BANDAS DE ESCRAVIZADOS NO BRASIL: ENTRE A DOMINAÇÃO CULTURAL E A RESISTÊNCIA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/pa10202502142318


Antonio Leandro Fagundes Sarno1


Resumo

O artigo “Bandas de Escravizados no Brasil: Entre a Dominação Cultural e a Resistência” investiga o papel da música na vida dos africanos escravizados no Brasil colonial e imperial. A pesquisa, de abordagem historiográfica e qualitativa, analisa documentos, relatos de viajantes e registros iconográficos para compreender a função das bandas formadas por escravizados, evidenciando sua dupla natureza: instrumento de imposição cultural e meio de resistência. A música, imposta pelos senhores, servia como entretenimento da elite, mas também permitia a manutenção de laços comunitários e a transmissão de saberes africanos. Alguns músicos conseguiram reconhecimento social e, em casos excepcionais, a alforria. O artigo destaca figuras como José Maurício Nunes Garcia e Manoel Tranquilino Bastos, cujas trajetórias exemplificam a musicalidade negra como forma de ascensão e ativismo político. A pesquisa aponta que, apesar de serem usadas como ferramentas de controle, as bandas de escravizados também representavam espaços de resistência e ressignificação cultural, desafiando a lógica escravista ao promover a inclusão e a valorização de músicos negros dentro de uma estrutura social opressiva.

Palavras-Chave: Bandas de Escravizados, Música, Resistência Cultural, Dominação Cultural, Ressignificação Cultural.

1. INTRODUÇÃO

A música desempenhou um papel central na vida dos africanos escravizados no Brasil. Além de servir como ferramenta de opressão, também foi um meio de resistência cultural. As bandas formadas por escravizados demonstram a existência de contradições no sistema escravocrata brasileiro, ao mesmo tempo em que mostram a circulação transatlântica de saberes. Os músicos que integravam essas bandas, subjugados pela violência escravocrata, foram obrigados a aprender expressões artísticas europeias.

O presente estudo adotou uma abordagem historiográfica e qualitativa, fundamentando-se na análise documental, iconográfica e bibliográfica sobre as bandas musicais compostas por escravizados no Brasil. Dentre as fontes, foram examinados os relatos de viajantes, documentos e registros da época que evidenciam a presença de músicos negros nos diferentes contextos sociais abordados. Além disso, foram analisadas representações visuais que retratam esses músicos e sua inserção na sociedade escravocrata brasileira.

O estudo também acaba dialogando com historiadores e musicólogos que investigam a relação entre música e escravidão, permitindo uma interpretação mais ampla dessas bandas de escravizados. Esse fenômeno não apenas ilustra a complexidade das dinâmicas sociais e culturais do período, mas também evidencia a apropriação e ressignificação de práticas artísticas em contextos marcados pela escravidão.

Este artigo, com base nos textos pesquisados, levanta dois problemas históricos e sociais: Até que ponto as bandas de música foram um meio de resistência ou um mecanismo de assimilação e controle? Os senhores viam nessas bandas um espaço de concessão ou um reforço de sua autoridade? A hipótese que se apresenta e que responde, temporariamente, estas duas perguntas é que a existência dessas bandas representava uma contradição dentro do sistema escravagista, pois ao mesmo tempo que consolidava a hegemonia escravocrata, também permitia que os escravizados desenvolvessem um espaço de resistência e, em alguns casos, alcançassem status social mais elevado dentro da ordem escravista.

Nesse sentido, os casos acima ilustram não apenas a inserção de escravizados em atividades artísticas, mas também a complexa rede de influências culturais e pedagógicas do período. A atuação dos jesuítas na formação musical, aliada à circulação transatlântica de saberes, revela como práticas europeias eram ressignificadas em contextos locais, mesmo sob o sistema escravocrata. As bandas de escravizados, além de servirem aos interesses das elites, emergem como um espaço paradoxal de expressão e subordinação, evidenciando a agência histórica desses músicos em meio a estruturas de dominação.

 Apesar da histórica conivência da Igreja Católica com o regime escravocrata, alguns músicos negros lograram transcender as barreiras impostas pela estrutura social vigente, conquistando notoriedade por meio de suas produções artísticas.

2. A MÚSICA NA ESCRAVIDÃO: ENTRE A SUBMISSÃO E A RESISTÊNCIA

Os africanos trazidos ao Brasil pertenciam a diferentes culturas, cada uma com as suas próprias tradições culturais. Nos períodos colonial e imperial, as bandas formadas por escravizados acabaram tendo um papel essencial na organização social das comunidades negras. Além de entreter os senhores e membros da elite, esses grupos musicais promoviam a coesão social, além de preservar a cultura afrodescendente. A participação nessas atividades culturais permitia a manutenção de laços comunitários e a transmissão de conhecimentos culturais através da oralidade, já que muitos não aprenderam ler partituras (Souza e Lima, 2007).

Forçados a abandonar sua dignidade e suas ricas tradições, os escravizados eram compelidos a tocar peças musicais europeias nos salões dos casarões de seus senhores. Esse cenário contava com a conivência da Igreja, que não apenas possuía escravizados, mas também legitimava sua exploração. Dentro da estrutura que sustentava a sociedade escravocrata, destaca-se o clero, uma elite que também se apropriou das riquezas geradas pelo trabalho escravizado e justificou essa opressão sob o pretexto de que “tudo era vontade de Deus”. Violências diárias, humilhações, castigos, desigualdades raciais e as condições desumanas das senzalas eram amplamente ignoradas pela maioria dos sacerdotes, que se mantinham como pilares da ordem escravocrata (Vaccari, 2021).  Affonso de Escragnolle Taunay (1876-1958), ao analisar essa experiência, destaca a surpresa do francês Laval diante da cena observada. Taunay questiona se o maestro encarregado da banda teria buscado ensinar aos músicos escravizados, trazidos à força para a costa baiana pelo tráfico transatlântico, a execução das composições europeias (Taunay, 1921).

A população negra escravizada no Brasil testemunhou a independência em 1822 sem ter a possibilidade de discutir ou conquistar a sua própria liberdade. Viram a antiga colônia romper com Portugal, mas foram proibidos de compartilhar o mesmo sonho de emancipação em relação aos seus proprietários. Embora fossem a base de sustentação do Império, alimentando a monarquia recém-empossada, os escravizados tiveram suas forças de trabalho exploradas para gerar riqueza. Privados dos bens que ajudaram a construir, os negros não desfrutavam das terras que cultivavam diariamente, e que tanto esforço lhes custava (Vaccari, 2021).

3. RELATOS HISTÓRICOS SOBRE AS BANDAS DE ESCRAVIZADOS

3.1 O RELATO DE FRANCISCO PYRARD DE LAVAL (1610)

Inicia-se o presente estudo com um relato de Francisco Pyrard de Laval (1578-1623), viajante francês que visitou a Bahia em 1610. Ele escreveu que conheceu um fazendeiro muito rico conhecido como “Bângala” que se destacou tanto em termos de riqueza e engenhos, quanto da posse de escravizados. Este fazendeiro “fôra capitão-general de Angola e lá fizera grandes campanhas contra o gentio, que o apellidara ‘Mangue La Bote’[…]” (Laval apud Maximiliano, 1958, p. 315).

Laval também escreveu que o fazendeiro:

“possuía banda de música de trinta figuras, todas de negros escravos, cujo regente era um francez, provençal. E como devesse ser melomano, queria que a todo o instante tocasse a sua orchestra, a accompanhar, ainda, uma massa choral” (Laval apud Maximiliano, 1958, p. 316).

Durante os períodos colonial e imperial, era comum que os senhores de engenho e membros das elites cafeeiras possuíssem bandas compostas por escravizados, cujo repertório era majoritariamente europeu. Ao observar esse cenário, particularmente o que foi protagonizado pelo fazendeiro “Bângala” na Bahia, Laval registrou a sua impressão:

“Eis ahi uma nota pittoresca para a história da Música no Brasil, esta feição do dilettante seiscentista, sumptuoso e maníaco, vivendo no meio de tiorbas e alaúdes vibrados por mãos angolezas […]” (Laval apud Maximiliano, 1958, p. 317).

Laval mostrou uma realidade da escravidão que é pouco conhecida, pois além de atuarem forçadamente como trabalhadores do campo, empregados domésticos ou tratadores de animais, alguns escravizados foram utilizados como músicos para o puro deleite e entretenimento de seus “donos”.

Figura 01 – Registro de J. B. Debret (século XVIII) retratando escravos com diferentes instrumentos musicais – Fonte: https://musicabrasilis.org.br/noticias/exposicao-musica-brasilis-visita-ipatinga-mg

Na figura 01 (acima) é possível ver um grupo de escravizados caminhando descalços pelas ruas, com dois músicos tocando um instrumento africano chamado kalimba e um terceiro tocando um instrumento rítmico, onde um pedaço de madeira era friccionado em uma madeira maior, com um formato de serrote. A kalimba é classificado como um lamelofone, encontrado em diversos países do continente africano. Este registro de Debret no século XVIII demonstra que este foi um dos instrumentos trazidos ao Brasil pelos escravizados africanos (Farias e Gomes, 2022).

A música, associada à sofisticação e ao status social, eram um meio pelo qual a elite colonial se distanciava das classes mais baixas, ao mesmo tempo que utilizava a força de trabalho escravizada para sua própria diversão e prestígio. A banda, regida por um músico europeu, com um repertório majoritariamente europeu, sugere que a elite da época não apenas valorizava a música europeia, mas também impunha essas práticas culturais aos escravizados, que, mesmo privados da liberdade, se viam forçados a se adaptar a um repertório europeu. Isso acaba refletindo a complexidade das relações sociais e culturais construídas na época, já que a música acabava servindo como uma ferramenta de dominação e exibição de poder.

3.2 AS BANDAS DE BARBEIROS

Ao longo dos séculos de escravidão no Brasil, os povos da África e seus descendentes continuaram a ter uma participação ativa nas bandas de música. Membro da Irmandade do Bom Jesus das Necessidades e Redenção (IBJNR), composta por negros milicianos da então cidade de São Salvador da Bahia, chegaram a exercer o ofício de regentes nas orquestras dos barbeiros entre os séculos XVIII e XIX. Diversos documentos, tais como recibos de pagamento, foram encontrados em arquivos das igrejas, santas casas, conventos e capelas de Salvador, na Bahia. Esses mesmos documentos comprovam que, entre os anos de 1750 e 1885, “os barbeiros participaram das festas, novenas e procissões e recebiam pela Muzica da porta, feita com timbales, trombetas, oboé e tambores” (Schwebel, 1987, p. 7).

O destaque para os membros da irmandade, composta por negros milicianos e sua atuação nas orquestras dos barbeiros, acaba revelando uma complexa rede de relações sociais em que os negros, mesmo em um contexto de subordinação e segregação, eram parte da vida religiosa e cultura da cidade. Também havia uma fusão de práticas populares e profissionais, na qual a música se tornava uma forma de expressão coletiva e de visibilidade social.

3.3 A BANDA DE DONA RAIMUNDA PORCINA DE JESUS (“OS CHAPADISTAS”)

As famosas bandas de barbeiros foram se extinguindo com o tempo, sobretudo com o surgimento de outras organizações musicais mais sofisticadas, como a banda de música de Dona Raymunda Porcina de Jesus (1825-1887), uma mulher rica, natural de Rio do Pardo, em Minas Gerais, que seguiu para a Bahia pela rota do ouro, passando por Mucugê, na Chapada Diamantina, até estabelecer-se em Salvador. Durante anos, ela manteve uma banda formada por seus escravizados, frequentemente contratada para tocar em festas de largo, festas de santo e outros eventos públicos da cidade. A banda, conhecida como “os chapadistas”, tinha “bom mestre, era numerosa, dispunha de bons instrumentos e grande e variado repertório” (Carvalho Filho, 1945, p. 7).

Figura 02 – Banda “Os Chapadistas” de Raimunda Porcina de Jesus
Fonte: Nelson Cadena, IBAHIA BLOGS.
Disponível em: http://blogs.ibahia.com/a/blogs/memoriasdabahia/2017/03/10/raimunda-porcina-acozinheira-que-montou-uma-orquestra-de-escravos-para-animar-as-festas-populares-da-bahia/

A banda, batizada em homenagem à própria Chapadista – como era conhecida Dona Raymunda Porcina de Jesus –, nunca aprendeu a ler partituras, pois executava as músicas “de ouvido”. Ainda assim, era capaz de reproduzir com maestria os ensaios das Filarmônicas de Salvador, bem como das bandas marciais da polícia e do exército, sob a regência de músicos altamente qualificados (Santiago, 1968).

A banda de Dona Raymunda evidencia importantes elementos sobre as dinâmicas culturais e sociais da época, além de ilustrar a evolução da música popular no Brasil do século XIX, especialmente no contexto da cidade de Salvador, com forte influência de manifestações culturais afro-brasileiras. A banda de “chapadistas”, formada por escravizados, executava peças complexas, incluindo aquelas dos repertórios das Filarmônicas de Salvador, sem, contudo, dominar a leitura de partituras. Esse fato aponta para uma realidade em que a musicalidade dos escravizados, adquirida muitas vezes por meio de transmissão oral e da prática diária, não era considerada inferior, mesmo sem o aprendizado da leitura musical. A habilidade de “tocar de ouvido” demonstra não só a destreza e técnica adquirida pelos escravizados, mas também uma forma de resistência e adaptação diante das limitações impostas pelo regime escravocrata.

3.4 A BANDA DE MARIA BENEDITA GONÇALVES MARTINS

Além da existência das bandas de escravizados na Bahia e em Minas Gerais, cabe destacar outro registro histórico relevante relacionado a uma banda formada por escravizados, desta vez na cidade de Penedo (RJ), localizada no sopé da Serra da Mantiqueira, com proeminente vista para o Vale do Paraíba. Nesse contexto, destaca-se a Fazenda Casarão Penedo, cuja proprietária durante seu período áureo foi Maria Benedita Gonçalves Martins (1809-1881), figura emblemática conhecida como a “Rainha do Café”. Apesar de analfabeta, Maria Benedita demonstrava notável apreço por atividades culturais, promovendo frequentemente eventos sociais de grande porte em sua propriedade. Tais ocasiões eram animadas por uma orquestra singular, composta por escravizados que, sob instrução de mestres europeus, adquiriram habilidades musicais formais, incluindo a leitura de partituras (Arquivo Histórico Municipal de Resende, 2009).

A menção à formação musical dos escravizados na Fazenda Casarão é um ponto relevante desta pesquisa, pois evidencia a formação de músicos escravizados que, apesar de estarem sob regime de subordinação plena, conseguiam adquirir habilidades culturais e artísticas de origem europeia, incluindo a leitura de partituras. A instrução por mestres europeus ressalta as relações de poder e a apropriação de saberes dentro da própria dinâmica colonial, onde o conhecimento europeu era considerado superior, mas também há um destaque importante sobre a resiliência e adaptação dos escravizados, que muitas vezes se apropriavam das técnicas e saberes para se expressar de formas criativas.

Já a figura de Maria Benedita como uma mulher analfabeta, mas com uma grande apreciação por eventos culturais, traz uma interessante dicotomia entre o valor dado à cultura e as limitações sociais de uma mulher no contexto do século XIX. A história dessa orquestra de escravizados se insere em um debate mais amplo sobre a apropriação e a resistência cultural no Brasil colonial e imperial.

3.5 A BANDA DE LUÍS ANTÔNIO ALMEIDA

A historiadora Rosa Maria Zamith (2011) registrou uma relevante contribuição sobre as práticas culturais de grupos escravizados no Rio de Janeiro do século XIX, destacando a existência de uma banda musical integrada por negros e mestiços cativos. Conforme destaca a autora, esses músicos atuavam em espaços urbanos e rurais, vinculados a elites abastadas, como no caso da banda mantida por Antônio Luís de Almeida. Atuante na cidade de Bananal (SP) — localidade próxima ao estado do Rio de Janeiro —, o grupo era popularmente conhecido como “Banda do Tio Antoniquinho” e conduzido pelo maestro Wiltem Sholtz. Entre seus integrantes, destacavam-se os escravizados Bernardo e Eduardo, vinculados à Fazenda Santa Cruz, antiga propriedade jesuítica. Os religiosos, conforme aponta Zamith, foram responsáveis pela formação musical desses indivíduos, instruindo-os em técnicas instrumentais e teoria musical (Zamith, 2011, p. 83).

Figura 03 – Banda de Escravos. Fonte: Luiz Cleber Moreira Freire, “NEM TANTO AO MAR NEM TANTO À TERRA”, Agropecuária, escravidão e riqueza em Feira de Santana – 1850-1888, P. 108. Coleção família Almeida Valim. In. Revista de História da Biblioteca Nacional. nº 2 , Rio de Janeiro, 2005, p. 64. Disponível em: http://ginasiosantanopolis.blogspot.com/2016/10/banda-de-musica-de-escravos.html

A banda de Antônio Luís de Almeida (Tio Antoniquinho) agradou tanto a sociedade da época que D. Pedro II determinou que a Casa Imperial pagasse pela aquisição de partituras, métodos, cadernos de música, além de aquisição e manutenção dos instrumentos musicais desta orquestra composta por negros escravizados. Assim, poderiam continuar executando o repertório eclético, que era apreciado por D. Pedro II e pela Imperatriz (LABHOI – Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense, 2018).

Ilana Peliciari Rocha (2011), na sua tese de Doutorado realizada na USP (Universidade de São Paulo) em 2012, confirma a existência da banda de Antônio Luís de Almeida, afirmando que o mesmo possuía escravos músicos, havendo: “[…] um movimento específico de deslocamento de escravos e uma condição com características próprias derivadas da profissão de músico” (Rocha, 2011, p. 51).Segundo ela, havia nesta mesma Fazenda Santa Cruz uma escrava chamada Virginia Maria que, com apenas 22 anos de idade, foi alforriada por ser musicista.

A música, nesse contexto, não apenas representava um aprendizado técnico, mas também funcionava como uma forma de socialização e uma estratégia de adaptação à realidade colonial, onde os escravizados eram forçados a se submeter a um contexto de domínio e controle. A formação musical realizada pelos jesuítas trouxe à tona a dualidade da experiência dos escravizados: ao mesmo tempo que se viam privados de sua liberdade, acabavam tendo acesso a um aprendizado que lhes permitia obter algum reconhecimento social, embora dentro dos limites que eram impostos pela sociedade escravocrata.

4. A MÚSICA COMO FERRAMENTA DE MOBILIZAÇÃO POLÍTICA

Um caso emblemático é o do padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), mulato carioca, descendente de escravizados, que se destacou como compositor, regente, multi-instrumentista e pedagogo musical. Sua obra, profundamente influenciada pelo Classicismo Vienense de Haydn e Mozart, sintetizava a apropriação de modelos europeus em diálogo com a realidade colonial brasileira (Vaccari, 2021). Segundo o autor, sua trajetória personificou o fenômeno do Mulatismo Musical, movimento que articulava ascensão social de mestiços por meio da excelência artística, ainda que dentro de um sistema permeado por hierarquias raciais.

Figura 04 – Na gravura de Thomas Ewbank acima, publicada em Vida no Brasil, podemos ver uma banda composta por negros que tocam bumbo, trompa, flauta ou clarinete e um instrumento que parece uma corneta ou um clarim. Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-83092017000100302

Nesse contexto, também emerge a figura de Manoel Tranquilino Bastos (1850-1935), maestro natural de Cachoeira (BA), filho de pai português e mãe alforriada. Desde a infância, Tranquilino demonstrou aptidão musical, integrando o Coro de Santa Cecília e dominando instrumentos como a clarineta. Sua atuação extrapolou a esfera artística: conhecido como “Maestro da Abolição”, liderou movimentos antiescravistas, compondo peças como o Hino Abolicionista e Airosa Passeata. Esta última foi executada em 13 de maio de 1888, durante um emblemático desfile de sua Filarmônica Euterpe Ceciliana – composta majoritariamente por músicos negros –, que reuniu mais de duas mil pessoas, em sua maioria recém-libertos, nas ruas de Cachoeira. Ramos (2011) descreve a cena como um ato político sonoro: a multidão, em êxtase, seguia a banda aos gritos de “Viva a liberdade!”, culminando em uma sessão solene na Praça 25 de Junho, símbolo de resistência e celebração coletiva.

O legado de Tranquilino Bastos vai além da música – que inclui 295 dobrados, 150 marchas festivas e transcrições de óperas para bandas marciais (Lyra Popular, 2021). Ele também se destacou como intelectual engajado, usando a imprensa para denunciar o racismo estrutural, o coronelismo e a repressão ao Candomblé. Além disso, se posicionou contra o militarismo e o golpe republicano de 1889. Sua defesa da liberdade religiosa e sua adesão ao espiritismo desafiavam o conservadorismo católico da época (Vapor de Cachoeira, 2011).

Essas trajetórias evidenciam a complexa interseção entre arte, política e identidade no Brasil oitocentista. Enquanto José Maurício negociava seu espaço em um ambiente elitista por meio da excelência técnica, Tranquilino utilizava a música como ferramenta de mobilização social, articulando cultura e ativismo. Ambos, cada um à sua maneira, subverteram as expectativas de um sistema que buscava reduzir negros e mestiços à condição de corpos subjugados, demonstrando que a produção cultural pode ser tanto um reflexo de dominação quanto um instrumento de agência histórica.

5. CONCLUSÃO

As bandas musicais formadas por pessoas escravizadas no Brasil colonial e imperial mostram como a música foi, ao mesmo tempo, um meio de imposição cultural e uma forma de resistência. Embora fossem usadas pelas elites como entretenimento e demonstração de poder, essas bandas também ajudaram a preservar a cultura africana e, em alguns casos, possibilitaram que seus integrantes conquistassem algum reconhecimento social.

Este artigo demonstrou que a música, apesar de muitas vezes ser imposta aos escravizados, tornou-se um instrumento de expressão e identidade. Muitos músicos desenvolveram habilidades sofisticadas e, em algumas situações, conseguiram obter reconhecimento e até mesmo a liberdade, como no caso de Virginia Maria e Antônio Luís de Almeida. Registros históricos e iconográficos mostram que a prática musical serviu tanto para reforçar a estrutura escravista quanto para fortalecer laços comunitários e culturais.

A partir disso, surge um questionamento: até que ponto as bandas musicais foram um instrumento de controle ou uma forma de resistência dentro do sistema escravocrata? Os dados sugerem que, apesar de serem utilizadas para reforçar a cultura europeia, essas bandas também criaram espaços de trocas culturais e resistência.

Além disso, o estudo mostrou como algumas instituições religiosas desempenharam um papel contraditório: ao mesmo tempo em que exploravam músicos escravizados, também registraram e valorizaram suas contribuições artísticas. Figuras como Manoel Tranquilino Bastos e José Maurício Nunes Garcia são exemplos de como a música também foi usada como ferramenta de mobilização política e resistência.

Dessa forma, pode-se concluir que as bandas de escravizados são um exemplo das contradições do sistema escravista. Enquanto serviam para reforçar a cultura dominante, também representavam um meio de resistência e fortalecimento da identidade negra. Esse tema nos leva a refletir sobre como a cultura e a arte podem, ao mesmo tempo, ser usadas para manter estruturas de poder e para questioná-las, deixando marcas importantes na história da música brasileira.

REFERÊNCIAS:

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1 Advogado, Especialista em Gestão Pública Municipal pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Regente da Associação Cultural Filarmônica 26 de Junho da Cidade de Poções – Bahia, Consultor jurídico da Sociedade do Culto Afro-Brasileiro de Poções e Microrregião – SOCAB, Servidor Público Municipal vinculado à Secretaria Municipal de Educação de Poções – Bahia.