinge diretamente a espoleta, iniciando o processo de deflagração.
- Percussão Indireta: A energia do cão ou martelo é transferida por meio de outras peças até alcançar a espoleta.
Além disso, o ponto de impacto desempenha um papel crucial:
- Percussão Central: A espoleta está localizada no centro da base do cartucho, oferecendo maior estabilidade e eficiência.
- Percussão Radial (ou circular): A espoleta encontra-se na orla do cartucho, sendo comum em sistemas menos modernos.
Embora raro, o sistema de percussão elétrica representa um avanço notável, utilizando corrente elétrica ou campo eletromagnético para iniciar a deflagração. Este método é empregado em armas militares especializadas, como o RPG modelo FGM-148 Javelin e a Metal Storm Gun, capaz de disparar impressionantes 16.000 projéteis por segundo. A introdução deste sistema demonstra como a inovação tecnológica continua a redefinir os limites da funcionalidade armamentista.
Assim sendo, a evolução dos sistemas de iniciação em armas de fogo reflete não apenas os avanços técnicos, mas também a adaptação às necessidades práticas e operacionais ao longo do tempo. Desde os sistemas clássicos, como o uso de mechas, até a sofisticação das iniciações elétricas e intrínsecas, cada etapa contribuiu para moldar a eficiência e segurança das armas modernas.
2.6 Quanto ao emprego e espécies
As armas de fogo, ferramentas de grande relevância histórica e contemporânea, podem ser classificadas de acordo com seu emprego e espécies. Essa divisão reflete as diferentes finalidades e contextos de uso, abrangendo desde a proteção individual até operações militares de grande escala. A classificação principal divide-se em armas de uso pessoal e armas de uso coletivo/militar, cada uma com características e aplicações específicas.
As armas de uso pessoal são projetadas para atender às necessidades individuais de seus usuários. Elas incluem revólveres, pistolas, espingardas, carabinas e rifles/fuzis. Essas armas são amplamente utilizadas para defesa pessoal, caça e práticas esportivas. Sua portabilidade e facilidade de manuseio as tornam ideais para situações que exigem rapidez e precisão. Além disso, podem ser classificadas quanto ao tamanho em:
- De Porte (Curtas): São armas menores, como pistolas e revólveres, que podem ser transportadas em um coldre.
- Portáteis (Longas): Incluem espingardas, carabinas e rifles/fuzis, que oferecem maior alcance e precisão.
As armas de uso coletivo ou militar são destinadas a grupos ou organizações, como as Forças Armadas, e caracterizam-se por seu maior poder de fogo. Dentro dessa categoria, destacam-se as metralhadoras, que podem ser portáteis ou não portáteis, dependendo de seu tamanho e peso.
- Armas Não Portáteis: Requerem mais de uma pessoa para transporte e subdividem-se em:
- Fixas: Necessitam de um tripé ou reparo para disparos precisos, como a metralhadora Browning M2 e o morteiro Me Acg 81mm.
- Móveis: Podem ser de tração extrínseca, como o obus M101 de 105mm, ou automotriz/autopropulsada, como o carro de combate Leopard 1A5.
- Armas Portáteis: Podem ser transportadas por uma única pessoa e incluem fuzis, metralhadoras leves e lançadores de granadas.
Dispositivos Dissimulados: Uma categoria peculiar e proibida no Brasil são os dispositivos dissimulados, armas de fogo disfarçadas em objetos inofensivos, como canetas, guarda-chuvas e celulares. Esses dispositivos representam um risco significativo à segurança pública devido à sua capacidade de ocultação.
Definições Específicas de Armas de Fogo: Dentro das categorias mencionadas, as armas de fogo possuem definições específicas que destacam suas características técnicas:
- Revólver: Arma de porte com sistema de repetição mecânica ou semiautomático, dotada de um cilindro giratório que alinha a câmara de ignição ao cano no momento do disparo.
- Pistola: Arma de porte com funcionamento por tiro unitário, semiautomático ou misto.
- Espingarda: Arma portátil com funcionamento por tiro unitário, repetição, semiautomático ou automático.
- Carabina: Arma portátil com cano de alma raiada de até 530mm, utilizada para precisão em distâncias médias.
- Rifle/Fuzil: Arma portátil com cano de alma raiada superior a 530mm, projetada para maior alcance e precisão.
- Fuzil de Assalto: Arma portátil com sistema misto, utilizando cartuchos específicos e cano de alma raiada.
- Submetralhadora: Arma portátil com sistema misto, que utiliza cartuchos comuns em pistolas modernas, como 9mm Luger e 45ACP.
- Metralhadora: Arma de uso coletivo, portátil ou não, com funcionamento automático e cano de alma raiada.
A classificação das armas de fogo quanto ao emprego e espécies evidencia a diversidade e a complexidade desses dispositivos. Desde as armas de uso pessoal, voltadas para a proteção individual, até as armas de uso coletivo/militar, projetadas para operações em larga escala, cada categoria desempenha um papel específico.
2.7 Quanto aos dados fabris
As classificações quanto aos dados fabris são informações complementares que definem o armamento específico de acordo com seu registro fabril ou de cadastro em órgãos competentes. Esses dados são imprescindíveis para uma classificação completa, que possibilita a identificação do armamento.
Os dados fabris devem estar contidos em documentos e nos certificados de registro de armas de fogo. Os dados fabris incluem: fabricante, modelo, calibre nominal, acabamento, capacidade de cartuchos, comprimento do cano, número de série, país de fabricação.
Além desses dados, a Portaria DLOG nº 7, de 28/04/2006, do Ministério da Defesa, especifica que as armas fabricadas no Brasil devem apresentar as seguintes marcações: nome ou marca do fabricante, nome ou sigla do País, calibre, número de série impresso na armação, no cano e na culatra, quando móvel. O ano de fabricação, quando não estiver incluído no sistema de numeração serial. A portaria também detalha que as marcações podem ser feitas a laser, exceto o número de série nas armas fabricadas com materiais metálicos e nas armações feitas em polímero.
O sistema de marcação deve ser previamente aprovado pela fiscalização militar. As marcações devem ter profundidade de 0,10mm, mais ou menos 0,02mm. O número de série deve ser impresso nos componentes metálicos por meio de deformação mecânica, com profundidade de 0,10mm, mais ou menos 0,02mm.
Compreender os diferentes critérios de classificação das armas de fogo é essencial para estabelecer parâmetros regulatórios mais eficazes e coerentes com as inovações tecnológicas e as necessidades de segurança pública. No entanto, a ausência de uma normatização padronizada no Brasil contrasta com os modelos adotados internacionalmente, onde há sistemas bem definidos para a categorização e controle desses armamentos. Nesse contexto, é imprescindível comparar as abordagens regulatórias de países como os Estados Unidos e os membros da União Europeia, bem como as diretrizes estabelecidas por organismos internacionais como a ONU, a fim de identificar oportunidades de aprimoramento para a legislação nacional.
3. COMPARAÇÃO DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA COM MODELOS INTERNACIONAIS: UNIÃO EUROPEIA, EUA E ONU
A legislação sobre armas de fogo varia consideravelmente entre diferentes países e organismos internacionais. A União Europeia (UE), os Estados Unidos (EUA) e a Organização das Nações Unidas (ONU) adotam sistemas de classificação e controle baseados em critérios objetivos, tecnologia e registros centralizados, enquanto o Brasil apresenta desafios estruturais que impactam a eficácia da regulação de armamentos.
A Diretiva Europeia de Armas de Fogo (2017/853) define a classificação de armas em categorias (A a D) com base em características como capacidade do carregador e cadência de tiro. Armas semiautomáticas com carregadores de alta capacidade são proibidas para civis, e qualquer conversão de semiautomáticas para automáticas é criminalizada. O Sistema de Informação Schengen centraliza registros, permitindo rastreamento transfronteiriço. Após os ataques terroristas de 2015, a UE reforçou o controle sobre armas desativadas e componentes críticos, reduzindo sua reutilização por grupos criminosos.
O Brasil não possui um sistema de classificação definido. Termos como “fuzil de assalto”, por exemplo, não têm definição legal objetiva, e a descentralização dos registros entre diferentes órgãos compromete a rastreabilidade.
Nos Estados Unidos, a legislação é estruturada em normas como o National Firearms Act (NFA) e o Gun Control Act (GCA), que estabelecem critérios específicos para a classificação das armas com base em características como comprimento do cano e funcionamento mecânico. Armas com cano menor que 16 polegadas exigem registro especial, e metralhadoras só podem ser adquiridas sob regulação da Bureau of Alcohol, Tobacco, Firearms and Explosives (ATF). A Violent Crime Control Act (1994) criminaliza a conversão de armas semiautomáticas em automáticas.
No Brasil, modificações que aumentam o poder de fogo de armas comerciais não são claramente tipificadas. A fiscalização é dividida entre a Polícia Federal, o Exército e órgãos estaduais, dificultando o controle eficaz.
A ONU, através do Tratado sobre Comércio de Armas (TCA, 2014), exige que os países adotem critérios para exportação de armamentos e implementem sistemas de rastreamento. O sistema iArms, utilizado por alguns países, possibilita o monitoramento de armas em tempo real. Apesar de ser signatário do TCA, o Brasil não implementou sistemas como o iArms e mantém registros fragmentados. A ausência de um banco de dados centralizado impede um controle eficiente sobre armamentos desviados para grupos criminosos.
Dessa forma, a análise comparativa evidencia três pontos principais na legislação brasileira:
- Ausência de critérios técnicos definidos para a classificação de armas, diferentemente da UE e dos EUA.
- Falta de regulamentação clara para modificações estruturais, em contraste com os padrões rigorosos dos EUA.
- Deficiência na cooperação internacional, com baixa adesão a sistemas de rastreamento global como o iArms.
Para aprimorar sua legislação, o Brasil poderia implementar uma classificação padronizada com base em características objetivas, unificar registros de armamentos, como descritos neste artigo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante das inconsistências identificadas, torna-se essencial a criação de um sistema de classificação unificado, baseado em critérios técnicos claros e padronizados, que facilite a regulamentação e fiscalização das armas de fogo no Brasil. A modernização dos registros de armamento e a integração entre os órgãos fiscalizadores são medidas fundamentais para garantir maior transparência e eficiência no controle desses dispositivos.
A adoção da classificação sugerida neste artigo pode servir como base para a estruturação de um modelo mais eficiente, alinhado às melhores práticas internacionais. Esse aprimoramento contribuiria para a mitigação dos desafios enfrentados no setor, fortalecendo a segurança pública e assegurando um controle mais preciso e confiável das armas de fogo no país.
REFERÊNCIAS
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WELFER, R.L. A HISTÓRIA DA INDÚSTRIA MILITAR BRASILEIRA: ORGANIZAÇÕES, COMPLEXO INDUSTRIAL E MERCADO DURANTE O SÉCULO XX; Curso de Licenciatura de História –TCC, Univ. Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul; Ijuí-RS, 2014.
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1Engenheiro Eletricista, MBA em Engenharia de Produção, Pós-graduado em Logística. Especialista em formação e treinamento de profissionais na área de armamento, tiro e segurança, com vasta experiência em desenvolvimento de produtos, processos logísticos e coordenação de equipes operacionais e administrativas. E-mail: scbearare@bol.com.br Contato: (+55) 18 99660-1515.