FRANCISCO DE VITÓRIA:UM ESTUDO SOBRE A EXISTÊNCIA DE SUBJETIVIDADE JURÍDICA, A PARTIR DA PRIMEIRA RELECTIO (DE INDIS ET DE IURE BELLI)

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/pa10202501292113


Rômulo Albuquerque Porto1
Estevão Mota Sousa2


Resumo:

Analisa-se a primeira relectio, De Indis et de Iure Belli, de autoria de Francisco de Vitória, para observar se nela está contido algum conceito de subjetividade jurídica. Para isso, perquire-se se a concepção jurídica em Vitória é (in)condicionada ao posicionamento social em que o sujeito se encontra. Com isso, observa-se que Francisco de Vitória acresce nova concepção de iuris, a qual é aberta ao conceito de subjetividade jurídica que se não encontrava em São Tomás de Aquino, paradigma teológico e filosófico de Vitória.

Palavras-chave: Francisco de Vitória; ius; dominium; subjetividade jurídica.

1  INTRODUÇÃO

Francisco de Vitória (1483-1546), teólogo neoescolástico e um dos fundadores da Escola de Salamanca, o qual tratou moral e juridicamente do indígena em sua obra De Indis et de Iure Belli (Os Índios e o Direito da Guerra), busca-se nele, neste trabalho, averiguar se está presente alguma concepção de direito advindo da condição humana (subjetividade jurídica).

Para tanto, analisa-se se a concepção jurídica em Vitória é (in)condicionada ao posicionamento social em que o sujeito se encontra, como: ser herege, infiel ou ser fiel; estar em pecado mortal ou não; ou mesmo ser considerado bárbaro.

Ademais, São Tomás é utilizado como paradigma em relação ao Vitória, devido ao fato de que aquele propõe um “sistema” jurídico objetivo, cujas acepções de iuris não se abrem, a princípio, ao subjetivismo jurídico, além da razão de que o Aquinate era referência primordial ao teólogo de Salamanca.

Assim, caso Vitória agregue alguma dimensão subjetiva em sua concepção de direito, indo além de São Tomás nas acepções de iuris, ou seja, desvelar alguma acepção de direito que desconsidere o posicionamento social do sujeito como marcador substancial; então, será possível conceber alguma subjetividade jurídica no dominicano espanhol.

Desse modo, analisa-se a primeira relectio de De Indis et de Iure Belli, com o fito de desvelar algum vestígio de subjetividade jurídica no desenvolvimento dos argumentos e proposições realizadas pelo dominicano Francisco de Vitória.

2 A SUBJETIVIDADE JURÍDICA EM FRANCISCO DE VITÓRIA, A PARTIR DA LEITURA DA PRIMEIRA RELECTIO

Investiga-se uma possível abertura ao subjetivismo jurídico em Francisco de Vitória, analisando alguns dos argumentos levantados por ele na primeira relectio, nos quais se busca demonstrar que os indígenas podem ser verdadeiramente donos sobre os bens, independentemente de condicionamentos sociais, como status ou fidelidade ao cristianismo.

Inicia-se a investigação, no que toca à primeira relectio de De Indis et de Iure Belli, com a seguinte indagação levantada por Vitória: seriam os bárbaros verdadeiros senhores antes da chegada dos espanhóis, tanto na esfera privada como na pública? Ou seja, eles seriam verdadeiramente senhores de bens privados e, entre eles, haveria algum verdadeiro príncipe e se senhores de outros?1

Um dos primeiros argumentos levantados para se rechaçar a possibilidade de os bárbaros terem algum domínio de bens por título próprio, é de que, tal qual se observa no Direito Romano, nada obsta que os bárbaros/índios antes da chegada dos espanhóis já estivessem sob domínio de outrem, porquanto é possível que haja servo sem senhor. Ainda, pode-se averiguar casos de escravos que foram abandonados por seus senhores, dos quais ninguém se apropriou e de que qualquer um poderia apoderar-se deles. Ora, caso os bárbaros fossem servos, logo poderiam ser apropriados.2

Sed contra, de fato, observava-se que os índios tinham posse pacífica de certos bens (rerum), de modo privado e público. Assim sendo, como não se levanta prova em contrário a isso,os bárbaros devem ser considerados incondicionalmente como senhores e, por conseguinte, não passíveis de serem tomados os seus bens3.

Após isso, Francisco Vitória faz breve indicação das definições e distinções de domínio (dominii), sobre a qual realizou em comentários na Secunda Secundae da Suma Teológica de São Tomás, em especial sobre as questões concernentes à restituição, na questão 62.4

Destes comentários, segundo Michel Villey5, observa-se uma nova ideia de conjunto do direito, em que se parte, de certo modo, do indivíduo. Dessa maneira, o direito não é mais o objeto – por isso que se concebe Tomás de Aquino como paradigma do objetivismo jurídico – que se lhe atribui algo, mas no poder que se confere em relação a esses objetos; e, ainda, passa-se a compreender permissivamente a lei e não mais o seu modo atributivo (“ius quod licitum est”; “quod licet, quod lege licet”; “ius est potestas vel facultas conveniens alicui secundum leges”). Nesse ínterim, o dominium é uma espécie de ius, podendo até ser confundido com o próprio gênero. Assim sendo, conforme leitura de Michel Villey6, “o dominium é o direito de fazer uso de uma coisa conforme seu arbítrio: “ius utendi pro suo arbítrio”.           

Demais, no escrito em análise do Vitória, arrolam-se as possíveis justificativas para se conceber a impossibilidade de bárbaros exercerem domínio sobre bens, as quais são: a condição de se encontrar em pecado (mortal), ser infiel, ser demente (amentes) ou se encontrar destituído de juízo (insensati).7

Dessa maneira, quanto à condição de pecador, obtemperam-se alguns que o fundamento de domínio é tão só a graça (gratia) e, por conseguinte, que aqueles em situação de pecado mortal não tem domínio sobre bem algum. Todavia, a proposição “não existe nenhum domínio civil enquanto se está em pecado mortal” foi condenada no Concílio de Constança.8

Nesta perspectiva, afirma-se que todo domínio está sob a égide da autoridade divina, uma vez que Deus é a causa eficiente de tudo que há, logo alguém só pode ter domínio de algo se Ele mesmo lhe concedeu. Assim sendo, é incoerente conceber que os transgressores de Seus preceitos tenham domínio de algo, pois, semelhantemente, os príncipes humanos não dão bens àqueles que desrespeitam os seus preceitos. Desta feita, como se deve julgar as coisas divinas através das coisas humanas (Romanos 1, 20), logo Deus não concede domínio aos desobedientes. Outrossim, após outros argumentos, registra-se que em Gênesis 1, 26, se enuncia que: “façamos o homem à nossa imagem e semelhança para que presida aos peixes do mar etc”. Ora, evidencia-se que o domínio se funda na imago Dei. Além de que, não há essa imagem num mortalmente pecador. Dessarte, ele não é senhor.9

Nessa toada, aparentemente, todas as argumentações, concernentes ao afastamento da possibilidade de bárbaros serem donos de algo, estribam-se em qualquer espécie de domínio. Portanto, quem seguissem esses entendimentos, diria que os bárbaros não tinham domínio – de nenhum tipo –, porquanto sempre se encontram em pecado mortal.10

Contrariamente, estabelece-se a seguinte proposição: o pecado mortal não impede o domínio civil tampouco o verdadeiro domínio.11

Argumenta-se que se o pecador não tem o domínio civil, logo não tem, tampouco, o natural. Como o consequente é falso, então o antecedente também o é. Além de que, o domínio natural é proveniente de Deus, bem como o domínio civil, sendo que este parece ser de direito humano. Então, se por ofensa a Deus, fosse retirado do homem o domínio civil, em razão do mesmo fundamento, perder-se-ia igualmente o domínio natural. Ora, verifica-se a falsidade do consequente, pois não se perde o domínio sobre os próprios atos e membros, uma vez que o pecador tem o direito (subjetivo?) de defender a sua vida.12

Além disso, o domínio se baseia na imagem de Deus. Como o homem é, por natureza – devido às potências racionais (potentia rationales) –, a imagem de Deus, logo o pecado mortal não impede o domínio.13

Ademais, nem o poder espiritual se perde por causa de pecado mortal; o domínio civil se funda menos na graça; logo, o domínio civil não se extingue devido ao pecado mortal. O antecedente é notório, já que sacerdotes e bispos em pecado mortal consagram a Eucaristia, inclusive maus bispos consagram sacerdotes.14

Em síntese, conforme Vitória, é herética, e notória, a ideia de quem se encontra em pecado mortal não pode ter domínio civil, visto que se faz sol, chove, se distribui bens temporais, independentemente aos bons e ruins, aos justos e injustos.15

Posteriormente, verifica-se se a infidelidade, isto é, se a condição de herege elimina a possibilidade de domínio, visto que o é uma das alegações anteriormente arroladas que, em hipótese, pode retirar o domínio civil de alguém sobre algo.

Francisco de Vitoria enuncia o seguinte: a infidelidade não impede o verdadeiro senhorio de alguém.[16]Plasmado em São Tomás, afirma-se que a fé não retira o direito natural tampouco o direito humano. Como os domínios são de direito humano ou direito natural, logo não abolem domínios pela ausência de fé. Desta feita, resulta-se evidente que de povos infiéis não é lícito tomar os bens que possuem pelo fato, tão somente, de serem infiéis. Pois, tais situações seriam roubo ou furto tal qual aos cristãos.17

Pode-se, também, afirmar a segunda posição de seguinte modo: no que tange ao direito divino, quem tiver em condição de herege não perde o domínio de seus próprios bens. Assim sendo, como a perda de bens é um castigo e não há castigo na lei divina para tal condição (pro isto statu), então não se pode perder, por si só, os bens em razão de uma heresia, no que concerne ao direito divino. Verifica-se que esta proposição decorre da primeira proposição, uma vez que se a condição de infiel não faria ninguém perder algum domínio, tampouco por heresia perder-se-á o domínio, visto que não há previsão especial sobre elas no direito divino18.

Ademais, tem-se a terceira proposição: o herege, a partir do cometimento do crime, implica em pena de confisco aos bens. Quarta proposição: ainda que haja certeza no que toca ao cometimento do crime antes da condenação, mesmo assim não é lícito o apoderamento dos bens dos hereges pelo fisco. Quinta proposição: o herético, de todo modo, antes de sua condenação, é senhor no foro da consciência.19

Disto, é corolário que o herege pode viver de seus bens de modo lícito. Assim, decorre-se que por título gratuito pode alienar bens. Outrossim, segue-se que não é lícito alienar algo por título oneroso, caso o crime possa ir a julgamento. Por derradeiro, caso não houvesse risco de confiscação dos bens, o herege poderia alienar por título oneroso os bens.20

A partir disso, Vitória conclui esta série de proposições do seguinte modo:

 De tudo isso, segue a conclusão: os bárbaros, nem por causa de outros pecados mortais, nem por causa do pecado de infidelidade, estão impedidos de ser verdadeiros senhores, tanto pública quanto privadamente. Nem, a esse título, podem os cristãos apoderar-se de seus bens e de sua terra, como profusa e elegantemente deduz Cayetano (2.2 q. 66 a. 8).21

Dessa forma, a princípio, observa-se algum transpasse da concepção objetiva do direito, com fulcro no sintagma jurídico habere personam para o paradigma esse persona, porquanto se verifica, em Vitória, o despojamento de condicionais externos, isto é, não se concebe a condição de persona apoiado em situação estamental ou status, haja vista que nem mesmo a condição de fé impede a possibilidade dos índios de dominar; logo, se percebe que a concepção de domínio se funda em outros ditames distintos ao objetivismo estamental e funcional. Prossegue-se, enfim, a investigação para se confirmar ou rechaçar a hipótese de abertura à subjetividade jurídica em Vitória.

Pergunta-se o seguinte: se o uso da razão é requerido para que alguém seja capaz de domínio. Responde-se, por meio da primeira proposição, de seguinte modo: os seres irracionais não podem dominar. É notório, pois o domínio é um direito. Ora, como os seres irracionais não podem ter direito, tampouco domínio. A menor se prova pelo fato de não poderem sofrer injúria, logo não têm direito.22

Além do mais, Francisco de Vitória23 confirma a proposição anterior com esteio em Tomás de Aquino, afirmando que só os seres racionais têm domínios sobre seus atos, porquanto só é senhor dos seus atos aquele que realmente pode escolher entre uma coisa e outra. Destarte, se os brutos não têm domínio sobre os próprios atos, não terá sobre outras (haja vista que as feras não têm dominium sui e, tampouco, domínio das coisas alheias).

Aliás, Michel Villey24 anota que, nos comentários sobre a restituição de Tomás de Aquino por Vitória, parte-se do Gênesis para investigar sobre o nascedouro da propriedade privada, inicialmente já se concebia alguns modos de propriedade; fez-se o homem “dominus sui corporis”, “dominus suorum actorum”. No entanto, é mister consignar que São Tomás investigava tão somente, na questão 62 – sobre a restituição –, sobre problemas concernentes à comutatividade da restituição25. Portanto, este elastecimento das acepções de iuris na doutrina tomista realizada pelo Vitória, na leitura de Villey, não parte da própria doutrina do Aquinate. Continua-se.

Dessa maneira, indaga-se que a criança, antes do uso da razão, não pode ter domínio, uma vez que se não difere da criatura irracional. Contudo, afirma-se, através da segunda proposição, o seguinte: as crianças podem ter domínio, serem donas, antes do uso da razão.26

A recém citada proposição é evidente. Ora, se as crianças podem sofrer alguma injúria (iniuria), portanto podem ter direito sobre as coisas. Logo, também o domínio, pois isso é um direito. Fundamenta-se o domínio, dessa forma, na imagem de Deus, que se situa também nas crianças. Além de que, ao contrário dos seres irracionais, dos brutos, uma criança não existe para outro (propter alium), mas para si (propter se).27

Outrossim, pergunta-se acerca dos dementes: teriam domínios? Mesmo que perpetuamente privados do uso da razão. Responde-se, na quarta proposição, que eles também podem ser donos, já que podem ser injuriados. Logo, têm direito. Segue-se disso a quarta proposição: “nem por esse ângulo os bárbaros estão impedidos de ser donos verdadeiros”.28

Ainda, afasta-se a hipótese de que os bárbaros/índios serem dementes, porquanto se considera, ao modo deles, o uso da razão. Dessa forma, os bárbaros são verdadeiros senhores, assim como os cristãos. Portanto, não se pode espoliá-los sob a alegação de que não seriam verdadeiros donos, visto que nem mesmo os inimigos da religião cristã têm questionado como verdadeiros senhores de seus domínios.29 Logo, após esta série de proposições e argumentações, conclui-se que os índios, antes da chegada dos espanhóis, eram verdadeiramente donos, seja publicamente ou privadamente.30

Destas argumentações de Vitória na primeira relectio, observa-se que, de fato, há um elastecimento da concepção de iuris em comparação à tradicional doutrina de Tomás de Aquino, consoante a leitura de Villey, embora Francisco de Vitória se baseie fortemente no Doutor Angélico e sem contradizê-lo.

A ideia de persona é tradicionalmente algo que se possuía e não algo que se seja, logo o sintagma jurídico representativo do mundo antigo ao moderno é sintetizado pela fórmula habere personam. Assim, o homem poderia ter persona, mas não era persona. Dessa forma, se verifica que a personalidade, até então, era estribada e determinada – dependente – do status, da condição social, política e familiar.31

Demais, persona era considerada, nesse período de “sociedade de estados”, a capacidade ou qualidade dada ao indivíduo pelo direito estabelecido e nunca a partir da própria individualidade mesma. Desta feita, não se poderia predicar do indivíduo, considerado em si mesmo, direitos – tornar o indivíduo sujeito de direitos em razão de sua individualidade –, o que seria considerado um vulgare axioma.32

Nesse sentido, conforme o tratado sobre a justiça de Tomás de Aquino na Suma Teológica (especificamente em IIa IIae, q. 58, a. 1)33, as acepções de direito são, primeiramente e em sentido próprio, o justo (a própria coisa justa), o que é devido ao outro: dar a cada um o seu direito, conforme uma igualdade. Por analogia ao sentido primário de direito, temos: o segundo sentido do direito, que é a arte de conceber o justo; o terceiro sentido do direito, o lugar onde é aplicado o direito, v.g, o local onde se pronuncia as “decisões judiciárias”; e, por fim, a quarta acepção de direito, que é a própria “decisão judicial”, mesmo sendo injusta.34

Desvela-se, entretanto, em Vitória, uma concepção individualizadora do direito (o que não prescinde da dimensão relacional e social do direito tomista), segundo a qual o direito não depende da posição social do sujeito para ser validado, tanto é que a condição de fé ou de possível demência não afastaria a possibilidade de alguém ser dono de algo, sendo que o dominium é ius, conforme Vitória. Ora, considerar a criança e, a fortiori, a todo ser humano, não como existência para o outro (propter alium), mas sim existência para si (propter se), já configura uma profunda mudança ou, ao menos, uma transposição de uma concepção objetiva do direito à subjetividade jurídica, na qual se pauta na própria individualidade.

No que tange à influência para essa abertura à subjetividade jurídica, Villey explica:

A noção do direito subjetivo (…) era um produto da escolástica franciscana, e sobretudo do nominalismo, porque o nominalismo pensa a partir do indivíduo. Quanto ao tema de origem do dominium nas leis permissivas divinas, foi especialmente em Duns Escoto que encontramos essa trama: Duns Escoto, que trata das questões sociais a partir dos textos bíblicos segue o plano de Pedro Lombardo, aborda precisamente esse tema a propósito do dever moral de restituição. Depois, o mesmo esquema pode ser encontrado, primeiro retomado pela escola nominalista e completado, a partir de Guilherme de Ockham, com definições formalizadas do direito subjetivo, e em seguida desenvolvido pelos escolásticos da época conciliar: Gerson (que Vitória cita) e Pedro d’Ailly cultivam a noção de direito subjetivo. Virá a se tomar lugar comum da escolástica espanhola.35

Nesse jaez, pode-se afirmar que houve abertura à dimensão subjetiva do direito em Vitória, por meio de um acréscimo, por assim dizer, de uma categoria de “direito subjetivo” às acepções do direito. Mostra-se, a seguir, um quadro que lista os direitos em acepção objetiva tomista e o direito em acepção subjetiva de Vitória:

Tabela 1 – Acepções de iuris em Tomás de Aquino (IIa IIae, q. 58, a. 1) e acepção de iuris em Francisco de Vitória na primeira Relectio (De Indis et De Iure Belli).

Acepções do direito, quanto à primariedade ou à secundariedade:Sentido do direito, como:Dimensão/aspecto do direito, como:
Primeira acepção (sentido primário):A própria coisa justa (…ipsam rem iustam).Objetiva
Segunda acepção (sentido análogo do primário):A arte de discernir o que é justo (… ad artem qua cognoscitur quid sit iustum).Objetiva
Terceira acepção (sentido análogo do sentido primário):O lugar onde se aplica o direito (…locum in quo ius redditur).Objetiva
Quarta acepção (sentido análogo do sentido primário):O que foi decidido por quem exerce a justiça (… officium pertinet iustitian facere).Objetiva
Quinta acepção (sentido análogo do sentido primário)DomínioSubjetiva

Fonte: Elaborada pelos autores

Assim sendo, observa-se que Vitória foi muito além da compreensão do direito como aquilo que é atribuído a cada um (suum ius cuique tribuere), seguindo-se a ideia de que o direito é esse objeto que corresponde a cada um na atribuição (id quod justum est, res justa). Ora, se em São Tomás a proprietas categoriza-se como uma res incorporales,36 já em Vitória o dominium é espécie, ou até se confunde com o gênero, de iuris.

Ante o exposto, entende-se, a partir da leitura da primeira relectio de De Indis et de Iure Belli, que houve uma sensível mudança em relação à antiga concepção de direito, pautada no sintagma jurídico habere personam, que tem como modelo a doutrina jurídica de São Tomás de Aquino. Dessa forma, ratifica-se a ideia de que há subjetividade jurídica em Franciso de Vitória.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em Vitória, há um elastecimento da concepção de iuris em comparação à tradicional doutrina de Tomás de Aquino (na chave de Villey), sem, contudo, trair o pensamento tomista. Tal acréscimo da acepção de iuris engendrou uma abertura mais clara à subjetividade jurídica, uma vez que se verifica que o Direito, em Vitória, não se condiciona aos elementos sociais (por inferência), ao status, à situação de desenvolvimento mental ou à situação de fé do sujeito.

Com efeito, observou-se que a condição de ser herege, infiel ou de se situar fora da graça santificante (em pecado mortal) não elimina a situação jurídica do “bárbaro” como senhor de bens, de modo que não podem ser arbitrariamente espoliados. Dessa forma, a situação de senhor de bens se mostra incondicional, isto é, independentemente da posição social do sujeito titular desses bens.

Logo, extrai-se da leitura da primeira relectio de De Indis et de Iure Belli, um notório incremento em relação à antiga concepção medieval do Direito, na qual era pautada no sintagma jurídico habere personam. Desse modo, confirma-se que há uma ideia de subjetividade jurídica em Franciso de Vitória.


1 VITÓRIA, Francisco de. Relectiones: sobre os índios e sobre o poder civil. Brasília, Ed. Unb e FUNDAG, 2016. p. 106.
2 Ibid., p. 106.
3 Ibid., p. 106.
4 Ibid., p. 106.
5 VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. Tradução: Claudia Berliner. 1ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 390.
6 VILLEY, op. cit., p.390.
7 VITÓRIA, op. cit., p. 106.
8 VITÓRIA, op. cit., p. 107.
9 VITÓRIA, op. cit., p. 107.
10 VITÓRIA, op. cit., p. 108.
11 VITÓRIA, op. cit., p. 108.
12 VITÓRIA, op. cit., p. 108.
13 VITÓRIA, op. cit., p. 108.
14 VITÓRIA, op. cit., p. 109.
15 VITÓRIA, op. cit., p. 109.
16 VITÓRIA, op. cit., p. 109.
17 VITÓRIA, op. cit., p. 110.
18 VITÓRIA, op. cit., p. 110.
19 VITÓRIA, op. cit., p. 111-112.
20 VITÓRIA, op. cit., p. 113.
21 VITÓRIA, op. cit., p. 113.
22 VITÓRIA, op. cit., p. 114.
23 VITÓRIA, op. cit., p. 114.
24 VILLEY, op. cit., p.389.
25 VILLEY, op. cit., p.391.
26 VITÓRIA, op. cit., p. 115.
27 VITÓRIA, op. cit., p. 115.
28 VITÓRIA, op. cit., p. 115.
29 VITÓRIA, op. cit., p. 116.
30 VITÓRIA, op. cit., p. 117.
31 CLAVERO, Bartolomé. Sujeto de Derecho entre Estado, Género y Cultura. Ediciones Olejnik: Santiago – Chile, 2016. p. 41.
32 Ibid., p. 44.
33 AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, volume 6. Edições Loyola, 5ª edição, 2001: IIa IIae, q. 58, a. 1.
34 PORTO, Rômulo Albuquerque. Entre o justo e o poder: a (in)existência de direito subjetivo em Tomás de Aquino, uma visão. In: Daniel Damasceno, Glauco Barreira Magalhães Filho. (Org.). Temas atuais de filosofia do direito: diálogos atemporais entre clássicos e modernos. 1ed. Londrina: Thoth, 2024, v. 1, pp. 177-200, pp 185 – 186.
35 VILLEY, op. cit., p.391.
36 Cf. VILLEY, Michel. L’idée du droit subjectif et les systèmes juridiques romains. Editions Dalloz: Revue historique de droit français et étranger (1922-). Quatrième série, Vol. 24 (1946-1947), pp. 201-228, p. 211; VILLEY, Michel. Leçons d’Histoire de la Philosophie du Droit. Paris: Dalloz, 1962; VILLEY, Michel. Questões de Tomás de Aquino sobre direito e política. Tradução de Ivone C. Benedetti. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014.

REFERÊNCIAS

AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, vols. 4 e 6. Edições Loyola, 5ª edição, 2001.

CLAVERO, Bartolomé. Sujeto de Derecho entre Estado, Género y Cultura. Ediciones Olejnik: Santiago – Chile, 2016.

VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. Tradução: Claudia Berliner. 1ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

VILLEY, Michel. Direito Romano. Tradução de Fernando Couto. Porto: coleção RESJURÍDICA, 1991.

VILLEY, Michel.L’idée du droit subjectif et les systèmes juridiques romains. Editions Dalloz: Revue historique de droit français et étranger (1922-). Quatrième série, Vol. 24 (1946-1947), pp. 201-228, p. 211.

VILLEY, Michel. Leçons d’Histoire de la Philosophie du Droit. Paris: Dalloz, 1962.

VILLEY, Michel. Questões de Tomás de Aquino sobre direito e política. Tradução de Ivone C. Benedetti. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014.

VITÓRIA, Francisco de. Relectiones: sobre os índios e sobre o poder civil. Brasília, Ed. Unb e FUNDAG, 2016.

VITÓRIA, Franciso de. Os índios e o direito de guerra: de indis et de jure belli relectiones. Ijuí: Ed. Unijuí, 2006.


1 Mestrando e graduado em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC), pós-graduado em Direito Constitucional Aplicado, pós-graduado em Direito e Processo Tributário. Email: romuloporto95@gmail.com.
2 Mestrando em Direito pelo UFC, pós-graduado em Direito Público, pós-graduado em Direito e Processo Eleitoral (UNIFOR), graduado em Direito pela UFC, advogado, email: estevaoms98gmail.com.