REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102501150928
MACÊDO, Eduardo Henrique Santos de¹
RESUMO
Serial Experiments Lain é um anime complexo e um fenômeno da cultura cyberpunk que expressa a história de Lain Iwakura, uma garota de 14 anos que descobre a existência de uma realidade virtual e passa a se envolver com este mundo cibernético. Para esta pesquisa será realizada uma revisão bibliográfica, tomando como objeto de estudo a série de animação japonesa e suas implicações filosóficas acerca da realidade, existência e subjetividade da informação na Internet, percebidas no contexto global contemporâneo da integração do mundo digital à vida humana. Para a realização deste trabalho, será aplicada uma análise profunda da série, extraindo os temas explorados e correlacionando com bibliografias filosóficas, notícias e discussões atuais. Com a aplicação do estudo, é possível entender que o anime cria uma reflexão antecipada sobre os problemas e discussões recentes sobre a comunicação, informação e influência da tecnologia na sociedade.
Palavras-chave: Serial Experiments Lain; Filosofia; Internet; Realidade; Subjetividade.
1. INTRODUÇÃO
A segunda metade do século XX foi um período histórico marcado por uma série de transformações que afetaram a humanidade como um todo. O desenvolvimento acelerado de tecnologias, impulsionado pela globalização, disputas ideológicas da Guerra Fria, mudanças socioeconômicas e pelo aumento da influência das corporações tecnológicas multinacionais, levantou muitas questões sobre o futuro do ser humano e a relação da sociedade com as tecnologias que viriam a surgir. Tais discussões foram também exploradas com o advento de diversas obras literárias no início da década de 80.
Na transição para o novo milênio, a Internet se concebeu como um território digital emergente, onde foram elucidadas infinitas promessas de interconexão e acesso à informação. Após esse período, com sua popularização, ocorreu, então, a grande metamorfose que mudou para sempre o destino do mundo: uma nova era em que cada indivíduo é capaz de se conectar com qualquer outro através da Rede Mundial de Computadores (World Wide Web, em inglês).
A Internet, enquanto ferramenta de interconexão global, criou um paradigma para a humanidade, proporcionando a possibilidade de uma evasão para uma realidade alternativa – o ciberespaço. Em contrapartida, essa fuga do mundo físico para o ambiente virtual pode levar a uma forma de escapismo digital, onde os indivíduos se desligam de suas realidades objetivas e se imergem em um mundo moldado de acordo com seus desejos e necessidades. Além disso, a subjetivação da informação no ambiente virtual é um fenômeno preocupante.
O acesso facilitado à criação e compartilhamento de conteúdo online aumenta o risco de que fatos objetivos sejam obscurecidos por opiniões pessoais, desinformação e manipulação de dados. Essa intensa liberdade de expressão pode, portanto, levar a um ambiente onde a verdade é difícil de discernir, complicando a relação entre o sujeito e a informação. Consequentemente, a dissolução das fronteiras entre a realidade objetiva e o ciberespaço levanta uma série de questões filosóficas e existenciais. À medida que o ser humano se integra cada vez mais à tecnologia, a percepção do “real” é facilmente alterada pelas experiências virtuais, tornando essas questões cada vez mais pertinentes.
As inquietações acerca dos impactos obscuros da tecnologia se refletiram na cultura, especialmente com o surgimento do cyberpunk. Subgênero da ficção científica que aflorou na década de 1980, o cyberpunk projeta visões distópicas de futuros próximos, onde a alta tecnologia coexiste com a desordem social e o colapso dos sistemas tradicionais de controle. Em meio ao neon, implantes cibernéticos e megacorporações opressivas, o cyberpunk explora temas profundos sobre a interação entre o homem e a máquina. Livros como “Neuromancer” (1984) de William Gibson e filmes como “Blade Runner” (1982) de Ridley Scott tornaram-se marcos culturais que moldaram a estética e os temas recorrentes desse gênero.
Dentro desse contexto, o seriado de animação japonesa Serial Experiments Lain, lançado em 1998, oferece uma reflexão densa e filosófica sobre a interseção entre tecnologia, identidade e realidade. A protagonista, Lain Iwakura, é uma adolescente introvertida que descobre um elo entre a realidade objetiva e um ciberespaço regido por uma rede de comunicação global similar à Internet, conhecida como “Wired”. Essa rede não apenas espelha o nosso mundo físico, mas também o expande, abrigando informações e interações que transcendem o plano material. Dessa forma, à medida que Lain mergulha mais profundamente nesse universo, as fronteiras entre o digital e o real começam a se dissolver. Por conseguinte, a série levanta questões existenciais sobre o que significa ser humano em um mundo cada vez mais digitalizado.
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Após a Segunda Guerra Mundial e a disputa geopolítica da Guerra Fria, o mundo vivenciou uma rápida evolução tecnológica que transformou a forma como nos comunicamos e acessamos a informação. Além do atrito armamentista entre as potências da época — Estados Unidos da América (EUA) e as União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) —, houve também corridas tecnológicas, principalmente nas formas de comunicação.
Em 4 de outubro de 1957, a Rússia lançou para o espaço exterior à Terra o primeiro satélite artificial na história da humanidade. O satélite denominava-se Sputnik, completava uma órbita em volta da Terra a cada 90 minutos e emitia sinais rádio nas frequências de 20 MHZ e 40 MHZ que eram audíveis por qualquer pessoa que utilizasse um rádio receptor. Como reação a este avanço tecnológico russo, o presidente dos EUA, Eisenhower, criou, em outubro de 1957, a ARPA — Advanced Research Project Agency (Almeida, 2005).
Com a criação da ARPA, os EUA almejavam alcançar uma vantagem estratégica e tecnológica contra a URSS. Um dos projetos mais ambiciosos da ARPA foi a ARPANET, uma rede pioneira de computadores que se tornou operacional em 1969. Inicialmente, a ARPANET foi concebida para permitir a comunicação entre diferentes computadores de universidades e instituições de pesquisa. Esse sistema revolucionário utilizava a comutação de pacotes, um método de transmissão de dados que dividia a informação em pequenos pacotes enviados de forma independente e agrupados no destino. Essa inovação possibilitou uma comunicação mais eficiente e robusta em comparação aos métodos tradicionais de comutação por circuito.
Nos anos seguintes, a ARPANET cresceu exponencialmente, conectando um número cada vez maior de universidades e centros de pesquisa. Em 1983, a rede adotou o TCP/IP (Transmission Control Protocol/Internet Protocol), que se tornou o padrão para a troca de dados entre redes distintas. Este protocolo permitiu a criação de uma “rede de redes”, formando a base do que conhecemos hoje como a Internet, que se popularizou gradualmente ao se tornar pública.
A Internet transforma-se num sistema mundial público, de redes de computadores — numa rede de redes —, ao qual qualquer pessoa ou computador, previamente autorizado, pode conectar-se. Obtida a conexão, o sistema permite a transferência de informação entre computadores (Almeida, 2005).
O IMPACTO CULTURAL
Os avanços tecnológicos ocorridos no período foram percebidos pela cultura, com os anseios e expectativas relacionados às aplicações dessas novas tecnologias, sendo refletidos principalmente na literatura através da difusão de obras de ficção científica. Dessa maneira, este gênero literário que já vinha explorando temas de tecnologia e futuro, encontrou um terreno fértil nas inovações trazidas pela ARPANET e, posteriormente, pela Internet.
Na década de 1980, emergiu um subgênero específico da ficção científica que capturou de maneira perspicaz a confluência entre avanço tecnológico e mudanças sociais: o cyberpunk. O cyberpunk se destacou por sua visão distópica do futuro, onde a alta tecnologia coexiste com uma desintegração social e política. Esse subgênero literário e visual começou a tomar forma com obras relevantes como “Neuromancer” (1984) de William Gibson. O autor introduziu conceitos inovadores como o ciberespaço, um universo virtual acessado através de computadores, e explorou temas como a inteligência artificial, a biotecnologia e a fusão entre homem e máquina. Sua narrativa era marcada por um ambiente urbano sombrio e caótico, refletindo uma sociedade dominada por corporações poderosas e um governo enfraquecido.
Outros autores seguiram a trilha aberta por Gibson, consolidando o cyberpunk como um movimento cultural de grande popularidade. Bruce Sterling, em obras como “Schismatrix” (1985), e Neal Stephenson, com “Snow Crash” (1992), contribuíram para a expansão dessa corrente literária, cada um trazendo novas perspectivas e aprofundando a exploração de temas como a virtualidade, a identidade e a fragmentação social. Por fim, essas narrativas não apenas refletiam os medos e as esperanças geradas pelas novas tecnologias, mas também faziam críticas contundentes às desigualdades e às consequências não intencionais do progresso tecnológico.
O movimento também teve seu destaque na cultura oriental. “Serial Experiments Lain” (1998), um fenômeno do subgênero e ficção científica, é uma obra de animação japonesa que retrata a vida de Lain Iwakura, uma estudante japonesa de 14 anos que se envolve em uma situação confusa quando uma de suas colegas, Chisa Yomoda, comete suicídio. Contudo, dias depois, Lain recebe um e-mail da falecida, afirmando haver transcendido a matéria e estar hiperconectada a uma rede de comunicação global denominada Wired, análoga à internet. A protagonista então passa a experimentar eventos de natureza surrealista e a descobrir que a Wired é de alguma forma interligada com a realidade, o que a move para explorar esse universo virtual. Ao decorrer da série, a distinção entre realidade objetiva e realidade virtual se torna cada vez mais distorcida, conforme Lain explora o novo mundo que lhe é apresentado.
Figura 1 – Logomarca da série.
Fonte: Serial Experiments Lain (1998)1.
A realidade, segundo Abbagnano (2012, p. 976), é “o modo de ser das coisas existentes fora da mente humana ou independentemente dela”, enquanto a realidade virtual se caracteriza como “a realidade perceptiva induzida por aparelhagem cibernética capaz de substituir o funcionamento fisiológico normal dos sentidos” (Abbagnano, 2012, p. 1178). Desse modo, no decorrer da história, Lain desenvolve uma obsessão profunda pelo ciberespaço e acaba por ter o mesmo fim de sua colega, abandonando seu corpo físico e o mundo real para estar a todo momento na Wired. Lain então se torna uma entidade virtual, com o poder de se hiperconectar ao ciberespaço, tendo acesso a qualquer tipo de informação.
Esse abandono do próprio corpo, com a transferência da mente e do intelecto para um ambiente virtual, se assemelha às ideias de Marshall McLuhan (2012) sobre a extensão da consciência através da tecnologia: “Nesta era da eletricidade, nós mesmos nos vemos traduzidos mais e mais em termos de informação, rumo à extensão tecnológica da consciência”. Em síntese, mesmo estando em um lugar onde a projeção de qualquer coisa é possível, Lain começa a se sentir isolada, confrontando a subjetividade excessiva da realidade virtual, onde tudo que vê e percebe existe apenas em sua mente. Essa experiência a leva a questionar sua identidade e sua própria existência.
1 Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Serial_Experiments_Lain. Acesso em: 30 jun. 2024.
Figura 2 – Trecho da série onde Lain se mostra com sua mente conectada na Wired2.
Fonte: Serial Experiments Lain.
O fato de que tudo que é percebido não existe na realidade incomoda a garota, que, com o seu questionamento a partir do que é real e existe dentro do ciberespaço, conclui que o seu “avatar” é uma extensão dos seus pensamentos, sendo sua mente o único elemento que realmente existe naquele lugar. Essa conclusão se correlaciona com as ideias concebidas por Descartes (2018), que, com o exercício da dúvida metódica, afirma a existência verdadeira do próprio ser segundo seus pensamentos, sintetizada na célebre frase “penso, logo existo” (“cogito, ergo sum”, em latim).
A série, assim como o pensador francês, usufrui da ideia do dualismo mente-corpo ao explorar as situações do abandono do corpo físico e material com a transferência de consciência para a Wired. McLuhan complementa essa visão ao afirmar que “na era da eletricidade, o homem parece tornar-se irracional aos olhos do ocidental comum” (McLuhan, 2012), destacando a transformação radical na percepção e nas interações humanas promovidas pelas novas tecnologias.
2 Os cabos conectados na cabeça da protagonista exemplificam a ideia do usufruto da internet como extensão da mente humana, segundo o pensamento da tecnologia como extensão do homem de McLuhan.
A partir disso, a série inicia vastos questionamentos acerca da veracidade do que é percebido pelas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) que se desenvolvem e expandem, utilizando elementos de uma narrativa pós-moderna, com uma estrutura não-linear e um enredo aberto a múltiplas interpretações. Dado o fato de que, com a possibilidade de existência de múltiplas narrativas dentro do contexto virtual, a necessidade de saber distinguir o que é verdadeiro ou não cresce paralelamente à expansão de tais tecnologias, principalmente em uma internet globalizada onde todos possuem não apenas o acesso, mas também a capacidade de adicionar conteúdo e informações.
De acordo com Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2018), dos 181,1 milhões de brasileiros com idade acima de 10 anos, 69,8% afirmaram ter acessado a internet pelo menos uma vez nos três meses anteriores ao período da PNAD Contínua TIC 2017. Assim como na série de anime, o mundo é conectado como um todo através da Wired, e as pessoas que a utilizam para se conectar umas às outras e adquirir informações são sujeitas a múltiplas narrativas que podem distorcer a percepção da pessoa sobre a realidade. O anime aborda isso através das experiências enigmáticas de Lain com uma distorção do mundo real.
Tal fenômeno de subjetividade dentro da internet é relevante em um contexto atual e futuro, dadas as evoluções tecnológicas científicas sobre as Inteligências Artificiais (IAs), como o caso do GPT-4: um modelo de linguagem grande (large language model ou LLM, em inglês) multimodal. Isto é, um LLM capaz de interpretar texto, som, imagens e vídeos para produzir textos (“GPT-4: ChatGPT evolui e fica mais rápido para ouvir, conversar e descrever objetos”, 2024), podendo simular uma conversação similar a um ser humano de maneira indistinguível para a maioria das pessoas.
A existência desse e outros modelos usados para gerar esses elementos podem moldar a percepção individual e a opinião popular sobre qualquer pessoa, pauta ou ideia, havendo uma multiplicidade de narrativas que podem ou não ser verdadeiras e a possibilidade de estas influenciarem atos no mundo real, o que compactua com o conceito da conexão entre a realidade material e a Wired. Portanto, é necessário haver uma capacidade analítica adequada para entender o impacto que essas ferramentas apresentam, bem como conhecer a nossa própria mente, nossa própria existência e identidade.
Como elucida Harari (2021, p. 12): “Fazer escolhas sábias exige que compreendamos todo o potencial das novas tecnologias ◻, mas também necessitamos entender melhor a nós mesmos”. O pensamento de Descartes (2018), contudo, também está em consonância com essa ideia, afirmando que a obtenção de informações através dos sentidos tende ao engano, e a razão é a melhor forma do ser humano ter a capacidade de alcançar o conhecimento.
3. CONCLUSÃO
Conclui-se, após uma análise cuidadosa, que não somente os conteúdos apresentados na obra pioneira de animação japonesa, Serial Experiments Lain (1998), mas também as principais obras que se enquadram no subgênero cyberpunk, contribuem de forma significativa para o enriquecimento do debate acerca do impacto das TICs na sociedade moderna.
Essas obras destacam, de forma evidente e pertinente, a necessidade urgente de uma maior compreensão e conscientização sobre os complexos e subestimados mecanismos de segurança da informação. Este é um aspecto especialmente crítico em um mundo onde a distinção entre a realidade física e digital está se tornando cada vez mais tênue, quase indistinguível.
Assim, Serial Experiments Lain se destaca, servindo como reflexão profunda sobre estas questões. Além disso, a série ressalta a necessidade de um pensamento crítico mais rigoroso e detalhado sobre a forma como interagimos com a informação digital na sociedade contemporânea.
REFERÊNCIAS
ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. 6. ed. São Paulo: Wmf Martins Fontes, 2012.
ALMEIDA, J. M. F. Breve história da INTERNET. DSI – Sociedade da Informação, 2005. Disponível em: https://hdl.handle.net/1822/3396. Acesso em: 20 jun. 2024.
DESCARTES, R. Meditações metafísicas. Tradução: Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2018.
GPT-4o: ChatGPT evolui e fica mais rápido para ouvir, conversar e descrever objetos. G1, 13 maio 2024. Disponível em: https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2024/05/13/gpt-4o-openai-lanca-novo-modelo-de- inteligencia-artificial-para-o-chatgpt.ghtml. Acesso em: 13 mai. 2024.
HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma breve história da humanidade. Tradução: Jorio Dauster. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
INSTITUTO Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. PNAD Contínua TIC 2017: Internet chega a três em cada quatro domicílios do país. Rio de Janeiro, 2017. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de- noticias/releases/23445-pnad-continua-tic-2017-internet-chega-a-tres-em-cada-quatro-domicilios-do-pais. Acesso em: 20 mai. 2024.
MCLUHAN, M. Os meios de comunicação como extensões do homem. Tradução: Décio Pignatari. São Paulo: Cultrix, 2012.
SERIAL Experiments Lain. Direção de Ryūtarō Nakamura. Produção de Yasuyuki Ueda. Japão: Triangle Staff, 1998. 1 DVD.
¹ Estudante da terceira série de 2024 do Colégio Estadual Igléa Grollmann (Cianorte/PR). Possui o diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista e Altas Habilidades.