REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202501182202
Estevão Mota Sousa1
Pedro Henrique Sousa Martins2
Resumo: O julgamento do HC nº 154.248 pelo STF em 2021 e posteriormente a promulgação da Lei nº 14.532/2023 modificaram radicalmente o tratamento jurídico dado ao crime de injúria racial, classificando-o como espécie do gênero de crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Para além das consequências penais de tal mudança, há também impactos nos efeitos secundários da pena imposta, dentre os quais se analisa a ocorrência da hipótese de inelegibilidade prevista no art. 1º, I, alínea e, 7, da Lei Complementar nº 64/90, que trata como inelegíveis os condenados por crimes de racismo. Neste trabalho, tendo como base teórica estudo bibliográfico e jurisprudencial, em especial o Recurso Extraordinário nº 929.670, discorre-se sobre a retroação da hipótese de inelegibilidade mencionada em caso de condenações ocorridas antes da vigência da Lei nº 14.532/2023.
Palavras-chave: Injúria Racial; Inelegibilidade; Retroatividade; Lei nº 14.532/2023;
1 INTRODUÇÃO
O tratamento jurídico dado ao crime de injúria racial foi radicalmente modificado nos últimos anos. Dentre as alterações relevantes, destacam-se o entendimento firmado na ocasião do julgamento do Habeas Corpus nº 154.248 pelo Supremo Tribunal Federal em 2021 (BRASIL, 2021), que equiparou o crime de injúria racial (art. 140, §3º do Código Penal Brasileiro) aos crimes de preconceito de raça ou de cor previstos na Lei nº 7.716/89 em todos os efeitos de sua classificação jurídica, incluindo a imprescritibilidade, sendo a injúria racial considerada uma espécie do gênero “crimes raciais”.
Poucos anos após a emissão de tal entendimento, esse foi positivado com a promulgação da Lei nº 14.532/2023 (BRASIL, 2023) a qual incluiu o art. 2º-A na Lei n.º 7.716/89, tratando da injúria em razão de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Porém, foi mantida no Código Penal a tipificação da injúria motivada por religião, condição de pessoa idosa ou com deficiência.
Com esta radical mudança no tratamento jurídico deste tipo penal, relevantes dúvidas surgiram quanto à aplicação ou não da previsão constante ao art. 1º, I, alínea e, 7, da Lei Complementar nº 64/90 (BRASIL, 1990), acrescentado pela LC nº 135/2010 (Ficha Limpa), que trata como inelegíveis os condenados por crimes de racismo e, portanto, tem-se situação ímpar quanto à possível retroatividade das alterações efetivadas em condenações anteriores à vigência da norma citada.
Assim, neste artigo, pretende-se analisar, por meio de estudo bibliográfico e jurisprudencial, se os condenados por injúria racial com trânsito em julgado anterior à promulgação da Lei nº 14.532/2023 estariam enquadrados na hipótese de inelegibilidade do art. 1º, inciso I, alínea e, 7, da LC nº 64/90.
Para tanto, foi inicialmente explorado o conteúdo tanto do julgamento do HC nº 154.248 pelo STF quanto o trâmite legislativo e a exposição de motivos do Projeto de Lei que deu origem à Lei nº 14.532/2023, de modo a melhor identificar as razões e efeitos das alterações jurídicas ocorridas.
Além disso, procedeu-se, em uma análise sobre o julgamento do Recurso Extraordinário nº 929.670 pelo STF, no qual foi tratada questão aparentemente semelhante à aqui tratada, oportunidade em se entendeu pela possibilidade de aplicação retroativa das disposições da Lei Complementar nº 135/2010 (Lei da “Ficha Limpa”).
Por fim, realizou-se diferenciação das premissas fáticas e jurídicas que motivaram o perfilhamento da tese acima disposta com os presentes no caso da Lei nº 14.532/2023, buscando maior adequação e observância aos Direitos Fundamentais do condenado e ao instituto basilar do direito processual, a Coisa Julgada.
2 MUDANÇAS EFETIVADAS NO HC. 154248/DF E PELA LEI Nº 14.532/2023
No julgamento do Habeas Corpus n. 154248/DF, de relatoria do Min. Edson Fachin, em 26/11/2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) equiparou o crime de injúria racial, previsto no art. 140, §3º, do Código Penal, ao crime de racismo tipificado na Lei n. 7.716/1989, o qual se afigura imprescritível, consoante ao art. 5º, XLII, da Constituição Federal de 1988.
Segue transcrição dos tipos penais mencionados (BRASIL, 1940):
Art. 140. Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:
(…) §3º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.
Pena – reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos e multa.
Entendeu-se que a injúria racial não é prática distinta do racismo, mas sim uma espécie desse último, porquanto se perpetra por meio de um tratamento diferenciado a um indivíduo baseado em estereótipos étnico-raciais, em violação à dignidade não só da vítima, mas de todo o grupo em que ela se insere.
Na dicção do voto do Relator do writ, a distinção entre os delitos é impossível, não cabendo a distinção clássica de que o racismo visa afetar uma coletividade enquanto a injúria racial envolve unicamente a honra subjetiva individual de indivíduo integrante de um grupo étnico. Veja-se:
A injúria racial consuma os objetivos concretos da circulação de estereótipos e estigmas raciais ao alcançar destinatário específico, o indivíduo racializado, o que não seria possível sem seu pertencimento a um grupo social também demarcado pela raça. Aqui se afasta o argumento de que o racismo se dirige contra grupo social enquanto que a injúria afeta o indivíduo singularmente. A distinção é uma operação impossível, apenas se concebe um sujeito como vítima da injúria racial se ele se amoldar aos estereótipos e estigmas forjados contra o grupo ao qual pertence (BRASIL, 2021, p. 13).1
Assim, partindo-se da compreensão acerca da indistinção ético-ontológica entre os tipos penais, o STF assentou que o crime de injúria racial também é imprescritível, afastando a tese, perfilhada pelo Ministro Nunes Marques, de incidência da prescrição in casu. Eis o que se dessume do voto-vogal do Min. Alexandre de Moraes:
Em conclusão, negar ao crime de injúria qualificada a imprescritibilidade equivaleria a diminuir a máxima efetividade das normas constitucionais, às quais deve ser atribuído o sentido de maior eficiência possível, conforme as regras hermenêuticas de interpretação constitucional. Assim, para garantir a supremacia incondicional do texto constitucional em relação a todo o ordenamento jurídico e sua força normativa inquestionável, deve o art. 140, § 3º, do Código Penal ser interpretado no sentido de ser imprescritível a punibilidade da conduta nele prevista, por força do art. 5º, XLII, da CF (BRASIL, 2021, p. 48).2
Na mesma linha do entendimento acima exposto, adveio a Lei n. 14.532/2023, a qual incluiu a tipificação da injúria racial no rol crimes resultantes de preconceito de raça e de cor, insertos na Lei n. 7.716/1989, na forma do art. 2º-A, procedendo a uma transmutação topográfica do tipo:
Art. 2º-A Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional. (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)
Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)
Ocorreu, pois, uma mudança topográfica do delito, já que o §3º do art. 140 do diploma penal não mais tipifica a injúria embasada em elementos de raça, cor, etnia e origem, prevendo doravante apenas a qualificadora atinente à utilização de referências à condição de pessoa idosa ou com deficiência.
Importante mencionar que a referida norma tem origem no Projeto de Lei nº 1.749/2015, o qual, originalmente, tipificava o crime de injúria racial coletiva e tornava a pública e incondicionada a ação penal cabível.
Na justificação do PL original, faz-se referência a manifestações racistas ocorridas em estádios de futebol, citando caso concreto ocorrido no ano de 2014 e mencionando que o tipo penal da injúria racial, nos termos da época, teria se “mostrado incapaz de punir com boa dose de proporcionalidade a conduta injuriosa praticada em locais públicos ou privados abertos ao público e nas redes sociais” .3
Posteriormente, houve maior distanciamento dos casos envolvendo a dinâmica esportiva e discussões com maior generalidade na problemática racial, tanto no substitutivo apresentado na Câmara dos Deputados, pelo relator para Plenário, quanto nos debates nas comissões do Senado Federal.
Logo, a iniciativa de mudança legislativa ocorreu de forma anterior à guinada jurisprudencial, tendo ocorrido de forma independente, mas com as mesmas intenções e resultados. Talvez esse fenômeno revele que o tratamento penal anteriormente dado à conduta injuriosa com conteúdo racial fosse juridicamente e socialmente inadequado, posto que rejeitada, nos mesmos termos, pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Congresso Nacional em uníssono.
Haja vista a mudança legislativa, tem-se que eventual condenação por injúria racial, tipo atualmente disposto no art. 2º-A da Lei n. 7.716/1989, acarretará a inelegibilidade do cidadão, como efeito secundário da pena criminal. Isso porque ficam inelegíveis, pelo período de 8 (oito) anos, os indivíduos que forem condenados pelo crime de racismo, consoante ao disposto no art. 1º, I, “e”, 7, da Lei Complementar n. 64/1990, com as alterações pela Lei Complementar n. 135/2010, também conhecida como Lei da Ficha Limpa (BRASIL, 2010).
Porém, ainda se questiona sobre os efeitos da alteração legal em condenações anteriores à vigência da nova regra. Buscando sanar tais questionamentos, analisa-se precedentes do Supremo Tribunal Federal sobre a aplicação retroativa de lei que cria novas hipóteses de inelegibilidade, como se verificará subsequentemente.
3 RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº 929.670/DF – APLICAÇÃO RETROATIVA DA “LEI DA FICHA LIMPA” E SUA DIFERENCIAÇÃO COM O CASO EM ANÁLISE
No julgamento do Recurso Extraordinário n. 929.670/DF (BRASIL, 2018), o Pretório Excelso decidiu, por 6X5, que as hipóteses de inelegibilidade – entendendo que estas não figuram como sanções -, não consubstanciariam direito adquirido a regime jurídico anterior, a dizer que aplicáveis as alterações legislativas encetadas pela LC n. 135/2010 mesmo aos casos com trânsito em julgado anterior a novatio legis.
No caso analisado à época, apreciava-se a questão da mudança do prazo de inelegibilidade de 5 (cinco) para 8 (oito) anos, na nova forma do art. 22, XIV, da LC n. 64/90, e se esse novo lapso se aplicaria a situações de inelegibilidade atestadas antes da Lei da Ficha Limpa.
Ao final, prevaleceu o voto divergente do Min. Luiz Fux, que concluíra que a inelegibilidade não representa uma sanção, mas sim requisito negativo de conformação às regras das eleições subsequentes, nos seguintes termos:4
Se é escorreita a tese de que a inelegibilidade do art. 22, XIV, da LC nº 64/90 não é sanção, o que ficou exaustivamente demonstrado ao longo do meu voto, inexiste lastro jurídico para rejeitar o aumento de prazo de 3 para 8 anos a fatos pretéritos.
(…)
Com isso não se está a franquear que o legislador estaria apto a estabelecer, a seu talante, sanções em franca inobservância das garantias constitucionais. Somente se admite esse alargamento dos prazos de inelegibilidade porquanto se parte da premissa de que não se está diante de sanções ou penalidades. A inelegibilidade consubstancia requisito negativo de adequação do indivíduo ao regime jurídico do processo eleitoral (grifos do original)
Esta interpretação, fruto de maioria apertadíssima e com decisão tomada em momento político pontuado por uma busca de maior controle de moralidade pelos sujeitos em relação a atos políticos, sofreu e sofre duras críticas da doutrina nacional, dentre as quais se destaca Eneida Desirré, a qual entende que:
Ainda que se queira afastar a intuição corrente que enxerga a inelegibilidade como pena, intuição adequada à ideia de inelegibilidades cominadas, trata-se inegavelmente de restrição a direito fundamental. Dessa forma, todos os cuidados referentes à proteção do núcleo essencial e à adequação aos comandos constitucionais devem ter plena observância. Permitir a aplicação da lei retroativa com argumentos acrobáticos é abrir espaço para leis concretas e fissuras jurídicas capazes de atingir qualquer direito fundamental baseadas no mesmo argumento — ou, como diria o Ministro Dias Toffoli em seu voto, de fissuras em fissuras são produzidas fraturas graves que podem levar à ruína da estrutura do sistema normativo. (grifo nosso)5
Na mesma toada, Volgane de Oliveira afirma que o caminho hermenêutico para se aplicar as regras que tratam sobre inelegibilidade deve concomitantemente não desconstituir seu conteúdo, tampouco expandir seu alcance de forma danosa. Assim:6
(…) as inelegibilidades possuem natureza de normas limitadoras de direito fundamentais, notadamente, atingem o direito à elegibilidade. Assim, dada a sua condição especial, a interpretação destas normas está amarrada ao respeito a alguns procedimentos com o escopo de evitar, concomitantemente, que percam seu valor ou tornem-se demasiado abusivas.
Entretanto, no presente estudo, distintamente do analisado pelo STF, não se está a analisar a aplicação retroativa das alterações de uma lei cível-eleitoral, mas sim os efeitos jurídicos advindos de uma nova lei penal, que procedeu não só a uma modificação topográfica, mas também a um novo dimensionamento do delito.
Logo, é necessário se perquirir se, para situações em que houve condenação por injúria racial, antes da Lei n. 14.532/2023, também há a incidência retroativa dessa lei para fins de configuração da hipótese de inelegibilidade art. 1º, I, “e”, 7, da Lei Complementar n. 64/1990.
Verifica-se, de pronto, uma situação idiossincrática, visto que não houve a inclusão de uma nova hipótese de inelegibilidade, mas sim o englobamento por circunstância preexistente, limitante do ius honorum, pela nova norma penal mais gravosa, ao se considerar se o delito de injúria racial, à época disposto no §3º do art. 140 do CP, possuía pena de reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos, ao passo que a injúria racial, agora tipificada no art. 2º-A da Lei n. 14.532/2023, comina pena de 2 (dois) a 5 (cinco) anos.
Em primeiro plano, a discussão se a inelegibilidade configura sanção ou mera inadequação ao regime jurídico não se mostra pacífica, dos pontos de vista ontológico e teleológico.
Contudo, a Suprema Corte Federal, empós a promulgação da LC n. 135/2010, perfilhou o entendimento de que a incidência de novas condições de inelegibilidade não afronta o princípio da irretroatividade das leis, porquanto a conformação ao regime político-eleitoral representa mera expectativa de direito, consoante se decidiu no julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 29/DF, de relatoria do Min. Luiz Fux, cujo julgamento ocorreu em 16/02/2012.
Vide, pois, excerto do ementário do aresto de julgamento da ADC n. 29/DF (BRASIL, 2012):
1. A elegibilidade é a adequação do indivíduo ao regime jurídico – constitucional e legal complementar – do processo eleitoral, razão pela qual a aplicação da Lei Complementar nº 135/10 com a consideração de fatos anteriores não pode ser capitulada na retroatividade vedada pelo art. 5º, XXXVI, da Constituição, mercê de incabível a invocação de direito adquirido ou de autoridade da coisa julgada (que opera sob o pálio da cláusula rebus sic stantibus) anteriormente ao pleito em oposição ao diploma legal retromencionado; subjaz a mera adequação ao sistema normativo pretérito (expectativa de direito).
Por sua vez, José Jairo Gomes explana que não há incompatibilidade entre o entendimento do STF e a compreensão de que existem hipóteses de inelegibilidade-sanção, ao se considerar que muitas dessas têm respaldo na prática de ilícitos, cuja configuração depende de decisão judicial transitada em julgado; conquanto outras são atinentes tão somente à condição jurídica profissional do cidadão. Procede o autor à seguinte categorização no âmbito da inelegibilidade-sanção (GOMES, 2020):
No primeiro caso, tem-se a denominada inelegibilidade-sanção. Ela tem origem na prática de ilícito, situando-se na linha de eficácia da decisão que o declara e sanciona. Duas situações podem ocorrer. Primeira: a inelegibilidade constitui efeito direto e imediato da decisão, sendo por ela constituída. É isso o que ocorre, e.g., na hipótese prevista nos arts. 19 e 22, XIV, ambos da LC no 64/90. Aqui, é imposta a sanção de inelegibilidade (entre outras) como consequência do ilícito eleitoral consubstanciado em abuso de poder. Está-se no campo da responsabilidade eleitoral, havendo responsabilização pela prática de atos ilícitos ou auferimento de benefícios destes decorrentes. A inelegibilidade é constituída pela decisão judicial que julga procedente a causa eleitoral – o decisum tem matiz constitutivo-positivo. Segunda situação: a inelegibilidade é efeito secundário ou indireto de uma decisão sancionatória da prática de ilícito (que pode ser penal, administrativo etc.). Como exemplo dessa segunda situação, cite-se a inelegibilidade prevista na alínea “e” do inciso I, art. 1º, da LC nº 64/90. Um dos efeitos secundários da decisão penal condenatória por “tráfico de entorpecentes” é a inelegibilidade do agente. Mas esse efeito só surge por força da alínea e, I, art. 1º da LC nº 64/90, porque pela Constituição Federal as hipóteses de inelegibilidade devem ser estabelecidas por lei complementar (CF, art. 14, § 9º) – é necessária, então, a conjugação da decisão judicial condenatória com a previsão em lei complementar.
Já em um segundo caso, tem-se a inelegibilidade inata ou originária, qual seja a que não decorre de uma sanção jurídica, por figurar como uma conformação do indivíduo ao regime jurídico eleitoral. As hipóteses enquadradas nessa dimensão inata buscam resguardar determinados valores considerados caros pela sociedade, com vistas à salvaguarda do interesse público. Eis o que se aplica a Magistrados e a membros do Ministério Público, que não podem imiscuir-se em atividades político-partidárias.
Logo, a inelegibilidade pode apresentar duas dimensões, uma de caráter sancionatório, seja em virtude dos efeitos de uma condenação direta na esfera eleitoral, seja como corolário de uma sanção nas searas cível, administrativa ou penal; outra oriunda de uma natureza fática não advinda da prática de qualquer ilícito, que indicará a conformação ou não com o regime jurídico nas eleições subsequentes (GOMES, 2020).
Ademais, a inelegibilidade-sanção pode ser aplicada em uma eleição específica, constituindo uma inelegibilidade comum simples, bem como tem o condão de obstaculizar o exercício do ius honorum em eleições futuras, ao figurar como inelegibilidade cominada potenciada, como explana Alexandre Nogueira (2014). Na perspectiva desse autor, ao analisar as circunstâncias de inelegibilidade, a depender do caso, a Justiça Eleitoral emprega a interpretação teleológica ou finalista em transpasse ao “círculo hermenêutico” adstrito à dicção da norma.
Isso porque não é a interpretação da lei, em se tratando de restrição de prerrogativas, que deve ser moralizadora, mas sim a própria “mens legis” deve carrear o preceito moral que se vislumbra resguardar, sob pena de se chancelar a aplicação do método criativo-expansionista para cada caso.
Os textos normativos não devem ser meramente válidos, mas moralmente corretos desde sua origem. Não é a interpretação/aplicação que deve ser moral, mas a essência do próprio evento (texto-normativo), de forma que a aplicação, ou seja, na construção da norma, a moral já esteja presente, inserida no direito pelo princípio da moralidade, não dependendo, desta forma, da vontade do intérprete em realizar uma leitura moral, mas de apresentar uma leitura hermenêutica do texto normativo (NOGUEIRA, 2014, p. 89).
Assim, a aplicação da lógica temporal típica do direito penal é mais adequada ao caso, respeitando o princípio constitucional da irretroatividade da norma de direito material que prejudique o réu (art. 5º, XL, CF/88). Isso se dá sobretudo por ter a nova lei não somente deslocado topograficamente o tipo, mas de fato criado novo tipo, com nova pena, classificação, e, por conseguinte, com efeitos somente aplicáveis aos casos ocorridos a partir de sua promulgação.
Logo, a tese atualmente adotada é a de que as alterações no regime de inelegibilidade retroagem, mesmo que para prejuízo do cidadão. Porém, no julgado referido, tratava-se de alteração feita na própria LC nº 64 com expressa disposição sobre a aplicação de inelegibilidade para os casos listados, aqui se trata de alteração em lei penal que somente complementa o disposto na LC, acrescentando um tipo ao conjunto “crimes de racismo” genericamente previsto.
Assim, não se trata da retroatividade de norma cível-eleitoral, mas sim da alteração indireta do rol de uma das hipóteses de inelegibilidade mediante o advento de nova legislação penal, a qual gera a inelegibilidade como efeito secundário da pena. Logo, a aplicação da lógica temporal típica do direito penal é mais adequada ao caso, respeitando o princípio constitucional da irretroatividade da norma de direito material que prejudique o réu (art. 5º, XL, CF/88). Isso se dá sobretudo por ter a nova lei não somente deslocado topograficamente o tipo, mas de fato criado novo tipo, com nova pena, classificação, e, por conseguinte, com efeitos somente aplicáveis aos casos ocorridos a partir de sua promulgação.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A decisão do STF, no julgamento do Habeas Corpus n. 154248/DF, ao equiparar o delito de injúria racial ao de racismo – entendendo o primeiro como espécie do segundo, para fins de imprescritibilidade -, indubitavelmente evidencia o compromisso do Estado Brasileiro com o combate a todas as formas de discriminação pautadas em cor e origem étnica.
Por sua vez, a transmutação da concepção judicial reverberou na mudança legislativa, ante a promulgação da Lei n. 14.532/2023, que procedeu a um deslocamento não só topográfico do delito de injúria racial, do art. 140, §3º do CP, para a Lei n. 7.716/1989, mas também a um agravamento da sanção penal a esse cominada; o que se amolda a uma perspectiva ético-sociológico da política criminal.
Ao se analisar a influência dessas alterações nas demais searas do direito, chega-se à situação de inelegibilidade prevista no art. 1º, I, “e”, 7, da LC n. 64/90, a qual estabelece, dentre outros crimes, a prática do racismo como óbice para o jus honorum; o que se afigura como uma hipótese de inelegibilidade-sanção, porquanto é efeito secundário de condenação em outra esfera, segundo doutrina abalizada em direito eleitoral.
Não obstante a Suprema Corte compreenda que as hipóteses de inelegibilidade constituem mera inadequação ao regime jurídico, conforme se assentou no julgamento do Recurso Extraordinário n. 929.670/DF, de relatoria do Min. Luiz Fux, de modo que inexistiria direito adquirido à conformidade a requisitos de elegibilidade anteriores; é necessário que se resguarde a eficácia da coisa julgada em relação a casos de injúria antes da Lei n. 14.532/2023.
Isso porque o sobredito diploma normativo não apenas realocou a tipificação do delito de injúria racial, mas o redimensionou, inclusive atribuindo-lhe pena mais gravosa, razão pela qual, ainda que sob o prisma da adequação ao regime eleitoral de eleições vindouras, não se pode atribuir interpretação mais gravosa a circunstâncias apuradas e julgadas quando o sobredito tipo penal ainda não se enquadrava no rol dos crimes de racismo dispostos na Lei n. 7.716/1989.
Caso subsista esse entendimento, tende-se a chancelar uma revisão criminal indireta, que, sem balizas claras dirimidas pelo Pretório Excelso, pode ser aplicada in malan partem de forma casuística, em inobservância ao enquadramento jurídico realizado à época dos fatos, em desprestígio ainda ao princípio da segurança jurídica.
Por conseguinte, depreende-se que a Lei n. 14.532/2023 trouxe uma importante transformação ético-jurídica quanto ao acréscimo da injúria racial no rol dos crimes de racismo. Contudo, o recrudescimento criminal, do mesmo modo que não pode afetar negativamente réus anteriormente condenados por esse delito, enquanto esse ainda era tipificado no Código Penal, tampouco pode reverberar efeitos secundários mais gravosos a candidatos do pleito eleitoral de 2024, sob pena de mensuração, a partir de ulterior perspectiva sancionatória, de fatos já amoldados a um determinado regime jurídico à época, com consequências eleitorais distintas. Afinal, da ratio essendi das decisões do STF, conclui-se que os efeitos da (des)conformidade com os requisitos da elegibilidade devem ser pro futuro.
1 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 154.248. Relator: Ministro Edson Fachin. Diário de Justiça Eletrônico. Brasília, 24 ago. 2021. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15349811889&ext=.pdf. Acesso em: 01 jun. 2024.
2Ibid.
3 Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1301128. Acesso em 06/06/2024.
4 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 929.670. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Diário de Justiça Eletrônico. Brasília, 01 mar. 2018. p. 35. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=749587890. Acesso em: 01 jun. 2024.
5 SALGADO, Eneida Desiree; ARAÚJO, Eduardo Borges. Do legislativo ao Judiciário: a Lei Complementar nº 135/2010 (“Lei da Ficha Limpa”), a busca pela moralização da vida pública e os direitos fundamentais. Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, 2013. p. 145.
6 CARVALHO, Volgane Oliveira. Manual de Inelegibilidades: comentários à Lei de Inelegibilidades e jurisprudência atualizada do TSE e STF. Curitiba: Juruá, 2024. p. 137.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Ficha de Tramitação da Lei nº 14.532/2023. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2023/lei-14532-11-janeiro-2023-793685-publicacaooriginal-166855-pl.html#:~:text=Na%20interpreta%C3%A7%C3%A3o%20desta%20Lei%2C%20o,etnia%2C%20religi%C3%A3o%20ou%20proced%C3%AAncia.%22.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1988.
BRASIL. Presidência da República. Lei complementar nº 64. Dispõe sobre os casos de inelegibilidade e cassação de mandato, 1990. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp64.htm. Acesso em: 01 jun. 2024.
BRASIL. Presidência da República. Lei 14.532. Dispõe sobre a injúria racial e tipifica como crime de racismo. Brasília, 2023. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/l14532.htm. Acesso em: 01 jun. 2023.
BRASIL. Presidência da República. Lei 2.848. Institui o Código Penal, 1940. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 01 jun. 2024.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Constitucionalidade 29. Relator: Ministro Luiz Fux. Diário de Justiça Eletrônico; 29 jun. 2012.
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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 929.670. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Diário de Justiça Eletrônico. Brasília, 01 mar. 2018. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=749587890. Acesso em: 01 jun. 2024.
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CARVALHO, Volgane Oliveira. Manual de Inelegibilidades: comentários à Lei de Inelegibilidades e jurisprudência atualizada do TSE e STF. Curitiba: Juruá, 2024.
1Mestrando em Direito Constitucional – UFC
Pós-graduado em Direito e Processo Eleitoral (UNIFOR)
Pós-graduado em Direito Público (LEGALE)
2Mestrando em Direito Constitucional – UFC