O IMPACTO DO ABANDONO AFETIVO NA RECIPROCIDADE DE PRESTAÇÃO DE ALIMENTOS ENTRE PAIS E FILHOS

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/fa10202501222024


Ingrid Gabrielle de Souza Botelho1


RESUMO

A família é a primeira e forma natural de organização do homem, o primeiro local para o desenvolvimento das relações de afeito e de preparação para a vida em sociedade. Aos pais cabe o dever de educar, mas também é destes que se espera atos de amor, de zelo e proteção. O presente artigo teve como objetivo geral a analisar problematização do abandono afetivo dos pais para com seus filhos, tendo em vista que as pessoas que passam por um processo de omissão afetiva sofrem vários danos quando da ausência da participação dos seus pais no seu crescimento. Além disso, aborda-se a questão da reciprocidade no que tange a obrigação alimentar entre pais e filhos em casos de efetivo abandono afetivo por parte dos pais, neste caso há uma relativização da reciprocidade de assistência.

Palavras-chave: Família. Reciprocidade. Alimentos. Abandono Afetivo.  

ABSTRACT

The family is man’s first and natural form of organization, the first place for the development of affectionate relationships and preparation for life in society. Parents have the duty to educate, but it is also from them that acts of love, care and protection are expected. The general objective of this article was to analyze the problematization of parents’ emotional abandonment towards their children, considering that people who go through a process of emotional omission suffer various damages when their parents do not participate in their growth. Furthermore, the issue of reciprocity is addressed regarding the food obligation between parents and children in cases of effective emotional abandonment by parents, In this case, there is a relativization of reciprocity of assistance.

Keywords: Family. Reciprocity. Foods. Affective Abandonment.

1. INTRODUÇÃO 

A família é a primeira forma natural de organização do homem, o primeiro local para o desenvolvimento das relações de afeto e de preparação para a vida em sociedade. Aos pais cabe o dever de educar, mas também é destes que se esperam atos de amor, de zelo e proteção. 

Ao longo do tempo a instituição familiar passou por diversas reformulações, o que possibilitou a descentralização na figura do pai e a valorização da família como uma composição de vários indivíduos dotados de necessidades e características singulares. Diante disto, o afeto deixa de ser considerado apenas um fato social psicológico e se torna um elemento essencial para o processo de desenvolvimento humano e, portanto, um conjunto de atitudes esperadas dos pais para com seus filhos.  Neste sentido, a questão do abandono afetivo, pelos genitores, começa a receber um tratamento dos doutrinadores e da jurisprudência a partir da concepção da responsabilidade civil e do dever de indenizar quando dos danos morais ocasionados pela omissão afetiva.

As pessoas que passam por um processo de omissão afetiva sofrem vários danos quando da ausência da participação dos seus pais no seu crescimento. Ademais, o desenvolvimento das relações familiares é indispensável para o processo de desenvolvimento humano. 

Diante disso, o presente artigo visa entender de que forma a doutrina e jurisprudência tem encarada a questão da reciprocidade entre pais e filhos no que tange a obrigação de prestar alimentos, em casos em que houve o efetivo abandono afetivo por parte dos pais.

2. DO ABANDONO AFETIVO

Diante do exposto, nota-se que os dilemas familiares sempre estiveram presentes em todo tipo de sociedade ao longo do tempo. Em virtude do processo de democratização dos meios de acesso ao sistema judiciário estes dilemas têm saído do seio familiar e tem alcançado as varas judiciais.

De acordo com Lacerda2 Home, atualmente, no Brasil, embora não haja no ordenamento jurídico uma lei que defina o abandono afetivo como crime, a jurisprudência vem formando o entendimento de que é devida a indenização por danos morais em decorrência de tal prática por se tratar de ato ilícito capaz de gerar prejuízo de ordem moral e/ou material.

De fato, o número de casos judiciais referentes ao abandono afetivo tem crescido consideravelmente, em virtude do reconhecimento de uma situação de zelo e de cuidado destinado aos filhos por parte dos seus genitores e da necessidade de responsabilização daqueles que a causaram. 

2.1 CONCEITO

Para Novaes3, a questão familiar tem sido estudada e analisada pelas mais diversas ciências, desde o campo jurídico ao sociológico, levantando questionamentos de como as transformações dessas relações, que ocorreram ao longo do tempo, serviram para caracterizar o referido instituto como é conhecido hoje. Para esse, tais estudos serviram para suplementar a legislação brasileira em vigor, abrindo passagem para o surgimento de novos paradigmas, como também de transformações nas relações socio jurídicas 

Já Lacerda2 considera que embora não exista uma norma específica que determine especificamente em que consistem os laços afetivos, os anunciados legais existentes são baseados na sistemática da convivência familiar. Sendo assim, enquanto a norma age determinando um dever imposto aos genitores, ela ao mesmo tempo assume o papel de promover proteção para a figura do filho.

Para Castro4, o afeto seria definido então como uma expressão do amor familiar, configurando-se em um valor fundamental para formação da personalidade e da dignidade dos filhos. As relações e os laços criados por meio do afeto não estão baseados apenas em valores sentimentais, mas também em atitudes. As atitudes por sua vez representam uma materialização do afeto, permitindo a construção de uma relação saudável entre pais e filhos.

Neste sentido, lembra Reis e Pinto5 que:

O afeto é o ponto determinante nas relações familiares, especialmente entre os pais e os filhos. Não se pode descurar que o ser humano que sempre mereceu particular proteção do mens legis, fique ao desamparo dos titulares do poder familiar. O cumprimento dos deveres inerentes ao pátrio poder não se circunscreve apenas nas obrigações de mera conduta de proteção, assistência material, intelectual, mas sim no dever de cuidar e tratá-los com emoções e sentimentos. Os filhos merecem um novo olhar, um olhar claramente humanizado. Somente através dessa linha de conduta será possível modelar a personalidade dos filhos, voltada para a construção de uma sociedade em que predomine o princípio da dignidade da pessoa humana. 

Segundo Lacerda6 o conceito de abandono afetivo é uma criação eminentemente doutrinária. Na modernidade, as relações familiares se solidificaram pelo vínculo de afetividade entre seus membros. Por meio da Constituição Federal de 1988, surgiu uma nova ordem e perspectiva de valores, igualando homens e mulheres, tendo o afeto enfatizado e a dignidade da pessoa humana priorizada.   Conforme o Instituto Brasileiro de Direito da Família (IBFAM), O abandono afetivo parental-filial é uma mistura de lesão por abandono e uma agressão voluntária com condutas previamente traçadas, visando atingir e subjugar a outra parte, que em tese se exclui de um relacionamento de pais. Ou seja, é uma agressão psicológica voluntária que se alimenta da quebra de expectativa gerada pelo desejo de afeto que os filhos possuem de receber de seus genitores.

Castro7 considera que família passa a receber proteção do Estado, de acordo com o caput do artigo 226 da Carta Magna Brasileira, sendo de extrema importância que o Estado forneça e execute os meios para protegê-la. Assim, as informações trazidas pela Carta Magna enfatizam a necessidade de se reconhecer o parentesco em vínculo de afetividade, a exemplo das relações existentes entre pais e filhos adotivos.

De acordo com Lacerda9, o abandono afetivo pode ser assim definido,

O abandono afetivo, assim, como conceito totalmente novo, e diante das inovações do direito de família inseridas no ordenamento constitucional pela Carta Magna em vigor, pode ser caracterizado como a ausência de afeto entre pais e filhos, em que estes buscam, através do Poder Judiciário, a reparação dessa lacuna existente em suas vidas (LACERDA, 2020, p. 19).

Para Lobo8, a afetividade deve Ser encarada como um dever imposto aos pais para com os seus filhos e destes em relação àqueles, ainda que haja desamor ou desafeição entre os mesmos. O descumprimento de tal dever configura o abandono.

2.2 DANOS CAUSADOS PELO ABANDONO AFETIVO

Rizzardo10 aponta que afeto talvez seja apontado atualmente, como o principal fundamento das relações familiares. Enquanto direito fundamental, decorre da valorização constante da dignidade da pessoa humana. Trata-se de uma necessidade essencial do ser humano e uma condição indispensável para a garantia do pleno desenvolvimento humano.  Lembra Rizzardo10 que em todas as fases da vida se fazem importante a afetividade, a qual facilita a convivência, desarma os espíritos, torna agradável a companhia, elimina a agressividade e cria um constante ambiente de amizade. Para o autor. As relações de afeto acalentam as uniões, torna mais fortes os laços de amizade, conduz à tolerância, e fortalece nas adversidades, levando a não sucumbir. Por sua vez, Lobo13 afirma que o abandono de afeto acontece pela falta de amor e carinho fornecidos pelos pais aos seus filhos durante o seu desenvolvimento. Tal processo pode ocasionar futuramente aos seus filhos possíveis danos. De acordo com a doutrina moderna, o dever dos pais não se resume apenas em promover apoio financeiro aos filhos, eles devem fornecer assistência na educação, na vida social, material e no próprio campo da afetividade.

Ao longo da história sempre foi atribuído aos pais à autoridade necessária para guiar e proteger os filhos. Dessa forma, a orientação dos pais é fundamental na sua formação. Por todos esses motivos, é mais fácil identificar um indivíduo que cresceu e se desenvolveu sem nenhum apoio, cooperação, dedicação e amor comuns em uma família estruturada.   

Quando do impacto da afetividade, Madaleno11 afirma que se percebe que o pai, muitas vezes, não tem a real intenção de querer prejudicar os filhos, mas isso acontece de forma inevitável em virtude da negligência e omissão afetiva. Se o próprio pai, aquele que deu início à sua vida, não consegue transmitir carinho e, ao contrário, não lhe atribui valor, com certeza provocará transtornos de difícil reparação futura como irreparáveis prejuízos de ordem moral e psicológica à prole.  

Contudo, lembra-se que o abandono afetivo não é determinado pelas questões de gênero e que, ambos os pais, podem ser considerados como sujeitos autores dessa prática. Ademais, devido as novas relações familiares, essa prática pode ser aplicada até para pais que tenham reconhecido seus filhos através das relações socioafetivas ou por adoção.

3 DA RESPONSABILIDADE CIVIL DOS PAIS E DAS CONSEQUÊNCIAS DO ABANDONO AFETIVO

Para Gagliano e Pamplona Filho12, a responsabilidade jurídica deriva da transgressão de uma norma jurídica preexistente, contratual ou extracontratual, com a consequente imposição ao causador do dano o dever de indenizar. Ou seja, é um gênero do qual a responsabilidade civil é a espécie e tem enquanto objetivo investigar o ilícito civil.

Neste sentido, Pereira14 conceitua a responsabilidade civil como sendo:

A efetivação da reparabilidade abstrata do dano em relação a um sujeito passivo da relação jurídica que se forma. Reparação e sujeito passivo compõem o binômio responsabilidade civil, que então se enuncia como princípio que subordina a reparação à sua incidência na pessoa do causador do dano. Não importa se o fundamento é a culpa, ou se é independentemente desta. Em qualquer circunstância, onde houver a subordinação de um sujeito passivo à determinação de um dever de ressarcimento, aí estará a responsabilidade civil. 

Para Stocco15, trata-se de um instrumento jurídico cuja finalidade é a reparação de um dano na esfera cível. Tal como, instituição assecuratória de direitos e um estuário para onde acorrem os insatisfeitos, os injustiçados e os que se danam e se prejudicam por comportamentos dos outros.

Destarte o exposto acima, o autor ainda lembra que no que tange ao sujeito da responsabilidade, a mesma poderá ser classificada em: objetiva ou subjetiva. O dever de reparar se estabelece a partir de um critério objetivo, ou seja, a existência ou inexistência do dever de reparar não se decide pela qualificação da conduta geradora do dano, se ilícita ou lícita, mas pela qualificação da lesão sofrida. Assim, para que seja aferida a responsabilidade. 

Neste sentido, o Código Civil de 2002 CC/2002 estabelece em seu artigo 927, os fundamentos legais para a caracterização da responsabilidade civil objetiva, ao dispor que:

Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. (BRASIL, 2002).

Portanto, o legislador vinculará a responsabilidade civil a aspectos obrigacionais mais específicos como aqueles derivados de questões contratuais e legais. Diante disto, surge o dever de responsabilidade civil dos pais em relação a seus filhos menores.

A aplicação da responsabilidade civil nas relações familiares é uma construção jurídica recente e está ligada, diretamente, com as novas concepções da instituição familiar. Trata-se de um instrumento que originalmente tinha a função de reconhecer as companheiras, uma vez findado o matrimonio, o direito a indenização por danos morais e materiais. 

Outra decorrência dessa nova acepção da responsabilidade civil no âmbito familiar é o dever de convívio que os pais possuem em relação aos seus filhos. Como já exposto, compete à família assegurar os mecanismos que viabilizem a consecução pleno desenvolvimento das crianças e adolescentes. Estabelece-se, portanto, o dever da construção dos laços de afeto baseados na obrigação do zelo e do cuidado.

Conforme Dias16 o reconhecimento do abandono afetivo como gerador de obrigação indenizatória foi outra das sequelas do casamento entre a ciência jurídica as demais ciências voltadas aos aspectos psicológicos e laços de vivência interpessoal. Ademais, complementa a autora que:

A omissão do genitor em cumprir os encargos decorrentes do poder familiar, deixando de atender ao dever de ter o filho em sua companhia, produz danos emocionais merecedores de reparação. Se lhe faltar essa referência, o filho estará sendo prejudicado, talvez de forma permanente, para o resto de sua vida. Assim, a falta da figura do pai desestrutura os filhos, tira-lhes o rumo de vida e debita-lhes a vontade de assumir um projeto de vida. Tornam-se pessoas inseguras, infelizes.

Diante do exposto, filhos que tiveram sua garantia fundamental de convivência familiar violada a partir de uma conduta de abandono afetivo por parte de seus pais, começaram a entrar em juízo postulando uma reparação do dano. Trata-se de um pedido que se assenta na responsabilidade civil, diante de uma conduta de omissão e negligência do pai frente ao dever de educar. 

Ainda que não haja um consenso por parte da doutrina e jurisprudência, alguns tribunais estão decidindo a lide de forma favorável. Um precedente sobre o tema foi o julgado do Recurso Especial Nº 1.159.242 julgado pelo Superior Tribunal de Justiça que decidiu o dever de indenização e a destituição do poder familiar. Assim, a Ministra Nancy Andrigh fundamenta sua decisão:

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE. 1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família. 2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88. 3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia – de cuidado – importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social17.

Para Dias18, a indenização por abandono afetivo poderá converter-se em instrumento de extrema relevância para a configuração de um direito das famílias, podendo desempenhar papel pedagógico no seio das relações familiares. Ainda que a decisão não reflita a corrente majoritária do referido tribunal, representa um avanço para a aplicação da responsabilidade civil no âmbito do direito familiar e uma forma de mitigar os drásticos efeitos do abandono afetivo.

4 DO IMPACTO DO ABANDONO AFETIVO NA RECIPROCIDADE DE PRESTAÇÃO DE ALIMENTOS ENTRE PAIS E FILHOS

A obrigação de fornecer sustento é um princípio fundamental reconhecido como de interesse público e desfruta de uma ampla proteção estatal. O Estado estabeleceu normas legais dedicadas exclusivamente à sua salvaguarda, incluindo um capítulo no Código Civil que trata especificamente desse assunto19.

Conforme estipulado pelo artigo 1.696 do Código Civil, o fornecimento de alimentos deve ser recíproco, ou seja, pais e filhos devem se apoiar mutuamente nos momentos de necessidade. No caso dos filhos, isso ocorre mais comumente durante a menoridade, enquanto que para os pais, geralmente ocorre na velhice, quando enfrentam períodos de carência, enfermidade ou necessidade19

Contudo, na vida cotidiana, os laços familiares podem sofrer rupturas significativas por várias razões, algumas das quais podem levar ao fim definitivo do relacionamento, ao ponto de, na prática, desaparecer qualquer vestígio de parentesco. No entanto, do ponto de vista jurídico, o vínculo de parentesco permanece, especialmente porque a falta de exercício de algumas de suas dimensões não é legalmente reconhecida como causa para dissolvê-lo.

Nesse contexto, surge frequentemente um dilema quando filhos são emocional e financeiramente abandonados pelos pais e, posteriormente, são solicitados a ajudá-los, pois o abandono sofrido muitas vezes leva os filhos a relutarem em prestar auxílio19

A relativização da obrigação de prover alimentos pode igualmente ser analisada à luz do instituto do poder familiar. O Código Civil estabelece, em seu artigo 1.638, as situações em que o poder familiar dos pais é revogado:

Art.1.638 – perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que:
I – castigar imoderadamente o filho; 
II – deixar o filho em abandono; 
III – praticar atos contrários à moral e aos bons costumes; 
IV – incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente.

O inciso II aborda o abandono material, que pode se manifestar tanto de forma moral quanto intelectual. Todas essas situações são tipificadas como crimes conforme os artigos 244 a 247 do Código Penal20. Em relação ao abandono material, o artigo 244 estabelece que:

deixar, sem justa causa, de prover a subsistência […] de filho menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente inválido ou maior de 60 (sessenta) anos, não lhes proporcionando os recursos necessários ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada; deixar, sem justa causa, de socorrer descendente ou ascendente, gravemente enfermo.

Assim, a sentença que condenar o genitor por abandono material e o destituir do poder familiar pode ser utilizada como base para questionar a obrigação de fornecer alimentos em face do crime cometido20

Portanto, quando uma criança é abandonada por um ou ambos os pais, sem qualquer tipo de assistência, pode desencadear vários tipos de sequelas à medida que se torna adulta21

Consequentemente, no futuro, essa pessoa pode também apresentar rejeição em relação a um dos genitores ao procurá-lo caso ele precise de assistência. Isso cria um conflito de reciprocidade, onde não houve o cumprimento do dever paterno. Assim, a prole pode sentir-se no direito de não retribuir qualquer tipo de assistência devido à falta dessa troca de responsabilidades21

Segundo DIAS22, o exercício do poder familiar não implica necessariamente em reciprocidade, portanto, os pais que falharam em cumprir com as responsabilidades inerentes a esse poder não podem mais tarde apelar para a reciprocidade da obrigação alimentar ao exigir alimentos dos filhos. Isso porque tal reciprocidade implica em uma assistência mútua, que por sua vez requer uma contraprestação. 

Além disso, é relevante notar que quando os filhos atingem a maioridade, a obrigação alimentar passa a ser baseada na reciprocidade derivada do vínculo de parentesco. Apesar de se falar em solidariedade familiar, essa obrigação recíproca deve estar em conformidade com critérios éticos, e os pais que não cumpriram com suas obrigações não devem apelar para esse requisito ao solicitar alimentos de seus filhos22.

Em outras palavras, quando os pais descumprem o dever de cuidado e proteção para com os filhos, atribuído pelo poder familiar, não satisfazendo adequadamente sua obrigação de cuidado e sustento, o que leva a necessidade de reivindicação por parte dos filhos, não parece justo que a negligência dos pais, resulte em uma obrigação de alimentos recíproca. Afinal, essa necessidade surge não apenas do parentesco, mas da falha em cumprir um dever legal, o que requer uma análise ética do caso23

Nesse contexto, GONÇALVES24 argumenta que um pai, mesmo que alegue idade avançada e desemprego, ao invocar a solidariedade familiar para pleitear alimentos dos filhos que comprovadamente abandonou sem manter contato, não tem direito a esses alimentos. Isso ocorre porque tal dever é uma via de mão dupla, e para receber solidariedade, é necessário também ter sido solidário. Afinal, os alimentos são parte do princípio da solidariedade, que, por sua vez, é a base da reciprocidade presente na lei civil.

Isso levanta uma última questão importante a ser destacada. Por ser um conceito aberto, tanto o abandono afetivo quanto o material podem ser considerados comportamentos indignos. Essa consideração pode levar à inexistência da obrigação alimentar dos filhos para com os pais devido ao comportamento indigno destes. Isso resulta em uma espécie de relativização da reciprocidade24

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O conceito de família passou por inúmeras modificações ao longo do tempo. Atualmente, não é mais possível a acepção dessa instituição como uma instituição hierarquizada. Tal como, seu valor se assenta para além de um agrupamento de pessoas com características genéticas semelhantes.  

Com o advento da Constituição Federal de 1988, a família ganha um notório tratamento no ordenamento jurídico pátrio. O legislador passa a reconhecer a importância desta instituição não apenas para a evolução das relações sociais, como uma base elementar para o desenvolvimento do indivíduo. Diante disto, os pais são figuras elementares para que o ser construa as noções de laços afetivos.

No que tange ao abandono afetivo, se configura como a quebra de expectativa dos filhos e relação aos deveres dos pais. Mas, mais do que isso, é uma violação do direito do pleno desenvolvimento e da garantia fundamental à convivência familiar. A omissão de afeição dos genitores para com seus filhos gera danos psicológicos e sociais que, por vezes, reflete em toda a conjuntura da sociedade. 

Diante de tal omissão dos genitores, não pode o judiciário, quando chamado, ficar isento de uma possível lesão ao desenvolvimento do indivíduo. A omissão afetiva se configura como uma lesão moral ao ser humano e, portanto, aquele que a comente precisa ser responsabilizado na esfera cível e responder pelos danos que gerou aos seus filhos.

Por fim, destaca-se que a reflexão sobre as consequências do abandono afetivo compreende uma análise conjunta de inúmeras ciências. A aplicação da responsabilidade civil aos pais se configura como uma forma de fazer com que genitores ausentes analisem as reais consequências de suas omissões não sendo um instrumento de reparação ou monetarização das relações de afetos, uma vez que, em muitos casos será utilizado para minimizar os efeitos psicológicos que o abandono causa. 

No que tange a reciprocidade de alimentos, especificamente, o abandono afetivo pode ser considerado um comportamento indigno, que coloca em xeque a obrigação alimentar dos filhos para com os pais. 

A relativização da reciprocidade emerge como um elemento crucial nesse contexto, pois a falta de afeto por parte dos pais pode comprometer a justiça na imposição dessa obrigação. Dessa forma, é necessário um equilíbrio delicado entre os princípios de solidariedade e reciprocidade, considerando sempre o bem-estar e a dignidade de todas as partes envolvidas.

Conclui-se, como medida natural a ser adotada por doutrina e jurisprudência, a não obrigatoriedade/reciprocidade de prestação de alimentos dos filhos aos pais caso tenham sofrido abandono afetivo.


2 LACERDA, K. D. L. Abandono afetivo: uma visão para além da indenização. trabalho de conclusão de curso. 2. ed. Recife: EDIF, 2020. 

3 NOVAES, S. R. Abandono moral. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 10, nº. 40, P. 44, 2017.

4 CASTRO, F. L. História do direito: geral e Brasil. 13. ed. Rio de Janeiro, Lumen Juiris, 2020.

5 REIS, C.; PINTO, S. X. O abandono afetivo do filho, como violação aos direitos da personalidade. Revista Jurídica Cesumar, 12, n. 2, p. 503-523, set./dez, 2020. p. 504.

6 LACERDA, K. D. L. Abandono afetivo: uma visão para além da indenização. trabalho de conclusão de curso. 2. ed. Recife: EDIF, 2020.

7 CASTRO, F. L. História do direito: geral e Brasil. 13. ed. Rio de Janeiro, Lumen Juiris, 2020.

8 LOBO, P. L. Direito Civil: famílias, 8ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2020.

9 LACERDA, K. D. L. Abandono afetivo: uma visão para além da indenização. trabalho de conclusão de curso. 2. ed. Recife: EDIF, 2020.

10 RIZZARDO, A. Responsabilidade civil, 17 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

11 MADALENO, R. A guarda compartilhada pela ótica dos direitos fundamentais. In: WELTER. B; P.; MADALENO, R. (Coord). Direitos Fundamentais do Direito de Família. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2020.

12 GAGLIANO, P. S; PAMPLONA FILHO, R. Manual de direito civil, 3º ed. São Paulo: Saraiva, 2020.

13 LOBO, P. L. Direito Civil: famílias, 8ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2020.

14 PEREIRA, C. M. S. Responsabilidade civil. 30. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 11.

15 STOCCO, R. Tratado de responsabilidade civil: doutrina e jurisprudência. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.

16 DIAS, M. B. Manual de direito das famílias. 12 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. p. 407.

17 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial Nº 1.159.242. Recorrente: Antonio Carlos Jamas Dos Santos. Recorrido: Luciane Nunes De Oliveira Souza. Relatora: Ministra Nancy Andrighi.  Brasília, 24 de abril de 2019. Lex: jurisprudência do STJ e Tribunais de Justiça, Diário da Justiça Eletrônico. Disponível em: http://www.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp?newsession=yesetipo_visualizacao=RESUMOeb=ACORelivr e=115924. Acesso em: 28 mar. 2024.

18 DIAS, M. B. Manual de direito das famílias. 12 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. p. 407.

19 FERREIRA, Daniela Ribeiro. A POSSIBILIDADE DE RELATIVIZAÇÃO DA OBRIGAÇÃO DE PRESTAR ALIMENTOS RECÍPROCOS ENTRE PAIS E FILHOS NOS CASOS DE ABANDONO PELO GENITOR. Unisul: Araranguá, 2019. p. 47.

20 LEAL, Ângela da Silva. A RELATIVIZAÇÃO DA RECIPRICIDADE NA OBRIGAÇÃO DE PRESTAR ALIMENTOS ENTRE PAIS E FILHOS. Centro Universitário Atenas: Paracatu, 2020.

21 PIMENTEL, Carolina Justo. ABANDONO AFETIVO E AS CONSEQUÊNCIAS FUTURAS. Faculdade Doctum: Guarapari, 2017.

22 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

23 MASIEIRO, Isabela Christina Arrieta; ANDREASSA, João Victor Nardo. A RECIPROCIDADE NO DEVER DE PRESTAR ALIMENTOS DIANTE DA CONFIGURAÇÃO DO ABANDONO MATERIAL E AFETIVO DOS PAIS EM RELAÇÃO AOS FILHOS. RJLB, Ano 9 (2023), nº 5. 

24 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, volume 6: direito de família. 16ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.


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1Advogada- Ingrid Botelho Advocacia. Professora – Mentoria de Direito das famílias. Pós Graduada em Direito das Famílias e sucessões- Centro universitário Estácio da Bahia. Pós graduada em Direito civil e Processo Civil – Universidade Paraná. E-mail: IngridBotelho.advogada&gmail.com