ECOFEMINISMO E TEORIA DO DECRESCIMENTO

ECOFEMINISMO E TEORIA DO DECRESCIMENTO

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/dt10202502222329


Maria Cecília Schmidt1


Resumo

O presente artigo, baseado nos tratados de ecofeminismo e de  decrescimento, faz ponderações quanto à ligação existente entre os dois temas e como se  complementam e se integram entre si. O reforço do sistema de dominação patriarcal sobre  mulheres e natureza para desenvolvimento do capitalismo, leva à vulnerabilização de  mulheres (e fêmeas do reino animal), e à degradação ambiental. O pensamento de Bauman  quanto à liquidez da sociedade da segunda modernidade e o de Gilles Lipovetsky quanto à  individualidade humana da era moderna, reafirmam e corroboram o pensamento ecofeminista  de que a chamada “sociedade de consumo” é baseada no sistema de produção e lucro, o  que é absolutamente deletério para a continuação da viabilidade de vida animal no planeta  Terra e que, as fêmeas – humanas e não humanas – são as que mais sofrem os impactos  dessa devastação ambiental no globo terrestre. A teoria do decrescimento de Serge  Latouche, traz, com perfeita associação de objetivos, uma possível solução ao problema  da continuidade desenfreada da exploração ambiental e sexual, chamada no ecofeminismo de “perspectiva de subsistência”. Nesse sentido, o artigo se propõe a trazer essas reflexões  e as hipóteses de ajustes entre as teorias para a possível solução ou diminuição das  degradações entre humanos e natureza e homens e mulheres.

Palavras-chave: Ecofeminismo, teoria do decrescimento, classe ecológica,  classe sexual. 

Resumen

Este artículo, basado en los tratados de ecofeminismo y  decrecimiento, considera la conexión entre ambos temas y cómo se complementan e  integran entre sí. El refuerzo del sistema de dominación patriarcal sobre las mujeres y la  naturaleza para el desarrollo del capitalismo, conduce a la vulnerabilidad de las mujeres (y  de las hembras del reino animal), y a la degradación ambiental. El pensamiento de Bauman  sobre la liquidez de la sociedad de la segunda modernidad y el pensamiento de Gilles  Lipovetsky sobre la individualidad humana en la era moderna, reafirman y corroboran el  pensamiento ecofeminista de que la llamada “sociedad de consumo” se basa en el sistema  de producción y beneficio, la que es absolutamente perjudicial para la viabilidad continua  de la vida animal en el planeta Tierra y que las mujeres -humanas y no humanas- son las  que más sufren los impactos de esta devastación ambiental en el planeta. La teoría del  decrecimiento de Serge Latouche aporta, con una perfecta asociación de objetivos, una  posible solución al problema de la continuidad desenfrenada de la explotación ambiental y  sexual, llamada en el ecofeminismo la “perspectiva de subsistencia”. En este sentido, el  artículo se propone acercar estas reflexiones e hipótesis de ajustes entre teorías para la  posible solución o reducción de degradaciones entre humanos y naturaleza y hombres y  mujeres.

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa visa trazer alguns traços reflexivos sobre a  conexão latente entre ecofeminismo e teoria do decrescimento.

DESENVOLVIMENTO

A transição epocal entre feudalismo e capitalismo foi um  período histórico importante para ocorrência de transformações sociais e econômicas. O  olhar para o papel social e econômico das mulheres nessa passagem é indispensável e  necessário, pois nele se observa o surgimento do proletariado e a necessidade de  readequação das mulheres para o desaparecimento lento e nada uniforme do sistema  feudal e surgimento do sistema capitalista. A mulher feudal tinha sua mão de obra explorada  nos feudos – assim como a mão de obra das crianças o era e, com a vinda do capitalismo  e a construção social da “mãe e esposa responsável e protetora”, sua mão de obra que era  objeto de exploração nos campos feudais, passou a ser exercida dentro dos lares para a  manutenção da família, viabilizando o exercício do trabalho externo e remunerado pelo  homem. 

O capitalismo do pós feudalismo não é o mesmo capitalismo que vivemos hoje,  e nem o mesmo capitalismo de cinquenta anos atrás. Percebe-se, ao se observar a história  do mundo, uma constante renovação e adequação das formas de exploração das pessoas  e dos recursos naturais, visando o aumento de lucro com a contínua utilização de mão de  obra de pessoas que não detém o capital, e o avanço de tecnologias de produção em larga  escala. 

O sistema de exploração patriarcal não nasceu na era capitalista, ele sempre  existiu desde os mais remotos tempos da humanidade, o capitalismo é, hoje, apenas a  expressão contemporânea do patriarcado, assim como a caça às bruxas o era na idade  média. O que ocorre é que, dentro da evolução histórica, a exploração e dominação dos  homens sobre as mulheres também se adequa de acordo com o tempo e o espaço,  renovando-se nas formas e nos modos de engendramento dessas relações, e não se  olvidando que o foco dessas mudanças nas conformidades do sistema patriarcal capitalista  é a geração quantitativa de lucro econômico e a manutenção do poder pelos homens.

A liquidez e o individualismo tem estreita relação com a forma consumista de se  existir no mundo moderno, o que é uma das consequências desta fase do capitalismo global.  Consumo rápido, substituição de coisas, produção de lixo e degradação ambiental, são  algumas das peças das engrenagens indissociáveis da existência do capitalismo e,  especialmente nesse último ponto – degradação ambiental – o ecofeminismo desponta  como ciência que aprofunda os estudos da indiscutível conexão entre exploração ambiental  e divisão sexual do trabalho, assim como as mais variadas formas de objetificação e  exploração de mulheres. 

Para além do viés utilitarista, em que mulheres são o meio para obtenção do  lucro, observa-se que também figuram como as que suportam de maneira direta e de forma  mais negativa as consequências da exploração do meio ambiente. Esse impacto não  amortece as consequências também suportadas por crianças e, diante desse resultado  deletério em desfavor de crianças e adolescentes, mais uma vez se esbarra no direito das  mulheres, eis que a maternidade é um marcador de importância para análise de realidades  vulnerabilizantes de gênero. 

Importante destacar que, durante a Idade Média, no período feudal, o sistema  familiar era baseado em proteção hereditária, ou seja, a base das uniões matrimoniais era  patrimonial e não respaldada em laços afetivos e/ou sanguíneos. Os casamentos eram  arranjados e realizados com base em “dotes” e preservação patrimonial de bens familiares.  Os cuidados das crianças eram destinados a camponesas pobres e a amamentação era  responsabilidade das amas de leite. Quando atingiam a idade de aproximadamente oito  anos, as crianças passavam a participar das atividades domésticas e laborais, eram vistas  como adultos em miniatura. A mortalidade infantil era altíssima, pois além da precariedade  do ambiente e do modo de vida, os cuidados às crianças não era motivo de preocupação  pelos genitores, sendo comuns o abandono de bebês e o infanticídio.

A partir do século XVII, com a chegada do capitalismo e a ascensão da burguesia,  os papéis sociais de homem e mulher sob a ótica familiar foram sendo construídos e  lastreados sob a divisão, até então obscura, das esferas pública e privada. A “missão” da  mulher dentro do seio familiar, passou a ser a de cuidado do lar e dos filhos, cabendo a elas  a responsabilidade pela vida e saúde das crianças. Assim, com a transposição do  feudalismo ao capitalismo, as uniões matrimoniais passam a ser exercidas também por  pobres, ex- escravos e proletariados. 

Ao homem proletário, a missão de sustento econômico da família o coloca na  base da pirâmide de produção de bens e serviços, com a exploração da sua mão de obra  pelos detentores do capital. Percebe-se que, este homem, mesmo encontrando-se em  posição absolutamente desprivilegiada em termos sociais, dentro de casa exerce  dominação sobre sua esposa e mãe de seus filhos, bem como sobre as crianças da casa.  Nesse ponto, Flora Tristan é a autora da frase: “A mulher é a proletária do proletariado”, e  que reflete a realidade patriarcal dominante do início da era capitalista. É nesse contexto  que a socialização do gênero feminino se personifica dentro do seio familiar e para além  dele, já que os comportamentos femininos dentro e fora de casa são objeto de fiscalização  intermitente por todos os atores sociais (igreja e sua comunidade, a família estendida, o  próprio marido, os próprios filhos, etc.). Assim, o homem, por mais mal colocado que fosse  dentro do extrato social (esfera pública), na esfera privada de seu lar é o “homem da casa”,  é o “provedor”, é o “pai”, é o “chefe da família”, contrapondo-se sempre em nível de  superioridade “à sua proletária” (sentido conotativo). 

Nesse recorte, visualiza-se a transformação da sociedade em classes, a dos  detentores do capital e a dos trabalhadores, os quais passam a ser remunerados pela  exploração da sua força de trabalho. Contudo, trata-se de uma troca afeta apenas entre  homens nessa fase inicial, porque a mulher, ao tempo que tem sua mão de obra também  explorada, não recebe remuneração em contraprestação aos vários serviços prestados em ambiente doméstico, dentre eles, o serviço de cuidado das crianças (maternidade).  Percebe-se que, com o passar do tempo, o acesso da mulher ao mercado de trabalho foi  aberto, mas o exercício das atividades domésticas e maternais continuou não sendo  remunerado, o que aumentou o vale hierárquico social entre homens e mulheres. 

Assim, enquanto na idade média as mulheres não eram vistas como sujeitos de  direito, no capitalismo são elevadas à categoria de sujeitos, mas a sua importância é  fracionada para o ambiente privado com o desenvolvimento de tecnologias de dispositivos  maternais, tornando-as indispensáveis para o cuidado das gerações futuras da nação. Ou  seja, são atribuídos papéis sociais às mulheres para o fim de que fosse garantido que a  produção de bens e serviços pudesse acontecer, geração de lucros, pilhagem e acúmulo  de capital, gestão de pessoas para substituírem aquelas que são afastadas do meio de  produção, tudo, conforme bem se nota, para garantir a manutenção da máquina capitalista.  Veja-se que a romantização da maternidade e o status conferido à mulher, como se seu papel de mãe e esposa a tornasse “especial e santificada”, são criações sociais para o fim  de explorar de maneira não remunerada o trabalho dessa mulher por toda a sua vida, desde  o casamento até sua morte, ou até não suportar mais ser explorada por razões de falta de  saúde. 

Com o passar do tempo, as tecnologias maternais se arraigaram no  desenvolvimento da socialização de gênero e hoje, a maternidade é entendida como uma  das formas de sucesso social de mulheres adultas. Atrelada ao fracasso, a mulher que não  se casa e não tem filhos sofre pressão social do matrimônio e da maternidade socialmente  compulsória e, mesmo após a conquista dessa expectativa social, é culpabilizada,  questionada e responsabilizada pela felicidade e segurança de crianças e manutenção do  estereótipo da família tradicional. 

O termo ecofeminismo foi usado pela primeira vez por Françoise D’Eaubonne  em 1980, mesmo ano que aconteceu a primeira conferência sobre o tema, intitulada de Mulheres e Vida na Terra: Uma Conferência sobre Ecofeminismo nos anos 1980, ocorrida  em Massachusetts (Estados Unidos). Hodiernamente, há uma divisão acadêmica que  classifica o ecofeminismo em cultural (ou de afinidade) e o ecofeminismo socialista (ou  materialista). O primeiro enxerga a dominação masculina sobre mulheres por si, dentro do  prisma cultural de controle, como estrutura deletéria para a vida de mulheres e preservação  do meio ambiente. Já o ecofeminismo socialista (ou materialista) põe luz sob o ângulo  marxista dessas relações, na perspectiva de divisão sexual do trabalho e, por essa  perspectiva, o estudo das relações de dominação e exploração de homens sobre mulheres  e o meio ambiente. O mais importante, aqui, é se chegar à conclusão de que, independente  da classificação que se use, a exploração e o domínio dos homens dentro desse sistema  capitalista-patriarcal ofende mulheres e natureza e, ambas, estão diretamente conectadas  nessa relação vertical de capitalismo de consumo e degradação.

Dessa forma, analisar a construção do patriarcado a partir da divisão sexual do  trabalho tem como objetivo demonstrar a crise climática, assim como a devastação  ecológica que a acompanha, como uma consequência do modo não produtivo dos  homens baseado no saque, no roubo e na pilhagem, historicamente perpetuado e  validado com auxílio das abstrações dominantes, sobretudo Religião, Ciência e  Filosofia. Ao mesmo tempo, tal análise nos permite considerar o papel do clima em  outras crises epocais, bem como identificar as formas pelas quais o patriarcado se  volta contra as mulheres nesses momentos históricos, sobretudo se apropriando e  exercendo controle sobre sua capacidade (re)produtiva por meio do cerceamento e  da violência. Ademais, acompanhar o desenvolvimento do patriarcado até seu  estágio capitalista é uma forma de analisar como historicamente se desenvolveu a  relação de exploração entre mulheres, natureza e colônias e retomar a realidade  aparentemente esquecida dentro dos movimentos socialistas, algumas vertentes do  movimento feminista e decoloniais: a dominação das mulheres precede e dá forma  às dominações de classe e raça, sendo o patriarcado capitalista um sistema  masculino que reduz as possibilidades de reprodução da vida e tem na subordinação  feminina seu mais firme alicerce.1 

Vandana Shiva, na introdução da sua obra Ecofeminismo, em parceria com a  socióloga alemã Maria Mies, relata que o homem sempre teve uma ótica emancipatória da  natureza, ou seja, vivem na ilusão da independência e separação do homem e da natureza.  Nessa mesma linha de pensamento, a mulher sempre foi tratada como “natureza”, diante 

da sua característica cíclica, menstrual e gestacional, e no senso equivocado de que seriam  desprovidas de racionalidade, tiveram sua realidade equiparada à dos outros mamíferos e,  tal qual a natureza, são parte emancipada do grupo masculino (o “outro” do homem, ou o  “segundo sexo” como descreve Simone de Beauvoir) e, por isso, podem e são exploradas  pelos homens. As principais ferramentas utilizadas atualmente para exercício desta  opressão sobre mulheres e natureza são a ciência, a tecnologia e a violência. A hostilidade  ao corpo de animais e mulheres, bem como o abuso decorrente desse ódio, é chamado de  somatofobia, conceito que é trazido por Elizabeth Spellmann 2, a qual ensina que o  patriarcado capitalista usurpe do meio ambiente e os animais, na mesma forma que invade  e instrumentaliza os corpos das mulheres. 

A constatação de que a mulher é tratada e vista pelo capitalismo assim como a  natureza o é, ou seja, como um recurso, também pode ser verificada quando Latoir e  Schultz escrevem “Manifesto Ecológico” e constroem a ideia de classe ecológica. Nele,  reforçam que a classe ecológica não tem sua existência pautada em nenhuma ideologia  política, não é um debate genuíno de direita ou de esquerda. Para além disso, os autores  acentuam que ambas as frentes políticas (direita e esquerda) usufruem dos privilégios  capitalistas com arrimo em narrativas de proteção ambiental e, amiúde, com intuito de  reforçar o populismo das pautas ambientais, mas sem, de fato, preocuparem-se ou  almejarem a construção científica da classe ecológica. Aqui, pode-se fazer uma analogia  interessante de como essa observação em relação à pseudo- efervescência política sobre  a classe ecológica se amolda perfeitamente quando analisamos a importância real que as  mulheres tem no espectro ideológico das discussões de esquerda e de direita. Isso porque,  assim como a natureza é arrebatada em pautas políticas marketeiras e populistas, a mulher  também é um joguete nas mãos de ambas as ideologias. Não é sobre a natureza, não é  sobre as mulheres, é sobre poder. E o poder está, como sempre esteve, sob o domínio dos  homens. A vigilância da natureza e da capacidade reprodutiva das fêmeas humanas  sempre foi a forma do exercício da dominação das fontes de recursos naturais, sejam eles  recursos do meio ambiente, sejam eles recursos de reprodução de espécie humana (e  reprodução não humana também, pois as fêmeas não humanas também são, sob outro  aspecto, violentamente exploradas na sua capacidade reprodutiva para fins capitalistas). O modo de produção é, assim, o ponto de início das reflexões entre 1) classe  ecológica (natureza) e seus desdobramentos e 2) classe sexual (mulher) e seus  desdobramentos, porque é pelo modo de produção que entendemos as demais relações  de dominação, que não se limitam à dominação entre detentores do capital e trabalhadores,  mas se estendem à exploração da natureza e das mulheres. Quando se fala de sociedade  de consumo, e o termo está atrelado às ideias de sociedade líquida (Bauman) e  individualista (Lipovetsky), as constatações das formas de domínio sobre a mulher e natureza são  confirmadas. O desenvolvimento da ciência e da (bio)tecnologia são fruto da volitividade do homem  em produzir, criar, “fazer nascer”, desenvolver e aperfeiçoar bens, incluindo em especial objetos que  tem como objetivo destruir a vida do outro – armas de guerra.

A civilização patriarcal é o esforço para resolver um problema do gênero masculino,  ou seja, o fato de que os homens não conseguem produzir vida humana por conta  própria. Eles não são o começo. Não podem gerar filhos, especialmente meninos,  sem mulheres. Mães são o início. Isso já estava evidente para os antigos gregos. As  mães são a arché, o início da vida humana. Portanto, os homens inventaram uma  tecnologia para a qual as mães não são necessárias. Tecnologias como a bomba  atômica, a tecnologia reprodutiva e genética ou a internet são esses “filhos sem  mãe”.3

A reestruturação econômica mundial baseada em princípios neoliberalistas é um  dos fatores principais desse ciclo e o que revela, também, que as mulheres são objetos dos  padrões de consumo, mas também figuram na qualidade de sujeitos desses padrões (são  exploradas, mas também são consumidoras). Segundo o que traz Vandana Shiva na sua  emblemática obra Ecofeminismo, um novo paradigma para o desaceleramento dessa  

cadeia predatória econômica seria o que a autora chama na parte introdutória da obra de  “perspectiva de subsistência”, extirpando-se os movimentos de pilhagem e acúmulo com  vistas ao lucro e ao desenvolvimento de tecnologias de violência em todas as suas formas,  desde as veladas às mais escrachadas. A ideia de perspectiva de subsistência remete a  vários modelos possíveis para sua implementação, desde os mais rudimentares até  tecnologias avançadas de execução e, o mais importante: devem ser desenvolvidos e  executados sob a ótica de proteção de mulheres e extirpando-se a divisão sexual do  trabalho, valendo-se dos princípios e diretrizes ecofeministas de visão de mundo e da  natureza. 

A proposta da perspectiva de subsistência dentro do feminismo ecológico vem  da necessidade de ações coletivas de sustentabilidade, em contraponto às mesmas  condutas adotadas pelo obscuro capitalismo global. Não se trata de economia de  subsistência, mas sim do que Mies chama de perspectiva de subsistência, o que engloba,  para além da economia, uma alteração profunda nos modelos sociais, culturais e históricos  do sistema de vida humano.

A perspectiva da subsistência implica, dentre outras coisas, reavaliar a comunicação  entre o Sul e o Norte global, a fim de estabelecer conexões profícuas para a  concretização da ecopolítica em prol da sobrevivência. Em detrimento da lógica do  livre mercado, marcado pelas disputas entre grupos, é preciso pensar a partir de  novos paradigmas, em virtude dos quais a ciência e a tecnologia estejam a serviço  da reintegração da cultura e do trabalho. Na prática, a responsabilidade  compartilhada substituiria a noção preconceituosa do trabalho, bem como a  separação sexista movida pela filosofia da disparidade entre o Norte e o Sul, entre o  rural e o urbano, entre o local e o global e entre as mulheres e os homens4.

Na produção mercantilista, tudo que existe deve ser transformado em produto.  Na perspectiva de subsistência a meta é diametralmente oposta, pois visa ao atendimento  direto das necessidades humanas. A produção de subsistência tem um objetivo  completamente diferente e consiste principalmente na satisfação direta das necessidades  humanas, o que não se consegue através do dinheiro e da produção de bens. O início do  

desenvolvimento da teoria se deu com a luta feminista sobre o trabalho doméstico,  momento em que a discussão sobre qual o significado do trabalho doméstico estava em  franco debate, oportunidade em que se reconheceu que, no capitalismo, este trabalho não  poderia ser remunerado, porque se o fosse, o modelo de acumulação entraria em colapso.  Isso não quer dizer que isso acabaria com o capitalismo, como alguns acreditavam, mas  certamente tornaria dispendiosa e inviável a manutenção do sistema capitalista em seu  modelo moderno. Ora, se todo o trabalho feito no lar fosse remunerado, desde a limpeza  do lar até a criação dos filhos e idosos, seria impossível pagá-lo, o que alteraria  fundamentalmente todo o modelo capitalista. 

Chega-se então ao conceito de que a subsistência pode ser chamada de  “produção de vida”. A perspectiva de subsistência é um pré-requisito permanente em todos  os tipos de vida, e em todos os tipos de trabalho – em que é preciso cuidar da alimentação,  cuidar da casa e das preocupações do dia a dia. Este trabalho é extremamente valioso,  mas nunca é compensado monetariamente. Este é o ponto onde inicia a perspectiva de  subsistência desenvolvida pela autora alemã.

A subsistência não é defeito ou uma miséria, mas a busca e manutenção para  se manter a vida e o “viver bem”, mas de forma autônoma ou dentro de coletivo de pessoas,  e não submetido ao sistema mercantilista. Segundo a autora, a alienação produzida pelo  trabalho remunerado não pode ser neutralizada mesmo com grandes somas de dinheiro,  mas do ponto de vista da subsistência, isso é inteiramente possível. 

É nesse ponto que há uma importante intersecção entre a tese do feminismo  ecológico suso apresentada e o que Serge Latouche traz sobre “tratado do decrescimento”.

Latouche qualifica o sistema capitalista como uma sociedade refém de uma  economia cujo único fim é o crescimento pelo crescimento. Para enfrentar essa  situação, ele traz propostas do que chamou de teoria do decrescimento sereno.  Resumidamente, se trata de uma proposta que visa acabar com o “jargão politicamente correto dos drogados do produtivismo”. É importante não confundir o  decrescimento com crescimento negativo. De fato, a diminuição do crescimento  afunda as nossas sociedades na incerteza, desemprego, abandono de programa  sociais, sanitários, educativos, culturais, entre outros. Para melhor entender o  conceito, é preciso entender também que o decrescimento não faz parte do  desenvolvimento sustentável. Ele surge para sair das confusões desse campo. É de suma importância compreender que se trata de uma utopia concreta e uma proposta  revolucionária para se viver melhor. Portanto, o decrescimento, longe de se refugiar no irreal, tenta explorar as possibilidades objetivas de sua aplicação, como um  projeto político. É nesse ponto que o autor faz a sua maior contribuição: uma  proposta concreta de como entrar num “circulo virtuoso” de decrescimento sereno,  representado por oito mudanças interdependentes que se reforçam mutuamente:  reavaliar, reconceituar, reestruturar, redistribuir, relocalizar, reduzir, reutilizar, reciclar. 

Para alcançar esse propósito, Latouche propõe algumas etapas a serem  seguidas. Uma delas é a estruturação da democracia ecológica local, para contrapor  a periferização. Da mesma maneira, é preciso recuperar a autonomia econômica localo que implica em desenvolver autossuficiência alimentar, econômica e financeira,  promovendo-se iniciativas locais decrescentes. 

Finalmente, um terceiro passo, decorrente dos dois anteriores, é conceber  a implementação política do modelo do decrescimento. Segundo Latouche, medidas  muitos simples e, aparentemente insignificantes, podem dar início aos círculos  virtuosos do decrescimento. Percebe-se, assim, a ligação entre a proposta de  Latouche e aquela de Mies, quando desenvolve a ideia de perspectiva de  subsistência. 

De acordo com o exposto, os fundamentos ecofeministas são,  teoricamente, feministas, o que não existe em relação à teoria do decrescimento. Nela, o recorte de gênero e classe sexual não embasa a tese, mas indiscutivelmente com  ela se coaduna em muitos aspectos de grande relevância e, assim, pode-se dizer que  se complementam e coexistem de forma a trazerem novas perspectivas e respostas  aos problemas decorrentes do modo capitalista de economia e sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do que foi gerado durante a pesquisa, percebe se que o ecofeminismo, galgado na existência da exploração de mulheres e natureza, traz  uma proposta interessante sobre a alteração substancial do meio de condução das formas  de exercício coletivo de vida, dentro da teoria da perspectiva de subsistência. A tese do  decrescimento sereno, por sua vez, está alinhada em alguns pontos importantes com a  perspectiva de subsistência e, essas intersecções, correlacionadas, podem trazer uma  proposta real sobre a alteração dos modelos vigentes de economia e modo de vida da sociedade. 


 1COLERATO, Marina Penido. Crise climática e antropoceno: perspectivas ecofeministas para liberar a vida. 2023, p. 78.
2 ADAMS, Carol J. A política sexual da carne. Uma teoria feminista-vegetariana. 2. ed. São Paulo: Alaúde  Editorial, 2018.
3 MIES, Maria; SHIVA, Vandana. Ecofeminismo. Belo Horizonte: Editora Luas, 2021, p. 41.
4 BATISTA, Cicera Pinheiro. ECOFEMINISMO – o empobrecimento do meio ambiente sob uma perspectiva  feminista. Revista Cronos, v. 25, n. 2, p. 210-214, 2024.

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1Mestranda da Universidade do Vale do Itajaí
Minter com a Faculdade Católica de Rondônia
Defensora Pública do Estado
LATTES: https://lattes.cnpq.br/9395592257466251