DESDE LA CIMA DE MORRO DA GURITA: territorios sagrados y turismo religioso – conflictos
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102501170750
José Heleno Ferreira1
RESUMO:
O tema central deste trabalho é a relação entre os territórios sagrados e os empreendimentos relacionados ao turismo religioso. Discute-se a invisibilização das histórias e das memórias populares relacionadas ao Morro da Gurita a partir da construção da Cruz de Todos os Povos. Apresenta-se a história do Morro da Gurita a partir da análise de documentos eclesiásticos e da tradição oral e os processos de construção da Cruz de Todos os Povos a partir de documentos oficiais da associação responsável pelo empreendimento. A questão que orienta o trabalho é analisada, entre outros, a partir do conceito de pensamento abissal apresentado por Boaventura de Sousa Santos. Conclui-se afirmando a urgência do debate público para que não se invisibilizem as memórias e histórias populares relacionadas ao Morro da Gurita.
PALAVRAS-CHAVE: Morro da Gurita; Cruz de Todos os Povos; territorialidade; memória
RESUMEN:
El tema central de este trabajo es la relación entre los territorios sagrados y las empresas relacionadas con el turismo religioso. Discutir la invisibilidad de las historias y recuerdos populares relacionados con Morro da Gurita desde la construcción de la Cruz de todos los pueblos. La historia de Morro da Gurita se presenta con base en el análisis de documentos eclesiásticos y tradición oral y los procesos de construcción de la Cruz de Todos los Pueblos a partir de documentos oficiales de la asociación responsable de la empresa. La pregunta que guía el trabajo se analiza, entre otros, desde el concepto de pensamiento abisal presentado por Boaventura de Sousa Santos. Concluye declarando la urgencia del debate público para que los recuerdos populares y las historias relacionadas con Morro da Gurita no sean invisibles.
PALABRAS CLAVE: Morro da Gurita; Cruz de Todos los Pueblos; territorialidad memoria
Introdução
No alto, o Cruzeiro… local para onde se dirigem os romeiros e peregrinos. Onde se reúnem homens e mulheres para dizer de suas dificuldades, pedir a intervenção divina para as suas dores e também para cantar e celebrar a vida e buscar alento para continuar a caminhada. O Cruzeiro enfeitado! Colorido pelas bandeirinhas e flores, iluminado pelas velas e pelos fogos durante as festas de Santa Cruz. O Cruzeiro molhado, a lavagem da Cruz durante as oferendas aos Orixás. O terço cantado e a demonstração de fé na vida de homens e mulheres que são, acima de tudo, fortes o suficiente para continuar a viver!
Do alto, o muro de pedra seca, o Cruzeiro de aroeira preta e os alicerces da antiga Capela de Santa Helena nos olham. Estão no ponto mais elevado do município. Do alto, no cume do Morro da Gurita, nos olham e guardam histórias dos viajantes que buscavam a Picada de Goiás, dos festejos de Santa Cruz, das oferendas aos Orixás, das preces dos caboclos e caboclas católicos, candomblecistas, umbandistas e tantos mais.
No alto do morro se veem, agora, homens trabalhando, máquinas removendo terra e pedras, trazendo aço e fios e lâmpadas… O Cruzeiro de aroeira preta, o alicerce da antiga capela, o muro de pedra seca observam silenciosos a construção da Cruz de Todos os Povos.
Novas histórias serão contadas sobre e a partir do Morro da Gurita? As memórias centenárias dos fiéis que ali rezaram, celebraram, festejaram estarão guardadas nas entranhas do morro, na madeira do Cruzeiro, nas pedras do antigo alicerce? Ou se perderão em meio ao burburinho do turismo religioso e à grandiosidade da Cruz de Todos os Povos que se ergue no topo do morro? Quem poderá contá-las?
Este texto tem como objetivo problematizar a construção da Cruz de Todos os Povos no alto do Morro da Gurita, no município de Divinópolis – MG e o possível silenciamento de uma história secular e da memória de muitas gerações de homens e mulheres que fizeram, deste, um lugar sagrado. Para isso, apresenta a história do Morro da Gurita, registrada por historiadores, memorialistas e sociólogos da cidade de Divinópolis a partir de relatos orais e documentos eclesiásticos, e, recorrendo ao Dossiê Cruz de Todos os Povos – Divinópolis – MG, organizado pela Associação Terra de Deus (2019), as informações sobre a construção da Cruz do Espírito Santo.
Para analisar o conflito latente entre a religiosidade popular e o empreendimento ligado ao turismo religioso, recorre-se, entre outros, a Boaventura de Sousa Santos (2009) e ao conceito de pensamento abissal, ao trabalho de Luana Carla Martins Campos Akinruli e Samuel Ayobami Akinruli sobre a congada em Minas Gerais e as memórias de exclusão no tecido urbano (2017), além de discutir o conceito de território e territorialidade, considerando as contribuições de Maria da Encarnação Beltrão Sposito (2019)
1. O Morro da Gurita
O Morro da Gurita é o ponto mais alto do município de Divinópolis – MG, a 875 metros acima do nível do mar. De acordo com a historiadora e pesquisadora Erivelta Diniz, o registro histórico mais antigo que se tem do local faz referência a uma sesmaria de três léguas concedida a Sebastião Dias dos Reis na Paragem da Gurita, à época, sob a jurisdição da Vila de São Bento do Tamanduá, atual Itapecerica.
Em correspondência ao bispo de Mariana, Antônio Maria Correia de Sá e Benevides, datada de 15 de dezembro de 1883, Dona Paula Maria de Jesus Tobias solicita – e tem concedida – a autorização para desativar uma capela na Serra da Gurita, justificando a necessidade de trasladá-la para a comunidade de Lavapés, para evitar que ruísse e danificasse o patrimônio ali existente. Tais documentos, sob a guarda da Arquidiocese de Mariana, comprovam a existência do Orago de Santa Helena no pico do Morro da Gurita, local em que, ainda hoje, estão o cruzeiro de aroeira preta, os alicerces da antiga capela e um muro de pedra seca.
De acordo com o Memorial do Capitão José Clementino Pereira2, a ermida em devoção a Santa Helena foi construída no alto do Morro da Gurita por volta de 1730, pelo Major João Ferreira da Silva.
Flávio Flora, especialista em Gestão Púbica e Municipal (UEMG) e responsável por estudos de cunho historiográfico sobre a história da região no século XVIII, publicada pela Câmara Municipal de Divinópolis em nove números da revista A Prova – Segunda Fase (1989-2002), afirma que “o primeiro marco civilizatório plantado na região foi a guarita construída sobre o monte mais elevado da serra denominada Gurita” (A Prova, 1998, p. 44), o que teria ocorrido na primeira metade do século XVIII, para demarcar os limites da Vila de Pitangui, às vésperas da abertura da Picada de Goiás. A guarita, com o tempo, foi transformada em ermida, servindo também como pousada para os viajantes que, do alto do morro, se sentiam seguros, podendo avistar ao longe a chegada de quaisquer perigos. No entorno do Morro da Gurita surge a povoação de Santo Antônio dos Campos dos Milagres de Ermida que, a partir de 1952, denomina-se apenas Santo Antônio dos Campos.
2 Trata-se de um texto não publicado. Os escritos do Capitão José Clementino Pereira estão sob a guarda de seu filho, Antônio Paduano Pereira.
As referências a tais milagres são encontradas na tradição oral. A procissão clamando por água em tempos de seca “que subia o monte sob o Sol e descia sob chuva torrencial” (A Prova, 1998, p. 44), o poder miraculoso das águas da cascata do córrego de Olaria, utilizadas pelos indígenas para curar as feridas das guerras, a conversão do major João Ferreira da Silva, na comunidade de Lavapés, que, de senhor violento e insensível, passou a lavar os pés de seus escravizados estão entre as histórias ouvidas por Flávio Flora em suas pesquisas sobre a região.
O que temos em comum nas correspondências eclesiásticas analisadas pela historiadora Erivelta Diniz, no memorial de José Clementino Pereira e nos estudos de Flávio Flora é a referência à capela ou orago em devoção a Santa Helena, cuja construção data das primeiras décadas do século XVIII, no alto do Morro da Gurita, destruída no final do mesmo século e trasladada para a comunidade de Lavapés, onde se encontra, atualmente, a Capela de Santa Helena.
Outras memórias mais recentes dizem das celebrações da festa de Santa Cruz, no dia 03 de maio, quando Frei Leonardo Lucas Pereira, franciscano que atuou junto às comunidades rurais do município de Divinópolis durante muitos anos, subia o morro a cavalo para rezar em torno do velho Cruzeiro de aroeira preta. Tais lembranças, vivas nos relatos dos moradores do bairro São Roque, foram registradas pelos estudantes do oitavo ano do ensino fundamental da Escola Municipal Padre Guaritá (localizada no bairro São Roque, próximo ao Morro da Gurita) durante o desenvolvimento do projeto de pesquisa Silenciamentos e permanências em Divinópolis: as transformações da cidade e o diálogo com seu patrimônio cultural (Ferreira, 2019). “Subíamos o morro cantando louvores à Santa Cruz!”, diz uma das moradoras do bairro, de 53 anos de idade, ouvida durante as entrevistas. “Desde pequena, todo ano eu subia o morro com a minha avó para celebrar a Santa Cruz”, relata outra moradora, de 65 anos3.
A Festa de Santa Cruz, tradição religiosa trazida para o Brasil pelos portugueses, está presente em diversas regiões brasileiras, principalmente nas comunidades rurais. Em Divinópolis, esta festa conta também com a presença dos congadeiros, conforme registram os estudos de Batistina Maria de Sousa Corgozinho, que se dedicou ao tema no pós-doutorado na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), com o trabalho sobre a “Festa de Santa Cruz e o Terço Cantado” nas comunidades rurais e urbanas no município de Divinópolis: “alguns Cruzeiros não são mais glorificados pela população local, mas em outros, a festa em homenagem à Cruz continua sendo realizada com vigor, tanto por comunidades rurais, quanto por Guardas de Reinado” (Corgozinho, 2011, p. 86).
A participação dos congadeiros nas Festas de Santa Cruz no município de Divinópolis e mais especificamente no Morro da Gurita é registrada também pelo cineasta Romulo Corrêa no documentário Santa Terra – Morro da Gurita (2019), que contou com a participação do grupo de tambores africanos Ilê Asè Omo Omi Odé4. O documentário foi produzido a partir da realização de uma série de entrevistas com moradores e moradoras do entorno do Morro da Gurita, entre eles, o babalaorixá Rodrigo de Oxóssi, que ressaltam a experiência com a vivência do sagrado no alto do Morro.
Muitas memórias. Muitas histórias entranhadas nas pedras e árvores do Morro da Gurita. Histórias estas que, agora, estão diante de um novo capítulo: a construção da Cruz de Todos os Povos. Que transformações essa construção trará para o Morro da Gurita e para a relação que as comunidades tradicionais têm com o local? Seguramente, novas histórias serão inscritas no e a partir do local. Novas sociabilidades, novas maneiras de se relacionar com o sagrado. As memórias seculares acerca do Morro da Gurita encontrarão espaços nesta nova configuração? Esta é a questão que norteia o presente trabalho.
3 As entrevistas foram feitas pelos estudantes do oitavo ano do ensino fundamental da Escola Municipal Padre Guaritá, durante os meses de agosto e setembro de 2018, com moradoras do bairro sobre o Morro da Gurita e a Festa de Santa Cruz.
4 Casa das Energias dos Filhos das Águas do Caçador – tradução feita pelo próprio Grupo de Tambores Africanos;
2. A Cruz de Todos os Povos
A construção da Cruz de Todos os Povos é um grandioso empreendimento turístico e religioso que vem sendo implementado no município de Divinópolis, onde será instalada a terceira Cruz de Todos os Povos: a primeira delas, representando o Pai, está no Líbano, a segunda, representando o Filho, no México (construções concluídas, respectivamente, em 2010 e 2012). Em Divinópolis, a Cruz tem como referência o Espírito Santo.
Tal empreendimento é coordenado pela Associação Terra de Deus, pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, que, de acordo com o Dossiê Cruz de Todos os Povos – Divinópolis – MG (2019), trazendo informações sobre o processo de construção da Cruz de outubro de 2016 a maio de 2019, disponibilizado para a imprensa e disponível em https://www.cruzdetodosospovos.org.br/, tem, entre os outros os objetivos de
- – organizar atividades de formação e intercâmbio para a Vida com Deus, tanto entre o público e entre os seus membros
- reunir as correntes de vários pensamentos e ações, incentivar a colaboração em vez de competição, que levam as pessoas geralmente divididas em domínios separados (científico, econômico, político, religioso etc.), para alcançar o conhecimento de Deus;
- – estimular a pesquisa espiritual e sua aplicação prática, nomeadamente a criação de modelos e métodos de implementação da Palavra de Deus, a Palavra criadora que permite a arte de levar a dimensão humana da nossa participação; I
- desenvolver uma ética abrangendo todas as atividades sociais reorientadas em direção a Deus;
- – contribuir para desenvolver concretamente os problemas da sociedade, deslocando cada um para o seu propósito espiritual;
- – apoiar e ser apoiado, financeiramente e de outras, a agir para desenvolvimento da fé, a espiritualidade.
O documento traz informações sobre o município de Divinópolis, tomando como referência dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010: uma cidade com 213 mil habitantes, sendo considerada possuidora do quinto melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do estado de Minas Gerais. Salienta ainda o potencial para novos investimentos na cidade, apontando o fato de que estudos da Fundação João Pinheiro mostram o município entre os dez melhores do estado de Minas Gerais e os cem melhores do Brasil para investimentos econômicos.
Entre os documentos que compõem o Dossiê, estão As edições, os esmaecimentos, os desfoques, os apagamentos, mostram-se de forma concreta em registros não somente da experiência, mas nas representações daquilo que se pesquisa. Há ângulos de visão distorcidos, e tratam-se de jogos de escalas nos quais coletividades “minúsculas” onde vivem pessoas “consideradas minúsculas” se chocam com políticas culturais municipais, estaduais ou federais de grande magnitude, colossais. (p. 4).duas cartas do então Bispo Diocesano, Dom José Carlos Souza Campos, sendo a primeira de 13 de junho de 2016, endereçada ao Presidente da Associação Terra de Deus, Sr. Jesús Justo Ibanez, e a segunda, endereçada ao Sr. Roberto Antônio Alpino Rodrigues, de 27 de setembro do mesmo ano. Na primeira carta, o Bispo Diocesano reafirma o convite à Associação Terra de Deus para que seja construída a Cruz de Todos os Povos no município de Divinópolis e disponibiliza, para tal, a infraestrutura necessária e um terreno de 10.000m². Na segunda carta, o Bispo Diocesano solicita ao Sr. Roberto Antônio Alpino Rodrigues a doação de um terreno de 10.000m² no alto do Morro da Gurita para a construção de uma torre metálica de aproximadamente 87,50 metros.
Considerando as datas das duas correspondências, é possível inferir que a segunda carta tem o objetivo de oficializar a doação do terreno, uma vez que a referência ao mesmo já está explícita na carta enviada ao Presidente da Associação Terra de Deus mais de três meses antes. Outra questão que nos chama atenção nas primeiras páginas do Dossiê é a ênfase no potencial para o desenvolvimento de atividades econômicas do município de Divinópolis, conforme já apresentado anteriormente.
Após a apresentação das cartas, além de fotos e informações históricas sobre as cruzes construídas no Líbano e no México, o Dossiê traz outros documentos que compõem o processo de construção da Cruz de Todos os Povos: o Instrumento Particular de Doação, registrado no Cartório Mota – Primeiro Ofício de Notas de Divinópolis, em 07 de outubro; as fotos do Coquetel de Lançamento da Cruz do Espírito Santo, em 24 de outubro; o Termo de Autorização de Montagem de Torre em Estrutura Metálica em Forma de Cruz, assinado pelo então Prefeito Municipal Vladimir de Faria Azevedo, em 22 de dezembro; o lançamento da pedra fundamental da construção, em 24 de dezembro, todos de 2016. Ainda referente ao ano de 2016, o Dossiê traz a carta do Bispo Diocesano de Divinópolis ao Papa Francisco, datada de 30 de dezembro, solicitando a bênção para a construção da Cruz do Espírito Santo e fazendo o convite para que o Santo Padre esteja presente na inauguração.
Em relação ao ano de 2017, o Dossiê traz uma série de documentos que ressaltam as negociações com os órgãos institucionais para viabilizar a construção da Cruz de Todos os Povos. Entre encontros e reuniões com órgãos empresariais e institucionais no município, na capital mineira e em Brasília – DF, destacam-se a reunião com o Secretário de Estado de Turismo de Minas Gerais, realizada no mês de fevereiro, na qual se afirma que a inciativa impulsionará grandemente o turismo religioso e de negócios na região; a aprovação do Projeto de Lei EM 025/2017, em 10 de agosto, autorizando a criação da Secretaria Municipal de Turismo e, quatro dias depois, em 14 de agosto de 2017, a Assembleia de Constituição da Associação Terra de Deus em Divinópolis.
Os documentos referentes ano de 2018 ressaltam a repercussão, na imprensa local, do projeto de construção da Cruz de Todos os Povos e traz fotografias das bênçãos do início da fundação da Cruz do Espírito Santo, realizadas em 16 de julho e 14 de setembro do mesmo ano, com a presença do Bispo Diocesano. No que diz respeito aos primeiros meses do ano seguinte – lembrando que o Dossiê abarca o período de 2016 a maio de 2019, encontram-se registros de encontros internacionais nos quais a construção da Cruz do Divino Espírito Santo em Divinópolis MG é referência e a carreata realizada pela Associação Terra de Deus e pela Diocese de Divinópolis, em 24 de abril, por ocasião da chegada do material para a construção dos doze primeiros metros da Cruz.
As duas últimas páginas do Dossiê trazem a informação de que foram concluídas as instalações dos doze primeiros metros da Cruz, em 03 de maio de 2019, e solicita a colaboração dos cidadãos e cidadãs para o término do empreendimento, apresentando, para isso, o número de uma conta corrente na Caixa Econômica Federal na qual poderão ser realizados os depósitos por aqueles e aquelas que queiram fazer suas doações.
3. Da visibilidade e da invisibilidade das histórias e memórias de um território
A construção da Cruz do Espírito Santo no município de Divinópolis é um grandioso empreendimento relacionado ao turismo religioso, saudado pela imprensa local, por empresários e órgãos governamentais como promissor e relevante para o desenvolvimento econômico da região. Tal questão não é discutida neste texto. O que se busca é problematizar as relações entre as comunidades e grupos religiosos que secularmente tornaram o alto do Morro da Gurita um lugar sagrado e o empreendimento que busca transformar o local em espaço destinado ao turismo religioso, através do projeto Cruz de Todos os Povos.
Boaventura de Sousa Santos, em Epistemologias do Sul (2009), afirma que o pensamento moderno é um pensamento abissal, isto é, caracteriza-se pela distinção entre os visíveis e os invisíveis. De um lado da linha divisória estariam aqueles grupos que têm direito à visibilidade, que são reconhecidos como sujeitos históricos, que têm suas práticas e suas vivências reconhecidas. Do outro lado, estariam aqueles que se busca condenar à invisibilidade. De acordo com o sociólogo português, “a divisão é tal que ‘o outro lado da linha’ desaparece enquanto realidade, torna-se inexistente, e é mesmo produzido como inexistente” (p. 23).
É exatamente a invisibilidade dos grupos religiosos que tradicionalmente buscam o alto do Morro da Gurita para vivenciar suas experiências com o sagrado que se busca ressaltar ao analisar o processo de construção da Cruz do Espírito Santo no município de Divinópolis. Uma análise do Dossiê Cruz de Todos os Povos Divinópolis MG demonstra com clareza o abismo entre aqueles que estão de um e de outro lado da linha que separa aqueles que têm direito à visibilidade e aqueles que são condenados à invisibilidade. O Dossiê traz as correspondências entre autoridades eclesiásticas da Igreja Católica, registros de reuniões com lideranças governamentais nas esferas municipal, estadual e federal e com empresários locais. As fotos do coquetel de lançamento da Cruz de Todos os Povos e a da pedra fundamental da construção da Cruz mostram representantes dessas instituições governamentais, empresariais e religiosas (ligadas à Igreja Católica). Mas não há, ali, a presença de representantes dos grupos ligados ao Congado, ao Candomblé, à Umbanda, às celebrações da Festa de Santa Cruz. Não há também referências à presença desses grupos no Morro da Gurita ao longo da história apresentada pelo documento.
Somente a lógica do pensamento abissal poderia justificar o silenciamento sobre as comunidades tradicionais, sobre as expressões da religiosidade afro-brasileira e os festejos populares no alto do Morro da Gurita nos documentos da Associação Terra de Deus, nas matérias publicadas na imprensa local, nas reuniões com lideranças empresariais e governamentais. Uma ausência que busca condenar à invisibilidade. Há que se destacar, ainda, que tal ausência não poderia ser justificada pela falta de referências ou pela dificuldade de estabelecer contato com tais grupos. Os relatos já apresentados neste texto demonstram isso com clareza.
Akinruli e Akinruli (2017), no artigo Territórios da Congada nas Gerais: memórias da exclusão no tecido urbano, ao escreverem sobre o Congado nos territórios mineiros, a demolição da Igreja do Rosário em diferentes municípios do estado e os conflitos relacionados aos festejos da Congada no espaço urbano afirmam que
As edições, os esmaecimentos, os desfoques, os apagamentos, mostram-se de forma concreta em registros não somente da experiência, mas nas representações daquilo que se pesquisa. Há ângulos de visão distorcidos, e tratam-se de jogos de escalas nos quais coletividades “minúsculas” onde vivem pessoas “consideradas minúsculas” se chocam com políticas culturais municipais, estaduais ou federais de grande magnitude, colossais. (p. 4).
O conceito de pensamento abissal, apresentado pelo sociólogo português, e a reflexão acerca do choque entre as coletividades consideradas minúsculas e, por isso, condenadas à invisibilidade pelas políticas culturais, apresentada por Akinruli e Akinruli (2017), trazem à tona a necessária reflexão acerca das políticas de reconhecimento do patrimônio cultural material e imaterial de um povo. Nesse sentido, há que se perguntar se o Morro da Gurita, o Cruzeiro de aroeira preta, os antigos alicerces do Orago de Santa Helena e as pedras do muro seco que ali se encontram são – ou serão – reconhecidos como patrimônio cultural da população que vive em Divinópolis e faz deste espaço um lugar sagrado. Se as manifestações religiosas populares ligadas à Festa de Santa Cruz, ao Candomblé e à Umbanda que secularmente ali se realizam são reconhecidas como referências culturais de um povo. E, principalmente, há que se perguntar até que ponto a construção da Cruz do Espírito Santo, uma torre de tal magnitude, cujas luzes poderão ser vistas por todo o município e região, e que, espera-se, atrairá turistas e crentes de várias regiões do Brasil não condenará à invisibilidade a história dos grupos considerados minúsculos pelo discurso oficial.
Esta questão perpassa, obviamente, pelo debate acerca das políticas públicas para o patrimônio. Sabe-se que o reconhecimento de algo como patrimônio não está isento das ideias e valores hegemônicos num determinado período histórico, num determinado grupo social. Por isso, tem-se, invariavelmente, o reconhecimento dos edifícios monumentais, das obras de arte consagradas, dos prédios e propriedades de grande luxo como patrimônio cultural de uma determinada cidade, ou mesmo da humanidade, em detrimento das construções, saberes e fazeres daqueles e daquelas que não compõem os grupos sociais privilegiados econômica e socialmente. Em decorrência disso, solidifica- se uma concepção de patrimônio como algo estático, que precisa ser preservado à revelia
dos interesses e das necessidades da grande maioria da população. E mais, uma concepção de patrimônio que ignora, que não reconhece como tal elementos que têm valor e representação material e ou simbólica para as camadas periféricas, assim como não reconhece as lutas, os saberes, as festas, as celebrações populares, enfim, tudo aquilo que é criado / construído pelas camadas populares e que não possui a chancela do poder instituído, seja ele em termos políticos, econômicos ou religiosos.
Assim, confere-se visibilidade, através do reconhecimento oficial, através das políticas de tombamento e da destinação de verbas para preservação, aos espaços, prédios, obras de arte consagradas e a toda uma gama de elementos que se referem aos feitos dos vultos históricos de uma determinada sociedade. Mas o ser humano comum, aquele que está na periferia da História Oficial, não está representado nos bens arrolados como acervo patrimonial de uma determinada localidade. Embora seja possível detectar movimentos que buscam alterar esta lógica, há que se reconhecer que a mesma ainda impera entre os diversos órgãos ligados à defesa do patrimônio histórico e cultural no âmbito dos municípios, estados e da União.
Por outro lado, é importante registrar os avanços quanto ao debate acerca da educação para o Patrimônio Cultural. Neste sentido, o documento da UNESCO que reconhece o patrimônio cultural imaterial é um marco histórico importante, quando afirma que
Entende-se por patrimônio cultural imaterial as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados – que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração e geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua História, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. (UNESCO, 2003, p. 4)
Ao definir o conceito de patrimônio cultural imaterial, a UNESCO, bem como as resoluções do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), no caso brasileiro, e, acredita-se, também noutros países, incorporam ao conceito de patrimônio a ideia de que o mesmo é dinâmico e processual. Ainda que estes sejam adjetivos inerentes ao patrimônio imaterial, não há como negar que este movimento influenciará toda a concepção de patrimônio e alavancará as discussões acerca da educação patrimonial, além de contribuir para o reconhecimento de bens que, até então, não poderiam compor a relação oficial de patrimônio histórico de um povo.
O reconhecimento da não-neutralidade dessas políticas fortalece a luta daqueles setores que defendem a democratização da ideia de patrimônio, bem como a ideia de que o patrimônio pertence a todos. Mais do que isso, corrobora com a ideia de que o patrimônio revela aquilo que é o ser humano na produção de sua existência, seja nas dimensões materiais, seja nas dimensões simbólicas. Enfim, corrobora com o princípio de compreensão do ser humano como ser que é o que produz, tal como afirmam Marx e Engels em A Ideologia Alemã:
Da maneira como os indivíduos manifestam sua vida, assim são eles. O que eles são coincide, portanto, com sua produção, tanto com o que produzem como com o modo como produzem. O que os indivíduos são, por conseguinte, depende das condições materiais de sua produção. (Marx; Engels, 1993, p. 19.
Tem-se, pois, que o patrimônio cultural – material e imaterial – é obra da humanidade e a ela pertence. Nesse sentido, o alijamento de qualquer ser humano em relação ao patrimônio é um ato de desumanização: eis aqui um princípio básico que precisa nortear a educação patrimonial. O escritor moçambicano Mia Couto, no segundo volume de sua trilogia As areias do imperador – Sombras da água (2016), ao contar a história da guerra e das mulheres de Moçambique no final do século XIX apresenta o dito africano que afirma que “Ninguém é uma pessoa se não for toda a humanidade” (p. 67). Apropria-se aqui do dito africano para afirmar o direito ao patrimônio como direito fundamental do ser humano: direito à história e à memória. Para além do direito à sua própria história e à sua própria memória, também o direito à memória e à história de toda a humanidade, pois que cada ser humano, como nos lembram os griôs africanos, é toda a humanidade.
A construção de uma cultura do direito à memória e à história é tarefa complexa, a ser continuamente construída – e reconstruída. E, neste processo, a educação e a escolarização cumprem papel fundamental.
Outra questão conceitual inserida neste debate diz respeito aos conceitos de território e territorialidade. Para que homens e mulheres sejam respeitados na sua totalidade, há que se reconhecer e respeitar as relações que estabelecem com o território em que vivem. Para que os cidadãos e cidadãs possam se comprometer com a cidade em que vivem, precisam conhecê-la, precisam exercer o direito a este território. Assim, toma-se como definição de territorialidade o conceito apresentado por Sposito (2009, p. 11): “qualidade que o território ganha de acordo com sua utilização ou apreensão pelo ser humano”.
No entanto, as relações com o território e a territorialidade estão marcadas pelas relações de poder e dominação. Esta é, sem dúvida, uma das principais marcas da história deste país: o direito à posse, o direito ao território foi negado aos grupos dominados (indígenas, africanos e afro-brasileiros e os homens e mulheres pobres em geral) e garantiu a riqueza e a dominação dos grupos que o detinham. A oposição senhor x escravizado, coronel x lavrador está entranhada na consciência da nação brasileira e se repete noutras oposições ao longo do século XX e nas primeiras décadas do século XXI. Ainda hoje, têm direito à cidade aqueles que têm a posse do território – mesmo que esta posse, na contemporaneidade, se expresse através do controle dos meios de comunicação, do controle sobre as esferas de governo e outros meios.
Para discutir especificamente a questão da territorialidade, busca-se a distinção que Lefebvre (1986) nos apresenta, distinguindo apropriação e dominação.
O uso reaparece em acentuado conflito com a troca no espaço, pois ele implica apropriação e não propriedade. Ora, a própria apropriação implica tempo e tempos, um ritmo e ritmos, símbolos e uma prática. Tanto mais o espaço é funcionalizado, tanto mais ele é dominado pelos agentes que o manipulam tornando-o unifuncional, menos ele se presta à apropriação. Por quê? Porque ele se coloca fora do tempo vivido, aquele dos usuários, tempo diverso e completo. (Lefebvre, 1986, p. 411-412)
Enquanto espaço-tempo vivido, o território é múltiplo, é diverso e complexo. A lógica capitalista hegemônica, no entanto, busca tornar o território unifuncional, dominando-o e impedindo a apropriação do mesmo por parte dos grupos populares.
Considerações finais
Retomando a pergunta que guia esta reflexão, afirma-se que as comunidades tradicionais não têm sido ouvidas no processo de construção da Cruz de Todos os Povos. Afirma-se, ainda, que os grupos populares estão em vias de serem expropriados do alto do Morro da Gurita enquanto território sagrado e que este território, múltiplo, diverso, complexo, tende-se a tornar unifuncional, atendendo a lógica dos empreendimentos ligados ao turismo religioso.
O poeta Antônio Cícero (2006, s/p) afirma que “guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. Em cofre não se guarda coisa alguma. Em cofre, perde-se a coisa à vista”. Trata- se do poema Guardar que diz também que “guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado”.
O que se busca, aqui, é velar pelo Morro da Gurita. Nas palavras do poeta, estar por ele acordado, estar ou ser por ele. Para melhor guardá-lo, expô-lo. E expor os conflitos em torno da construção da Cruz de Todos os Povos, para que seja possível romper a linha abissal que separa aqueles e aquelas que não têm direito à visibilidade dos grupos que definem as políticas públicas de construção dos monumentos reconhecidos pela História oficial.
Referências
AKINRULI, L. C. M. C.; AKINRULI, S. A.. Territórios de Congada nas Gerais: memórias de exclusão do tecido urbano. XII Encontro Regional Sudeste de História Oral. Belo Horizonte, MG, outubro de 2017.
A PROVA. Divinópolis, MG. Câmara Municipal de Divinópolis – MG. n. 7, mai. 1998.
ASSOCIAÇÃO TERRA DE DEUS. Dossiê Cruz de Todos os Povos – Divinópolis, MG– Brasil. Divinópolis, 2019. Disponível em<https://www.cruzdetodosospovos.org.br/>. Acesso em 02 de junho de 2020.
CÍCERO, A.. Guardar: poemas escolhidos. 3 ed. Rio de Janeiro: Record, 2006. CLEMENTINO FILHO, J.. Memorial do Capitão José Clementino Filho. Divinópolis,MG, 1965. Mimeografado. 45 p.
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1 Doutor em Educação (PUC MG). Professor de Ciências Humanas. Membro da Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos -Seção MG.