A DILUIÇÃO DOS DIREITOS DE PROTEÇÃO NA ERA DO BIG DATA: UMA ANÁLISE SOB A ÓTICA DO DIREITO DO CONSUMIDOR

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202501291817


Weider Silva Pinheiro
Ytalo Bertolino de Jesus
Elisângela Ferreira da Silva
Isabela Marques Mendanha de Oliveira


RESUMO: O Direito se modifica na medida em que a própria sociedade se modifica em relação as maneiras, usos e formas com as quais os indivíduos submetidos se relacionam, e considerando a rapidez das modificações sociais propiciada pela Era Digital, tais transformações passam a ocorrer em velocidade muito mais célere do que o Direito consegue acompanhar — com especial impacto no que diz respeito à obtenção de dados pessoais pelas Big Tech’s sem que haja um conhecimento real quanto aos motivos dessas obtenções ou mesmo eventuais usos futuros. Entendendo tal problemática, o objetivo do presente artigo é discutir, no âmbito do Direito do Consumidor, a diluição dos direitos de proteção na Era Digital, considerando que há, nesse cenário, a virtualização da personalidade jurídica do consumidor e a produção massiva de dados correlatos à sua navegação e preferências online. Compreender que a coleta, armazenamento, tratamento e comercialização de dados virtuais, cujo usuário é ao mesmo tempo dono e produtor desses dados, é em si mesma a própria modificação dos antigos padrões de produção, consumo, mais valia e comércio, é fator essencial para o Direito enquanto ciência humana e para a execução de seu motivo de ser, não apenas para pacificação social, mas também como mantenedor de uma sociedade justa e livre de opressões, sendo este um tema não só relativo à proteção de direitos individuais e coletivos, mas correlato ainda à questões de geopolítica estratégica.

Palavras-chave: Direito da Personalidade; Era Digital; Relações de Consumo; LGPD.

ABSTRACT: The law changes as society itself changes in terms of the ways, uses and forms with which individuals interact, and considering the rapidity of social changes brought about by the Digital Age, such transformations are occurring at a much faster rate than the law can keep up with — with a special impact on the acquisition of personal data by Big Tech’s without any real knowledge of the reasons for such acquisition or even possible future uses. Understanding this problem, the objective of this article is to discuss, within the scope of Consumer Law, the dilution of protection rights in the Digital Age, considering that, in this scenario, there is the virtualization of the consumer’s legal personality and the massive production of data related to their online browsing and preferences. Understanding that the collection, storage, processing and commercialization of virtual data, whose user is at the same time the owner and producer of this data, is in itself the modification of the old patterns of production, consumption, added value and commerce, is an essential factor for Law as a human science and for the execution of its reason for being, not only for social pacification, but also as a maintainer of a fair society free from oppression, this being a theme not only related to the protection of individual and collective rights, but also related to questions of strategic geopolitics.

Keywords: Personality Rights; Digital Era; Consumer Relations; LGPD.

INTRODUÇÃO

O Direito, como ciência humana, se modifica na medida em que a própria sociedade que lhe dá forma e que a ele se submete se modifica em relação as maneiras, usos e formas com as quais os indivíduos submetidos se relacionam. Ou seja, de forma prática, as leis surgem depois do comportamento humano já se ter formalizado no universo prático (Basan, 2021).

Com efeito, pode-se qualificar o Direito como fechado do ponto de vista normativo porém aberto do ponto de vista epistemológico, isto é, o Direito é fechado em seu subsistema normativo, mas necessariamente aberto em seu funcionamento ao interagir com os outros subsistemas, como o político e o econômico, por exemplo. Sendo assim, o Direito necessariamente reage às transformações sociais ocorridas em outros subsistemas, em razão das mudanças de valores sociais (Basan, 2021, p. 46).

Essa característica do Direito é tão marcante que, inclusive, se vê materializada na norma constitucional, em que temos a eficácia das leis como elemento anterior ao fato concreto, logo, figurando não o fato, mas a existência prévia da lei como fator sine qua non para a regulação das relações humanas e para a imposição de penas, tal qual se verifica no inciso XXXIX do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, que afirma: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” (Brasil, 1988, art. 5°, inc. XXXIX).

É a consagração, no texto constitucional, do princípio da Legalidade e reafirmada no Código Penal:

Art. 2º – Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória.

Parágrafo único – A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos interiores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado (Brasil, 1984, art. 2°).

Assim posto, não resta dúvida que há, em virtude da necessária oferta de condição de previsibilidade acerca das próprias ações, por parte dos indivíduos, uma discrepância temporal em relação às atividades humanas realizadas no cotidiano e as condições fáticas de o Estado, através de seus agentes e poder judiciário em fornecer proteção aos cidadãos em todas as suas relações.

Essa discrepância parte do pressuposto necessário de que, para que um cidadão possa evitar cometer um crime ou ato lesivo ao direito, ele precisa ao menos ter podido saber que este crime ou este ato é passível de pena, e sobre este conceito inicial o princípio da Legalidade é perfeito, ainda mais que prioriza a retroatividade da lei apenas em proveito do Réu, ou daquele que tenha perpetrado um ato que antes era ilegal ou passível de condenação, mas que ante nova lei, o deixou de ser.

Mas é justamente nessa discrepância temporal que incide a problemática trazida pela Era digital, em que as transformações sociais passam a ocorrer em velocidade muito mais célere do que o Direito consegue acompanhar — logo, entrando justamente em conflito com outro princípio constitucional, que é o princípio da inafastabilidade de jurisdição, consagrado no Inciso XXXV da Constituição Federal de 1988: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (Brasil, 1988, art. 5°, inc. XXXV).

Ocorre que, uma ausência de lei que regule uma dada atividade, acaba por provocar exatamente a não apreciação, senão após o ato já cometido, e tal questão se turva ainda mais quando o ato se trata de algo relativamente indeterminado, como no caso da obtenção de dados pessoais patrocinados pelas Big Tech’s (grandes empresas de tecnologia) sem que haja um conhecimento real quanto aos motivos dessas obtenções ou mesmo eventuais usos futuros (Gonçalves Júnior; Basan, 2022).

Entendendo tal problemática, o objetivo do presente artigo é discutir, no âmbito do Direito do Consumidor, a diluição dos direitos de proteção na Era Digital.

VIRTUALIZAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DO CONSUMIDOR

É relativamente pacífico o entendimento de que a pessoa virtual, ou seja, a interação realizada por pessoa física ou jurídica em ambiente virtual, esteja sob o mesmo sistema normativo de proteção, garantias e alcance jurisdicional do Estado.

Entretanto, fato é que, para se virtualizar, ou seja, para fazer parte deste ambiente virtual global, sem limitações físicas ou simbólicas de, por exemplo, fronteiras, o indivíduo precisa fornecer uma série de informações pessoais que, na prática, conduzem estes indivíduos a tacitamente concordarem em ter os dados produzidos por suas navegações coletados, armazenados e comercializados sem a necessária ciência das implicações vindouras, como observa Gonçalves Júnior e Basan (2022, p. 2):

No entanto, esse avanço traz consigo um ponto negativo: os aplicativos de smartphones estão espionando seus usuários, a partir da coleta obscura de dados pessoais e da individualização de perfis pelos algoritmos de inteligência artificial. Com posse dessas informações, as empresas oferecem esses perfis nos mercados digitais, para criação de publicidades personalizadas a cada nicho de consumo, carecendo de legislações que consigam conter o abuso dessas relações.

O mero armazenamento destes dados, unicamente em virtude de utilização para oferecimento de campanhas publicitárias, já seria um abuso de poder econômico — e poderíamos até mesmo estar diante uma nova modalidade de venda casada continuada, uma vez que o direcionamento ao consumo é ofertado em virtude da captura anterior de dados ao adquirir produto ou serviço de tecnologia.

O instituto da venda casada é proibido pelo Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC), que qualifica a modalidade como infração de ordem econômica, conforme descrito na Lei n° 12.529/2011:

Art. 36. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: 

I – limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; 

II – dominar mercado relevante de bens ou serviços; 

III – aumentar arbitrariamente os lucros; e 

IV – exercer de forma abusiva posição dominante. 

§ 1o A conquista de mercado resultante de processo natural fundado na maior eficiência de agente econômico em relação a seus competidores não caracteriza o ilícito previsto no inciso II do caput deste artigo. 

§ 2o Presume-se posição dominante sempre que uma empresa ou grupo de empresas for capaz de alterar unilateral ou coordenadamente as condições de mercado ou quando controlar 20% (vinte por cento) ou mais do mercado relevante, podendo este percentual ser alterado pelo Cade para setores específicos da economia. […]

(Brasil, 2011, art. 36).

É óbvio que uma pessoa, quando adquire um bem de natureza tecnológica, quer seja um computador, um aparelho celular, um relógio, ou mesmo um produto tecnológico outro, como um aplicativo, não estará sendo, necessariamente, embora também aconteça, obrigado a eventualmente comprar outro produto oferecido em virtude da captura de suas ações e preferências realizadas através destes equipamentos — captadas e armazenadas pelas empresas produtoras destes itens de consumo.

Ocorre que também essas pessoas não concordaram em receber propagandas baseadas em seus estilos de consumo e rotinas de navegação. Na verdade, a simples discussão acerca do fato de haver a propaganda direcionada, também chamada de algorítmica, apenas reforça a afirmação de já haver a ocorrência sistemática de tal conduto, sem que haja, no entanto, a legislação que regule tal modalidade com eficácia. Como descrito por Ié, Araújo e Nunes (2024, p. 2):

Com o surgimento das redes sociais como poderosas ferramentas de comunicação e interação social, a publicidade digital se tornou essencial para sustentar essas plataformas. Salienta-se que os algoritmos, por sua vez, têm sido utilizados para segmentar os usuários e exibir anúncios personalizados, coletando uma vasta quantidade de informações sobre seus comportamentos e preferências.

No entanto, essa exploração algorítmica traz consigo questões éticas e de privacidade, tais como a manipulação da opinião pública e a criação de bolhas de informação, nas quais os usuários são expostos apenas a conteúdos que reforçam suas próprias crenças e visões de mundo.

Ora, a pretensão era adquirir um produto que lhe desse acesso ao um rol de comerciantes futuros, ou seja, uma simples ferramenta de consulta, que se transforma na verdade em um direcionador deste mesmo consumo vindouro.

Dito isso, é preciso ter em mente também o caráter pretensamente gratuito da maioria destes serviços ou aplicativos, muitos dos quais já instalados de fábrica pelos produtores dos aparelhos, havendo que se perguntar qual seja o produto que dá origem a manutenção financeira desses mesmos aplicativos, que não é outro senão a comercialização de potêncial de compra aferido através do tratamento de dados obtidos em permissão dos usuários, o que vai de encontro a vedação legal da Lei 12.529/2011 em seu Inciso II e III do parágrafo 3º do artigo 36:

II – promover, obter ou influenciar a adoção de conduta comercial uniforme ou concertada entre concorrentes; 

III – limitar ou impedir o acesso de novas empresas ao mercado;

(Brasil, 2011, art. 36, § 3°, inc. II e III).

É defeso pensar que o oferecimento destes dados, que aqui, na relação entre as empresas que obtém tais dados as empresas que ofertam seus produtos, gere uma situação que impacta diretamente na livre concorrência, uma vez que o oferecimento dessa potencialidade de consumo se dá unilateralmente pelas empresas de tecnologia que, ao deter a primazia destes dados, limita a seu bel prazer ou conveniências uma dada parcela de público consumidor a uma determinada parcela de empresas, seus clientes.

Afinal, os dados monitorados e coletados por aplicativos, em grande parte são revertidos em lucros pela venda às empresas de consumo ou Comunicação, que por meio da inteligência artificial traça a personalidade do indivíduo e o bombardeia com dezenas de informações e relações consumistas, que saem de sua intimidade, retiram sua privacidade e inibem o seu sossego (BASAN, 2021), tornando-os hipossuficientes frente à essa grande arquitetura de convencimento e ilusão (Gonçalves Júnior; Basan, 2022, p. 4).

Essa relação coloca o consumidor final, na verdade, na dúplice figura de ser ele mesmo o consumidor e o produto comercializado, na medida em que os dados por ele produzidos, que perfazem, de outra forma, uma extensão de sua personalidade jurídica no ambiente virtual, o produto comercializado que tem por fim o induzimento da compra dos produtos e serviços oferecidos pelos clientes das empresas que recolheram tais dados, em flagrante desrespeito ao princípio da Liberdade de Escolha defendido pelo Código de Defesa do Consumidor:

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

[…]

  II – a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações;

III – a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;  

IV – a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços;

VI – a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos;

VII – o acesso aos órgãos judiciários e administrativos com vistas à prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos ou difusos, assegurada a proteção Jurídica, administrativa e técnica aos necessitados; […]

(Brasil, 1990, art. 6°).

A grande questão então, neste caso, é a verificação e a qualificação da relação de consumo, e não a ausência da legislação pertinente ao ato em si, e nem propriamente sobre o mecanismo de recolhimento destes dados, mas a transformação destes dados em verdadeiras comodities sem que haja, no entanto, sequer o pagamento para aqueles que produziram os dados através de suas navegações e preferências online.

O PRODUTO E O PRODUTOR

Como vimos, o que realmente está sendo comercializado é a extensão da personalidade dos consumidores dos aparelhos eletrônicos e usuários de aplicativos.

Vejamos, se o que está a ser vendido, direcionado para a propaganda e consumo secundário, é justamente a atividade online das pessoas, bem como a detecção de seus gostos, padrões de consumo, problemas de saúde e necessidades várias, óbvio perceber que a obtenção de dados não seriam possíveis sem que houvesse uma pessoa, detentora de Direitos, a produzir, ainda que involuntariamente, estes dados (Zanini; Queiroz, 2021).

Neste sentido, estamos diante a extrapolação da mais valia aplicada em cadeia através de uma relação de consumo transversa e encadeada.

Implica ainda dizer sobre o caráter contínuo e tendencialmente perpétuo dessa relação exploratória, uma vez que, primeiro, estes dados uma vez recolhidos e armazenados em grandes Big Datas, não somem das Redes e nem deixam de ser consideradas como ativos permanentes do patrimônio das empresas que os recolheu, e, segundo, invariavelmente impõe ao cidadão a uma contínua exposição das mesmas condutas uma vez identificadas pelos algoritmos, impossibilitando seu desenvolvimento e sua modificação em prol da detenção e manutenção de um curral consumidor, implicando numa verdadeira relação de submissão entre o consumidor inicial e a empresa que lhe vendeu, originalmente, tal produto ou serviço.

A intrínseca associação que se estabelece entre a pessoa humana e seus dados demanda mecanismos disponíveis para garantir essa proteção. Isso porque, em atenção às demandas contemporâneas, a clássica sequência “pessoa-informação-sigilo” é superada para alcançar a noção de “pessoa-informação-circulação-controle”, na qual o imperativo é a circulação controlada de dados. Para além da privacidade, a proteção de dados se lança em bases de proteção mais objetivas, dinâmicas e também coletivas (Korkmaz; Sacramento, 2021, p. 3).

Em que pese ainda essa relação desconsiderar o Direito ao esquecimento, reafirmado ao tema da tecnologia pelo Conselho Federal de Justiça, conforme analisam Fernandes et al.:

No Brasil o Direito ao Esquecimento assume um papel de relevância no quando ocorre a aprovação, em 2013, pelo Conselho da Justiça Federal (CJF) (BRASIL, 2013, p. 1), do Enunciado n° 531, que tratou desta matéria ao versar que: A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento (Fernandes et al., 2022, p. 3. Grifo dos autores).

Então, a pessoa que produz estes dados é, na realidade, o dono e o produtor destes dados, e é assim que o trata a Lei 13.709/2018, Lei Geral de Proteção de Dados, em seu Capítulo III, em que este produtor de dados é tido como Titular (Brasil, 2018).

No entanto, essa mera nomenclatura quanto ao pertencimento destes dados, nem de longe alcança de fato a relação de consumo transversa entre o consumidor/titular e o controlador desses dados, e muito menos a possibilidade que se estabelece entre o controlador, tornado agora vendedor de dados e os potenciais compradores destes dados.

E isso resta bem fundamentado na análise do Capítulo III da referida lei, em que se pode observar que todas as garantias são dadas no sentido de o titular poder obter e requisitar estes dados do controlador. Mas note então que aqui estamos a falar de um Direito que só se aplicaria por ação do titular deste Direito, ou seja, tornando o Direito a Personalidade em ambiente virtual um Direito disponível, posto que sua aplicabilidade demanda uma ação concreta em exigir essa mesma exequibilidade por parte dos controladores.

IX – revogação do consentimento, nos termos do § 5º do art. 8º desta Lei.

§ 1º O titular dos dados pessoais tem o direito de peticionar em relação aos seus dados contra o controlador perante a autoridade nacional.

§ 2º O titular pode opor-se a tratamento realizado com fundamento em uma das hipóteses de dispensa de consentimento, em caso de descumprimento ao disposto nesta Lei.

§ 3º Os direitos previstos neste artigo serão exercidos mediante requerimento expresso do titular ou de representante legalmente constituído, a agente de tratamento.

§ 4º Em caso de impossibilidade de adoção imediata da providência de que trata o § 3º deste artigo, o controlador enviará ao titular resposta em que poderá:

I – comunicar que não é agente de tratamento dos dados e indicar, sempre que possível, o agente; ou

II – indicar as razões de fato ou de direito que impedem a adoção imediata da providência.

[…]

(Brasil, 2018, art. 18, inc. IX).

Note-se que a lei fala em revogação do consentimento, no entanto, tal consentimento é desprovido de intencionalidade fática, uma vez que, como dito, determinados aparelhos já trazem em seus contratos de uso a possibilidade tácita de recolhimento, armazenamento e tratamento desses dados.

Tal debate ainda está em aberto na regulação brasileira, que sequer limita expressamente os dados portáveis aos “dados fornecidos”. Embora a ressalva feita pela LGPD no sentido de se tutelar o segredo de empresa seja uma diretriz, tal previsão também não pode ser vista de forma ampla e independentemente da existência de uma fundamentação correlata, sob pena de esvaziamento da portabilidade sob o argumento de proteger o segredo. Com efeito, reitere-se a menção à relação entre a tutela do segredo de empresa e a concorrência desleal, com a configuração de efetivo prejuízo concorrencial (Korkmaz; Sacramento, 2021, p. 15).

E não há que se falar na possibilidade de não adesão a estes contratos tácitos, uma vez que o mundo vive atualmente, na concretude das relações interpessoais, sob a marca indelével e inafastável dos meios digitais — o que coloca em xeque, na análise da conjuntura real das relações, o disposto no artigo 7º da LGPD, que trata do tratamento destes dados:

Art. 7º O tratamento de dados pessoais somente poderá ser realizado nas seguintes hipóteses:

I – mediante o fornecimento de consentimento pelo titular;

[…]

(Brasil, 2018, art. 7°).

E acaba por sobrepor os interesses do controlador aos Direitos do consumidor/titular/produtor:

Art. 7º O tratamento de dados pessoais somente poderá ser realizado nas seguintes hipóteses:

[…]

IX – quando necessário para atender aos interesses legítimos do controlador ou de terceiro, exceto no caso de prevalecerem direitos e liberdades fundamentais do titular que exijam a proteção dos dados pessoais; ou

X – para a proteção do crédito, inclusive quanto ao disposto na legislação pertinente.

[…]

(Brasil, 2018, art. 7°).

Ainda há que se citar, em breves linhas, o defeso no artigo 36 do Código de Defesa do Consumidor (Brasil, 1990), em que pese, essencialmente, a relação de publicidade que pode levar o consumidor a erro, mas que, na realidade, sequer considera a existência de uma propaganda direcionada no formato individual, tal qual é o caso através dos meios atuais de comunicação — e aqui, novamente, frisa-se, que a relação que originalmente começou como de consumo, se transmuta na constância da relação que permanece durante o uso para uma relação de intermediação guiada de consumo futuro.

CONCLUSÃO

Em vias de conclusão, podemos dizer que a LGPD, apesar de importante primeiro passo para a regulamentação e proteção dos dados obtidos pelas Big Tech’s, é insuficiente para, jurisdicionalmente, oferecer a segurança necessária perante os novos usos e práticas atinentes aos modelos de interação e vivencia social na modalidade online, em especial quanto às garantias constitucionais quanto a privacidade, personalidade, consumo e livre comércio.

Aventa-se a possibilidade de se criar uma nova modalidade de relação de consumo que consiga, com maior exatidão, a compreensão daquilo que já se estabelece como consumo nos meios digitais.

E ainda, a nova relação que se estabelece sobre a produção e sobre o entendimento do que seja, na realidade, o produto virtual primordial, justamente a atividade existencial humana no universo online, que tem se tornado o maior dos ativos financeiros e verdadeiro elemento de vetor estratégico nas questões geopolíticas — o que por, si, urge a proteção estatal, a regulamentação e principalmente a criação de mecanismos legais que consigam se adequar à realidade fática inerente ao uso dos dados obtidos por meios digitais.

Dessa maneira, o que temos de fato é o surgimento ou a modificação das relações de consumo e das relações de comércio, uma vez que o direcionamento individual de propagandas, baseadas no histórico de navegação e nas preferências do usuário, não só criam um curral consumidor de produtos, como também de ideias e opiniões que tem potencial para direcionar a própria existência do Estado.

Assim, a questão da coleta, do tratamento, armazenamento, e comercialização de dados não apenas é um tema correlato aos Direitos Individuais, mas também um tema de geopolítica estratégica, em que, ao se limitar o poder das Big Tech’s, controladoras desses dados, não apenas se está a proteger os Direitos Individuais e Coletivos, como também a própria soberania dos Estados.

Compreender que a coleta, armazenamento, tratamento e comercialização dos dados é, em si mesma, a própria modificação dos antigos padrões de produção, consumo, mais valia e comércio, é fator essencial para o Direito enquanto ciência humana e para a execução de seu motivo de ser, não apenas para pacificação social, mas também como mantenedor de uma sociedade justa e livre de opressões.

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