RISKS AND BENEFITS OF USING TECHNOLOGY IN THE CLASSROOM: HOW FAR SHOULD WE GO?
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202502280343
Rafaela Locali1
Resumo
Este artigo propõe reflexões sobre como a adoção de tecnologias em sala de aula podem apresentar riscos e benefícios, uma vez que geram diferentes perspectivas. Por um lado, há a pressão para integrar a escola ao mundo digital globalizado, sob a justificativa de que grande parte das relações atuais – sejam comerciais ou interpessoais – ocorrem amplamente no meio virtual. Por outro, existem aqueles que se mantêm fiéis às práticas tradicionais e resistem às mudanças. Além disso, há aqueles que não rejeitam a tecnologia por escolha, mas por estarem economicamente excluídos desse processo, assim como os que aparentam aderir às inovações, mas sem uma real incorporação. Independentemente da posição adotada, a tecnologia se faz presente, seja na prática, no discurso, na reflexão ou no desejo. Com a pandemia da COVID-19 evidenciou-se a importância da tecnologia como ferramenta essencial para a continuidade do ensino em um contexto de isolamento social. Após o fechamento das escolas, plataformas digitais, videoconferências e ambientes virtuais de aprendizagem tornaram-se os principais meios de acesso ao conhecimento, garantindo que alunos e professores pudessem manter o processo educacional, mesmo diante das restrições sanitárias. Além disso, o uso da tecnologia ampliou debates sobre inclusão digital, desigualdade no acesso a dispositivos e internet, bem como a necessidade de formação docente para o uso eficaz dessas ferramentas. Assim, o período pandêmico não apenas acelerou a adoção das tecnologias educacionais, mas também destacou desafios estruturais e pedagógicos que precisam ser enfrentados para uma educação mais equitativa e inovadora no futuro. Aqui, além de discutir os motivos que levam as escolas a adotarem ou não os recursos tecnológicos, abordaremos também seus limites.
Palavras-chave: Tecnologias em sala de aula. Pesquisa autobiográfica. Ensino remoto. Educação brasileira.
Abstract
This article presents reflections on the risks and benefits of adopting technology in the classroom, considering the different perspectives involved in this process. On one hand, there is growing pressure to integrate schools into the globalized digital world, based on the justification that most contemporary relationships—whether commercial or interpersonal—take place predominantly in the virtual environment. On the other hand, some remain committed to traditional practices and resist change. Additionally, some individuals do not reject technology by choice but due to economic exclusion, as well as those who appear to embrace technological innovations without effectively incorporating them. Regardless of the stance taken, technology is present in practice, discourse, reflection, and aspiration. The COVID-19 pandemic highlighted its importance as an essential tool for maintaining education during a period of social isolation. With school closures, digital platforms, video conferencing, and virtual learning environments became the primary means of accessing knowledge, allowing students and teachers to continue the educational process despite health restrictions. Moreover, the use of technology has intensified debates on digital inclusion, disparities in access to devices and the internet, and the need for teacher training to use these tools effectively. Thus, the pandemic not only accelerated the adoption of educational technologies but also exposed structural and pedagogical challenges that must be addressed to ensure a more equitable and innovative education in the future. In this study, beyond discussing the factors that lead schools to adopt or reject technological resources, we will also examine their limitations and implications.
Keywords: Technology in the classroom. Autobiographical research. Remote learning. Brazilian education.
Introdução
“Até onde ir?” é falar sobre limites. Os estabelecidos pelas normas, os arraigados pela sociedade, os impostos pelos mais poderosos, os quebrados pelos rebeldes. Proponho, aqui, aqueles refletidos pelos sensatos, enquanto outras possibilidades.
Por ser a narrativa considerada uma forma de as pessoas experimentarem o mundo, esse estilo de escrita foi considerado o mais adequado para a divulgação e compartilhamento da experiência que passei. Isso se explica porque a narrativa vai mais além da fidelidade, da validade e da generalização, próprias dos textos descritivos. Ela implica também clareza, verossimilhança e transferibilidade, possibilitando aos leitores conseguirem tirar dela aquilo que lhes fez sentido, e transferirem para sua experiência (CONNELLY e CLANDININ, 1995, p. 32).
Isso só seria possível na medida em que eu conseguisse produzir uma narrativa que configurasse um “convite a participar”, e que este texto de fato fosse lido, mas também vivido por essas pessoas. Para alcançar essa qualidade, tive que desenvolver um processo de compreensão acerca do que envolve esse tipo de escrita, bem como ampliar minhas concepções de que, em vez de me distanciar do texto, deveria também dizer-me na narração.
De acordo com Connelly e Clandinin (1995), ainda, a escrita de narrativas exige um processo de colaboração entre os participantes, que leva a uma mútua explicação e reexplicação de histórias. Dentro da atmosfera de sala de aula, significaria recontar, de formas novas, as mesmas histórias, de maneira a revelar como os sujeitos puderam se relacionar de forma produtiva. Em outras palavras, procurei narrar experiências contando o que aprendi com cada uma delas, ao revelar as múltiplas vozes que me constituíram nas escolhas que fiz e adequá-las para cada determinado momento.
Começo com as tecnologias nos ambientes escolares. De um lado, temos a pressão de inserir a escola no mundo digital globalizado, com a justificativa de que suas relações – desde as comerciais, até às interpessoais – se dão hoje amplamente no meio virtual. De outro, temos aqueles que se agarram às práticas tradicionais e são resistentes às mudanças. Acrescento a esse antagonismo os que resistem às mudanças não por opção, mas por serem e estarem excluídos economicamente do processo e até mesmo os que fingem estarem adeptos às inovações tecnológicas.
Em todos os casos, a tecnologia se faz presente, seja na prática, seja no discurso, seja na reflexão, seja no sonho. Além de discutir as razões pelas quais os colégios adotam ou não os recursos que ela oferece, aqui falaremos sobre limites.
Aos que defendem a importância de as escolas aderirem aos modelos digitais para ficarem em consonância com o mundo atual, reside a preocupação de adequar a educação ao novo modo de viver em sociedade, que se estende, inclusive, às exigências do atual mercado de trabalho. Assim, a tecnologia não deve ser vista como algo isolado da sociedade, mas como um produto dela e, enquanto tal, pode servir como uma possibilidade bastante válida para aprender sobre os conteúdos das áreas do conhecimento e o que acontece no mundo e também como um meio de produzir conteúdos de forma consciente e respeitosa.
Para isso, faz-se necessário desenvolver habilidades e competências para se trabalhar com as diferentes linguagens e mídias digitais e promover a inclusão digital àqueles que não têm acesso a tal. Políticas públicas, cursos, treinamentos e iniciativas por parte da gestão devem servir como pressupostos. É igualmente crucial inserir reflexões sobre os perigos que a Internet traz, como as fake news, a comparação, os golpes, os crimes, os vícios que a descarga dopaminérgica do rolar de páginas em busca do próximo post causam, bem como as horas perdidas em frente às telas e toda a ansiedade que envolve esse processo.
Com a democratização da Internet, passamos de meros consumidores de informação para também publicadores de conteúdo. As empresas e o mercado rapidamente perceberam isso e se apropriaram dessa possibilidade como forma de ganhar dinheiro. Daí a importância de inserir a escola no meio digital e capacitar os alunos para essa nova realidade. É a ideia de disrupção – ruptura com inovação – ou seja, encarar que o modelo tradicional de ensino precisa ser renovado (SANTOS, M.P.; ROSA, E.P., 2023).
O primeiro passo é torná-la realidade no ambiente escolar e, para isso, é imprescindível efetivo investimento em estrutura física e material, o que vai muito além da presença de computadores e sinal de Internet. Inclui a adoção e o efetivo uso de plataformas digitais de ensino que ofereçam diferentes formas de linguagens mais atrativas para os jovens de hoje, como animações, músicas, vídeos, imagens, gráficos, mapas, textos, dados – não somente consultivos, mas interativos. E que estejam funcionando, vale dizer.
Inclui a capacitação profissional para os professores elaborarem práticas de ensino e planejarem dinâmicas integradas às tecnologias de maneira a mediar a nova relação ensino-aprendizagem de forma significativa. Além de ter o domínio do manejo delas em si, devem igualmente desenvolver um olhar crítico sobre elas para entender o que podem oferecer de contribuição para o trabalho pedagógico e não apenas as usando de maneira superficial. É importante que se saiba criticar as informações mediante sua abundância e existência de fake news, por exemplo, como também a questão da ética quando se usam essas tecnologias, como o respeito ao próximo e o que significa tornar pública qualquer informação.
Inclui, por último, a criação de um novo currículo que integre o uso das tecnologias em todas as suas instâncias, ou seja, que vai além do currículo fechado – a linearidade dos livros didáticos, por exemplo – para o currículo aberto ou web currículo – que não é linear e pode ser acessado ou criado de acordo com a dinâmica da aula (ESCOLA DIGITAL, 2016).
Isso significa que as propostas de integração de tecnologias primeiro devem fazer parte das intenções das instituições de ensino e a partir daí começarem, então, a criar condições para a criação de uma nova cultura digital nas escolas – que vai além do usar a ferramenta por usar, mas usá-la de forma criativa e adaptada ao novo formato, às novas demandas, aos novos espaços e às novas velocidades que as tecnologias possibilitam.
O risco de não investir em tecnologias nos ambientes escolares é torná-los obsoletos e descolados da atual realidade. É forçar um ensino tradicional e entediante para o aluno de hoje que consome outras linguagens e fica, portanto, desinteressado. É deixar de capacitá-lo para o atual mercado de trabalho que já não é mais o mesmo. É postergar a ideia de escola que parou no tempo, que é a mesma do século XIX.
Vale ressaltar que a disrupção anteriormente mencionada já ocorreu no passado, quando a escola do século XIX passou por mudanças, ao romper com o ensino de improviso – que podia ser realizado na casa do professor, da família ou em igrejas (ALCÂNTARA, 2022, p.4). Esse ensino não era seriado e obrigatório. Só ao final do século XIX ele se institucionaliza como obrigatório, público e em massa, direcionado em um lugar específico para tal – as escolas – iniciando-se um modelo simultâneo de ensino.
Tal modelo também era excludente, porque esse “em massa” tratava-se de uma pequena parcela da elite da sociedade. Ao final do século XX, a escola passa por outro momento de inflexão, com a entrada das camadas mais populares da sociedade nas escolas. A exclusão persistiu, apesar disso, pois surgiu o fracasso escolar – observado pelas graves defasagens, as repetências e os abandonos (ALCÂNTARA, 2022, p.7). Agora, com o advento das tecnologias, um outro tipo de exclusão surge: a digital.
A pandemia do COVID-19 veio iniciar o século XXI colocando em xeque várias dessas questões, inclusive a naturalidade que temos da ideia de escola que se criou no pós século XIX e seu modelo simultâneo de ensino. Os espaços de ensino-aprendizagem precisaram ser outros. A tecnologia precisou ser usada para o ano letivo continuar. E o que ficou disso?
A Tímida presença das Tecnologias nas Escolas dos anos 1990
Sobre a presença de tecnologias em sala de aula durante a minha vida escolar, tanto no Ensino Fundamental como no Médio, nada havia sido observado. As aulas eram predominantemente expositivas e os recursos didáticos não ultrapassavam a lousa, o giz, o livro didático, o caderno e estojo e, no máximo, um rádio portátil ou televisão compartilhada no carrinho que corria pelos corredores de todas as salas, quando algum professor decidia passar um vídeo – em fita cassete! – para ilustrar algum assunto (ou passar o tempo quando não estavam muito a fim de dar aula – o que hoje eu entendo e não julgo).
No Ensino Médio, a novidade foram as transparências e os retroprojetores em algumas aulas. Para mim, essa inovação pouco influenciou no ensino-aprendizagem, pois mais serviram de apoio ao professor – que não precisaria escrever várias vezes a mesma coisa na lousa em salas diferentes – do que para os alunos. Ele reutilizava as transparências e nós apenas éramos meros copistas. De qualquer forma, podemos dizer que foi o “pai” do datashow e, nesse sentido, é normal ter sido uma iniciativa mais rudimentar.
Enquanto isso, uma realidade bem diferente podia ser observada nos EUA. Segundo um artigo de meados dos anos 1990 extraído do jornal Folha de São Paulo, Moraes (1994) relatava como os alunos já usavam computadores nas salas de aula e as salas de informática já estavam ficando para trás.
Como assim, ficando para trás? Em 1994?
Aqui no Brasil, recordo de ver surgir as primeiras salas de informática, com Internet discada, apenas ao final do 3º ano do Ensino Médio e era tudo o que podia ser considerado de mais moderno! E raramente algum professor nos levava lá ou preparava alguma atividade. Corrijo, não raramente, nunca. Utilizávamos para pesquisa em horário fora das aulas, mas o que mais marcou mesmo foram os primeiros chats, como o saudoso miRC, as salas de bate-papo, o primeiro e-mail, as buscas no Yahoo… Não tinha Google e era muito, mas muito demorado carregar qualquer página. Mas isso foi só em 1999 e no meu colégio que era particular. Em 1994 eu, então com doze anos, estava na 6ª série e nem sonhava o que era um computador, muito menos na escola.
Já nos EUA, como pudemos observar, os avanços tecnológicos eram cada vez mais rápidos e presentes. De um computador para 125 alunos em 1984, passou para um a cada 14 estudantes, em 1994, sendo 60% da Apple e 20% da IBM. As aulas de Arte para as crianças do pré-primário eram dadas em Macintosh e os alunos do colegial podiam consultar a biblioteca do Congresso, a maior do mundo, mesmo estando a milhares de quilômetros de Washington (MORAES, 1994).
E eu copiando transparências.
A Educação Brasileira de Ontem e Hoje
Não é de se surpreender que esse relativo atraso da educação brasileira quando comparada à ocidental (europeia e americana, principalmente) é consequência do processo histórico que atravessou.
Se pararmos para pensar, basta voltar cerca de “apenas” 190 anos e observar os dados oficiais de 1832 no Brasil: havia 180 escolas, distribuídas por 9 províncias, sendo que 40 delas não tinham sequer professor. Somente em 1837 foi criado o Imperial Collegio de Pedro II, para servir de modelo para outras iniciativas a serem desenvolvidas no país. Com a finalidade de “educar a elite intelectual, econômica e religiosa brasileira”, seus estatutos “foram organizados com base nos estatutos dos liceus franceses”, além de seguir um plano de estudos enciclopédico: incorporava conteúdos clássicos, como a Gramática, a Retórica, a Poética, a Filosofia, Latim e Grego, e modernos, como Francês e Inglês e as Matemáticas, Ciências, História, Geografia, Música e Desenho (VECCHIA, 2006 apud GONÇALVES, 2013, p.102).
Ou seja, somente em meados do século XIX, pela primeira vez, aparecia a disciplina de Geografia (muito provavelmente descritiva e positivista, de acordo com o Possibilismo de La Blache e o Determinismo de Ratzel), em um colégio modelo voltada para uma reduzidíssima elite brasileira.
Apenas no século XX é que de fato foi possível observar a implantação gradativa de um sistema de ensino no Brasil, […] “ou uma rede escolar articulada nos níveis federal, estadual e municipal, com a expansão do acesso à escola e a consequente escolarização da população, ou da grande maioria dela” (GONÇALVES, 2013, p.109).
A realidade que vivi, portanto, em 1999, dificilmente seria diferente – exceto por um capricho do acaso (TALEB, 2019).
Nem tanto ao céu, nem tanto à terra, vale observar a quantidade de avanços por que a educação brasileira passou nesses mesmos 190 anos. Se a formação básica era extremamente precária, o ensino superior era mais reduzido ainda. Gonçalves (2013, p.105) constatou que é possível compreender a restrição e o controle existente sobre o Ensino Superior no Brasil para impedir o acesso e difusão de ideais iluministas, consideradas à época “[…] potencialmente ameaçadores para a metrópole, e que se fortaleciam na Europa e em movimentos de independência na América.”
Com a formação de professores, todavia, não foi diferente. O ensino Normal era originalmente voltado para alunos do sexo masculino e somente ao final do século XIX a formação feminina tornou-se mais comum. Em 1860, havia somente seis escolas normais no país, em parte devido aos poucos atrativos da profissão de professor: “os ordenados eram baixos e a estabilidade, precária, face às disputas políticas regionais que marcaram todo o Período Imperial”, e a expansão do ensino normal foi limitada “não apenas devido à falta de professores, mas especialmente à ausência de alunos” (XAVIER; RIBEIRO; NORONHA, 1994, apud GONÇALVES, 2013).
A título de comparação, os avanços ditos anteriormente vão desde os números – de acordo com o Censo escolar de 2022, divulgado pelo Inep, há mais de 72 mil instituições de ensino públicas e particulares com cerca de 2,2 milhões de professores na Educação Básica e cerca de 300 mil no Ensino Superior, além de contar com cerca de 36 milhões de matrículas no ensino básico. Em outra seara, passamos de cursos normais voltados, no princípio, para o sexo masculino e hoje, aproximadamente, 80% das vagas são preenchidas por mulheres – muito embora ainda haja grande desigualdade salarial de gênero.
As mudanças continuam até mesmo em relação às novas posturas, antigamente impensáveis dentro do contexto escolar tradicional e conservador, como, por exemplo, a presença de professores tatuados, de cabelos coloridos, assumindo diversas orientações sexuais ou ficando famosos nas redes sociais, com dancinhas e jargões.
A pandemia do COVID-19
No final de 2019, uma doença gravíssima assolou a China e causou inúmeras mortes: o COVID-19. O coronavírus causava uma forte gripe que resultava em insuficiência respiratória e levava, em poucos dias, a pessoa a óbito. Começamos a acompanhar, bastante apreensivos, o desenrolar e o espalhar dessa terrível doença, desde o confinamento na China até as mortes na Europa. Havia o medo de ela chegar ao Brasil e, mesmo com o fechamento dos aeroportos, a Globalização permitiu que atingisse os quatro cantos do mundo: demos apenas o primeiro bimestre de aulas em 2020 e tivemos que nos isolar em casa.
O mundo parou, o comércio fechou, as pessoas se confinaram e o medo de morrer atingiu a todos. Passamos a usar máscaras, álcool em gel, luvas, sair de casa apenas para o essencial, como ir ao supermercado e à farmácia. Nos noticiários era só sobre isso que se falava e a cada dia o saldo de mortes aumentava. O pânico só crescia, o emocional das pessoas estava totalmente abalado. Muitas ficaram isoladas, afastadas de seus entes queridos, por exigência do distanciamento, principalmente dos idosos. Começamos a viver casos de contágio cada vez mais próximos, com amigos, vizinhos e familiares, e suplicávamos pela vacina, que só veio em 2021.
Além da preocupação com a saúde e sobrevivência, havia o medo de perder alguém amado e até mesmo o de qual seria o futuro da humanidade. A problemática financeira foi outro agravante: quantas pessoas perderiam seus empregos, quantas empresas quebrariam, quantos países teriam seus PIBs duramente afetados? A palavra de ordem era insegurança, em todos os aspectos, inclusive no educacional: como ficariam as escolas e a aprendizagem dos alunos nesse período?
A tecnologia permitiu que o ensino remoto fosse a salvação para assegurar que as aulas continuassem, muito embora com grave perda de qualidade. Tecnologia que não surgiu com a pandemia, mas que já estava disponível e até presente em algumas escolas – nas fábulas, por exemplo, como apresentei no capítulo um. Todavia, a maioria não a usava cotidianamente, pois seus recursos não eram apropriados como ferramentas em atividades de ensino, tampouco adotados enquanto planejamento curricular, seja por escolha, cultura da escola ou falta de condições financeiras. “Foi preciso (re)inventar, repentinamente, novos modos de sobrevivência, de manutenção do trabalho e da própria escola”. (ALCÂNTARA, 2022, p.2).
Inúmeros questionamentos foram levantados nesse período de inflexão, como aponta Alcântara (2022, p.3). Dentre eles, trago as importantes colocações por essa autora elencadas, como qual seria a função social da escola em um contexto de pandemia e isolamento social, por exemplo, e como garantir o direito à educação de todos, considerando as pessoas com deficiência e aquelas em maior vulnerabilidade social e econômica, em um modelo em que nem todos têm acesso às tecnologias. Tantas preocupações nos forçaram a refletir, inclusive, sobre o modelo escolar que temos, cujas defasagens a pandemia só deixou mais evidente: em que medida a educação básica poderia funcionar a distância, principalmente a infantil? Seria possível a escola voltar a funcionar no espaço doméstico, como ocorria até o século XIX? Haveria suporte às famílias perante essa nova modalidade de ensino remoto? Como adaptar as práticas pedagógicas, a avaliação, currículo, tempos e espaços de ensinar e aprender? Acrescento, ainda: como o emocional de todos os envolvidos afetou significativamente o decorrer desse processo?
Apesar de todas essas importantes questões, a primeira preocupação era resolver o problema mais urgente: como fazer as aulas continuarem na pandemia. Para Alcântara (2022, p.4) essa necessidade vem da forma como os modos de operar, os saberes e as práticas escolares se tornaram naturais nas sociedades escolarizadas, construindo, inclusive, uma cultura escolar. Essa naturalização pode levar ao equívoco de, mesmo em tempos de pandemia, quererem manter a qualquer custo uma certa forma escolar.
Por isso tivemos tantos problemas e tantas consequências negativas durante e depois dela. Não paramos para pensar em alternativas a esse modelo escolar perpetuado por séculos, mas tivemos pressa em resolver o problema imediato: as aulas não poderiam parar.
Para isso, os recursos tecnológicos passaram a ser protagonistas: aplicativos como o Google Drive, o Google Classroom e o Google Meet ouo Zoom foram fundamentais para servirem de ponte entre professores, pais, direção e alunos como alternativa para a transmissão das aulas, reuniões, cobranças de trabalhos e entrega de tarefas.
O colégio privadoem que eu lecionava à época saiu à frente, pois já trabalhávamos com esses recursos digitais há alguns anos, enquanto que a maioria das escolas brasileiras, tanto particulares como públicas, não.
Essas, por sua vez, viram-se obrigadas a lançar mão das tecnologias da noite para o dia e a situação que vivenciei no ensino público foi a mais desoladora: As orientações da direção eram passadas em grupos de whatsapp da escola – de forma bastante confusa, diga-se de passagem – e não recebemos treinamentos para o uso dos aplicativos. Com o tempo, alguns professores que tinham algum conhecimento se dispuseram a marcar uma vídeo-chamada e ensinar o passo a passo para utilização desses recursos. No geral, postávamos atividades no Classroom e entrávamos ao vivo no Meet, de acordo com nossa carga horária, para dar aulas remotas.
Porém, pouquíssimos alunos entravam nessas aulas ou entregavam as atividades e a causa principal foi a dificuldade real de acesso aos meios digitais. Muitas eram as famílias que não tinham computadores e sinal de Internet em casa e que compartilhavam seus celulares, às vezes para mais de uma criança, para elas acessarem o conteúdo. Tal empecilho também se estendeu para muitos professores economicamente carentes. A falta de interesse também foi um fator presente e que não tínhamos como controlar, afinal, não sabíamos o nível de discernimento perante à nova realidade e a infinidade de problemas econômicos, comportamentais e emocionais por que aquelas famílias estavam passando. Foi, praticamente, um ano perdido.
No colégio particular, pude observar um cenário bem diferente e, mesmo assim, foi um imenso desafio oferecer capacitações às pressas para professores, alunos e pais quanto ao ensino remoto, além de outra infinidade de obstáculos que surgiram no decorrer dos dias de confinamento.
Dentre eles, relembro a dificuldade inicial em cadastrar o e-mail institucional que identificasse de forma correta os alunos para usar esses aplicativos; da organização em casa perante o compromisso com as aulas e atividades cobradas; da dificuldade que muitos professores tiveram para vencer a timidez em gravar aulas para depois postarem ou mesmo em abrir a câmera e mostrar a intimidade de seus lares ao dar aulas para alunos e pais que lhes assistiam de suas residências. Houve, ainda, preocupações referentes ao cumprimento do conteúdo, tanto quanto à quantidade de horas e dias letivos adaptadas ao ensino remoto, quanto à qualidade das mesmas. Quanto à avaliação, alguns modelos foram testados, como o envio de questões no Google Forms cujas respostas deveriam ser escritas a mão em uma folha e enviadas por fotos pelos alunos no Classroom. A qualidade dessas fotos me dá calafrios só de lembrar. Então passaram a aceitar respostas digitadas no próprio Forms e, para a surpresa de um total de zero pessoas, vieram quase todas iguais. Assim também foi o processo em relação às tarefas.
Um imenso trabalho para aprender a dominar esses novos recursos, horas de treinamento para conseguir montar uma prova, criar atividades, postar materiais, usar a Apple Pen, compartilhar sua tela nas aulas, elaborar o planejamento prévio e detalhado das aulas da semana para os alunos fingirem que assistiam às aulas, copiarem as respostas das provas e das tarefas entre si e nós professores sermos obrigados a aceitar qualquer coisa, já que não poderia haver repetência naquele ano.
As aulas on-line passaram a ser um martírio. Os alunos não abriam as câmeras, tínhamos que preparar previamente semanários detalhados com o conteúdo, páginas, tarefas e postar tudo com antecedência de uma semana no Google Drive. Os minutos não passavam, pois falávamos sem parar, sem os intervalos que acontecem em uma aula presencial – como quando passamos um esquema na lousa, ouvimos a pergunta de um aluno, chamamos a atenção de outro, arrumamos o material, caminhamos pela sala, os acompanhamos enquanto fazem os exercícios, etc.
Repetíamos a mesma coisa várias vezes, pois os pais queriam que as salas dos mesmos anos não fossem unidas em uma sala virtual só e exigiram o cronograma tal qual o presencial. No início podíamos dar aulas assíncronas, ou seja, gravávamos uma aula e a disponibilizávamos para as turmas da mesma série e os alunos poderiam acessá-las quando quisessem para assistir.
Claro que isso causou um caos na vida dos pais, que viram o quanto era difícil fazer com que seus filhos sentassem para estudar e tivessem a autonomia de abrir essas aulas e assisti-las prestando a atenção devida, sem se distraírem com joguinhos e celulares. Como não tinha dado certo, exigiram que eles tivessem aulas síncronas (ao vivo), respeitando toda a grade de aulas na sequência do dia. Não os culpo, pois imagino como foi difícil para eles terem os filhos em casa o tempo todo, sem descanso, e tendo que lidar com aquela nova realidade de home office e educação full time de seus filhos.
Os pais ouviam tudo o que falávamos, pois acompanhavam nossas aulas – o que, de certa forma, foi bom, já que muitos reconheceram e valorizaram nosso árduo trabalho. Por outro lado, qualquer chamada de atenção a um aluno poderia ser interpretada de maneira bastante enviesada.
As reuniões gerais com todos os colaboradores e gestores da escola eram feitas semanalmente, de modo remoto, permeadas por dinâmicas, ao passo que mais e mais cobranças nos eram feitas. Se, num primeiro momento, chegamos a pensar que até teria seu lado bom ficar em casa, a forma como foi conduzida a experiência do ensino a distância triplicou nosso trabalho burocrático e as aulas virtuais tornaram-se mais tensas e cansativas.
Não sabíamos o que esperar, pois dependíamos dos pronunciamentos do governador que determinava se continuaria tudo fechado ou não, semana após semana. Os pais também não davam trégua, inventando modas e mudando o cenário do que fazer ou não nas aulas seguintes.
Com o passar dos meses, aquela rotina foi ficando cada vez mais custosa. Não sabíamos para quem estávamos dando aula, se estavam mesmo ali prestando atenção, já que muitos alunos entravam nas salas, mas como não ligavam as câmeras, não sabíamos se estavam dormindo, jogando ou de fato atentos. Poucos participavam por vergonha de se expor e não podíamos exigir sua participação ou que abrissem as câmeras.
Enviávamos as tarefas e provas para fazerem em casa e a cola corria solta, pois compartilhavam tudo e tínhamos que ler os garranchos em fotos terrivelmente mal tiradas.
Somente um ano e meio depois, a vacina chegou e as aulas puderam voltar ao presencial ou – ao pior formato de todos – ao modelo híbrido.
Os pais poderiam optar pelo retorno presencial do seu filho à escola ou ao acompanhamento das aulas on-line em casa. Passamos, então, à dupla jornada de ir dar as aulas presencialmente e depois, no período da tarde, dar as mesmas aulas remotamente, no Zoom. Essa situação perdurou todo o primeiro semestre de 2021, mas, no segundo, todos voltaram integralmente.
Voltar foi muito bom, mas tudo havia mudado e não falo só do distanciamento e do uso das máscaras. Esse um ano em que os alunos estiveram isolados em casa foi capaz de atrasar profundamente a sua aprendizagem e o modo de se relacionarem. Vários foram os casos de crianças que se recusaram a voltar por pânico, que demoraram para deixar as máscaras quando elas não eram mais obrigatórias, mas o pior foi observar o comportamento daqueles jovens.
Grande parte deles passaram a apresentar dificuldades de concentração e eram desrespeitosos com os professores, como se tivessem esquecido como se relacionar e como se portar na dinâmica de uma sala de aula. Aumentou muito a conversa durante a explicação e o uso de celulares. O nível das provas teve que baixar, pois eles não acompanhavam mais questões aparentemente simples que outrora eram cobradas nas avaliações. Tal reflexo não foi consequência apenas no ano seguinte imediato, mas até hoje. Quatro anos depois, quando escrevo esse artigo, consigo observar em meus alunos do EFII até os do curso pré-vestibular, essas defasagens.
Entre nós, professores, também pude observar aqueles que tiveram muito medo de voltar, que perderam entes queridos e que não sabiam como seria esse retorno. Os anos de 2022 e 2023 foram os piores, repletos de dificuldades e adaptações do pós-pandemia, na minha opinião. Para mim, foi muito ruim dar aula de máscara, pois forcei bastante a voz e acabei aderindo a um microfone portátil – muito embora o som que saía, segundo os alunos, fosse similar ao de um carro da pamonha. Quando não precisamos mais usá-las, para mim foi um alívio.
Todos voltaram, em alguma medida, diferentes. Psicologicamente, intelectualmente, emocionalmente, fisicamente. Foi um semestre de intensas adaptações ao chamado “novo normal”.
De volta ao velho normal
Toda pandemia, na História da humanidade, serviu para nos ensinar algo. A Peste Negra, por exemplo, ensinou-nos a importância do saneamento básico e controle de pragas; a Gripe Espanhola nos levou à vacina. O COVID-19 veio alertar quanto à importância de manter um corpo saudável, uma vez que os riscos maiores de mortes ocorreram entre pessoas obesas e com doenças metabólicas. E na educação? Quais foram os aprendizados?
Muito se falava, à época, que a escola não seria mais a mesma e não foi bem assim. Passados cinco anos da pandemia, vejo que pouca coisa mudou.
Dentre os principais pontos que, de fato mudaram, foi a continuação da oferta de ensino remoto e aulas on-line por algumas instituições, principalmente nos cursos pré-vestibulares. Já na educação básica, o ensino presencial voltou a ser prioridade total. Isso se dá não só pela perpetuação do modelo de ensino instituído ao final do século XIX – e sua naturalidade enquanto Cultura Escolar – mas também porque a escola física ainda é um ambiente de trocas importantes, de construção de conhecimentos e de apropriação das normas comportamentais que se dão entre os pares e que se constroem no coletivo. Essas relações são de outra natureza no ambiente on-line e não ocorrem da mesma forma, ou intensidade, em casa.
Outro ponto foi a necessidade das famílias de terem um lugar seguro para deixarem seus filhos enquanto trabalham fora, uma vez que, nos dias atuais, as mulheres estão cada vez mais inseridas no mercado de trabalho, seja por necessidade, já que as demandas por produtos e serviços estão cada vez mais altas e esses, mais caros; seja porque a mulher moderna procura estudar e prosperar na carreira; seja porque o número de divórcios só cresce nas últimas décadas; seja porque a criação dos filhos, nesse caso, acaba ficando majoritariamente a cargo das mães. A composição familiar, na maioria das regiões brasileiras, não é mais a mesma do século XIX. Nem do XX. A dupla ou tripla jornada de trabalho para a mulher contribuiu para a queda das taxas de natalidade e fecundidade brasileiras e caminhamos para a quarta fase da transição demográfica.
De acordo com o IBGE (2004), em 2022, as mulheres dedicaram, em média, 21,3 horas semanais aos afazeres domésticos e cuidando de pessoas, enquanto os homens gastaram bem menos, 11,7 horas fazendo a mesma coisa. Já a participação das mulheres no mercado de trabalho no segundo trimestre de 2024 foi de 48,1%, o que é menor do que a dos homens, que foi de 68,3% e, mesmo estudando e trabalhando mais, as mulheres ganham, em média, 78,9% do rendimento dos homens.
Mesmo para as mães que não trabalham fora – ou para os pais que continuaram com o home office – o aumento sutil da escolaridade brasileira, além da redução da natalidade, faz também com que haja uma preocupação de seus filhos frequentarem uma boa escola. De acordo com a pesquisa, no recorte racial, 61,8% das pessoas declaradas brancas haviam completado, no mínimo, o ciclo básico educacional em 2023 – enquanto entre pessoas pretas ou pardas, porém, esse percentual tenha sido de 48,3% (IBGE, 2024). Por outro lado, uma polêmica veio à tona com a pandemia: a escola ainda é vista por muitos como depositório de crianças para dar sossego aos pais. Muito se discutiu sobre como foram afetadas as relações familiares durante o período de isolamento social, por exemplo.
O que passou é coisa do passado?
Será, todavia, que as escolas corrigiram os problemas e estariam preparadas se tivesse outra pandemia, digamos, amanhã? Ou deixaremos para sofrer no momento? Pelo que observo na minha escala local, nas escolas públicas e particulares que leciono, não.
Um exemplo é com um ponto essencial para criar a ponte professor-aluno no ensino a distância, que é o simples cadastro de e-mails dos alunos no Google Classroom. Esse precisa ser padronizado com seu nome e sobrenome – e não com nome dos pais, nomes repetidos e infinitos apelidos engraçadinhos que tivemos que nos deparar e não conseguíamos identificar o aluno corretamente – e ter a mesma extensão gmail. Os anos se iniciaram e não se fala mais disso.
E as famílias, se preocuparam em comprar um dispositivo eletrônico, seja ele computador, notebook ou tablet para seus filhos poderem estudar de modo individualizado em casa? Falo, obviamente, daquelas que têm condições financeiras de adquiri-los – nem que seja às custas de um bom parcelamento – e não das que estão em condições de vulnerabilidade socioeconômica. Para essas, desde que comprovem renda e atendam a todos os requisitos necessários, os governos estão criando algum tipo de programa social que forneça sinal gratuito de Internet municipal, por exemplo, ou distribuição igualmente gratuitas de computadores? Não, não vejo nem sombra de algo parecido.
Muito pelo contrário. Em agosto de 2023, o Governo do estado de São Paulo anunciou que fornecerá aos alunos do ensino fundamental e médio da rede pública apenas livros didáticos digitais (G1, 2023), ampliando o abismo já conhecido da exclusão digital. Essa decisão é preocupante, pois vai de encontro à necessidade de oferecer garantias individuais para esse acesso, sem falar das adaptações na infraestrutura das escolas, na formação docente e nas propostas pedagógicas.
Não obstante, vai na contramão do que está acontecendo no mundo, como o caso da Suécia – modelo educacional tido como referência internacional e excelência – que adotou a digitalização completa e, recentemente, decidiu voltar atrás. E da Unesco, cujo último relatório sugeriu banir os celulares da sala de aula (G1, 2023). Já no Brasil, em janeiro de 2025 o presidente Lula sancionou uma lei que proíbe o uso de celulares no ambiente escolar, excetuando-se em casos necessários ou em atividades pedagógicas autorizadas pelo professor. Apesar de recente, percebemos uma grande mudança no comportamento dos alunos que passaram a se distrair menos em sala de aula e a se socializarem mais nos intervalos, o que parece-me muito positivo. Todavia, voltando ao uso de tecnologias em sala de aula, se os estudantes não têm computadores, se a escola não os oferece e se não podem acessá-los nos seus celulares em sala de aula, como vão fazer?
Isso quer dizer que a introdução de tecnologias forçadas com a pandemia não foi significativa. Foi um caminho escolhido para atravessar aquela situação, mas não como possibilidade de compor um novo normal que tampouco permaneceu. Não se constituiu enquanto disrupção, ponto de inflexão (ou momento de virada), como apontou Alcântara (2022), mas uma adaptação capenga e deficitária, fazendo parte ora mais, ora menos, ora do jeito que dá, de cada cultura, de cada escola, e não transformou, consequentemente, a Cultura Escolar em seu sentido mais amplo.
Mais do que questionar se o que passou ficou no passado, o novo normal de que tanto falávamos parece que, sim, esse ficou. Voltamos ao velho normal.
O computador mandou lembranças
Quando os cientistas começaram a manipular a energia nuclear e desenvolver produtos da radioatividade, isso nos levou a criar a bomba nuclear que ceifou mais de 200 mil vidas, em minutos, em Hiroshima e Nagasaki. Mas quantos milhões de vidas foram salvas em procedimentos de radioterapia combatendo tumores cancerígenos? Explico aonde quero chegar com esse paralelo: criou-se uma necessidade tão desenfreada de inserir tecnologias nos meios de produção, de consumo, de entretenimento, de relacionamento e de aprendizado a qualquer preço, que não percebemos o quão recente esse processo é. E, por ser ainda tão recente, não sabemos ao certo a melhor forma de nos apropriarmos dele, pois ainda estamos aprendendo.
Tal como acontece com uma criança pequena que está aprendendo a andar, ao dar os primeiros passos, ela cai muitas vezes, mas essas quedas não são consideradas erros, pois ela ainda está no processo de aprendizagem. Mais para frente, ela certamente dominará seus passos e o caminhar lhe será natural. A gente sempre começa errando. Estamos há tão pouco tempo manipulando as tecnologias que ainda estamos vivendo o efeito “Hiroshima-Nagasaki”.
Desmurget (2021), em seu livro “A fábrica de cretinos digitais”, traz à tona dados preocupantes: pela primeira vez os filhos apresentam QI inferior ao dos pais – e a culpa, segundo esse autor, é do excesso de telas. Não do meio em si, mas de tudo que envolve o consumo recreativo do digital. São aproximadamente mil horas acumuladas em frente às telas por crianças ocidentais da pré-escola em um ano, 1.700 para um aluno do nível fundamental, chegando a 2.600 horas para um estudante do Ensino Médio. “Ao longo dos 18 primeiros anos de vida, elas representam o equivalente a quase 30 anos letivos” (DESMURGET, 2021, p.5).
Enquanto sempre na História da humanidade a geração atual se apresentou mais apta a enfrentar os desafios do mundo que a geração anterior – uma vez que recebia os ensinamentos acumulados daquela e aplicava-os na prática de maneira mais eficiente – agora a limitação dá-se justamente pela disponibilidade absurdamente incontável de informações a que uma criança tem acesso e, acima de tudo, do quão superficial é a forma em que elas são apreendidas.
Ao passo que a descarga de dopamina inunda a cabeça desses jovens – ao consumirem memes, vídeos divertidos, jogos, compras, pornografia ou qualquer interesse que o algoritmo fez aparecer em sua tela do celular – ao mesmo tempo ela os torna cada vez mais viciados, preguiçosos, impacientes para lerem um texto maior, mais dispersos e, consequentemente, menos inteligentes.
A contradição está entre os que defendem o uso de tecnologias a qualquer custo e aos que já o encaram com mais parcimônia.
Para os que o defendem, seus argumentos são de que o mundo agora pertence aos nativos digitais, cujos cérebros são mais rápidos, reativos, mais aptos à multiplicidade simultânea de tarefas, mais competentes para sintetizar o imenso fluxo de informações e mais adaptados ao trabalho colaborativo. Já as escolas, perante essa nova geração, poderiam reformular o ensino, estimulando a motivação e a criatividade dos alunos, eliminando o fracasso escolar e as desigualdades sociais (DESMURGET, 2021, p.7).
Contudo, muitos especialistas alertam sobre a influência negativa dos dispositivos digitais no desenvolvimento desses jovens, desde as dimensões somáticas (obesidade e má postura), emocionais (agressividade e ansiedade) e cognitivas (linguagem e concentração). São danos que afetariam o desempenho escolar e daí a preocupação quanto a se digitalizar ou não o ensino. (DESMURGET, 2021, p.8).
Se o século XIX inaugurava o uso massivo dos objetos na escola, agora os novos materiais e recursos, como os tecnológicos, introduzem novos suportes de leitura, novas formas de ler e novas relações espaço-temporais que colocam em xeque práticas arraigadas no interior da escola. (ALCÂNTARA, 2022, p.12).
Um exemplo simples ilustra a percepção da historicidade da escola e o seu modo próprio de operar, entre permanências e mudanças: hoje os alunos não veem sentido em copiar uma lousa e pedem para tirarem foto da mesma. Isso não existia no passado e, pensando enquanto recurso discente, teria a mesma finalidade, mas não a mesma funcionalidade. Escrever aprende mais, tirar foto e perdê-la no rolo de câmera, não. O cognitivo do traçar é diferente no cérebro. Enquanto captação do conteúdo é igualmente válida, enquanto apropriação significativa do conhecimento, não.
Emblemático é o atual exemplo do caso colocado da Suécia – que desde 1990 buscou implementar uma educação 100% digital nas escolas, mas decidiu recuar e investir, ao longo de 2023, 45 milhões de euros na distribuição de livros didáticos impressos (G1, 2023). Além dos prejuízos somáticos, emocionais e cognitivos apontados por Desmurget (2021), os argumentos do governo sueco estavam baseados em pesquisas que apontaram queda no desempenho das crianças em leitura e escrita – como o PISA, problemas na comunicação e no sono. Levaram em conta também a dificuldade maior de os pais ajudarem os filhos nas tarefas, a constatação de que o computador é uma distração e as evidências científicas que mostraram os benefícios do livro físico até mesmo na organização e disposição dos conteúdos na folha. Por todas essas razões, mesmo os países que têm condições de fazer uma digitalização completa não estão indo nessa direção (G1, 2023).
Tal fato elucida a importância de conjecturar e voltar atrás, se necessário. Não se trata, portanto, de se revoltar contra a tecnologia, muito menos de negar seu papel importante nos avanços da sociedade moderna. Mas sim, de refletir sobre as consequências de seus impactos nocivos e benéficos e estabelecer, com consciência, seus limites.
Assim como a criança que aprendeu a caminhar, a mudança na cultura da escola frente às novas tecnologias só será percebida quando for encarada naturalmente enquanto processo. Muito mais complexo do que coordenar os movimentos das pernas, o apoio dos pés e o impulso do andar no equilíbrio corporal, nesse processo nos deparamos em coordenar as inovações criadas (que já são difíceis de acompanhar tamanha a velocidade de evolução), a escolha do que nos está sendo oferecido (a diversa gama de programas educacionais que envolvem tecnologias), o nosso nível de acesso a elas (as realidades distintas de condições para tais investimentos financeiros), a mudança da mentalidade e efetivo compromisso em aprender e desenvolver essas práticas (que envolve toda a equipe escolar) e, finalmente, a ponderação entre o tradicional e o novo, valorizando o que cada um tem de melhor e deixando de lado o que não funciona mais e o que deve ser evitado (perante os riscos e perigos comprovados).
Não se trata, portanto, de negar, tampouco mergulhar nos recursos tecnológicos custe o que custar. Mas lançar mão do melhor dos mundos, na possibilidade outra que seja híbrida, para que o caminhar aconteça. Tentar correr antes de aprender a andar nos levará, fatalmente, a mais quedas. Já respeitar a transição do engatinhar para os pequenos primeiros passos significa refletir sobre um importante contraponto central: a escola que temos e a escola que queremos.
E acontecerá, certamente, e cada vez de forma mais intuitiva e automática, assim como nossos passos, sem pensar, com naturalidade.
Conclusão
Diante das reflexões apresentadas ao longo deste estudo, fica evidente que a tecnologia na educação não deve ser encarada como um elemento a ser rejeitado ou adotado indiscriminadamente, mas sim como um recurso que exige análise crítica e equilíbrio. Seu papel nos avanços da sociedade moderna é inegável, e seu uso em sala de aula pode trazer benefícios significativos, desde que implementado de forma consciente e alinhada às necessidades pedagógicas.
A transformação da cultura escolar frente às inovações tecnológicas deve ser compreendida como um processo gradual, que exige não apenas a incorporação de novas ferramentas, mas também uma mudança de mentalidade por parte de gestores, professores e alunos. No entanto, essa transição é desafiadora, pois envolve a necessidade de acompanhar o ritmo acelerado das inovações, selecionar adequadamente os recursos disponíveis, lidar com desigualdades no acesso às tecnologias e garantir a formação docente para seu uso eficaz. Além disso, é fundamental ponderar sobre os impactos positivos e negativos dessas ferramentas, valorizando suas contribuições sem negligenciar os riscos e limitações que podem surgir.
Portanto, a integração da tecnologia no ensino deve ser conduzida com prudência e planejamento, evitando tanto a resistência inflexível quanto a adoção precipitada. O caminho mais adequado reside em um modelo híbrido, que equilibre práticas tradicionais e inovações tecnológicas, permitindo uma transição estruturada e eficaz. Dessa forma, a escola pode evoluir gradualmente para atender às demandas do presente e do futuro, sem comprometer a qualidade da educação. Essa mudança, quando conduzida de maneira consciente, tende a se tornar cada vez mais natural, intuitiva e integrada ao cotidiano escolar, consolidando um ensino mais dinâmico, acessível e eficiente.
Referências
ALCÂNTARA, W. Escola e Cultura Escolar Durante e Pós-Pandemia. Prometeica, 2022.
CONNELLY, F. M. & CLANDININ, D. J. Relatos de Experiência e Investigação Narrativa. In: Dèjame que te Cuente: Ensayos Sobre Narrativa y Educación. Barcelona: Editorial Laertes. 1995.
DESMURGET, M. A fábrica de cretinos digitais: Os perigos das telas para as nossas crianças. São Paulo: Vestígio, 2021.
ESCOLA DIGITAL, Currículo e Tecnologia – Como integrar? YouTube, 2016. Disponível em: https://youtu.be/0T-3pw3IhSQ?si=UG4E6Snz0DtJCQi7 , Acesso em: julho de 2024.
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TALEB, N. N. Iludidos pelo Acaso. A influência da sorte nos mercados e na vida. Rio de Janeiro: Objetiva, 2019. 309 p.
1Professora de Geografia há 21 anos, com Graduação, Mestrado e Doutorado em andamento em Geografia pela Unesp – Rio Claro/SP. E-mail: ralocali@yahoo.com.br.