NEOLIBERALISM, THE EXTREME RIGHT AND HATRED FOR HUMAN RIGHTS: INCOMPATIBILITY OR POLITICAL STRATEGY?
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202502221132
Francisca Zelma Lima Cavalcante1
RESUMO
Este artigo tem por objetivo analisar a atual configuração do neoliberalismo e suas imbricações com o conservadorismo, as conexões entre suas agendas e como tais agendas atuam no sentido de enfraquecimento da democracia, da deslegitimação dos direitos humanos e fortalecimento da extrema-direita. Parte da premissa que a cruzada contra o estado de bem-estar social e o ataque aos direitos humanos, em especial aos direitos sociais, sexuais e reprodutivos, que unem neoliberais e conservadores, são estratégias para ofuscar a escalada brutal de destruição das conquistas civilizatórias pós segunda guerra, o aumento das desigualdades sociais, e absorver o sentimento de frustração e ressentimento popular. Para tanto, em um primeiro momento, examina-se panoramicamente o cenário de crise da chamada democracia liberal e seus limites no enfrentamento da crise de legitimidade política que o neoliberalismo pós-2008 imprime, enfatizando-se o potencial poder manipulador das mídias digitais no comportamento humano; em seguida, analisa-se a atual configuração do neoliberalismo e a sua relação com o conservadorismo que engendra e conforma a extrema-direita, e, por fim, em um terceiro momento, analisa-se como os discursos propagados pela extrema-direita, tomando como objeto de análise o discurso de posse do então Presidente Jair Messias Bolsonaro, são direcionados para atacar a democracia e os Direitos Humanos.
Palavras-chave: Democracia; Neoliberalismo; Conservadorismo: Extrema-direita; Direitos Humanos.
ABSTRACT
This article aims to analyze the current configuration of neoliberalism and its interconnections with conservatism, the connections between their agendas and how such agendas act to weaken democracy, delegitimize human rights and strengthen the extreme right. It starts from the premise that the crusade against the welfare state and the attack on human rights, especially social, sexual and reproductive rights, which unite neoliberals and conservatives, are strategies to overshadow the brutal escalation of the destruction of civilizing achievements after World War II, the increase in social inequalities, and absorb the feeling of popular frustration and resentment. To this end, first, we examine the scenario of crisis of so-called liberal democracy and its limits in confronting the crisis of political legitimacy that post-2008 neoliberalism imposes, emphasizing the potential manipulative power of digital media on human behavior; then, the current configuration of neoliberalism and its relationship with the conservatism that engenders and shapes the extreme right are analyzed, and, finally, in a third moment, it is analyzed how the speeches propagated by the extreme right, taking as the object of analysis the inauguration speech of then President Jair Messias Bolsonaro, are directed to attack democracy and Human Rights.
Keywords: Democracy; Neoliberalism; Conservatism; Extreme right; Human Rights.
INTRODUÇÃO
Embora a democracia seja um fenômeno histórico e, como tal, tenha se desenvolvido em condições específicas (PRZEWORSKI, 2021) a partir do final da Segunda Guerra Mundial, um consenso nominal em favor da democracia se estabeleceu. Todos os países do Ocidente passaram a reivindicar para si o rótulo “democrático”, dotando-o do sentido que julgassem mais conveniente. No começo dos anos 1990 era anunciada sua vitória definitiva, com a queda do muro de Berlim e o colapso do bloco soviético, que liquidara o principal modelo alternativo de organização social até então vigente. Todas as forças políticas relevantes passavam a admitir que era imperativo garantir a adesão às regras do jogo democrático: competição eleitoral multipartidária, o sufrágio universal, a divisão de poderes, os direitos de cidadania, as liberdades individuais, o império da lei e, em larga medida, o respeito aos Direitos Humanos (MIGUEL, 2020).
Mesmo as graves crises econômicas que abalaram diversas economias, em particular, na periferia do capitalismo, nos anos 1980 e 1990, pareciam não afetar a consolidação da democracia e até mesmo os mecanismos de mercado eram aceitos, de maneira cada vez mais ampla, como necessários e inevitáveis.
Essa aparente coexistência pacificada entre capitalismo e democracia se vê abalada pela crise de 2008. A crise de 2008, ao tempo em que consolidou a plena hegemonia do capital financeiro, impulsionou ataques sem precedentes ao trabalho e aos direitos sociais, trabalhistas e previdenciários que lhe são inerentes, demandando ações que negassem qualquer possibilidade de a ordem econômica ser interferida por decisões democráticas ou oriundas da maioria.
A resposta do capitalismo à crise de 2008 ocorreu através de mudanças estruturais no desenvolvimento econômico, que aprofundaram a hegemonia neoliberal: plataformização cada vez mais acentuada da economia, desenvolvimento tecnológico, Internet e mídias sociais – estas sob a curadoria dos algoritmos definindo o que se consome -, economia de dados, e aumento das desigualdades sociais. Neste quadro de hegemonia neoliberal, em que se aprofunda a destruição das conquistas civilizatórias e democráticas do pós-Segunda Guerra Mundial, respostas políticas de insatisfação, frustração, ressentimentos, rancores e inconformismos de parcelas cada vez maiores da população são resultados previsíveis.
Para garantir a continuidade da reprodução do capital se fez necessário uma nova ordem, uma nova racionalidade. A resposta veio com a aliança do neoliberalismo com o conservadorismo, a defesa de uma agenda estimulando o individualismo, a desconfiança na Democracia, em suas instituições e nos valores que a sustentaram, notadamente após a Segunda Guerra Mundial, e promovendo cenários de polarização política e reações, cada vez mais violentas, contra aqueles que reivindicam um mundo mais plural e mais democrático. Neste quadro, o conceito de Direitos Humanos passa a ser objeto de questionamentos, relativizações e ataques ao seu poder normativo.
Compreender o alcance da destruição das conquistas civilizatórias e democráticas promovida pela atual configuração do neoliberalismo, bem como suas imbricações com o conservadorismo, analisando as conexões entre as suas agendas e como tais agendas atuam no sentido do enfraquecimento da democracia e da deslegitimação dos Direitos Humanos e favorecem a emergência e fortalecimento da extrema-direita. traduz o escopo do presente trabalho.
O trabalho está dividido em três seções, além deste texto introdutório: na primeira seção, examina-se os limites das democracias representativas contemporâneas para o enfrentamento da crise de legitimidade política que o neoliberalismo pós-2008 imprime, enfatizando-se o potencial poder manipulador das mídias sociais no comportamento humano; na segunda seção, analisa-se a atual configuração do neoliberalismo e a sua relação com o conservadorismo que engendra e conforma a extrema-direita,; na terceira seção, examina-se como os discursos propagados pela extrema-direita, tomando como objeto de análise o discurso de posse do então Presidente Jair Messias Bolsonaro, com a instrumentalização das mídias sociais digitais, são direcionados para atacar a democracia e os Direitos Humanos.
1. DEMOCRACIA REPRESENTATIVA LIBERAL E NEOLIBERALISMO PÓS-2008: UMA RELAÇÃO PERMANENTEMENTE TENSIONADA
Importa registrar, inicialmente, que os regimes que a linguagem corrente admite como democráticos são caracterizados pela vigência seja de instituições representativas de tipo eleitoral, seja dos chamados “direitos e liberdades liberais”. No entanto, na maior parte da história do pensamento político, nem eleições, nem liberalismo estiveram associados à democracia (MIGUEL, 2020).
O conceito de representação, do ponto de vista da teoria política, como intrinsecamente ligado ao conceito de democracia, foi longamente construído a partir das diversas formas como foram interpretadas as relações entre representantes e representados desde o século XVIII, bem como resultante de prolongadas lutas políticas e institucionais do século XIX: o sufrágio, a divisão em distritos e a proporcionalidade, os partidos políticos e os interesses e políticas, a relação entre as funções legislativas e executivas e as instituições legislativas e executivas (PITKIN, 2006).
Segundo Débora Almeida (2013), a invenção do governo representativo é a conquista central da política moderna. Para além de tornar a política possível a uma nova escala, a do moderno Estado nacional, sua introdução permitiu o desenvolvimento dos primeiros experimentos democráticos em uma sociedade de massas e capitalistas.
A democracia representativa liberal, numa sociedade capitalista, permeada por desigualdades, se impôs como um mecanismo para processar conflitos. Para tanto, foi necessária a redução da democracia a um conjunto de instituições, desconectadas o máximo possível das esferas do mundo vivido e da reprodução da vida, sob pena de não cumprir o seu papel de regime compatível com a sociedade capitalista (MIGUEL, 2020).
Para Przeworski (2021), na democracia, as instituições políticas administram conflitos de modo ordeiro2, estruturando a forma como antagonismos sociais são organizados politicamente, absorvendo quaisquer distúrbios que possam ameaçar a ordem pública e regulando-os de acordo com certas regras.
Os regimes democráticos contemporâneos estabelecem a cidadania como um padrão convencional de igualdade que tornaria irrelevantes as diferenças de posição social e anularia as condições reais de existência. Trabalhadores e patrões, mulheres e homens, negros e brancos ingressam na esfera política despidos de suas características, na qualidade de cidadãos simétricos, cujas preferências serão agregadas por meio do mecanismo eleitoral, promovendo o isolamento da democracia em relação à vida vivida como o meio para a acomodação entre a democracia política e a sociedade capitalista. O processo eleitoral permite aferir os ânimos dos dominados e calibrar melhor as concessões necessárias ou os arranjos discursivos que proporcionem a manutenção da “paz social”. E, sobretudo, é tido como a demonstração cabal de que o Estado não se alinharia a nenhum dos interesses sociais em conflito; seria um organismo neutro ou, ainda, a encarnação da totalidade diante das partes (MIGUEL, 2020).
Entretanto, análises multidisciplinares produzidas nestas duas décadas do séc. XXI identificam a recorrência da percepção de que a ideia de democracia está em crise. Sobretudo a partir do início da segunda década do século XXI sentimentos “antissistema” e “antiestablishment” explodem, mesmo em democracias amadurecidas. Há perda de confiança nas instituições democráticas representativas. A confiança nos partidos, nos políticos, nos governos e nos parlamentos despenca. O uso intensivo de fake news como instrumento de manipulação na política produz uma nova realidade digital polarizada. Adentra-se na era da pós-verdade (post-truth), classificada pelo Dicionário Oxford com a palavra do ano de 2016 na qual fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública que apelos às emoções e crença pessoal.
Múltiplos fatores ancoram tal percepção: a incapacidade de a democracia continuar mantendo a promessa de realizar justiça social e econômica, notadamente após a implosão do Welfare State que, por algumas décadas, conseguiu amainar as desigualdades através de implementação de políticas públicas sociais voltadas aos menos favorecidos; o desemprego estrutural resultante do desenvolvimento tecnológico que tem feito desaparecer milhares de postos de trabalho, inevitavelmente, com o crescimento do setor de serviços e cuidados, historicamente pior remunerados; perda da convicção no progresso material contínuo entre as gerações: a crença de que os filhos alcançariam melhores condições materiais que seus pais nunca esteve tão baixa; a estagnação das rendas mais baixas e aumento da desigualdade social, pela quebra do acordo de classes que vigeu nos países centrais desde o pós-guerra, onde os aumentos de salários acompanhavam de perto o aumento da produtividade e os sindicatos atuavam mantendo a paz nas relações capital – trabalho. Não por acaso com a chegada do neoliberalismo com Thatcher e Reagan os primeiros alvos foram os sindicatos (PRZEWORSKI, 2021).
Mesmo as graves crises econômicas que abalaram diversas economias, em particular, na periferia do capitalismo, nos anos 1980 e 1990, pareciam não afetar a consolidação da democracia e até mesmo os mecanismos de mercado eram aceitos, de maneira cada vez mais ampla, como necessários e inevitáveis.
Essa aparente coexistência pacificada entre capitalismo e democracia se vê abalada pela crise de 2008. A resposta do capitalismo à crise de 2008 ocorreu, por um lado, através de mudanças estruturais no desenvolvimento econômico, que consolidaram a plena hegemonia do capital financeiro neoliberal: plataformização3 cada vez mais acentuada da economia, desenvolvimento tecnológico, Internet e mídias sociais – estas sob a curadoria dos algoritmos definindo o que se consome -, economia de dados, com aumento das desigualdades sociais e ataques sem precedentes ao trabalho e aos direitos sociais, trabalhistas e previdenciários que lhe são inerentes. E por outro lado, demandando ações que negassem qualquer possibilidade de a ordem econômica ser interferida por decisões democráticas ou oriundas da maioria.
Neste quadro de agravamento das condições materiais, o avanço da tecnologia de Inteligência Artificial, a massificação da internet e das mídias sociais atuando em plataformas mudaram fundamentalmente a forma como as pessoas interagiam e se comunicavam, com potencial para otimizar a disseminação de informações, mas também de manipulação da opinião pública, notadamente em contextos eleitorais. Em 2023, havia 4,76 bilhões de usuários de redes sociais em todo o mundo, representando 60% da população mundial e mais de 90% dos usuários da Internet (KEMP, 2023). Entra em movimento uma grande transição global de um mundo analógico para um mundo digital, com a força avassaladora do crescimento das redes sociais e do seu poder de persuasão de grandes contingentes de pessoas, produzindo uma adesão ortodoxa a sentimentos e mentalidades baseadas em informações circulantes nas redes sociais, mais do que a temas ideológicos e a questões morais socialmente sedimentadas na cultura (CASTELLS, 2018). E, como consequência, há a perda de referências institucionais tradicionais e que, diante do quadro de destruição das conquistas civilizatórias e democráticas do pós-Segunda Guerra Mundial, gera respostas políticas de insatisfação, frustração, ressentimentos, rancores e inconformismos de parcelas cada vez maiores da população.
Um olhar acurado sobre como vem se incorporando a tecnologia IA nos diversos setores sociais e econômicos revela não apenas os graves e indevidos usos de dados pessoais para fins eleitorais e econômicos, mas explicitam os bastidores e as engrenagens de um capitalismo de dados cada vez mais feroz, e de um poderoso laboratório que, sob as interações online, captura, analisa e direciona imensos volumes de dados para aplicação de estratégias de modificação do comportamento humano. Eles não constituem, portanto, casos pontuais e isolados, mas sim uma nova lógica que entrelaça, de modo singular, corporações de tecnologia digital, ciência e sociedade (MANHEIM, 2019).
Com a perda de referências institucionais tradicionais e o acirramento da polarização ideológica as instituições democráticas foram perdendo a capacidade de absorver e regular os conflitos pacificamente e sinais visíveis de crise no regime começaram a surgir no horizonte, tais como: perda de apoio aos partidos estabelecidos, diminuição da confiança popular nas instituições democráticas e nos políticos, conflitos explícitos sobre instituições democráticas como o Poder Judiciário e, sobretudo, o avanço de líderes, partidos e movimentos de extrema direita que atuam promovendo valores autoritários que ameaçam as instituições democráticas, em especial estimulando o medo e a desconfiança nessas instituições o que, como sabido, deslegitima a representação política e, portanto, retira a força e a estabilidade das instituições que dão sustentação ao modelo político de representação e governança democráticas.
Importa anotar que, para a disseminação do medo e da desconfiança, líderes, partidos e movimentos da extrema-direita se beneficiaram e se beneficiam largamente do uso de fake news e do poder de manipulação das redes sociais. Os dados pessoais digitais e informações psíquicas e emocionais dos usuários são simultaneamente: a principal “moeda” do modelo de negócios que prevalece nas plataformas digitais; a fonte privilegiada de conhecimento de uma nova ciência de dados; e um meio de controle do comportamento, orientado para diferentes fins, do consumo ao voto (MANHEIM, 2019).
Estudiosos do tema têm chamado a atenção para uma consequência do uso intensivo de fake news: à medida que as notícias falsas competem com o mundo real no discurso popular, e muitas vezes o afastam, as pessoas se acostumam a escolher no que acreditar independentemente dos fatos (LEWANDOSWSKY; ECKER; COOK, 2017). Inaugura-se a era da pós-verdade, caracterizada pela indiferença a evidências factuais e científicas. Os fatos são desacreditados como fontes de informação para processamento cognitivo. Adentra-se no processo de construção de uma comunicação persuasiva de valores da extrema-direita, que pode ser também chamada de construção intencional da ignorância (LEWANDOWSKY, 2020). organizada a partir da construção de verdades inexistentes E esse tipo de manipulação informacional gera nova forma de polarização que se torna um fenômeno global. Explodem discursos de ódio e difamação, seja por indivíduos raivosos integrantes de bolhas digitais ou por milícias digitais. A política, como instrumento de mediação dos conflitos sociais, é criminalizada e o debate passa a ser travado, cada vez mais, em bolhas digitais.
Segundo Palmieri (2023), as bolhas digitais funcionam como “loopings comunicativos”, em que a reverberação de temas ou conteúdo em um mesmo grupo é constante. Essa dinâmica cria a ilusão de um debate plural e aberto, mas, na realidade, há uma ausência de diversidade ideológica; os usuários estão, de fato, apenas interagindo com perspectivas que reforçam suas próprias crenças pré-existentes.
Essa homogeneidade ideológica nas bolhas digitais limita a exposição dos indivíduos a diferentes pontos de vista, essencial para o exercício crítico e informado da cidadania. Além disso, pode amplificar discursos polarizados e extremistas, uma vez que informações contrárias são frequentemente excluídas ou desacreditadas dentro dessas bolhas. Isso pode enfraquecer o debate público, um pilar fundamental para a tomada de decisões democráticas informadas e equilibradas.
Neste cenário de difusão e defesa pela extrema-direita de agenda neoliberal e conservadora estimulando o individualismo e promovendo cenários de polarização política e reações, por vezes violentas, contra aqueles que reivindicam um mundo mais plural e mais democrático; de exacerbação das desigualdades e empobrecimento de parcelas cada vez maiores da população, suscitando ressentimentos, rancores e inconformismos que buscam formas de escape; de tentativas de deterioração das instituições e normas democráticas; de subversão sub-reptícia da democracia pelo uso de mecanismos legais democráticos para fins antidemocráticos, a defesa da democracia se impõe.
Isto ocorre porque a despeito de toda a disparidade no controle de recursos e na capacidade de influência sobre as decisões políticas antes, durante e depois dos processos eleitorais; ou do quadro de sub-representação de grupos minorizados politicamente, ainda assim, a democracia obriga que interesses de grupos diversos sejam em alguma medida levados em conta pelos detentores do poder. Com base nessa compreensão, é que a crítica feita ao modo de funcionamento da democracia em países capitalistas não pode significar que se deva considerá-la irrelevante (MIGUEL, 2020).
Tanto mais quando se considera o quadro de avanço da hegemonia neoliberal, do conservadorismo e da emergência e crescimento da extrema-direita, conforme será tratado no ponto a seguir.
2. A ATUAL CONFIGURAÇÃO DO NEOLIBERALISMO E A SUA RELAÇÃO COM O CONSERVADORISMO QUE ENGENDRA E CONFORMA A EXTREMA-DIREITA
Inicialmente, acentua-se que o neoliberalismo não é, unicamente, uma expressão contemporânea do modo capitalista de produção, não se limitando apenas às relações produtivas e ao conflito entre capital e trabalho, ainda que atravessado por diversas mediações. O neoliberalismo é algo que invade as relações sociais no nível mais profundo, tomando-se como racionalidade hegemônica. Não se trata, também, de uma simples restauração do capitalismo do século XIX e do liberalismo tradicional. Trata-se de uma nova lógica normativa orientadora de políticas e comportamentos, profundamente articulada à globalização e à financeirização do capitalismo (DARDOT; LAVAL, 2016).
Racionalidade entendida a partir de Weber (1994), como aquilo que qualifica o sentido da ação social. Em outras palavras, as ações são praticadas para que os objetivos predeterminados sejam atingidos. A qualidade intrínseca das ações não é questionada, mas seu maior ou menor concurso para atingir um determinado fim preestabelecido, independentemente do conteúdo que possam ter as ações em questão. Daí o entrelaçamento discursivo e político do ideário neoliberal e do conservadorismo religioso, numa contraditória tessitura entre crenças e falas aparentemente incompatíveis — por exemplo, o discurso antiaborto autoproclamado em defesa da vida e defesa de acesso amplo e irrestrito a armas de fogo (SILVA, 2023).
Com efeito, a confluência entre os discursos neoliberais e diversos discursos religiosos conservadores cristãos configura um padrão de discurso e de ação política da extrema-direita não apenas na América Latina, mas principalmente nos Estados Unidos e em países do continente europeu sob governos de extrema-direita, como a Hungria (VAGGIONE; MACHADO; BIROLLI, 2020).
Como é sabido, a crise de 2008 consolidou a plena hegemonia do capital financeiro e impulsionou os ataques sem precedentes ao trabalho, principalmente ao sujeito vivo do trabalho — a classe trabalhadora — e aos direitos sociais, trabalhistas e previdenciários que lhe são inerentes. Alguma resistência era esperada nos marcos de uma sociedade democrática.
Ocorre que, segundo Christian Laval e Pierre Dardot (2016), a lógica neoliberal – essa nova razão mundial que deve ser levada em consideração – demanda ações que neguem qualquer possibilidade de a ordem econômica ser interferida por decisões democráticas ou oriundas da maioria. Ou seja, a democracia perdeu importância diante da necessária reconfiguração da economia neoliberal.
Para Almeida (2020), a incapacidade do “discurso neoliberal clássico” de fornecer o suporte ideológico necessário para o estágio atual da economia capitalista e suas “práticas políticas brutais de extermínio e rebaixamento das condições de vida” é a chave para a virada para o neoconservadorismo, aqui entendido como o conservadorismo aliado ao neoliberalismo pós 2008.
Como o conservadorismo apresenta muitas nuances, entre as quais, nuances políticas, teóricas, sociais, econômicas, culturais, religiosas, até mesmo territoriais, funciona muito bem como frente de atuação de setores dominantes, eis que oferece um sistema de crenças coerente o suficiente para dar suporte ideológico e valorativo aos setores dominados, em especial pela sua característica peculiar de tentar de cristalizar as posições conservadoras como imanentes à “natureza humana”. Naturalizar e sacralizar uma determinada forma histórica na dimensão intangível e etérea de uma “forma de ser” do “ser humano”.
Nesta toada, o capitalismo neoliberal, na presente conjuntura, associa o desmonte de políticas públicas com a crescente culpabilização dos indivíduos e suas famílias. Partilha com o conservadorismo os preceitos relacionados à defesa dos valores tradicionais (especialmente a família patriarcal) e ao combate ao estado de bem-estar social e aos gastos públicos. Um exemplo que evidencia essa simbiose pode ser vista em organizações de extrema-direita, que defendem o retorno dos valores tradicionais e a prevalência do que chamam de diferenças naturais entre os indivíduos. Isso desencadeou uma verdadeira cruzada contra os direitos e justificou o ataque sistemático ao estado do bem estar social, considerado pelos apoiadores do neoliberalismo e do conservadorismo como a origem da crise econômica, pelo seu caráter intervencionista de promoção de políticas sociais, quanto moral, causada pelo abandono dos valores tradicionais que regem a sociedade desde os primórdios da civilização, levado a cabo em nome de um igualitarismo artificialmente criado pela intervenção estatal” (ALMEIDA, 2020).
Verifica-se que grandes pilares que dão sustentação à extrema-direita nos diversos países dialogam e são reforçados pelo conservadorismo:
a – promoção da desconfiança nas instituições e no sistema político – sob o argumento de criticar o afastamento das massas das decisões políticas, apregoa-se a antipolítica e o ataque às instituições; b – medo da possível destruição das comunidades, da identidade histórica da nação e dos modos estabelecidos de viver – com base nesse medo é que se colocam frontalmente contra a imigração, que levaria destruição da nação, e contra o “politicamente correto” que não seria senão uma forma de silenciar qualquer oposição; c – estímulo ao individualismo e à competição, através do fomento à sensação de privação relativa – o indivíduo estaria “ficando para trás” em relação aos outros, gerando o medo do futuro, a romantização de um passado inexistente e a visão de que as desigualdades próprias do capitalismo são um problema individual/familiar; e d – ataque sistemático aos partidos políticos, em especial aos mais tradicionalmente vinculados às pautas sociais inclusivas.
É importante anotar que o neoliberalismo, tanto como agenda político-econômica quanto como racionalidade, ostenta uma elasticidade teórica e operativa extremamente perversa e permeável, sendo capaz de, ao mesmo tempo, aliar-se ao conservadorismo religioso sem deixar de desenvolver uma faceta supostamente humanitária, fetichizando como mercadorias pautas legítimas de movimentos sociais. Para Fraser (2020), a análise dos processos socioeconômicos e políticos dos governos democratas de Clinton e Obama, revela a consolidação do desmantelamento neoliberal do Estado sob uma aparência progressista – “neoliberalismo progressista” -, em contraposição ao “neoliberalismo reacionário”, representado principalmente pelo Partido Republicano, que “[…] conciliava uma política neoliberal de distribuição similar com uma política de reconhecimento diferente, reacionária […]” (FRASER, 2020). A análise de Fraser é incidente sobre os EUA, mas aplica-se também aos demais países inseridos no capitalismo. A eleição de Donald Trump em 2024 pode dar sinais da inconsistência desse modelo.
E assim, a adoção de uma política interna baseada em distinguir amigos de inimigos, criando inimigos imaginários a serem impiedosamente combatidos (como o comunismo, por exemplo), a disseminação do pânico moral e a retórica da “ideologia de gênero” não assumem centralidade no discurso da extrema-direita senão por estratégia política.
Com base nessa mesma estratégia, a família é elevada ao status de principal alternativa de combate à ideologia de gênero, ao mesmo tempo em que a defesa da chamada família natural também está vinculada à desresponsabilização estatal; à privatização da proteção social; o fortalecimento do heteropatriarcalismo; e a deslegitimação e erosão dos espaços públicos e de participação, legitimando o desmonte neoliberal de políticas públicas
Mais recentemente, o uso das mídias sociais e a adoção da linguagem típica das mídias sociais provaram ser elementos centrais da estratégia de comunicação da extrema-direita e suas guerras. Trata-se de espalhar medo e ódio contra todos identificados como inimigos (Corrêa, 2021; Galego, 2020; Ramirez, 2020). Nesse cenário, a meme-ificação da vida e da política, por meio das redes sociais, mostra-se estratégica e central para a “banalização do ódio”, como destaca Solano (2018):
O discurso de ódio é apresentado, na maioria das vezes, como um meme, uma frase irreverente, uma piada que as pessoas não entendem como algo agressivo, violento e a ser rejeitado. Muito pelo contrário, é exagero e histeria dos grupos que se dizem atacados. A banalização do ódio. Onde muitos de nós vemos discurso de ódio, eles veem simplesmente uma maneira politicamente incorreta, grosseira e folclórica de dizer as coisas (Solano, 2018, p. 20).
Para Corrêa (2021, p. 136-ss), a ideologia de gênero emerge nessa conjuntura, e cumpre uma importante função como fantasma. Uma espécie de espantalho, continuamente evocado como ameaçador, e pondo em risco a família, o pensamento cristão e a própria humanidade. Constitui, portanto, a principal justificativa para as guerras sexuais e ofensivas antigênero, cujos principais alvos são os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e das pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, queer, intersexuais e assexuais (LGBTQIA+).
O principal objetivo político compartilhado pelos diversos grupos religiosos neoconservadores e neoliberais que usam a retórica da “ideologia de gênero” é controlar o Estado e suas instituições por meio dos próprios mecanismos eleitorais da democracia formal e, uma vez estabelecidos dentro dela, impor sua própria visão social e econômica (RAMIREZ, 2020). A atuação do governo Bolsonaro não deixa margem de dúvidas desde o primeiro momento.
E assim se verifica o entrelaçamento discursivo e político do ideário neoliberal e do conservadorismo religioso, promovendo falas aparentemente incompatíveis — por exemplo, o discurso antiaborto autoproclamado em defesa da vida e defesa de acesso amplo e irrestrito a armas de fogo -, mas que alcançam grande apoio de variados setores sociais, especialmente entre setores da economia neoliberal e setores religiosos moralistas. A despeito de a agenda político-econômica do neoliberalismo e setores do conservadorismo religioso cristão configurarem uma das mais perversas ofensivas a direitos na contemporaneidade.
Ainda, é preciso se atentar ao alerta de Fraser (2020) no sentido de se evitar ilusões com a incorporação de pautas ditas progressistas por setores da economia neoliberal, como se tem visto, por exemplo, na fetichização de pautas dos movimentos feministas, negros e LGBTQIA+ como mercadorias, conferindo-se uma nova roupagem à mesma lógica de exploração capitalista, ao mesmo tempo que a escalada neoliberal corrói direitos sociais e amplifica a pauperização da classe trabalhadora.
Um projeto político verdadeiramente progressista e que não sucumba rapidamente às investidas das alianças do neoliberalismo com os setores conservadores, concordando com Fraser (2020), deve partir de uma resposta concreta às demandas dos movimentos sociais de grupos oprimidos por questões de raça, sexualidade e gênero; e, também, de respostas à classe trabalhadora como um todo, considerando, principalmente, que a esmagadora maioria de quem integra referidos grupos oprimidos está na classe trabalhadora.
3. O ATAQUE SISTEMÁTICO AOS DIREITOS HUMANOS COMO ESTRATÉGIA COMUNICATIVA DA EXTREMA-DIREITA
Tal como a democracia, os direitos humanos são históricos, se constituem dentro de processos de luta pela consolidação de interesses de grupos sociais particulares. Tal como Bobbio expressa, existem diferentes direitos, de diversas índoles, muitas vezes incompatíveis entre si, que não nascem todos de uma vez, nem de uma vez por todas (BOBBIO, 2004, p. 25).
Teórica e politicamente a questão dos direitos humanos no Ocidente surge na Europa na passagem das formações sociais medievais para as modernas, e se expande para os territórios da América Latina e o Caribe nos processos de colonização. Sendo que a consolidação definitiva do discurso dos direitos humanos acontece a partir da Revolução Francesa e da Independência dos Estados Unidos de Norte América e das declarações de direitos e constituições nacionais que se seguem na Europa e na América.
O contexto histórico do qual emerge a concepção contemporânea de direitos humanos na cultura ocidental diz respeito a uma resposta jurídica a ações bárbaras de violação empreendidas no período da Segunda Guerra Mundial e remete ao reconhecimento da dignidade humana e à condição para uma ordem social e política justa.
Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU):
“Os direitos humanos são os direitos essenciais a todos os seres humanos, para que não haja discriminação por raça, cor, gênero, idioma, nacionalidade ou por qualquer outro motivo. Esses direitos podem ser civis ou políticos, como o direito à vida, à igualdade perante a lei e à liberdade de expressão. Podem também ser econômicos, sociais e culturais, como o direito ao trabalho e à educação e coletivos, como o direito ao desenvolvimento.”
Com 30 artigos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Resolução n. 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948 formaliza toda a elaboração teórica feita anteriormente em relação aos direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais e consagra a revisão da noção tradicional de soberania absoluta dos Estados e a sedimentação da ideia de que o indivíduo é sujeito de direitos protegidos na esfera internacional, se constituindo em marco inicial do desenvolvimento do direito internacional dos direitos humanos. Também fornece lastro axiológico para os demais dispositivos que se sobrevieram em meio ao processo de justicialização dos direitos humanos na ordem internacional: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, assim como uma série de outros tratados e convenções (PIOVESAN, 2011).
A Declaração de Direitos Humanos de Viena, de 1993, subscrita por 171 Estados, endossa a universalidade e a indivisibilidade dos direitos humanos, revigorando o lastro de legitimidade da chamada concepção contemporânea de direitos humanos introduzida pela Declaração de 1948, quando, em seu parágrafo 5º, afirma: “Todos os direitos humanos são universais, interdependentes e interrelacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos globalmente de forma justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase”.
Como bem pontua Comparato (2010), a relação entre democracia e direitos humanos é visceral, pois trata-se de realidades intimamente correlacionadas. Sem democracia, os direitos humanos, notadamente os econômicos e sociais, nunca são adequadamente respeitados, porque a realização de tais direitos implica a redução substancial do poder da minoria rica que domina o País. Como ninguém pode desconhecer, sem erradicar a pobreza e a marginalização social, com a concomitante redução das desigualdades sociais e regionais, como manda a Constituição (art. 3º, III), é impossível fazer funcionar regularmente o regime democrático, pois a maioria pobre é continuamente esmagada pela minoria rica. (COMPARATO, Fábio Konder. “A barreira da desigualdade”. In: Revista Carta Capital, ano XVI, nº 627, dez 2010, p. 60.)
Pela relação dos direitos humanos com a democracia e com a afirmação da dignidade humana, estão em permanente tensão com visões que sustentam desigualdades, exclusões e formas de dominação com origem no investimento ideológico da diferença.
Portanto, a construção discursiva dos direitos humanos, para além do âmbito normativo, se dá em suas mais variadas mobilizações práticas, envolvendo sujeitos e contextos reais. Esse conjunto de direitos pode ser “interpretado” de maneiras diversas, revestido de sentidos diferentes, em função de configurações de forças e lutas por poder. Assim, além de institutos jurídicos (e sobretudo nessa condição), os direitos humanos são discurso, são construções discursivas, mobilizados e (re)significados a serviço de projetos hegemônicos.
Os conservadores disputam a definição dos direitos humanos e, como consequência, tentam delimitar os limites do humano definindo quais vidas podem ser vividas e quais serão mantidas fora da igualdade jurídica. Com a instrumentalização das mídias sociais que, através da curadoria algorítmica que engendra bolhas digitais, colaboram com a emergência de vertentes políticas extremistas, os quais não possuem compromisso com a validação empírica dos dados e respeito aos Direitos Humanos.
Como já visto, a crise financeira de 2008 transbordou rapidamente da esfera financeira para as esferas fiscais, econômicas e, depois, para a política e a sociedade, chacoalhando governos, União Europeia, instituições do Estado de bem-estar social e, de certo modo, o próprio tecido da integração social. Desde o entre guerras, as pessoas das sociedades ocidentais não se sentiam tão expostas à instabilidade e à imprevisibilidade da ordem econômica e social – uma sensação de exposição que foi apenas ampliada e intensificada pela resposta de seus governos supostamente democráticos, que variaram da absoluta impotência à fria indiferença.
A angústia de um futuro incerto é experimentada individualmente, enquanto a reação é vivenciada de forma coletiva e marcada pelo ressentimento – um importante fenômeno das sociedades capitalistas. Castel (2004) refere-se ao ressentimento como “mistura de inveja e desprezo que atua sobre um diferencial de situação social e joga a responsabilidade da desgraça em cima ou embaixo na escala social” (p. 51). Trata-se, portanto, de uma frustração coletiva que busca responsáveis ou bodes expiatórios em outros grupos sociais.
No Brasil, tal como outros governos de extrema direita, o governo Bolsonaro foi marcado por um conjunto de retrocessos no cenário político e social, além do investimento em operações de linguagem discursiva no sentido de uma construção identitária constituída pelo sentido de um “Nós”, cuja marca distintiva fundamental é a adesão ao discurso autoritário em oposição a um “Eles”, que, neste processo de construção simbólica, é caracterizado como “o inimigo”.
A distinção entre o “nós” e o “eles” busca distinguir estes dois grupos a partir de características como: os “cidadãos de bem” são patriotas; defendem a verdadeira família, a família tradicional; são honestos e trabalhadores; acreditam na prosperidade resultante do trabalho e dedicação do indivíduo; defendem a instituição militar, uma vez que esta representa a ordem em meio à desagregação social, em meio à promiscuidade moral, à ameaça do comunismo, da ineficácia e corrupção do Estado, do “parasitismo” dos pobres e da violência dos criminosos que são acobertados por quem deveria puni-los.
Nesta lógica binária, os não cidadãos do bem ou mesmo os “cidadãos do mal” são identificados com os setores de esquerda e convertidos em “comunistas”, grevistas e desordeiros. São ainda aqueles que não trabalham por preguiça a fim de continuar recebendo benesses do Estado e também os corruptos na política. São identificados neste conjunto como pessoas que degradam os valores da família cristã e insubmissos ao império da ordem, da moral, dos bons costumes, à hierarquia e, não menos importante, são estes degenerados não tementes a Deus.
A escolha estratégica de atacar os direitos humanos e, dentre estes, os direitos sexuais e reprodutivos, condensados no ataque à “ideologia de gênero” se relaciona à defesa dos valores tradicionais (especialmente a família patriarcal), ao combate ao estado de bem-estar social e aos gastos públicos, e, ao mesmo tempo, reforçar a radicalização da sociedade, com a colaboração das redes sociais, devido ao alcance proporcionado por elas.
Veja-se que desde o Governo Temer essa política começa a ser implantada. O programa Criança Feliz (Decreto 8.869/2016), seguindo o modelo de família patriarcal, passa a responsabilidade dos cuidados com as crianças até 03 (três) anos exclusivamente para as famílias, bem como ignora a responsabilidade estatal com índices de mortalidade materna e infantil, reforçando a culpabilização da mulher pela situação de pobreza em que a família vive, fragilizando ainda mais os cuidados com as crianças ao instituí-los no âmbito doméstico e não em serviços qualificados para tal propósito.
A partir de 2019, a desmoralização dos direitos passa a fazer parte dos discursos dos membros do governo em plataformas digitais não oficiais. O argumento, desmoralizando os trabalhadores e pobres, é o corrente uso do termo “vagabundo” como denominação para todos os segmentos que estão fora do padrão burguês, heterossexual e branco, e principalmente os que recebem benefícios sociais como estratégia de sobrevivência e que são tratados como “vantagens recebidas”, numa intenção clara de estimular e reforçar a fé na meritocracia e na culpabilização das minorias pela desigualdade vivenciada, princípios do liberalismo.
Assim, a afirmação da diferença, a defesa da diversidade, o domínio das singularidades, da particularização são as marcas mais evidentes dos contextos de luta a favor dos direitos humanos. Hoje, representam os direitos das minorias, dos grupos marginalizados, daqueles que não têm direitos.
A extrema-direita brasileira, para garantir apoio popular, buscou elementos de uma memória histórica autoritária, elementos da cultura brasileira que reforçam valores tradicionais e excludentes, muito próprios de uma sociedade erigida sobre racismos diversos, sobre a violência do Estado, e uma religiosidade entrelaçada com valores profundamente individualistas. E assim o ódio, a intolerância ao diferente de si mesmo são ressignificados e convertidos em positividades, em elementos identitários que separam os “bons” dos “maus”.
Usando sentimentos como o medo e o ressentimento como instrumento de ação política, nomeou inimigos. Como ressalta Solano (2018) , para explorar o medo é necessário nomear o inimigo. A ideia de um inimigo é ainda mais eficaz em momentos de crises, como mostra a História.
Em fina articulação com tais sentimentos, dissemina um ideário conservador, articulado a uma concepção liberal de indivíduo, a qual concebe o sujeito não como parte de um coletivo, de um corpo social, mas reforça seu individualismo e as saídas individuais para a situação de pobreza e, de maneira efetiva, reforça a ideia de que políticas sociais do estado, de governos para os segmentos excluídos alimentam a “preguiça”, a “vagabundagem”, contribuem para o tráfico. A violência, o desamparo, o caos social encontram nestes “inimigos” a sua razão de ser. E os discursos que emanam da figura do presidente e de seus aliados políticos, contribuem para instaurar, legitimar, perpetuar assimetrias, exclusões e violências, demonstrando a íntima relação existente entre as representações postas em cena nos discursos e as disputas ideológicas em torno de projetos de poder.
Segundo Fairclough (2003, p. 129), a noção de discurso enquanto modo de representação de aspectos do mundo implica na constatação de que, por meio dos diferentes discursos, os atores sociais representam aspectos particulares do mundo de maneiras particulares.
Um exemplo concreto de ataque direto aos direitos humanos se extrai de um trecho do discurso de posse4 do Presidente Jair Bolsonaro:
“Também é urgente acabar com a ideologia que defende bandidos e criminaliza policiais, que levou o Brasil a viver o aumento dos índices de violência e do poder do crime organizado, que tira vidas de inocentes, destrói famílias e leva a insegurança a todos os lugares.”
Neste exemplo se verifica um gesto de apagamento do status jurídico dos direitos humanos. A escolha do processo verbal “acabar” demarca novamente a construção da representação do inimigo: a ideologia, uma certa ideologia. A oração subordinada com função de qualificadora do núcleo nominal “ideologia” evidencia ainda mais a estratégia discursiva em curso. A ideologia inimiga é, especificamente, aquela “que defende bandidos e criminaliza policiais”. Trata-se de alusão muito clara a uma visão recorrente no senso comum das pessoas que se orientam por uma visão ultraconservadora de mundo e que poderia ser traduzida na expressão popular: “bandido bom é bandido morto”. Novamente, os direitos humanos são esvaziados em seu conteúdo normativo.
Ao promover uma linguagem baseada na ansiedade sexual provocada pelas ameaças à masculinidade patriarcal e à família tradicional, ou seja, ao dever do homem de agir de acordo com o que a sociedade espera dele (STANLEY, 2019), estabelece-se uma regularidade enunciativa que constitui uma formação discursiva, isto é, um discurso (FOUCAULT, 1971).
Nesse contexto, os homens, já preocupados com a percepção de perda de status resultante do aumento da igualdade de gênero, podem facilmente entrar em pânico por conta de discursos demagógicos dirigidos contra as minorias sexuais (STANLEY, 2019)
Diante disso, é possível entender como o discurso de extrema-direita é beneficiado diante da política de ataques contra diferentes minorias sexuais, pela “ousadia” de querer contestar tal hegemonia masculina. Consequentemente, transgêneros e homossexuais, assim como a liberdade e igualdade de gênero, são utilizados para aumentar a ansiedade e o pânico sobre a ameaça aos papeis masculinos tradicionais (STANLEY, 2019),
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Estudos sobre as conexões entre a agenda conservadora e neoliberal pós 2008 que conformam as condições da emergência e a sustentação da extrema-direita, e em que medida tais agendas são conflitivas com os princípios democráticos e de direitos humanos, em crescente produção científica, abarcam análises multidisciplinares, contudo, apresentam certa imprecisão conceitual, eis que os termos “populismo de direita”, “extrema-direita” e “nova direita” são na maioria das vezes usadas indistintamente, embora a questão conceitual das terminologias seja objeto de relevante polêmica e disputa (MUDDE, 2019).
Neste trabalho há a utilização da terminologia “extrema-direita”, por adesão ao entendimento que a utilização do termo “populismo de direita” pode vir a amenizar o seu significado, promovendo uma falsa equivalência com um suposto “populismo de esquerda” (LOWY, 2014); assim como ao entendimento que, quanto à terminologia “nova direita”, alguns autores situam o seu surgimento ainda nos anos 1970 (ALMEIDA, 2020; CORRÊA E KALIL, 2020; PEREIRA, 2020), não dando conta de caracterizar o fenômeno político surgido no século XXI, pós crise de 2008. Reconhecendo a importância do tema, buscou-se apresentar questões que podem contribuir para alargar a sua compreensão.
Assim, o artigo tratou, inicialmente, de estabelecer uma visão panorâmica do cenário de respostas estruturais do neoliberalismo à crise de 2008 que aprofundaram a hegemonia neoliberal e a crise na chamada democracia representativa, consistente na perda de legitimidade política, pela incapacidade de manter as conquistas civilizatórias e democráticas do pós segunda guerra diante da maior ofensiva aos direitos conquistados na contemporaneidade.
Após, tratou-se da tensão permanente entre o neoliberalismo e a democracia representativa liberal, enfatizando-se o poder potencialmente manipulador das mídias sociais no comportamento humano, particularmente no político, em especial após a hegemonia das plataformas digitais, que estão sendo utilizadas para promover valores autoritários que ameaçam as instituições democráticas. Este aspecto da instrumentalização das plataformas digitais para uma comunicação persuasiva de valores da extrema-direita, que pode ser também chamada de construção intencional da ignorância (LEWANDOWSKY, 2020). organizada a partir da construção de verdades inexistentes é outro aspecto que merece maior atenção nas análises do fenômeno objeto do presente trabalho.
Pela relação dos direitos humanos com a democracia e com a afirmação da dignidade humana, e por estarem em permanente tensão com visões que sustentam desigualdades, exclusões e formas de dominação, tratou-se de verificar numa situação concreta, como se dá a construção de discursos que buscam , por um lado, promover e reforçar valores autoritários, mas também promover a deslegitimação dos direitos humanos. Neste ponto calha observar que, embora a presente análise tenha se concentrado justificadamente no comportamento discursivo do então presidente Bolsonaro, é importante não perder de vista o fato de que tal discurso é sustentado por uma infraestrutura de veículos de comunicação, sites e especialistas que compartilham e o apoiam, proporcionando um rápido e alargado alcance.
Por fim, fixe-se que a despeito de toda a crítica tecida à forma como a democracia é exercitada no país, a deterioração das instituições e normas democráticas, a subversão sub-reptícia da democracia pelo uso de mecanismos legais democráticos para fins antidemocráticos não interessa às classes populares e a defesa da democracia se impõe. Para os problemas da democracia, mais democracia!
2Conflitos são ordeiros quando os riscos oferecidos não são nem pequenos nem grandes demais. Pequenos demais ocorrem quando resultados eleitorais não têm consequência na vida das pessoas; grandes demais quando infligem custos intoleráveis aos perdedores.
3Aqui o emprego da tecnologia não é um expediente novo nos modelos de gestão das empresas. As inovações tecnológicas que contextualizam essas plataformas são bastante significativas, pois a tecnologia assume um papel de meio de organização e não apenas de ferramenta ou técnica acessória. O algoritmo viabiliza a gestão e operação com base em milhões de informações e dados, algo impossível para uma gestão humana.
4Disponível em: https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos/2019/discurso dopresidente-da-republica-jair-bolsonaro-durante-a-abertura-da-sessao-plenaria-do-forum economico-mundial2019
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1Graduada em Licenciatura em História- UFPI. Bacharelado em Direito – Instituto Camillo Filho. Mestrado em Ciência Política-UFPI. Advogada OAB-PI 16.826. E-mail: zelma_cavalcante@yahoo.com.br